DIREITOS FUNDAMENTAIS E RELAÇÕES PRIVADAS
ASPECTOS GERAIS
Em diversas passagens deste trabalho, foi ressaltado que, inicialmente, os direitos fundamentais foram concebidos como direitos de defesa dos cidadãos em face do Estado, vinculando negativamente o poder público, que deveria se abster de violá-los.
Entretanto, alterações ocorridas tanto no domínio do próprio conceito e extensão dos direitos fundamentais quanto na configuração da sociedade impõem a superação dessa concepção própria do liberalismo.
Afirma Márcia Zollinger(2006, p.76), que “o avanço histórico de um modelo de Estado liberal de Direito para um modelo de Estado social de Direito alarga o conteúdo dos direitos fundamentais, que passa a compreender novas gerações de direitos. A positivação de direitos de segunda geração, de caráter nitidamente prestacional, imprime nos direitos fundamentais uma dimensão objetiva, que consiste em compreendê-los como valores jus fundamentais que orientam a atuação dos poderes públicos e irradiam efeitos por toda a ordem jurídica”.
Vale frisar que o respeito aos direitos fundamentais nas relações entre particulares não está restrito aos sujeitos envolvidos na relação. Ao legislador impõem-se uma obrigação negativa de não elaborar leis que violem os direitos fundamentais. Este Poder possui também a obrigação positiva de realizar e proteger os direitos fundamentais, conformando as relações travadas entre os particulares segundo as diretrizes dos direitos fundamentais.
Além disso, há o dever do poder judiciário de interpretar e aplicar o direito infraconstitucional em consonância com os direitos fundamentais.
Não podemos deixar de reconhecer algumas peculiaridades da sociedade contemporânea, que influenciam a aplicação dos direitos fundamentais às relações particulares. A própria configuração atual da sociedade – neoliberal, capitalista, globalizada e desigual – enfraquecem a tese de que as ameaças aos direitos fundamentais não provêm apenas do Estado, mas também podem advir dos entes privados, detentores de parcelas cada vez maiores de poder econômico e social, que num contexto de economia capitalista participam ativamente do poder e das decisões políticas.
Outro aspecto fundamental e que possui extrema relevância para a compreensão deste trabalho, é a questão da igualdade material entre os cidadãos. Nesse sentido, vale frisar mais uma vez as lições da autora baiana(Zollinger, P.77), “A eficácia horizontal dos direitos fundamentais tem conexão com a concepção material da igualdade entre os cidadãos. Considerava-se, na perspectiva liberal, que o homem travava relações com seus iguais no âmbito privado, supostamente desfrutando do gozo pleno de sua autonomia privada e liberdade de atuação, razão pela qual nem sequer havia lugar para se cogitar da incidência dos direitos fundamentais nessas relações de igualdade, visto que os direitos fundamentais eram instrumentos de defesa dos cidadãos contra as ingerências do detentor de poder, o Estado”.
Essa concepção puramente formal da igualdade entre os homens não se coaduna com a sociedade hodierna, em que os atores privados assumem efetivamente uma parcela significativa de poder econômico, social e político. A desigualdade material do homem concreto o impede de exercer plenamente sua liberdade, limita sua autonomia privada, expondo seus bens jus fundamentais diante de sujeitos privados mais fortes.
Nesse sentido, Perez Luño(1984, p. 22/23), destaca que:
[...]É um fato notório que na sociedade neocapitalista esta igualdade formal não supõem uma igualdade material, e que nela o pleno desfrute dos direitos fundamentais se vê, muitas vezes, ameaçado pela existência na esfera privada de centros de poder não menos importantes do que os que correspondem aos órgãos públicos. (tradução nossa).
Podemos afirmar que há consenso na doutrina em aceitar a eficácia das normas jus fundamentais nas relações privadas, ocorrendo divergência, entretanto, na maneira em que se dá esta eficácia, se de forma direta ou indireta. No entanto, as teorias que procuram explicar a eficácia desses direitos, aparentam consentir em que a medida ou extensão da eficácia, seja ela direta ou indireta, deve ser determinada pela ponderação dos bens jus fundamentais em conflito. Isso porque as relações entre particulares são relações que envolvem titulares de direitos fundamentais – como a autonomia privada do cidadão, por exemplo – enquanto que as relações entre cidadãos e Estado ocorrem entre um titular de direito fundamental e um que, em regra, não titulariza direitos fundamentais.
Diante dessas premissas, podemos passar a análise das principais teorias acerca do modo como se dá a incidência dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, dividindo-as em correntes que propugnam pela eficácia de forma mediata(indireta), de forma imediata(direta). Para isso, parte-se da premissa, hoje presente de forma geral na doutrina e jurisprudência, de que os direitos fundamentais exercem alguma eficácia, também, nas relações privadas.
TEORIA DA EFICÁCIA MEDIATA OU INDIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES.
Esta teoria teve origem na Alemanha, a partir das formulações elaboradas por Günter Dürig, amplamente aceitas na doutrina Alemã e acatados pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão em reiteradas decisões proferidas a partir da década de cinqüenta.[1]
Em síntese, esta teoria defende a impossibilidade de invocar diretamente da constituição um direito fundamental para reger determinada relação jurídica estabelecida entre particulares. Assim, para seus defensores, os direitos fundamentais incidem sobre o legislador infraconstitucional de direito privado, como princípios ou valores fundamentais, o qual deve levar em conta valores jus fundamentais quando da elaboração das normas de direito privado.
Dessa forma, o legislador assume a primazia de dirimir eventuais conflitos entre a autonomia privada e os direitos fundamentais, através da ponderação da proporcionalidade, escolhendo e positivando a conduta privada a ser exigida dos particulares.
Por outro lado, ao Judiciário cabe a tarefa de interpretar e aplicar as normas de direito privado, bem como de integrar o conteúdo das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados em conformidade com os valores jus fundamentais.
Nesse sentido Ingo Sarlet(2003, p. 357) aduz que, de acordo com esta teoria, os direitos fundamentais apenas influenciam nas relações privadas após um processo de transmutação, ou seja, de incorporação no âmbito privado especialmente por meio da aplicação, interpretação e integração das cláusulas gerais e conceitos indeterminados à luz dos parâmetros axiológicos contidos nas normas de direitos fundamentais.
É fato que há em nosso ordenamento jurídico, normas que regulamentam direitos fundamentais estabelecidos em nosso ordenamento constitucional, como os direitos da personalidade previstos no código civil brasileiro, como nos artigos:
Art.17. O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.
Art.21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.
Mas essa teoria não está restrita a estes dispositivos, que na maioria das vezes limita-se a reproduzir, sem nenhuma margem de subjetivismo os dispositivos da constituição brasileira.
É nesse sentido que Virgílio Afonso da Silva(2005, p. 78) afirma que o principal elo entre os direitos fundamentais como sistema de valores e o direito privado, segundo o modelo de efeitos indiretos, são as chamadas cláusulas gerais.
Essas são cláusulas que requerem um preenchimento valorativo na atribuição de sentido, pois são, para usar uma expressão difundida na doutrina jurídica brasileira, conceitos abertos, cujo conteúdo será definido por um juízo subjetivo do aplicador do direito. Esse não pode ser, contudo, ao contrário do que muitos ainda pensam, um processo baseado em valores morais extras ou supralegais, mas sim naqueles consagrados pela constituição.
E continua o ilustre professor(2005, p. 79), afirmando que é principalmente, mas não exclusivamente, por meio dessas cláusulas que os direitos fundamentais se infiltram no direito privado e por aí produzem seus efeitos.
CRÍTICA AO MODELO DE EFEITOS INDIRETOS
A teoria da eficácia mediata ou indireta vem sendo alvo de críticas formuladas especialmente por autores espanhóis, portugueses e brasileiros, que sustentam desde a desnecessidade desta construção teórica, por chegar aos mesmos resultados alcançáveis com a amplamente aceita teoria da interpretação conforme a Constituição, até a sua incapacidade de conferir a adequada proteção aos direitos fundamentais na sociedade atual.
Crítica contundente é feita por Pedro de Vega García(1996, p. 271), que, partindo da análise da sociedade corporativista atual, ataca diretamente os três dogmas do direito privado: o princípio da generalidade da lei, a igualdade formal dos cidadãos perante a lei e a consagração da autonomia privada. Primeiramente o autor desvela o caráter muitas vezes ad hoc da lei sujeita às pressões de grupos de interesses privados, dotados não apenas de poder econômico e social, mas também político. Em seguida, denuncia a conversão da igualdade formal perante a lei em pura justificação e legitimação das desigualdades e assimetrias de fato entre os sujeitos das relações privadas.
Outra forte crítica ao modelo de eficácia indireta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares proferida por Silva(2005, p. 85), baseia-se na possibilidade de proteção ineficaz dos direitos fundamentais nessas relações se seus efeitos puderem a elas chegar apenas por meio das chamadas cláusulas gerais. Isso porque é difícil imaginar que tais cláusulas sejam sempre suficientes para servir de porta de entrada para os direitos fundamentais nas relações privadas. O mais provável é que, para um grande número de situações em que seria desejável que os efeitos dos direitos fundamentais se fizessem presentes, não haverá uma dessas cláusulas para dar vazão a esses efeitos.
TEORIA DA EFICÁCIA IMEDIATA OU DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES
A teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas foi desenvolvida especialmente por Hans Carl Nipperdey, na Alemanha da década de cinqüenta, e, embora não seja a doutrina predominante no seu país de origem e nem a tese acatada pela jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, vem sendo adotada pela jurisprudência do Tribunal Federal do Trabalho alemão, além de receber aceitação majoritária na Itália, Espanha e Portugal.
Conforme se extrai da própria denominação, os defensores desta corrente teórica sustentam que os direitos fundamentais incidem diretamente no âmbito Jurídico privado, sem necessidade de intermediação por parte do legislador, podendo ser invocados de forma direta pelos particulares nas suas relações jurídicas privadas.
Essa possibilidade de inferirem-se direitos subjetivos privados diretamente dos direitos fundamentais importa na superação da perspectiva clássica que os compreende como direitos públicos subjetivos, cujos únicos destinatários seriam os poderes públicos.
Conforme ressalta Zollinger(2006, p. 87), a concepção dos direitos fundamentais como direitos oponíveis unicamente ao Estado devem ser situados historicamente no contexto jurídico e político do Estado Liberal de Direito. Nesse período histórico, a tensão dialética liberdade/poder estava circunscrita ao âmbito das relações entre indivíduo e Estado, sendo que as relações travadas no âmbito privado eram relações de igualdade formal e não de poder, razão pela qual se supunha que eram relações de liberdade.
Ademais, conforme já ressaltado nesse capítulo, as novas relações entre Estado e sociedade, que começam a se desenvolver com o avanço histórico para um modelo de Estado Social, descortinam a ficção da igualdade formal dos cidadãos como fundamento da liberdade e da autonomia da vontade destes no âmbito de suas relações privadas.
Dessa forma, apesar da intervenção do Estado social na atuação positiva de implementação e proteção dos direitos fundamentais, a economia capitalista vê crescer o poder das grandes empresas e associações, que se tornam, ao lado do Estado, ameaças aos direitos fundamentais.
A teoria imediata ressalta, portanto, a necessidade de adotar uma nova postura jurídica que enfrente essa nova realidade do poder privado e das ingerências, tanto estatais quanto privadas, no âmbito dos direitos fundamentais.
Vale frisar, ainda, um fato notório na evolução jurídica da constituição e do Estado, que vem somar aos argumentos já utilizados pelos defensores da teoria da eficácia direta, que é o caráter normativo da constituição e sua condição de norma e elemento de unidade de todo o ordenamento jurídico. Essa é uma característica do Estado Social em que vivemos.
Assim, a Constituição não é mais unicamente a carta que regula o exercício do poder público, pois contém também os princípios norteadores das relações jurídicas estabelecidas entre particulares.
CRÍTICAS À TEORIA DA APLICABILIDADE DIRETA
Da mesma forma que a teoria da eficácia indireta, esta teoria também é bastante criticada. Em síntese, elas estão concentradas no enfraquecimento da autonomia privada e na perda de clareza no arcabouço conceitual do direito privado se as normas de direitos fundamentais passarem a ser aplicadas diretamente às relações entre particulares.
No que tange à autonomia privada, afirmam os críticos que, sendo este o principio básico do direito privado, esta autonomia seria colocada em perigo se as pessoas não pudessem, em suas relações entre si, contornar as disposições de direitos fundamentais.
Com relação à clareza conceitual, pregam que clareza e certeza jurídicas são essenciais às relações jurídicas privadas, e estas ficariam sensivelmente comprometidas, pois seriam ocultadas pelos efeitos peculiares das colisões entre direitos fundamentais, já que em uma disputa jurídica entre particulares, todos os participantes são protegidos pelos direitos fundamentais.
Afirmam, em síntese conclusiva, que as relações jurídico-privadas devem pautar-se por regras claras, detalhadas e de contornos bem definidos. Assim, sendo as disposições de direitos fundamentais, necessariamente de cunho aberto, eliminariam essa possibilidade.