A segurança pública é protegida pela nossa Constituição Federal (art. 5.º, caput), rezando o seu art. 144:
"A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio."
As armas de fogo estão intimamente relacionadas com a segurança pública, incumbindo à União, por essa razão, permitir e fiscalizar a sua produção e comércio (CF, art. 21, VI). Essas disposições informam o interesse do Estado na disciplina do regular desenvolvimento do sistema no que diz respeito à observância dos direitos dos cidadãos nas relações sociais, garantindo-lhes a segurança. A incolumidade pública, bem que integra a segurança coletiva, é, pois, interesse que se encontra relacionado não a uma pessoa considerada isoladamente, e sim ao corpo social.
Com a edição da Lei n. 9.437, de 20.2.1997 – a denominada Lei de Armas de Fogo –, o legislador procurou impedir condutas ofensivas aos membros da coletividade. A objetividade jurídica imediata é a incolumidade pública, no sentido de evitar-se a prática de homicídios, lesões corporais etc., protegendo-se, dessa forma, os interesses individuais vida, incolumidade física etc. (objetos mediatos). Assim, a incriminação tem por finalidade assegurar a incolumidade generalizada de todos os cidadãos, sem limitação, contra danos pessoais. Diante disso, exige-se, para que a conduta seja típica, afetação ao bem protegido pela norma, que se manifesta por uma lesão efetiva ou potencial (risco de lesão). Assim, se a conduta não se mostra apta a, pelo menos, colocar em perigo o bem jurídico, não há comportamento típico. É necessário demonstrar que se afetou o bem jurídico, lesionando-o ou criando perigo de lesão.
Condutas como possuir, guardar ou ter em depósito arma de fogo, mas sem registro, ainda que intramuros e completamente carentes de ofensividade à segurança pública, tornaram-se crimes punidos com detenção de um a dois anos, além de multa (caput do art. 10 da referida Lei). E o possuidor pode ser preso em flagrante a qualquer momento, uma vez que a posse, a guarda e o depósito compõem delitos permanentes.
Suponha-se que um indivíduo tenha uma arma de fogo, sem registro, em sua casa, no interior da mata amazônica. De acordo com a lei, literalmente interpretada, comete crime(1).
Essa solução, à luz das teorias da imputação objetiva e da ofensividade, não é correta. A ação de guardar, ou ter em depósito, arma de fogo no interior de residência, nas condições descritas ou similares, não cria risco, efetivo e nem potencial, ao bem jurídico incolumidade pública.
O âmbito de proteção da norma de conduta só é invadido quando o comportamento cria um risco, relevante e juridicamente proibido, ao objeto jurídico. Na espécie, o fato é incapaz de ofender a incolumidade pública, tendo em vista que não causa nenhum perigo efetivo ou potencial à segurança coletiva. É, pois, atípico.
Notas
1. Nesse sentido TACrimSP, Acrim n. 1.145.331, 1ª Câm. , RT, vol.771, p. 621.