6.0 -O VERDADEIRO LIMITE DO PODER DISCRICIONÁRIO DO JULGADOR: O DIREITO E A JUSTIÇA, NÃO A LEI.
Sob a ótica que até agora estamos a sustentar de que inexiste fundamento jurídico para a aplicação de penas alternativas aos apenados pelo crime de tráfico ilícito de entorpecentes, forçoso é reconhecer, por conseguinte, que quando a doutrina afirma que o juiz, ante a nova lei, passou a ter um maior leque de opções, ou seja, um poder discricionário, o faz desarrazoadamente.
Discricionariedade, ao que se sabe, não se confunde com arbitrariedade e é bom que se esclareça de pronto os limites daquela.
A discricionariedade, conceito imanente ao Direito Administrativo, é liberdade de ação dentro dos limites legais; arbitrariedade é ação contrária ou excedente da lei. Ato discricionário, portanto, quando permitido pelo Direito, é legal e válido; ato arbitrário é sempre e sempre ilegítimo e inválido (27).
Fica claro, assim, que o julgador tem um limite para fazer uso de sua discricionariedade:a própria lei. No caso da Lei 9.714/98 não se pode entender como sinal verde para a aplicação das penas restritivas de direitos aos agentes do crime de tráfico de drogas o simples fato de aquela mesma lei não fazer qualquer ressalva em tal sentido.
Tal limite é demonstrado pela natureza do direito que se fere, ou melhor, o interesse coletivo, o bem-estar comum, a Sociedade como um todo, como imposto pelo artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. Pena de estar enfraquecendo a defesa social e de ferir de morte inúmeros princípios consagrados pela nossa Lei Maior como sustentado alhures.
Ao nosso aviso, deve o juiz, diante da bifurcação que a novel lei enseja, ter a percepção de qual será o mal maior: aquele que resulta da aplicação de tais penas, e aí a Sociedade sofreria as conseqüências, ou aquele que resulta da inaplicabilidade, e ai a Sociedade teria assegurado uma convivência justa como objetivo fundamental da nossa República.
Cremos que, em sã consciência, nenhum cidadão optaria pela primeira hipótese.
A questão, portanto, é puramente de hermenêutica. Deve o juiz ter em conta o Direito e a Justiça. Não só a Lei. Ao fazer a opção somente por esta correrá o risco de resultados injustos.
Senão vejamos.
Numa invocação brilhante de Benedito Calheiros Bonfim (in Lei, Direito e Justiça, JCB 06/02/95), Reis Friede (28), eminente magistrado federal, mestre e doutor em Direito, traz à luz as seguintes considerações:
"A expressão Direito é utilizada, freqüentemente, como sinônimo de lei, Direito Positivo. O seu uso em lugar de lei explica-se, não apenas por ser correntemente empregada com esse significado, como ainda porque, em muitos países, como por exemplo, nos Estados Unidos e na Inglaterra, Direito e lei são designados, indistintamente, pela palavra law.
Há que distinguir, conceitualmente, lei e Direito.
A lei é norma jurídica escrita, genérica e obrigatória, emanada do órgão competente do Estado.
O Direito, mais amplo e abrangente que a lei, não se esgota na norma legal. Situando-se além desta, ele contém em si o sentido do justo, do social, do humano, do legítimo.
Por isso mesmo, não se dissocia o Direito do justo, do ético. Não pode, por essa razão, haver conflito entre Direito e justiça. São conceitos que se confundem.
A lei, fórmula abstrata, inanimada, é apenas parte do todo, que é o Direito. Ela está para este como o alfabeto para o idioma, o acorde para a música, a simples escrita para a leitura.
Quando Eduardo Couture, em seu clássico Decálogo do Advogado, recomendou que, no caso de encontrar o Direito em conflito com a justiça, cumpre ao advogado lutar por esta, certamente utilizou o vocábulo Direito como sinônimo de lei.
A diferença entre lei e Direito é magistralmente explicada por Pontes de Miranda: "O princípio de que o juiz está sujeito à lei é, ainda onde o meteram nas Constituições, algo de "guia de viajantes, de itinerário, que muito serve, mas nem sempre basta (...) Se entendermos que a palavra "lei"substitui a que lá deverá estar, "Direito", já muda de figura. Porque Direito é conceito sociológico, a que o juiz se subordina, pelo fato mesmo de ser instrumento da realização dele. E esse é o verdadeiro conteúdo do juramento do juiz, quando promete respeitar e assegurar a lei. Se o conteúdo fosse o de impor a letra legal, e só ela, aos fatos, a função judicial não corresponderia àquilo para que foi criada: apaziguar, realizar o Direito subjetivo. Seria a perfeição em matéria de braço mecânico do legislador, braço sem cabeça, sem inteligência, sem discernimento; mas anti-social e, como a lei e a jurisdição servem à sociedade, absurda. Além disso, violaria, eventualmente, todos os processos de adaptação da própria vida social, porque só atenderia a eles, fosse a moral, fosse a ciência, fosse a religião, se coincidissem com o papel escrito (...) Pouco importa, ou nada importa, que a letra seja clara, que a lei seja clara: a lei pode ser clara, e obscuro o Direito que, diante dela, se deve aplicar. Porque a lei é roteiro, itinerário, guia (...) O Direito, e não a lei como texto, é que se teme seja ofendido.
(...)
(...)
O magistrado que se escraviza à letra da lei e se mostra obediente a súmulas, mesmo quando flagrantemente contrárias à justiça e não mais atendem "aos fins sociais a que (as leis) se dirigem" abdica de sua independência, despe-se de sua consciência jurídico-social, desveste-se do espírito crítico e criador, renuncia, enfim, à sua função autônoma de interpretar e julgar livremente, de acordo com a sua convicção. Antes de ser um servidor da lei, o juiz é um produtor de justiça.
(...)
(...)
Se a lei está divorciada do Direito – indaga e responde o magistrado Eliézer Rosa -, cruzará o juiz os braços e deixará de lado aquilo que realmente é Direito? Absolutamente, não. Tenha o juiz a coragem cívica e profissional de criticar, até mesmo com veemência, o teor da lei que não expressa o Direito. Crítica respeitosa, criteriosa, fundamentada (...) Quem sabe se uma lei é boa ou má é o juiz e não o legislador. Busque o juiz revelar o Direito na sua sentença, sem importar-se se atendeu ou desatendeu à lei".
O trecho é extenso, mas compensadora a sua transcrição ante a sua pertinência.
Forte, assim, em tão proveitosos ensinamentos, podemos asseverar que, no caso da Lei sob foco, o juiz não atenderá o Direito, e muito menos fará justiça enveredando para a aplicação de penas restritivas de direitos aos praticantes de crimes de tráfico ilícito de entorpecentes. Estará ele fugindo do seu compromisso com o social.
Noutras palavras, e repetimos, a questão é puramente de hermenêutica. Outro sentido dado ao caso seria apoiar-se em sofismas.
Assim, o Direito e a Justiça, esta como fim colimado pelo Estado na busca da convivência justa e duradoura, transcendem até mesmo o princípio da retroatividade da lei penal assegurado pelo parágrafo único do artigo 2º do Código Penal.
À primeira vista pode até parecer uma heresia jurídica o que sufragamos, posto que sempre e sempre se sustentou que a liberdade é a regra e a prisão a exceção. No entanto, no caso da inaplicabilidade das benesses da Lei 9.714/98 aos agentes do crime de tráfico de entorpecentes, isto se torna um mal necessário, sem que isto constitua afronta àquele princípio da retroatividade em função dos paradoxos já exaustivamente enunciados.
7.0 -ELENCO DE ALGUNS SOFISMAS ADOTADOS PARA A APLICAÇÃO DAS PENAS ALTERNATIVAS AOS APENADOS POR CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES
Muitos julgados têm admitido a possibilidade, até então, de aplicação das penas restritivas de direitos aos agentes praticadores do crime de tráfico ilícito de entorpecentes, sob os mais diversos fundamentos.
Trazemos a pelo, para demonstrar a variedade de fundamentações, alguns deles.
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em Turma, da Segunda Câmara Criminal, decidiu, por unanimidade de votos, na Apelação Criminal nº 000.210.008-9/00, sobre o tema em questão, da seguinte maneira:
"Ementa: Tráfico ilícito de entorpecentes – crime hediondo – substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos – possibilidade. Em direito penal, diante da rigidez do princípio da reserva legal, não há que se falar em lacunas quanto a normas incriminadoras ou mais gravosas, não podendo, destarte, nesse campo, valer-se o intérprete dos processos científicos de integração da norma penal. Se a lei 9.714/98 é de natureza geral e não há na lei 8.072/90, especial, vedação expressa quanto à concessão da substituição em apreço – ainda que pelo fato de não se cogitar dessa hipótese à época da sua edição -, não pode o operador jurídico negar a aplicação do benefício ao simples argumento de que há incompatibilidade de ordem ideológica entre os dois diplomas legais. O fato de determinar a lei dos crimes hediondos que a pena aplicada por delito nela previsto deva ser cumprida integralmente em regime fechado não é obstáculo à incidência das novas regras introduzidas nos arts. 44 e seguintes do Código Penal. Isto porque a fixação do regime de expiação da pena privativa de liberdade constitui, na escalonada atividade do juiz de individualização da reprimenda, momento posterior ao da análise da viabilidade de sua substituição ou mesmo da sua suspensão condicional. As penas restritivas de direito constituem importante instrumento de política criminal, conferindo ao juiz uma indispensável margem de discricionariedade para que possa dar tratamento adequado aos casos que se lhe apresentem, reduzindo os efeitos negativos da pena e estimulando a reintegração do condenado. Cumpre ao aplicador do direito proceder com redobrado cuidado na concessão de qualquer benefício legal ao condenado pela prática de crimes previstos na Lei dos Crimes Hediondos, devendo restringi-los a hipóteses especiais, quando efetivamente o recomendarem as circunstâncias do delito e as condições pessoais do agente, elementos esses que, evidentemente, somente poderão ser sopesados em cada caso concreto" (29).
Respeitosamente, ousamos afrontar e enfrentar tal pensamento, em que pese a sua origem.
Não se discorda em muito do julgado. O que não se entende é como ele afirma que o crime de tráfico ilícito de entorpecentes é hediondo por excelência, com cumprimento da pena em regime fechado, e ao mesmo tempo, consagra a possibilidade de aplicação das penas restritivas de direito sob o falso argumento de que a novel lei trouxe novas regras.
Teria sido, então, revogada a Lei 8072/90?
Datissima máxima vênia, que existe incompatibilidade entre ambas existe.
Dizer que não com base na ordem ideológica até se compreende. Mas dizer que não pura e simplesmente porque não existe obstáculo para tanto é inversão de valores. É tirar o coletivo de campo, é afastar o bem comum numa simples canetada e escalar o individual.
Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça, por sua Sexta Turma, no julgamento do Hábeas Corpus nº 8753, em 15/4/1999, sendo Relator o eminente Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, em questão semelhante, assim se pronunciou:
"HC – Penal – Pena Substitutiva – Lei 9.714/98- Crime hediondo- A Lei 9.714/98, de 15 de novembro de 1998, recomendada pela Criminologia, face à caótica situação penitenciária nacional, em boa hora, como recomendam resoluções da ONU, de que as Regras de Tóquio são ilustrações bastante, ampliou significativamente a extensão das penas restritivas de direitos, conferindo nova redação a artigos do Código Penal brasileiro. O art. 44 relaciona as condições: I –aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido co violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo; II – o réu não for reincidente em crime doloso; III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente. Reclamam-se, pois, condições objetiva e subjetivas; conferem, aliás, como acentuam os modernos roteiros de Direito Penal, amplo poder discricionário ao Juiz. O magistrado, assim, assume significativa função, exigindo-se-lhe realizar a justiça material. crime hediondo não é óbice à substituição. A lei, exaustivamente, relaciona as hipóteses impeditivas (art. 44)".
Como podemos perceber, o STJ reforçou o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de Minas quando diz que o crime hediondo não é óbice à aplicação da Lei 9.714/98 aos crimes de tráfico ilícito de entorpecentes.
A questão da possibilidade de aplicação sustentada pelo venerável acórdão sob o ângulo da inexistência de restrição na lei nos leva a imaginar que Rogério Greco (30) tem razão quando aborda o princípio da adequação social.
Diz aquele autor que:
"Preconiza, em síntese, o princípio da adequação social que, quando não existir qualquer figura típica proibindo ou impondo determinado comportamento sob a ameaça de sanção, é sinal de que a conduta praticada pelo agente, embora possa ser até perigosa, é considerada socialmente adequada.
A vida em sociedade nos impõe riscos que não podem ser punidos pelo Direito Penal, uma vez que essa mesma sociedade com eles precisa conviver de forma mais harmônica possível.
O trânsito nas grandes cidades, o transporte aéreo, a existência de usinas atômicas são expressões de quão perigosa pode se tornar a vida em sociedade. Mas, embora sejam perigosas, são consideradas socialmente adequadas e, por essa razão, fica afastada a interferência do Direito Penal.".
Aproveitando o trecho ora transcrito, e fazendo um raciocínio às avessas, podemos admitir, então, que tudo o que a lei não proíbe é porque é permitido, e nisto louvam-se os julgados trazidos à luz.
Acontece que seria despiciendo lembrar os exemplos mencionados pelo ilustre membro do Ministério Público mineiro, Dr. Rogério Greco, uma vez que eles constituem o progresso de um povo, a luta por melhor qualidade de vida, sendo que tais riscos fazem parte do dito progresso. O que se busca, na hipótese de tais exemplos, é o bem, não havendo como se aceitar a comparação.
O princípio em causa, não apoiado naqueles exemplos, serve para sustentar que, ao contrário da permissividade para aplicar as penas restritivas de direitos aos traficantes de drogas, deve ser levado em conta também para proibir o que a lei penal não cogitou, como no caso da nocividade do tráfico das drogas com reflexo na sociedade. O que a lei 9.714/98 não proibiu não significa anuência para que seja permitido.
No entanto, a construção que se fez não levou em linha de consideração o que já sustentamos antes no sentido de uma hermenêutica voltada para uma Justiça como correta aplicação do Direito.
Limitou-se o acórdão em aplicar as benesses em face de inexistência de restrição na lei, não se preocupando com o Direito e muito menos com a Justiça.
A admissão em seu texto da situação caótica do sistema prisional nacional é falta de argumento substancial para justificar tal benefício. É encampar os erros.
Na verdade, ao mesmo tempo em que reconhece tal situação, como um erro, o acórdão amplia o erro. Não o desfaz, mesmo sabendo que em desfavor da Sociedade e, assim, permitindo a aplicação da questionada lei.
Quando o julgado lembra que o juiz, na individualização da reprimenda, deve atentar para a conduta social do réu, bem como para os motivos do crime, o que deverá consignar ele? Que a conduta do réu diante da sociedade, como traficante, é inofensiva? Que os motivos (que o levaram a traficar) foram nobres?
Qual juiz irá considerar que praticar tráfico de drogas é motivo aceitável? Qual julgador atento ao social irá adotar como favoráveis ao acusado todas essas circunstâncias?
Na verdade, os fundamentos de ambos os julgados não são estribados num raciocínio de lógica, mas sim escudados em verdadeiros sofismas.
Se for sabido que o artigo 12 da Lei 6368/76 (Lei de Tóxicos) trata de um crime de ação múltipla, contendo vários núcleos, certo é que incidindo o agente em qualquer daqueles verbos será tido como traficante.
No entanto, exemplos existem em que o agente pode estar incurso num daqueles verbos sem, necessariamente, ser cotado como traficante. Este, ao que se sabe, é aquele que pratica o comércio de drogas, que faz a mercancia, que "trabalha" com a venda de drogas.
Porém, aquele que for encontrado na posse da droga, sem ser usuário ou dependente, certamente irá responder pelo crime de tráfico, justamente por que típica a sua conduta como traficante, embora não a comercialize. Será isto justo?
Repita-se, mas ante a citada lei ele é traficante.
Se o magistrado for escravo da lei, irá condená-lo com toda a certeza.
Se não é justo, embora legal, qual será então a solução para evitar-se injustiça?
Qual exercício mental irá utilizar o julgador para praticar a Justiça? Evidentemente que será uma desclassificação para o artigo 16, já que, pelo menos, neste artigo o "trazer consigo" é também um verbo daquele tipo.
Como muito bem lembra Paulo Lúcio Nogueira (31), o artigo 16 da lei antitóxicos "tem sido o abrigo natural não só do realmente dependente ou viciado (para uso próprio) como para todos o s demais tipos de criminosos como o simples portador, o curioso experimentador, que têm sido enquadrados na vala comum, que é guardar ou trazer consigo, desde que a substância entorpecente seja apreendida em poder do acusado".
Nem tanto ao mar nem tanto a terra. Como se pode notar, comungamos da posição supra.
Porém, se o juiz exerce tal raciocínio, mesmo diante da tipicidade da conduta como traficante, aos olhos do artigo 12, com o propósito de fazer justiça, como então, no caso do verdadeiro traficante não pode fazer o mesmo exercício para afastar, em nome do bem comum, do bem jurídico tutelado, do coletivo, os efeitos da Lei 9.714/98 para fazer Justiça e imperar o Direito?
Não se esqueça de que o réu, mesmo sem o amparo desta lei, terá respeito a sua dignidade humana...Mas preso! Na cadeia, é dever do Estado respeitar os seus direitos enquanto preso. O contrário será desrespeitar a dignidade humana dos membros da coletividade que ele agrediu com a sua conduta.