Hoje, por um daqueles felizes acidentes que as vezes ocorrem no Facebook, topei com um áudio contendo a declamação, em grego, da primeira parte da Ilíada https://www.youtube.com/watch?v=NssnanW93fI. O poema épico, que teria sido registrado por Homero, já inspirou vários filmes: Helena de Tróia (1956) e Tróia (2004) são os dois mais conhecidos. Desde o atentado ao WTC, ocorrido em 2001, a Ilíada voltou a desempenhar um importante papel ideológico na construção de novos mitos. O cerco e destruição de Ílion (Tróia) seria apenas o marco inicial de um eterno e conflito de civilizações entre Ocidente e Oriente, entre civilização e barbárie. Para estes ideólogos, as invasões do Afeganistão e do Iraque pelos EUA seriam apenas os últimos capítulos desta novela sangrenta sem fim com milhares de anos.
O poema de Homero, entretanto, não faz apologia da guerra e sim o seu lamento. A Ilíada tampouco reduz os inimigos de Agamemnon à condição de bárbaros imprestáveis, tanto que o épico faz o elogio da coragem, correção e patriotismo de Heitor (príncipe de Ílion e comandante das tropas que repeliram os gregos). Em muitas de suas passagens, o poema épico narra em tom de reprovação as selvagerias cometidas pelos heróis gregos, cujo destino não deixou de ser trágico. Aquiles, por exemplo, morreu de maneira inglória sem ter visto o fim da guerra e sem ter participado da invasão Ílion. Mas não é da Ilíada que quero falar.
O fato é que o áudio da Ilíada me fez lembrar a Eneida, poema épico de Virgílio que muito me apraz. De vez em quando retiro da minha estante um volume bilíngue do épico romano e me ponho a recitar longos trechos do mesmo em Latim. Confesso aqui que passei a amar esta língua ao estudá-la durante algum tempo no curso de Letras. Eis aqui um fragmento que muito me agrada:
"Vis et Tarquinios reges animanque superbam
Ultoris Bruti, fascisque uidere receptos?
Consulis imperium hic primus saeuasque securis
Accipiet, natosque pater noua bella mouentis
Ad poenam pulchra pro libertate uocabit.
Infelix! Utcumque ferent ea fact minoris:
Uincet amor patriae laudumque immensa cupido.?"
Em Português na conhecida e prestigiada tradução de Odorico Mendes:
"Ver queres os Tarquínios, e o severo
Vingador Bruto e os recebidos feixes?
Cônsul, tomando as sevas machadinhas,
Ai dele! imolará rebeldes filhos
à pulcra liberdade. Vário ajuizem
Disto os vindouros, há de o amor da pátria
E o de glória vencer desejo imenso".
Nossa brasilidade é mais influenciada pela cultura latina que pela cultura grega. O português é uma língua derivada do Latim, o moderno Direito Civil brasileiro é inspirado no Direito Romano (disciplina, aliás, ensinada na maioria dos cursos de Direito do país). Por isto sempre me sinto mais a vontade com a Eneida do que com a Ilíada, muito embora admire o poema épico grego confesso minha predileção pelo épico romano.
Tarquínio foi o último rei de Roma. Ele chegou ao poder e se manteve nele através da eliminação física de seus oponentes. Seu reinado foi tão cruel que provocou a ruína do regime monárquico. O episódio evocado por Virgílio na Eneida foi narrado com detalhes por Tito Lívio em seu livro (Ab Urbe Condita Libri).
“Mau rei em tempo de paz Tarqüínio foi bom general em tempo de guerra” afirmou Tito Lívio. Durante seu reinado Roma derrotou os volscos e conquistou a cidade de Suessa Pomécia. Apesar de suas crueldades contra os romanos, Tarquinio conseguiu ficar no poder porque alimentou a sede da cidade eterna de submeter todos os povos vizinhos.
O ardil empregado por Tarquínio para derrotar Gábios é digno de nota. Não podendo vencer os gábios pelas armas, o rei romano enviou seu filho àquela cidade. Sexto comportou-se como se fosse um traidor e não demorou muito para chegar ao comando do exército inimigo. Quando se sentiu seguro, Sexto mandou assassinar os principais cidadãos de Gábios e a cidade caiu sob o domínio romano sem luta porque já não tinha comandantes.
Após vinte e cinco anos de reinado e inúmeras barbaridades cometidas contra os romanos, Lúcio Tarquínio Soberbo foi assassinado. Sua morte colocou um ponto final ao regime monárquico em Roma.
O fragmento que escolhi para ilustrar minha predileção pela Eneida vem bastante a calhar neste momento em que Joaquim Barbosa, com sucesso, conseguiu afastar o Juiz que estava conduzindo a execução da pena dos réus do Mensalão trocando-o por outro escolhido a dedo. O abuso de sua conduta é evidente.
A CF/88 confere uma série de garantias aos Juízes justamente para impedir que eles sejam abusivamente removidos de suas Comarcas por influência político/administrativa ou impedidos de oficiar neste ou naquele caso por vontade de quem quer que seja. Portanto, uma vez mais ficou patente que o presidente do STF demonstrou desprezo pela CF/88. Ao escolher a dedo quem irá administrar a condenação dos réus do Mensalão, Joaquim Barbosa demonstra que está empenhado numa vingança pessoal. A vingança pessoal, porém, não é tutelada pela legislação, não tem lugar no Estado de Direito nem pode ser legitimamente executada por qualquer autoridade judiciária.
O presidente do STF pretende imolar os rebeldes filhos do PT à liberdade aparentemente bela que a imprensa brasileira adquiriu para julgar e condenar seus desafetos, exigindo publicamente que o Poder Judiciário apenas homologue suas decisões? Como diz com propriedade o épico romano, o amor pela pátria pode vencer tudo. Pode vencer a imprensa, pode vencer até o imenso desejo que o presidente do STF tem demonstrado de querer triunfar à custa do martírio dos réus do Mensalão. Nem mesmo ele pode desprezar legislação e constituição. A CF/88 é nossa e não dele. O texto da nossa CF/88 diz o que está escrito, não aquilo que Joaquim Barbosa está a dizer.
A interpretação infiel da nossa constituição não tem valor jurídico. Nem mesmo a autoridade derivada da presidência do STF será capaz de dar razão a um infiel interprete do texto constitucional. Se Joaquim Barbosa não recuar, terá que ser submetido a um processo de impedimento no Senado Federal, pois “Uincet amor patriae laudumque immensa cupido.”