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Lei nº 9714/1998: paradoxos em seu ventre

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Agenda 01/01/2002 às 01:00

SUMÁRIO: Introdução. 1.0 – patologia de uma sociedade afetada pelo crescimento do crime de tráfico ilícito de entorpecentes. 1.1 – um clamor sem eco; 1.1.1- Pelo Executivo; 1.1.2- Pelo Legislativo; 1.1.3-Pelo Judiciário. 2.0 – razão filosófica da objetividade jurídica dos tipos penais no ordenamento jurídico-penal brasileiro; 2.1 –Objetividade jurídica do crime de tráfico ilícito de entorpecentes. 3.0 – 1º paradoxo: incompatibilidade da execução das penas alternativas aplicadas aos praticantes do crime de tráfico ilícito de entorpecente, dada a natureza da objetividade jurídica do mesmo tipo. 4.0 – 2º paradoxo: o equivocado e limitado conceito de violência contido no inciso i do artigo 44 do código penal. 5. 0 – 3º paradoxo: o descaso aos princípios. 6.0 -o verdadeiro limite do poder discricionário do julgador: o direito e a justiça, não a lei. 7.0 -elenco de alguns sofismas adotados para a aplicação das penas alternativas aos apenados por crime de tráfico ilícito de entorpecentes. 8.0 – conclusões. 9.0 – notas. 10 – bibliografia.


INTRODUÇÃO

Com a edição da Lei 9.714, de 25 de novembro de 1998, de apenas dois artigos, vários dispositivos no Código Penal tiveram a sua redação alterada, suscitando pelo menos uma controvérsia, qual seja a de que se é possível ou não a sua aplicação àqueles que forem condenados pelo crime de tráfico ilícito de entorpecentes.

Seu embrião foi o Projeto de Lei nº 2684/96, discutido e aprovado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária em reunião plenária realizada no dia 29 de outubro daquele mesmo ano, no Estado do Paraná.

Compuseram dito Conselho nomes de peso de nosso cenário jurídico, tais como: Damásio Evangelista de Jesus, Julita Tannuri Lemgruber, Heitor Piedade Júnior, Luiz Flávio Borges D’Urso, dentre outros.

A lei em questão surgiu, então, como resposta à necessidade de repensar as formas de punição do infrator, posto que, nos moldes de então, a prisão não vinha cumprindo o principal objetivo da pena, que é o de reintegrar o condenado ao convívio social, de modo que não voltasse a delinqüir (1).

Já se admitia, desde então, que, infelizmente, inexistiam condições de suprir por inteiro a pena privativa de liberdade, mas que se caminhava a passos largos para o entendimento de que a prisão deve ser reservada para os agentes de crimes graves e cuja periculosidade recomende seu isolamento do seio social (2).

Portanto, e com o velado propósito de atingir-se aqueles objetivos, a mencionada lei deu à luz novas modalidades de penas alternativas, a par das pré-existentes, trazendo ao nosso texto penal novidades como as figuras da prestação pecuniária, da perda de bens e valores. A de prestação de serviços à comunidade; de interdição temporária de direitos e de limitação de fim de semana já eram nossas antigas conhecidas.

De acordo com a novel lei amplia-se o leque de opções para que seja convertida a pena privativa de liberdade por penas alternativas, e, para que o apenado possa usufruir seus efeitos benéficos deverá ele atender a requisitos tanto de ordem objetiva quanto de ordem subjetiva.

Dentre os requisitos objetivos estão o de a pena privativa de liberdade não ser superior a quatro anos e o da natureza do crime, isto é, quando este não for praticado com violência ou grave ameaça.

Buscou, pois, o governo um meio de atender às necessidades prementes do momento, sancionando a dita lei.

É bem verdade que a preocupação com a ressocialização do sentenciado pertence ao Estado e cabe a ele criar mecanismos para que tal se torne realidade.

A lei posta, então, de caráter inovador em certo ponto, não poderia servir, como o que parece servir, de meio para que o Poder Público fuja da sua responsabilidade no que toca a construção de novos presídios, de criação de grupos profissionais voltados única e exclusivamente para esse trabalho.

Ocorre, porém, que o atendimento de tais mecanismos reclamam pesados recursos financeiros, nunca disponíveis. A melhor solução, portanto, é abrir as portas dos presídios atuais, reduzindo o custo para o governo.

Os governantes não afirmam e nem negam isso. É preferível a via menos onerosa. Basta editar leis que: ou descriminem tipos ou reduzam penas ou que, de qualquer forma, criem benefícios para alcançar o seu objetivo de esvaziar os presídios.

Aliás, já bem antes da Lei 9714/98, em 1977, em plena ditadura militar, ao tempo do governo do General Ernesto Geisel, quando ele acumulava as funções de Presidente com a de Legislador, foi editada a Lei 6416/77, que teve os mesmos propósitos, a qual foi batizada de "lei áurea da marginalidade".

O que se deseja é o que preso, ao sair da Penitenciária esteja, de fato, recuperado e pronto para voltar ao convívio social. Entretanto, na realidade brasileira isto já se tornou utópico, porque o Poder Público não faz o seu papel, satisfatoriamente, cumprindo com a sua parcela de responsabilidade. Prefere deixar a solução para a Sociedade, qual seja a de suportar e acostumar-se a conviver com malfeitores, seja colocando barras de ferro em suas janelas, seja equipando as suas residências com dispositivos contra invasões, seja não mais saindo para ir a um teatro, seja fomentando, indiretamente, a fabricação de veículos blindados, e seja até mesmo buscando proteger-se contra as balas perdidas.

Esse quadro é lamentável, mas é real e ninguém consegue em sã consciência refutá-lo.

A lei 9714/98, como já acentuado acima, veio, então, sob a máscara da preocupação com a ressocialização do apenado, criar novas penas alternativas, mas a verdadeira razão não se encontra aí, mas sim na impotência estatal de facear as despesas com um presidiário. Ignorar isso é o mesmo que querer tapar o sol com a peneira. Nem mesmo uma criança, aluna de primeiro grau, acreditaria nessa preocupação.

Tudo aquilo que vise a aprimorar o ser humano, edificando-o, dignificando-o, é bem vindo e até bíblico, mas não se queira alcançar isso com hipocrisias, passando-se por pseudos Beccarias.

Não se pode negar que a lei em comento traz valiosa contribuição para evitar-se a segregação de alguém que cometeu um crime de pequeno potencial ofensivo, e muitos são eles, porém, não se pode aceitar que essa mesma lei permita que um criminoso que agride a Sociedade por inteiro, colocando-a em risco, permaneça solto para continuar a delinqüir.

É o caso do traficante de substância entorpecente, previsto como crime no artigo 12 da Lei 6368/76. Referido crime tem a sua pena mínima estabelecida em três anos de reclusão e multa.

De acordo com a Lei 9714/98, sendo ele primário, será beneficiado pela substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos. É essa a nova inteligência que se tem dado ao artigo 44 do Código Penal, alterado por aquela lei, posto que o requisito objetivo da pena inferior a quatro anos estará preenchido, além de se entender que não houve violência ou ameaça.

Como se sabe o crime de tráfico ilícito de entorpecentes tem como objetividade jurídica a saúde pública, ou seja é difusa a proteção que o Estado assegura ao apenar a prática de aludido crime. Protege um universo de pessoas não mensurável, mas sabe-se que é um contingente de seres humanos. Não se preocupa somente com uma pessoa, mas com todas.

Paradoxalmente, vem esse mesmo Estado, com a criação da citada lei, permitir que se aplique aos condenados por tais crimes a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos. E por falar nestas, quais são elas mesmo?

Consoante o artigo 43 do Código Penal, com a nova alteração dada pela Lei 9714/98, tem-se o seguinte conjunto de penas restritivas de direitos:

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Prestação pecuniária;

Perda de bens e valores;

Prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas;

Interdição temporária de direitos e

Limitação de fim de semana.

Ora, levando-se em conta que na aplicação de qualquer destas modalidades de penas restritivas de direitos deverá o julgador observar sempre a aptidão do sentenciado e o princípio constitucional da dignidade humana, fica muito claro que não houve a mínima sensibilidade tanto do governo ao apresentar o seu projeto, quanto do legislador que ao aprovar dito projeto em lei não voltou a sua preocupação para com a Sociedade.

Agregue-se a tal permissividade, ofensiva em todos os pontos, a limitação do conceito de violência.

Queremos, assim, neste ponto, delimitar o nosso trabalho e com ele tentar demonstrar que a aplicação da Lei 9714/98 aos crimes de tráfico ilícito de entorpecentes é inadmissível, pois que incompatível com tais penas restritivas, assim como pretendemos apontar que, em assim o permitindo, não se respeita a preponderância de interesses no embate entre princípios. Mais ainda, que o conceito de violência albergado pela novel lei não pode ser analisado de forma tão suave como pretendem alguns doutrinadores.

Tanto não pode que será demonstrada, a seguir, a situação de nossa Sociedade no momento atual.


1.0 – PATOLOGIA DE UMA SOCIEDADE AFETADA PELO CRESCIMENTO DO CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES

Num artigo intitulado "Favelas:entre a cruz e a espada", de autoria de Rumba Gabriel (Antonio Carlos Ferreira Gabriel, presidente da Associação de Moradores do Jacarezinho e membro do Movimento Popular das Favelas), publicado na Seção Opinião do Jornal "O Globo", do dia 23/8/2001, página 7, afere-se com absoluta firmeza o quadro inquietante por que passa a nossa Sociedade em termos de violência (não só a violência física, mas também a violência pelo simples fato de vender drogas) imposta pelo crime de tráfico de entorpecentes.

Embora o espírito que o norteou na apresentação do artigo tenha sido para revelar, de certa forma, a discriminação por que passa um morador da favela, fato é que, necessariamente, fez uma contribuição valiosa no sentido de adiantar qual a participação que o traficante de drogas tem para colocar o morador numa posição de inferioridade social.

Pelo que se percebe das razões do articulista, é na favela que os traficantes encontram seu abrigo, às vezes sem mesmo lá morarem. Transcreve-se, a seguir, por pertinente, um trecho da aludida publicação:

"Embora parte dos traficantes use as favelas como escritórios e escudo, muitos deles, os mais poderosos, os quais trazem as drogas para os morros, não vivem onde nós vivemos. E a imensa maioria dos favelados não tem relação direta com o tráfico, para além do temor, necessário na vida sob qualquer poder armado.

(...)Ficamos, então, entre a cruz e a espada, perplexos e impotentes diante de um Estado que só aparece na forma de violência e da humilhação, e de um poder paralelo que, paradoxalmente, em determinadas ocasiões, até nos protege.

Como se bastassem o desemprego e a má qualidade de vida, as favelas têm esses inimigos internos poderosos. O crescente comércio de drogas forma o quadro mais triste de um conto de fadas ao avesso, em que os adolescentes são as grandes vítimas, iludidos com o dinheiro fácil e demais vantagens ilusórias.

Meninas que se tornam mães aos 10 ou 12 anos, pais alcoólatras ou viciados em drogas, jovens de 15 a 18 anos transformados em reis temporários e depois sumariamente mortos, mas logo substituídos, garotos e garotas fascinados pela potência que as armas inspiram."

Sem fugir do óbvio aspecto da discriminação como ponto central do tema de Rumba Gabriel, e numa interpretação de seu texto, o que se tem de concreto ainda é que, de fato, o traficante constitui um poderoso inimigo interno para os favelados; ele é, sem sombra de dúvida, o desencaminhador dos muitos jovens do local. É ele quem estimula, com o poder das armas, a ilusória sensação de segurança física e financeira. Aliás, nunca vimos traficantes aposentar-se por tempo de serviço! Sempre morre em troca de tiros ou morto a mando de outro traficante na disputa de mando pelo morro.

De acordo com ele, as estatísticas demonstram cabalmente que os indicadores de violência nas favelas são idênticos ou piores que os países em guerra civil.

Nada obstante o presente quadro seja apenas uma amostragem do que efetivamente acontece nas favelas do Rio de Janeiro, não se pode olvidar que ele seja idêntico em toda e qualquer favela do Brasil. Também não se pode negar que a atuação dos traficantes tem as suas ramificações fora do contexto da favela, ou seja, noutro meio social, e com a mesma intensidade de violência.

A violência que se propaga não se resume na troca de tiros, nas mortes doutros traficantes. Não! Ela tem outros matizes, como a escravização dos jovens, como a utilização da mão-de-obra ilícita.

Lembremos que estamos num país neoliberal, que enfrentamos grave crise financeira, com alto índice de desemprego, sofrendo os efeitos da globalização.

Numa situação dessas, o homem decente, que preza pelo seu caráter, pela sua dignidade de homem de bem, ganhando um salário-mínimo de R$180,00 (ainda tem os descontos legais!), e que deve sustentar família, vê-se facilmente tentado a trabalhar para o traficante, ganhando muito mais que o salário que recebia de seu empregador formal e lícito.

Não existe nisso uma forte dose de violência estatal em razão da sua omissão de uma política de empregos mais séria? Entendemos que sim.

O traficante, portanto, percebendo, tal fraqueza, aproveita-se da situação e, por conseguinte, é ele o agente perverso dessa patologia de nossa Sociedade. A doença existe. Só não vê quem não quer.

1.1 UM CLAMOR SEM ECO

Sem embargo das estatísticas, das publicações acima, com cunho de desabafo do seu autor, das inúmeras ponderações no sentido de que alguma coisa seja feita para que o quadro se modifique, a verdade é que a população sofrida vive gritando sem encontrar eco. Lamenta no vazio.

Reclama-se daqui e dali e nada surte efeito.

Mas de onde poderiam vir as soluções? Certamente de alguma política governamental voltada para tanto. Porém, a resposta que se dá à Sociedade é a edição de mecanismos jurídicos, os quais, numa interpretação insólita, permitem a adoção de benefícios para os condenados por crimes de tráfico de drogas.

Na verdade, existe até reconhecimento por parte de nossos governantes de que a situação da violência perpetrada por traficantes é caótica. Contudo, ao darem a resposta, esta se traduz num tiro pela culatra, qual seja, a Sociedade deve sofrer mais do que o traficante, aceitando-o em seu berço. Ele a ofende por inteiro e com ela vai conviver. Não dá para compreender tamanha perversidade estatal.

Quando se disse acima que há um reconhecimento da grave situação vivida em razão da violência dos traficantes, tal se pode afirmar com segurança a partir dos seguintes argumentos, espalhados nos sub-itens adiante.

1.1.1- Pelo Executivo

O Poder Executivo, ao seu tempo, tem se mostrado inerte diante da questão, não a enfrentando como deveria.

Com efeito. Isto se afere e se infere, facilmente, das entrelinhas, da Exposição de Motivos que capeou o Projeto de Lei que se transformou na Lei 9714/98, assinado pelo então Ministro da Justiça, Nelson Jobim, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal.

Nesse sentido, vejamos as seguintes linhas daquele documento, principalmente de seu item 4 (3):

"Mas, se infelizmente não temos, ainda, condições de suprimir por inteiro a pena privativa de liberdade, caminhamos a passos cada vez mais largos para o entendimento de que a prisão deve ser reservada para os agentes de crimes graves e cuja periculosidade recomende seu isolamento do seio social."

Desnecessário, portanto, qualquer esforço mental para se chegar à conclusão de que o Executivo participou com expressiva parcela de omissão ao negligenciar a questão da gravidade do crime de tráfico ilícito de entorpecentes, deixando um buraco negro no Projeto de Lei, cumpliciando-se com a lei aprovada, a qual amplia o poder discricionário dos julgadores. Negligenciou quando não teve a perspicácia reclamada para dizer que tais crimes dita lei não alcançaria.

1.1.2- Pelo Legislativo

Da mesma forma que o Executivo, o Legislativo, por sua vez, pecou na discussão do projeto, também não acenando com a restrição da aplicação da malfadada lei aos traficantes de drogas.

Não levou ele em conta o reclamo da Sociedade, principal fonte material de um ordenamento jurídico. Como sempre, identificando-se como o irmão siamês do Executivo, nesse e em outros projetos, mostrou-se subserviente.

Assim, na mesma proporção daqueloutro Poder, o Legislativo, igualmente, deu às costas para a Sociedade, deixando passar in albis um aspecto de tamanha relevância: Não impediu, ou pelo menos é o que parece, não ouviu a principal parte interessada na aprovação de um instrumento legal cujos efeitos podem levar, e levam na realidade, a uma violência superior àquela praticada pelo agente da conduta do crime de tráfico.

1.1.3-Pelo Judiciário

De todos os poderes da República, o JUDICIÁRIO ainda é aquele que se pode escrever com todas as letras maiúsculas, uma vez que tendo como escopo a dirimência de conflitos - e onde o homem interage estes existirão -, sempre se mostrou dito poder como o bastião da paz e da segurança jurídica de um país. É para ele que até mesmos os seus detratores acorrem na busca de seus direitos.

Infelizmente, com a edição da Lei 9.714/98, alguns julgadores têm se inclinado para a aplicação da mesma aos apenados pelo crime de tráfico ilícito de entorpecentes sob os mais variados fundamentos. Ao nosso ver, no entanto, sem qualquer consistência que justifique praticar um mal maior que o do agente da conduta, e contra a Sociedade.

Não precisa relembrar que, em princípio, todos os crimes têm como sujeito passivo a Sociedade.

Bem de ver, no entanto, que a posição da Sociedade ali é sempre secundária, posto que o legislador, ao priorizar os bens jurídicos para serem tutelados, sempre teve em mira a figura singular do indivíduo e não, diretamente, a Sociedade como um corpo que também sofre.

Mas, se assim é, como um pai poderá ser feliz e tranqüilo se não tem assegurado que seus filhos não serão alvos perfeitos do traficante de drogas?

Não nos consta que as várias interpretações dadas à Lei 9714/98 tenham sido no sentido de garantir a tal felicidade do coletivo. Ao revés, o que tem acontecido é um favorecimento interpretativo individual em detrimento do coletivo, do todo, da Sociedade.

Dizer que o juiz tem o poder discricionário para aplicar as penas alternativas é algo que não se refuta, mas dizer que pode, inclusive, escudado em tal poder, aplicar ditas penas aos traficantes é algo mais do que irrazoável. Aliás, este é um dos pontos básicos ainda a ser tocado neste trabalho.

Logo, da mesma maneira, o Judiciário deve rever as suas colocações em prol da Sociedade, pena de praticar um outro crime maior, penalizando o coletivo e favorecendo o singular quando se esquece que o comum sempre tomou a vez do singular.


2.0 – RAZÃO FILOSÓFICA DA OBJETIVIDADE JURÍDICA DOS TIPOS PENAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO-PENAL BRASILEIRO.

Não se desconhece que o nosso Direito Penal, sob o aspecto formal, está consubstanciado no Código Penal, que, por sua vez, está dividido em duas grandes partes: a Parte Geral e a Parte Especial. A primeira cuida da dogmática penal. É onde se situam os princípios fundamentais do Direito Penal e os fins visados pela legislação penal, adotados pelo País. Nela estão prescritas as bases e as condições da responsabilidade penal, os objetivos da pena, suas espécies, e métodos para a sua aplicação (4).

Percebe-se, assim, que o legislador procurou obedecer a uma certa regra de valores para dizer se determinado fato deve ser considerado com maior ou menor gravidade.

Esse norte adotado, na verdade representa fator preponderante para retratar a filosofia do Estado, a própria seqüência em que o Código coloca os tipos penais de acordo com sua gravidade. Na China, por exemplo, e outros países socialistas, consideram-se crimes de suma gravidade, punidos até mesmo com a pena de morte, aqueles praticados contra a ordem econômica (5).

Damásio (6) leciona que:

"Já dizia Carrara que a função específica do Direito Penal é a tutela jurídica. Visa o Direito Penal a proteger os bens jurídicos.

Bem é tudo aquilo que pode satisfazer as necessidades humanas. Todo valor reconhecido pelo Direito torna-se um bem jurídico. Os bens jurídicos são ordenados em hierarquia. O Direito Penal visa a proteger os bens jurídicos fundamentais para a vida em sociedade.

Impondo sanções aos sujeitos que praticam delitos, o Direito Penal robustece na consciência social o valor dos bens jurídicos, dando força ´as normas que os protegem".

Para a nossa realidade, pode-se notar que a vida guarda papel de suma relevância para os fins de proteção estatal, conforme se verifica no artigo 121 do Código Penal. A esta classificação decrescente, que notamos no aludido Código, damos o nome de objetividade jurídica, qual seja, que bem o legislador procurou defender e qual o grau de importância ele deu ao citado bem.

2.1 –Objetividade jurídica do crime de tráfico ilícito de entorpecentes.

Anote-se, de imediato, que as considerações anteriores a respeito da objetividade jurídica do crime praticado não estão circunscritas ao âmbito do Código Penal; pelo contrário, também nas leis esparsas ditas regras são obedecidas, sob pena de enfraquecimento do próprio sistema jurídico-penal. As razões filosóficas são as mesmas.

Assim é tratada a Lei 6368/76, também conhecida como Lei Antitóxicos, na qual são catalogados crimes em ordem de gravidade. Tanto isto é real que ela, inicia os crimes pelo artigo 12, que é o comumente chamado de tráfico, considerado o mais grave, passando por outros de menor potencial, e vai até o artigo 18, em cujos incisos se cuida de causas de aumento de pena.

Portanto, também nela o legislador não fugiu do critério filosófico esposado pelo Código Penal, na sua Parte Especial.

De um modo geral, ela procura preservar a saúde pública, pois que, principalmente o traficante, dissemina com o seu comércio de drogas um produto maléfico para a saúde de seus clientes.

Como já apontado antes, o tráfico de drogas tem um universo imensurável de destinatários; ele é difuso; atinge a toda uma coletividade e não foi à-toa que o legislador o classificou como o crime mais grave dentre o rol assinalado pela Lei 6368/76.

Como salienta Paulo Lúcio Nogueira (7)"o traficante deveria ser tratado com mais rigor, assim como punido com mais severidade, pois sua ação além de perniciosa, constitui uma ameaça constante aos jovens e à sociedade".

Esse mesmo autor ainda revela que:

"Na luta das autoridades contra os traficantes só têm levado vantagem os traficantes, que matam sem piedade aqueles que se atrevem a combater sua atividade criminosa, ilícita e destruidora, pois se os países têm escrúpulos em adotar medidas e punições mais severas contra as associações ou quadrilhas de traficantes, estas vão semeando o mal e intensificando o comércio de drogas, sem a correspondente punição, pois a própria interpretação das leis existentes acaba por favorecê-los".(8)

Relembre-se que a droga, e aqui não fazemos qualquer distinção sobre a natureza da mesma, causa motivações externas das mais variadas: inconformismo individual, familiar, profissional, religioso, a necessidade de auto-afirmação, decorrente da imaturidade, a qual encontra os seus adeptos, com mais freqüência, entre os jovens de 15 a 25 anos (9).

Na verdade, ela corroi a moral, inspira para o crime e tudo o mais que se considera nefasto. Ela, portanto, atingindo a sua vítima, não se limita a sujeitá-lo à dependência. Vai além. Estimula-o a praticar crimes, sem se considerar que a dependência comumente o leva também à morte.

O traficante é aquele que se escuda e se utiliza, para atingir os seus fins lucrativos, da mão-de-obra de favelados (os aviões); é ele quem dá a palavra final no morro; quem impõe a lei do silêncio; quem determina ao comércio fechar as portas quando bem lhe aprouver; quem mata os seus concorrentes; quem também mata ou manda matar aquele que não lhe paga o preço da droga por ele vendida; quem procura ser mascarado quando oferece um jogo de camisas de futebol para o time da favela e por aí a fora.

Qual o conceito, ainda que mínimo, que tal homem – o traficante - tem de dignidade humana? Como se pode esperar isso dele ao conceder-lhe a substituição da pena privativa de liberdade por uma das restritivas de direito?

Cabe aqui repetir a seguinte frase colocada em adesivos de automóveis:

"AME O SEU FILHO ANTES QUE UM TRAFICANTE O ADOTE".

De tudo o que foi dito até agora neste tópico é-nos permitido afirmar, seguramente, que: o crime de tráfico ilícito de entorpecentes ofende gravemente a saúde pública, assim como tem os seus tentáculos alcançando as demais pessoas.

As pessoas atingidas, indiretamente, pelo traficante, constituem uma gama de pessoas incontável e, por conseguinte, tal agente deve merecer um tratamento penal mais severo, posto que ele, para atingir a sua meta de comerciante deve, necessariamente, interagir com pessoas predispostas ao uso das drogas, ou mesmo fomentar o uso delas para os usuários já viciados.

Sem medo de errar, tráfico se traduz numa modalidade de câncer para o qual ainda não se encontrou a devida cura e sequer mesmo um meio para reduzir os seus perversos efeitos.

O quadro negativo é real e deve ser combatido. Soluções devem ser buscadas para que se minimize, pelo menos, a sensação de que nada está sendo feito para isolar da Sociedade os agentes de tal crime.

A nossa contribuição, calcada em razões de ordem jurídica e social, caminha com firmeza, como pode ser percebido, no sentido de que não se pode aplicar a Lei 9714/98 aos apenados pelo crime de tráfico de entorpecentes.

Neste sentido é que iremos demonstrar três paradoxos existentes na mesma Lei quando se pretender fazer tal aplicação para o fim de beneficiar àqueles agentes, mesmo em se tratando de primários, o que nos leva, com seriedade e fundamentos, a ser contrários à substituição da pena privativa de liberdade por uma das penas alternativas acima enfocadas.

O primeiro paradoxo é aquele relativo à aplicação de penas alternativas: não pode ser beneficiado o traficante, porquanto as penas em si mesmas são incompatíveis com o crime praticado em termos de correlação com a gravidade do delito e até mesmo de adequação já que o agente irá permanecer em contato diuturno com a Sociedade, sua principal vítima.

Nesse contato, por mais que se queira acreditar na possibilidade de que o agente irá expiar o crime perpetrado, não autoriza dizer que isso realmente irá acontecer; ao contrário, a presunção é de que crescerá nele a crença de que o crime compensa e o incentivará a continuar traficando. Noutras palavras, coloca-se a raposa para tomar conta do galinheiro.

O segundo paradoxo é aquele em que, a despeito do requisito objetivo do quantitativo máximo da pena aplicada – quatro anos -, a referida lei também confere a substituição desde que não tenha ocorrido violência ou ameaça.

Quanto à ameaça, abstraímo-nos de considerá-la, uma vez que desimportante para o propósito deste trabalho. Já a conceituação doutrinária que vem sendo dada à violência para propiciar o benefício é por demais branda, divorciada da realidade e, por assim ser tratada, não guarda consentaneidade com a objetividade jurídica do tipo em causa. Esclarecendo, mias uma vez, pune-se o coletivo em benefício do individual.

Por último, o terceiro paradoxo, que acreditamos ser o mais importante deles, que é justamente o fato de o legislador ordinário, na busca frenética de encontrar soluções políticas para o sistema prisional de nosso país, olvidou princípios constitucionais, sequer mesmo os considerou quando não foi expresso que a lei em questão não deveria alcançar o sujeito ativo do crime de tráfico de drogas.

Sobre estes três pilares será, pois, dado seguimento ao presente trabalho.

Sobre o autor
Sebastião Raul Moura Júnior

Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos, RJ. Pós-graduado em Magistério Superior em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Estácio de Sá. Pós-graduando em Direito Público na Unisal. Promotor de Justiça aposentado pelo Estado de Minas Gerais. Ex-Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Professor de Processo Penal da Faculdade de Direito de Valença, RJ. Atualmente, professor de Processo Penal no UBM-Centro Universitário de Barra Mansa-RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOURA JÚNIOR, Sebastião Raul. Lei nº 9714/1998: paradoxos em seu ventre. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 53, 1 jan. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2521. Acesso em: 23 dez. 2024.

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