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Conexões entre poder e processo em face do pensamento de Calmon de Passos

Agenda 08/10/2013 às 12:12

Produzem eco as palavras do professor Calmon de Passos, na medida em que o Estado e o direito, da forma como estão postos, incentivam a formação e permanência da chamada violência simbólica.

O objetivo do presente trabalho é discorrer sobre as conexões entre o poder e processo, em face do pensamento do Professor Calmon de Passos.

Inicialmente vale deixar consignado que temos grandes doutrinadores que trataram do presente tema e dentre eles destaca-se Ovídio Baptista e Calmon de Passos, que tiverem a ousadia de escrever a respeito de assuntos que apesar de terem tudo a ver com o direito processual, não costumam ser debatidas pelos demais processualistas, tendo em vista que fogem das amarras do sistema processual posto.

Na verdade, o presente estudo nos deixa claro que o debate sobre temas externos ao sistema processual consubstancia-se como item fundamental para melhor entendimento do próprio Direito.

De nada adianta o debate incessante do núcleo do sistema processual posto se nós não tivermos em mente qual é a verdadeira finalidade do direito que estamos estudando. O estudo das questões periféricas do direito, inclusive as extra-jurídicas, nos trazem respostas a perguntas sobre institutos processuais e, ao mesmo tempo, nos dá um norte para buscarmos soluções que tornem o Direito mais próximo da sociedade.

Tais questões devem ser analisadas tal qual as reflexões sobre como devemos lutar para alterar o direito atual, muito decorrente de sua concepção de sistema de legitimação ou de poder, que se constituiria através da criação de um efeito de obediência consentida naqueles cuja liberdade vai ser limitada pelas normas.

Na verdade, é nesse ponto que encontramos relevo no pensamento do professor Calmon de Passos, através do qual o direito posto deve ser entendido como a cara do poder, ou seja, tem o objetivo de preservação das elites nas estruturas do poder e, por esse motivo, deve ser combatido.

Tal entendimento tem muito a ver com sociologia, mais especificamente com a chamada violência simbólica do direito, tendo em vista a sua configuração como meio de controle social das classes menos favorecidas em torno na permanência no poder das classes dominantes.

É essa chamada violência simbólica, ou seja, uma forma sub-reptícia de se impor como legítimas certos significações, que deixa ao mesmo tempo ocultas as forças sociais interessadas na implementação e na manutenção de tais valores.

Os professores Eneá de Stutz e Almeida José Bittencourt Filho assim escrevem sobre o tema[1]:

 “Além de ser privação de emprego, de meios de participação do mercado de consumo, do bem-estar, dos direitos, da liberdade e outros itens necessários à vida digna, a pobreza recebe hoje, uma dimensão moral, não oferecendo mais alternativas e nem mesmo a possibilidade remota de ascensão social”.

Sabe-se que há uma ligação muito estreita entre direito e Estado. O Estado não existe sem o direito e este não existe sem aquele. Nesse sentido, Segundo Carvalho[2]:

“O Estado influencia na criação do Direito, mesmo que não tenha a sua exclusividade. E, graças ao seu poder coercitivo, o Estado assegura a aplicação do Direito quando ele é violado, ou ameaça utilizar a força para evitar a sua violação. (...) Estado e Direito têm, desse modo, uma dupla relação. De um lado o Estado influencia o Direito, de outro o Direito atua sobre o Estado”.

Desse modo, realmente produzem eco as palavras do Professor Calmon de Passos, na medida em que o Estado e o direito, da forma como estão postos, incentivam a formação e permanência da chamada violência simbólica.

É verdade que o atual estágio do sistema capitalista, tendo como foco a questão da globalização, vem imprimindo uma única forma de se governar, com grande incentivo aos investimentos de capitais, especialmente estrangeiros, em detrimento dos interesses da maioria.

Vale dizer: os Estados deixam de ser totalmente soberanos, devendo cumprir as normas estabelecidas pelas grandes empresas ou FMI, BID e outros, sob pena de fuga de investimentos e, consequentemente, empobrecimento de toda a população.

Entretanto, é necessário cuidado quando estamos falando de novas alternativas para o desenvolvimento econômico dos países, tendo em vista os problemas que podem causar alternativas de governo dissociadas dos ditames das empresas e de organismos internacionais.

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A história vem mostrando que países que se dispuseram a deixar de pagar suas dívidas com o FMI, como a Argentina, amarguraram um empobrecimento generalizado da população, decorrente principalmente da diminuição de investimento estrangeiro, incorrendo em uma perda de anos de desenvolvimento.

Por outro lado, não se concebe que numa sociedade que respeite o postulado do Estado Democrático de Direito (art. 1º da Constituição Federal), exista qualquer ato estatal ou norma que não tenha como fim precípuo o interesse das maiorias.

No exemplo brasileiro, sabendo-se que a maioria da população é empobrecida, deve o Estado adotar políticas públicas que visem incentivar a ascensão social, inclusive com instrumentos previstos no Direito posto.

É nesse ponto que deve haver a ruptura com o atual modelo de sociedade em que vivemos, em que predomina o interesse das classes mais favorecidas em detrimento dos mais pobres.

É esse sistema de legitimação que faz perpetuar a questão do direito como pressuposto de poder para as classes mais favorecidas, no qual o consenso obtido para fundamentar esse sistema não decorre do interesse da maioria e, por esse motivo, deve ser combatido.

A leitura cotidiana nos mostra que, na verdade, o que ocorre é um pseudo-consenso, em que os interesses das classes sociais mais favorecidas e organizadas são privilegiados.

Segundo Calmon de Passos, a própria Carta Política de 1.988, tida como Constituição Cidadã, retirou completamente a capacidade de organização dos movimentos sociais através de uma sensação de respeito aos direitos e garantias fundamentais que, de fato, não existem.

Nesta ordem de ideias, o direito não pode ser utilizado como forma de legitimação se as decisões políticas importantes não são tomadas efetivamente pelos seus cidadãos. É como se ocorresse uma democracia apenas no âmbito formal, ou seja, apesar do povo eleger os seus representantes, as decisões políticas importantes não são tomadas de acordo com os interesses daqueles que os elegeram.

Acho que está aí o problema brasileiro: a ausência de representatividade dos nossos políticos decorrente dessa chamada democracia formal. Nesse sentido, cito o exemplo da aprovação pelo Congresso Nacional em 2009 da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que previu o aumento em cerca de 7 mil do número de vereadores no Brasil.

Sinceramente, não vejo como associar a aprovação da referida PEC com os interesses da população. Muito pelo contrário, houve um claro favorecimento de uma determinada força social com maior poderio político e econômico.

O atual modelo de financiamento das campanhas eleitorais se configura como questão essencial para o aumento da representatividade dos eleitos. Além de muito caras, a participação de empresas como grandes financiadoras constitui claro incentivo à corrupção.

Não se concebe que um político receba recursos de uma determinada empresa sem se comprometer em ajudá-la de alguma forma depois de eleito. Penso que está aí o início de vários problemas enfrentados pela sociedade brasileiro.

Assim, antes de falar em direito como sistema de legitimação, é preciso falar em legitimidade do direito. O direito legítimo terá sistema de legitimação de acordo com os ditames democráticos, ou seja, da maioria, seja ela empobrecida ou não


BIBLIOGRAFIA:

- CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 15ª. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006;

- CARVALHO FILHO, José dos Santos. Direito administrativo. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003;

-  CHIOVENDA, Guiseppe. Princippe de Diritto Processuale Civile.  Jovene Editore:1906;

- GALENO, Lacerda. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Editora Forense: 2006;

-  MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 5ª ed.  São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006;

- MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2003;

- MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2003;

- THEODORO JÚNIOR, Humberto, Curso de Direito Processual Civil, Vol. I, Rio de Janeiro, Forense, 6. ed.


Notas

[1] Texto divulgado pela disciplina da Sociologia da Pós-Graduação em Direito Público da UNB, podendo ser acessado através do sitio: http://moodle.cead.unb.br/agu/mod/resource/view.php?id=43

[2] CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Teoria do Estado e da Constituição. Direito Constitucional Positivo. 12 edição – Belo Horizonte: Del Rey, 2006. pág. 153.

Sobre a autora
Carla Cristina Rocha Guerra

Procuradora da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, Carla Cristina Rocha. Conexões entre poder e processo em face do pensamento de Calmon de Passos . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3751, 8 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25473. Acesso em: 25 nov. 2024.

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