É absolutamente impossível ter uma noção ainda que remota do que já foi escrito acerca dos “maquiavelismos” neste meio milênio. Para muitos, Maquiavel, o político florentino queria apenas se dar bem e por isso escreveu O Príncipe, para conquistar um emprego com a família Médici. De modo quase geral, alimentado pelo senso comum, acredita-se que Maquiavel produziu um manual sobre o poder, como conquistar e manter o poder, sendo quase um manual de autoajuda para políticos – especialmente os sem-escrúpulos. Para outros, aos quais me alinho, o criador da Ciência Política produziu um manual sim, um texto brilhante, um clássico que não tem fim, mas sobre a formação da Razão de Estado.
Maquiavel não escreveu apenas para agradar Lorenzo de Médici e assim reconquistar seu emprego perdido de diplomata; talvez tenha procurado este fim, mas vemos em outros escritos do cientista político italiano que procurava refletir criticamente acerca da unificação do Estado, bem como assentar as bases da República italiana. Em texto menos conhecido, mas essencial à compreensão do pensamento político como um todo, como são os Discorsi ou Discurso sobre a Primeira Década de Tito Lívio, a defesa da liberdade e da República como forma de governo é uma tônica. Em outro texto, ainda menos conhecido, que é o único texto “não-científico” do italiano, a novela A Mandrágora, o italiano presa sobre a honestidade moral.
Em todo caso, n’O Príncipe, Maquiavel tratou de uma lógica do poder, em análise objetiva, histórica, da razão que explica e sustenta o poder em sua concretude. A mais conhecida frase sobre o poder, superando qualquer pensamento genial de Aristóteles, por exemplo, assegura que “os fins justificam os meios”. Não nos importa saber se ele próprio gostaria ou não que as coisas se dessem desse modo, se seria possível outra forma para definir o alcance do poder. Importa acima de tudo saber que esta regra do realismo político independe de qualquer análise subjetiva trazida por nossa moralidade política. Aliás, antes de mais nada, é preciso saber que Maquiavel refere-se ao poder do Estado e não se expressa aos poderosos de plantão como se lhes desse uma justificativa para massacrar o povo. Quem lê seu principal livro sabe localizar, perfeitamente, outras tantas afirmações de Maquiavel a fim de que o poder seja dominado com prudência e sabedoria dosadora da força. Basta-nos lembrar o pensamento que guardou de Petrarca: “O valor tomará armas contra o furor; que a luta se espraie bem depressa!”. Não seja tolo, não abuse da sorte ou da força bruta, e terá poder por muito tempo.
Maquiavel escreveu para alertar o governante da responsabilidade incomensurável de sua tarefa política, por isso quase endeusa o que se chama de Homem de virtù, aquele governante capaz de construir um Estado ou de afirmar uma religião dominante. A virtù é uma virtude de poder, sem dúvida, mas não é uma virtude religiosa, católica, cristã. Desde Maquiavel, com o desfecho da filosofia política reduzida a um campo especulativo da moral política, a análise objetiva do poder, separando-se política e moral pela primeira vez na história, iria requerer dali por diante o amparo histórico e concreto encontrado na ética pagã que guia a política em toda a história da Humanidade. Desde os romanos, a principal virtude do poder tem sido a capacidade de se manter soberanamente no poder: majestas. Desde os romanos, a prudência nos inclina a rever os capítulos da história, a reavaliar o que realmente é a prudência aplicada à história, como virtus, uma potência aplicada à política. A virtus da política é tão essencial, tão presente em nossa realidade que o virtual de cada dia é mais uma das instâncias políticas da realidade:
A palavra virtual vem do latim medieval, virtualis, derivado por sua vez de virtus, força, potência. Na filosofia escolástica, é virtual o que existe em potência e não em ato. O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado no entanto à concretização efetiva ou formal. A árvore está virtualmente presente na semente. Em termos rigorosamente filosóficos, o virtual não se opõe ao real mas ao atual: virtualidade e atualidade são apenas duas maneiras de ser diferentes (Lévy, 1996, p. 15).
Maquiavel advoga o que deve ser feito: onde vigora a moral cristã, os déspotas vicejam porque encontram pouca resistência. Daí a preferência pela moral pagã dos antigos, dos tempos imemoriais de Rômulo e Remo: como homens de Virtù; a antiqua virtus romana que tornava os homens viris, austeros e dedicados ao espírito público. Neste sentido, o cristianismo teria conduzido a dois malefícios: 1) o papado gerou a divisão política e a corrupção; 2) resignação humilde dos pobres e fracos que só levam à sua total aniquilação (a fraqueza de ação fortalece a opressão e a dominação). O que nos leva a pensar numa diferença real entre as coisas serem sutis demais, em serem confusas ou a distinção inexistente entre realismo e cinismo.
A virtù, então, nada mais é do que uma ação política racional. Também podemos dizer que com Maquiavel a política se tornou independente da moral e da religião, isto é, com Maquiavel, a política se tornaria racional e amoral — sem moral ditada pela religião. A virtù é a principal marca da racionalização ocorrida na sociedade moderna: a faculdade de ação política exitosa que se irradia sobre o conjunto humano. A virtù ainda se refere à qualidade do homem que tem grandeza de ânimo político ou fortaleza na vontade e no corpo: virtù (no italiano antigo) ou virtus (em latim) tanto será relacionada com virtude, quanto com o sentido latino de viril ou força, uma vez que o indivíduo virtuoso (com virtù) também é definido por sua capacidade de impor sua própria vontade (que tem força para tal e que não é inativo), em especial nas situações mais difíceis. Fazem isto numa combinação de caráter (a personalidade que dita a vontade; o querer o resultado político), força (violência), e cálculo (racionalidade: prever para prevenir). Virtus também se relaciona com virtualis que indica a ideia-forte de potência. O poder é uma potência a ser conquistada, assim como a deusa grega da Fortuna, a sorte que bafeja à porta do político que deve ser sábio para domá-la; como se faz com o cavalo encilhado que passa à nossa frente.
Então, em termos de Razão de Estado, Poder significa a capacidade de manifestar força, de alterar a potência, de impor e de provocar dominação, mobilizando sujeitos, expectativas e demandas numa relação hierárquica de subordinação, com ou sem o uso da força, a fim de que se cumpram determinadas normas e diretrizes, e que seja capaz de produzir os resultados almejados pelo soberano. É óbvio que não há poder sem que a potência tenha se desvencilhado do repouso em que se encontrava – sob esse argumento, poder é sempre movimento. Potência também é vontade. A política é uma potencia, resta-nos direcioná-la à corrupção ou à República.
Bibliografia
Del ROYO, Marcos & MARTINEZ, Vinício Carrilho. Hamlet: homem de virtù. IN : Estudos de Sociologia, UNESP/Araquara, v. 26, 2008, pp. 77-89.
LÉVY, P. O que é o virtual? São Paulo : Editora 34, 1996.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe - Maquiavel: curso de introdução à ciência política. Brasília-DF : Editora da Universidade de Brasília, 1979.