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Algumas reflexões sobre o “poder constituinte difuso”

Agenda 10/10/2013 às 15:15

O poder conctituinte difuso, ao contrário do originário e derivado, seria a razão de ser das mutações constitucionais, isto é, das alterações de sentido das normas constitucionais realizadas durante os processos de interpretação e aplicação da Constituição.

Resumo: O presente trabalho tem como finalidade analisar o conceito de poder constituinte difuso proposto por Georges Burdeau e cada vez mais difundido e incorporado pela doutrina constitucional brasileira.

Palavras chaves: poder constituinte difuso; Ciência Política; metodologia da Ciência do Direito.


I. INTRODUÇÃO

Quando ingressei na faculdade de direito logo me apaixonei pelo Direito Constitucional. Lembro-me como se fosse hoje da saudosa Professora – sim, com “P” maiúsculo – Leda Pereira da Mota ingressando na classe, se apresentando, e iniciando a primeira aula da matéria com a qual eu me relacionaria academicamente pelo resto da minha vida. Qual o tema da primeira aula? O Poder Constituinte.

Conforme aprendi com a querida mestra o Poder Constituinte surgiu no ápice do iluminismo, durante a revolução, como justificação do poder popular para romper com o ancian regime, isto é, para derrubar a monarquia absolutista que vigorava na França pré-revolucionária. Afinal, a partir desta construção teórica formulada por Emmanuel Sueyès, o poder não era mais considerado uma atribuição divina outorgada por Deus para certa e determinada linhagem familiar. O poder passava a repousar nas mãos do povo, o qual poderia conferi-lo por delegação aos seus representantes, assim como, na qualidade de titular do poder, poderia reavê-lo em caso de ilegitimidade.

Esse poder, segundo aprendi, foi concebido primeiramente no âmbito da Ciência Política, mas passa a ser incorporado quase que imediatamente pela seara jurídica. Isto porque influencia diretamente na criação da Constituição – até então compreendida como Carta Política, mas que passava a ser concebida juridicamente –, estabelecendo seu conteúdo, sua forma de alteração e seus limites.

Por conta desses fatores a doutrina, tanto da Ciência Política quanto do Direito (Constitucional), passou a classificá-lo e subdividi-lo em Poder Constituinte Originário e Derivado (ou Constituído). O primeiro é aquele que inaugura uma nova ordem jurídica: pode fazer isso pela primeira vez, sem que haja uma ordem jurídico-constitucional anterior – como é o caso da Constituição brasileira de 1824, primeira Constituição do Brasil –, quando então será chamado de Histórico; ou poderá fazê-lo através da ruptura com a ordem jurídica anterior – como ocorreu com a Constituição de 1988, que estabeleceu uma nova ordem jurídico-constitucional, rompendo com a ordenação predecessora – e então será chamado de Revolucionário.[1] Atribuí-se ao Poder Constituinte Originário a característica de ser ilimitado juridicamente.

O segundo, por sua vez, não inaugura a nova ordem jurídica, não sendo, pois, um Poder Constituinte em sentido estrito – daí o porquê de alguns autores o chamarem de Poder Constituinte Constituído. O Poder Constituinte Derivado costuma ser subdividido em três espécies: Reformador, Revisor e Decorrente. O primeiro é aquela manifestação constituinte que visa reformar a Constituição, isto é, alterar as suas cláusulas, e pode ser exercido a qualquer tempo (em regra)[2]. Para tanto, deve respeitar os limites formais[3] e materiais[4] estabelecidos na própria Constituição que pretende alterar. Já o Revisor também consiste no poder de alterar as cláusulas da constituição. Contudo, esta alteração possui uma forma simplificada, e deve ser realizada em momentos institucionais previamente estabelecidos pela própria Constituição[5]. Ele também se submete aos limites constitucionais materiais e formais. Finalmente, o Decorrente é o Poder Constituinte que estabelece a possibilidade de criação de Constituições no âmbito dos Estados Membros e do Distrito Federal. Ele é chamado de decorrente justamente porque sua previsão decorre da própria Constituição (art. 11 do ADCT), e se encontra limitado pelos princípios e pelas competências estabelecidos pela Constituição.[6]

Essa, até algum tempo atrás, era a classificação mais difundida a respeito do Poder Constituinte, sendo que as pessoas da minha geração certamente a estudaram nos bancos da Faculdade de Direito. E ouso dizer que muitos estudantes atualmente ainda a estudam, sem maiores inovações.


II. A “PROPOSTA” DE GEORGES BURDEAU

Não obstante a tradicional classificação do Poder Constituinte acima apresentada, é preciso atentar para a proposta apresentada pelo cientista Político francês Georges Burdeau em seu “Tratado de Ciência Política, vol. 4”. Nesta obra o autor “propõe” o que segue:

“Se o poder constituinte é um poder que faz ou transforma as constituições, deve-se admitir que sua atuação não se limita às modalidades juridicamente disciplinadas de seu exercício. (...) Há uma exercício quotidiano do poder constituinte que, embora não esteja previsto pelos mecanismos constitucionais ou pelos sismógrafos das revoluções, nem por isso é menos real. (...) Parece-me, de todo o modo, que a ciência política deve mencionar a existência desse poder constituinte difuso, que não é consagrado em nenhum procedimento, mas sem o qual, no entanto, a constituição oficial e visível não teria outro sabor que o dos registros de arquivos”.[7]

Como se abstrai da leitura do trecho supracitado o cientista político francês “propõe” o reconhecimento, e a conseqüente adoção, do conceito de Poder Constituinte Difuso. Este, ao contrário dos Poderes Constituintes Originário e Derivado, seria a raison d’être das mutações constitucionais, isto é, das alterações de sentido das normas constitucionais realizadas durante os processos de interpretação e aplicação da Constituição.

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Após analisar a “proposta” de Georges Burdeau o jurista brasileiro Luís Roberto Barroso – que passa a adotar a referida classificação – anota como características do Poder Constituinte Difuso o fato de ser exercido em caráter permanente e de se realizar por meio de mecanismos informais, não previstos pela Constituição, mas por ela admitidos. Ressalta, contudo, a existência de limites à mutação constitucional – e conseqüentemente ao Poder Constituinte Difuso –, sendo eles de duas espécies: 1) as possibilidades semânticas do relato da norma; 2) a preservação dos princípios fundamentais que dão identidade àquela Constituição.[8]

Vale notar que grande parte da doutrina brasileira vem acolhendo a referida classificação. Contudo, acredito que a “proposta” de George Burdeau não merece acolhida por algumas razões de ordem científica e metodológica


III. Incompatibilidade metodológica com a Ciência Jurídica

Não é a toa que a proposta de conceituação do Poder Constituinte Difuso como fundamento da mutação constitucional surgiu no âmbito de um tratado de Ciência Política. Isto porque a Ciência Política estuda os fenômenos sociais sobre a perspectiva exclusiva do poder, mais especificamente do poder político. Daí porque não vemos cientistas políticos abordando fenômenos sociais sobre a perspectiva da psicologia das massas – abordagem esta inerente a psicologia –, nem mesmo sobre o prisma da regulação jurídica e de sua sistematização – afinal, para Ciência Política o Direito nada mais é do que um instrumento para o exercício do poder político.

Sobre o enfoque da Ciência Política, ou seja, sob a ótica pura e simples do exercício do poder, seria possível reconhecer a existência de um Poder Constituinte Difuso como fundamento da mutação constitucional. Afinal, se todos os reflexos sociais são fruto da manifestação do poder político, nada mais apropriado do que atribuir à uma determinada forma de manifestação do próprio poder a capacidade de alterar o sentido das normas criadas para exercê-lo, normas estas que carecem de adequação na medida em que é preciso preservar a sua legitimidade política.

Não há nada de errado nesta abordagem, desde que realizada sob o olhar exclusivo da Ciência Política.

Entretanto, sob a ótica da ciência jurídica não podemos conceber o Direito como mero instrumento a serviço do exercício do poder político. É preciso admitir que o Direito enquanto ciência normativa se inter-relaciona com outras ciências, absorvendo delas conteúdo. Em outras palavras, o Direito dialoga constantemente com a Ciência Política, mas não apenas com ela: dialoga também com a Ética, com a Filosofia da Linguagem, com a Economia, com a Psicologia, com a Criminologia etc. Contudo, este diálogo não lhe retira os atributos de cientificidade, mas, pelo contrário, os reafirma, reconhecendo ao Direito um papel de protagonista democrático na regulação social, e não ditatorial – como resultou do positivismo jurídico – nem meramente servil – como é enxergado pela Ciência Política.

Talvez exemplos expliquem melhor: 1) quando o art. 170, CR[9] afirma que a ordem econômica é fundada na livre iniciativa, o significado de livre iniciativa não é oferecido pelo próprio Direito, mas sim pela Economia, isto é, a Ciência do Direito vai buscar na Ciência da Economia o significado de livre iniciativa no momento da interpretação da norma constitucional referida; 2) a mesma coisa ocorre quando o artigo 5°, caput, CR[10] afirma que todos são iguais perante a lei, pois também o significado de igualdade não é oferecido pelo Direito, mas sim pela Ética, ou seja, a Ciência do Direito vai buscar na Ciência da Ética o significado de igualdade no momento da interpretação do dispositivo constitucional mencionado; 3) quando o artigo 17, CR[11] afirma ser livre a criação de partidos políticos, resguardada a soberania nacional, o significado de soberania nacional não é oferecido pelo próprio Direito, mas sim pela Ciência Política, pois a Ciência do Direito busca na Ciência Política o significado de soberania nacional no momento da interpretação da norma constitucional em apreço.

Note-se que nem sempre livre iniciativa significou a mesma coisa. Houve momentos em que livre iniciativa pressupunha a total abstenção do Estado dos assuntos econômicos, enquanto, atualmente, significa a liberdade de atuação dos agentes econômicos dentro dos limites mínimos estabelecidos pela regulação estatal. O mesmo ocorre com o conceito de igualdade. Igualdade de direitos já significou apenas homens brancos e negros alforriados, mas hoje significa todos os seres humanos. A situação também é a mesma no que toca a soberania nacional. Antes do fenômeno da globalização soberania nacional era um conceito fechado, estanque, e que inviabilizava, por exemplo, a concepção de mecanismos de sanção internacional. Hoje, contudo, são reconhecidos os mecanismos de sanção internacional como meios legítimos, sem que se configure afronta à soberania nacional.

Como se percebe o vocábulo utilizado é o mesmo, mas o conteúdo socialmente experimentado por aquela designação verbal é que mudou. Esta mudança, por sua vez, é objeto de estudo de certos ramos científicos – de acordo com sua pertinência temática –, os quais emprestam o significado por eles apurado ao interprete da norma jurídica, a fim de manter um nexo de legitimidade entre o conteúdo socialmente experimentado e a norma que será aplicada ao final do processo de interpretação. Daí resulta o porquê dos limites à mutação constitucional estabelecidos por Luís Roberto Barroso: 1) por se tratar de fenômeno que se opera no âmbito da interpretação não é possível que ele transborde os limites do texto do dispositivo interpretado[12]; 2) por estarmos diante de interpretação da Constituição, realizada no âmbito da técnica jurídica, o resultado do processo interpretativo não pode afrontar os princípios fundamentais da Constituição in interpretando.

Nessa perspectiva a mutação constitucional não é um fenômeno que se manifesta e se explica exclusivamente no âmbito do poder político. É, pelo contrário, o resultado do processo de interpretação realizado no âmbito da Ciência Normativa do Direito, o qual assimila conteúdos de outras ciências visando manter a legitimidade e atualidade da regulação social exercida pelo Direito.


IV. CONCLUSÃO

Em sendo a mutação constitucional um fenômeno interpretativo nascido no âmbito da Ciência do Direito, não me parece admissível a existência de um Poder Constituinte Difuso. Como vimos seu fundamento está inerente à metodologia que é própria da ciência jurídica, e não na manifestação exclusiva de um poder político.

Isso posto, por ser uma proposta pautada em parâmetros exclusivos da Ciência Política, bem como incompatível com a metodologia da Ciência do Direito, refuto a existência de um Poder Constituinte Difuso. Até porque, em ultima ratio, se o poder político repousa nas mãos do povo, todo o poder político, constituinte ou não, seria difuso e, por isto, nenhuma de suas manifestações poderia adotar a difusão como fator de diferenciação das demais.

Dessa forma, continuo partilhando das lições que me foram dadas pela saudosa Professora Leda Pereira da Mota.


BIBLIOGRAFIA

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.


Notas

[1] Há que se ressaltar a existência de posições em sentido contrário, como a de Maria Helena Diniz, para quem só ocorreu manifestação do Poder Constituinte Originário em dois momentos da história constitucional brasileira: o primeiro foi em 1824, com a primeira Constituição do Brasil (Poder Constituinte Originário Histórico); o segundo ocorreu com a promulgação do Ato Institucional n° 5 durante o regime ditatorial (Poder Constituinte Originário Revolucionário). Isto porque, segundo a autora, só houve efetivamente ruptura com a ordem jurídica anterior neste último caso, sendo os demais “momentos constitucionais” transições institucionais de pequena monta. De nossa parte respeitamos a posição da eminente jurista, posição com a qual até simpatizamos, mas acreditamos que, por uma questão de coerência, deveria ela admitir que a ruptura com o regime instituído pelo Ato Institucional n° 5 deveria também ser considerada manifestação do Poder Constituinte Originário Revolucionário (posição manifestada durante aula da disciplina “Ordenamento Jurídico e Sistema” proferida no curso de doutorado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP no ano de 2011).

[2] Art. 60 (...) § 1º - A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. (CF)

[3] Art. 60 (...) § 2º - A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. (CF)

[4] Art. 60 (...) § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. (CF)

[5] Art. 3º. A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral. (ADCT)

[6] Essa é classificação mais comum, em que pese existam variações dela, tais como aquele que não destaca o Poder Constituinte Derivado Revisor do Poder Constituinte Derivado Reformador. O fato é que, na essência, todas as classificações são muito próximas, ainda que mudem a nomenclatura ou destaquem um ou outro aspecto.

[7] Apud. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 2ª ed., p. 128.

[8] Ibid., p. 128.

[9] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

[10] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[11] Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:

[12] É preciso ter em mente que o texto é o limite da interpretação. Quando há a superação do texto com a “criação” de situação não prevista textualmente estamos diante de integração e, portanto, fora da seara da mutação constitucional – v. g. a confusão feita quando da “interpretação” do art. 226, CR, no tocante à união homoafetiva que, não obstante alguns juristas alegarem se tratar de mutação constitucional, na verdade se tratou de integração, pois a decisão transcendeu os limites do texto do dispositivo constitucional estendendo um direito a uma categoria não prevista, tudo isto com a finalidade de fazer cessar uma omissão inconstitucional.

Sobre o autor
Renato Braz Mehanna Khamis

Advogado em Santos. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Professor da Universidade Santa Cecília de Santos Professor da Universidade Católica de Santos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KHAMIS, Renato Braz Mehanna. Algumas reflexões sobre o “poder constituinte difuso”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3753, 10 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25497. Acesso em: 2 nov. 2024.

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