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Mutação constitucional informal e a abstrativização do controle concreto de constitucionalidade

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Após a EC 45/04, o debate sobre a abstativização do controle difuso acabou diminuindo, justamente porque surgiu um novo instituto ao STF que acaba surtindo os mesmos efeitos: a Súmula Vinculante.

RESUMO: O presente artigo busca analisar o chamado fenômeno da mutação constitucional informal, que decorre da releitura interpretativa constitucional sem alteração formal de seu texto, percebendo-se, ainda, a implicação dessa teoria em sede de controle de constitucionalidade, especificamente no que tange ao debate quanto ao art. 52, X, da CF/88, bem como a tese no âmbito do Supremo Tribunal Federal da abstrativização do controle concreto de constitucionalidade.

PALAVRAS-CHAVE: reforma constitucional; poder constituinte difuso; mutação constitucional informal; abstrativização do controle concreto.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Poder Constituinte e Mutação Constitucional informal – 2.1. Poder Constituinte – 2.2. Reforma Constitucional – 2.3. Mutação Constitucional Informal – 3. Teoria da Abstrativização no Controle Concreto de Constitucionalidade – 4. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO

Sabemos que Constituição significa norma de conduta de um Estado, regras de direitos e deveres que se formam no tempo e estruturam a convivência em uma dada sociedade politicamente organizada. Nesse enfoque, surge o poder constituinte, do qual decorre não apenas o estabelecimento de uma Constituição, mas, também, a possibilidad de sua posterior alteração por meio do poder constituinte derivado reformador. Ocorre que, atualmente, não se fala apenas na modificação textual da Constituição, mas se admite, ainda, a chamada mutação constitucional informal, por meio da qual, pela via hermeneutica, modifica-se o conteúdo constitucional sem que se proceda à sua alteração formal. É nesse sentido que buscaremos analisar tal fenômeno no presente trabalho, visualizando, sobretudo, as suas implicações práticas.

Para tanto, inicialmente, lançaremos as bases a partir de uma breve análise da teoria do poder constituinte, originário e derivado, para, após, adentrarmos especificamente no tema da mutação constitucional informal. Ao final, abordaremos o acalorado debate acadêmico a respeito da tese que vem sendo levantada no Supremo Tribunal Federal sobre eventual mutação constitucional informal ocorrida no art. 52, X, da CF/88, o que acabaria por trazer à tona a chamada abstrativização do controle concreto de constitucionalidade, ainda não totalmente definida no âmbito da Suprema Corte.


2. PODER CONSTITUINTE E MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL INFORMAL

2.1.    Poder Constituinte

Antes de adentrarmos propriamente no fenômeno da mutação constitucional, é prejudicial ao seu correto entendimento compreender, preliminarmente, o poder constituinte e suas formas de exercício. Sabemos que poder constituinte é o poder de criar uma nova Constituição ou de reformar uma Constituição já existente. O povo é o titular desse poder, exercendo-o por meio de seus representantes eleitos. Na visão jusnaturalista, esse poder decorreria naturalmente, porque o direito estaria ínsito ao indivíduo. Nesse sentido, falava-se no Poder de Direito (Direito Natural). Com a superação do jusnaturalismo pelo positivismo, passou-se a entender esse poder como uma força política de um povo organizado. Agora, fala-se em Poder de Fato (Político). Portanto, embora a Constituição seja uma norma jurídica, reconhece-se uma força política do povo na sua origem.

O poder constituinte trata-se de um poder permanente de organização social e política, que continua existindo em estado de latência, aguardando sempre que o seu titular queira novamente exercê-lo. Isso signifca, então, que o poder do povo não se esgota com a elaboração da Constituição. Por isso, há duas espécies de poder constituinte: (a) poder constituinte originário; (b) poder constituinte derivado, este último se subdivide em duas subespécies: (b.1) poder derivado reformador; e (b.2) poder derivado decorrente. Parte da doutrina constitucionalista, embora minoritária, chega a mencionar, ainda, a existência de uma terceira espécie de poder constituinte, que seria o chamado poder constituinte difuso, mais conhecido por mutação constitucional informal.

No que se refere ao poder constituinte originário, trata-se do poder de criar uma nova Constituição. Não precisa ser a primeira Constituição, basta que seja uma nova Constituição. A doutrina costuma classificar o poder constituinte originário em: (a.1) Histórico: aquele que cria a primeira Constituição de um Estado; (a.2) Revolucionário: aquele que cria um novo modelo de Estado a partir de uma revolução, substituindo a Constituição anterior; (a.3) Transicional: aquele que não é fruto de um golpe de Estado ou de uma insurreição, surgindo a partir da chamada transição constitucional, como é o caso da atual Constituição Federal de 1988. De toda sorte, seja qual for a espécie, são características do poder originário ser inicial, autônomo e incondicionado. É inicial porque faz nascer um novo ordenamento jurídico, não existe nenhum outro poder antes ou acima dele. É autônomo porque cabe apenas a ele escolher a idéia de direito que irá prevalecer, independente de qualquer outro. É incondicionado porque pode ser exercido de quaquer maneira, não está submetido a nenhuma condição no plano interno.

Aqui, cabe destacar uma característica que vem mudando na atualidade. É que a doutrina tradicional coloca como mais uma dentre as características do poder constituinte originário tratar-se de poder ilimitado, isto é, que não possui nenhum limite em outra norma ou Constituições anteriores. Ou seja, além de inicial (precede a qualquer outro), autônomo (liberdade para escolha dos direitos), e incondicional (não se condiciona a determinada forma ou conteúdo), a doutrina tradicional defende que seria o poder originário ilimitado (não possui limites em nenhuma outra norma). Contudo, hoje em dia, a doutrina moderna identifica limites de ordem material ao poder constituinte originário, quais sejam: o primeiro, seriam os chamados limites transcendentais, referentes ao principio da vedação ao retrocesso social; o segundo, seriam os chamados limites imanentes, aqueles relacionados à configuração ou identidade do próprio Estado, que fazem parte e já estão arraigados na organização e na natureza do próprio Estado; o terceiro, seriam os chamados limites heterônomos, advindos do ordenamento jurídico global, principalmente os determinados pela sociedade internacional contemporânea para fins de garantia dos direitos humanos e da paz, não podendo uma nova Constituição colocar em rota de choque o Estado em relação aos seus pares internacionais.

Já no que se refere ao poder constituinte derivado, também chamado de poder constituinte instituído, trata-se do poder de reformar uma Constituição já existente, podendo ser: (a) Poder Derivado Reformador, que se refere ao poder para alterar a Constituição já existente; (b) Poder Derivado Decorrente, diz respeito ao poder que cada Estado-membro possui para elaborar sua Constituição. Ao contrário do poder originário, são características do poder derivado tratar-se de poder secundário, condicionado e limitado. É secundário porque há outro que lhe precede, que é o poder originário, daí porque também se chama de poder instituído. É condicionado porque não pode ser exercido de qualquer maneira, condiciona-se a determinada forma e conteúdo, possuindo formas pré-estabelecidas de manifestação. É limitado porque possui seus limites na própria Constituição, da forma como estabelecido pelo poder originário.

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No que tange ao poder derivado reformador, a Constituição não é imutável, mas existem limites para o seu exercício. Exemplo disso são as cláusulas pétreas. O poder constituinte reformador está disciplinado no art. 60 da CF/88. Por outro lado, também o poder derivado decorrente está limitado, a teor do art. 25 da CF/88: "Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição". Trata-se do princípio da simetria, que vincula o exercício do poder derivado decorrente. A simetria vai além da proibição de contrariedade à Constituicão Federal, mais que isso, determina que os Estados sigam o modelo que aquela estabelece. Mas é sobre o poder constituinte derivado reformador que focaremos esta presente análise, primeiro observando a possibiliade de alteração do texto da Constituição, para depois analisarmos a possibilidade de alteração da Constituição sem alteração do texto, que se trata do fenômeno da mutação constitucional informal, núcleo central deste ensaio.

2.2.    Reforma Constitucional

Já vimos que o poder constituinte não se limita em criar uma nova Constituição, mas, também, é o poder capaz de alterar uma Constituição já existente. Temos, então, o poder constituinte derivado reformador, subdividido por alguns doutrinadores em: (i) revisor; (ii) reformador propriamente dito. Isso ocorre porque são duas as formas de mudança constitucional previstas na atual Carta Magna: (a) Revisão Constitucional (art. 3º, do ADCT); e (b) Emenda Constitucional (art. 60, CF/88).

No que se refere à primeira delas, a revisão constitucional decorre do poder constituinte derivado revisor, sendo feita nos moldes do art. 3º do ADCT: "A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral". Ou seja, a revisão constitucional é feita (aliás, já foi feita) apenas uma única vez, pelo menos 5 anos após a promulgação, em sessão unicameral (as duas Casas conjuntamente), pelo quórum de maioria absoluta. Como já houve a revisão constitucional, não tem mais aplicabilidade prática o art. 3º do ADCT. De todo modo, a revisão constitucional trata-se de hipótese de reforma constitucional proveniente do poder constituinte derivado, tanto quanto a emenda constitucional. Contudo, a revisão constitucional é uma via extraordinária de alteração do texto constitucional, o art. 3º do ADCT é uma norma de eficácia exaurida, não se pode fazer nova modificação constitucional via revisão constitucional.

Já no que se refere à emenda constitucional, trata-se do único instrumento possível, hoje, de se alterar formalmente o texto constitucional, já que foi consumada a possibilidade de revisão constitucional. Fala-se em única possibilidade de alteração formal, porque veremos adiante que a mutação constitucional é justametne uma possibilidade de modificação informal do texto constitucional. A emenda constitucional trata-se, por excelência, do poder constituinte derivado reformador propriamente dito, forma efetiva que o poder constituinte originário estabeleceu para permitir a alteração (supressão ou acréscimo) da Constituição. Relembre-se que a Constituição Federal é considerada como rígida, justamente porque o processo de alteração constitucional é mais dificultoso do que as demais normas do ordenamento, por decorrência da supremacia formal. Essa supremacia decorre justamente dos limites mais rigorosos estabelecidos pelo poder originário para que o poder derivado reformador pudesse alterar o texto da Constituição.

Nos termos do art. 60 da CF/88, há três espécies de limitações: (i) limitações materiais ou substanciais (clausulas pétreas explícitas), previstas no art. 60, §4º, CF/88, rol das matérias que não podem ser suprimidas; (ii) limitações formais ou processuais, previstas no art. 60, I a III, e §§ 2º, 3º e 5º, da CF/88, regras procedimentais de iniciativa (subjetivas) e aprovação (objetivas) das emendas; (iii) limitações circunstanciais, conforme art. 60, §1º, CF/88, situações transitórias que impedem excepcionalmente as emendas. As limitações formais e circunstanciais são as chamadas cláusulas pétreas implícitas. O poder constituinte derivado reformador é condicionado, só pode ser exercício na forma prevista pelo poder originário. Não faria o menor sentido o poder constituinte originário prescrever na Constituição o rito solene para o exercício do poder derivado e este posteriormente alterar as próprias regras do poder originário. O poder derivado, portanto, não possui essa faculdade, caso contrário estaria agindo como se originário fosse. Isso decorre da impossibilidade de ser adotada a chamada teoria da dupla revisão, pela qual o poder derivado poderia revisar os limites impostos pelo poder originário.

Quando se fala em cláusulas pétreas explícitas, está-se referindo à análise da possibilidade de mudança do texto constitucional pelo seu prisma substancial, isto é, quais as normas da Constituição que expressametne podem ser alteradas pelo poder constituinte reformador. Nesse sentido, o termo "pétrea" vem do latim pedra, aquilo que não muda, não se altera. Por isso é que quando se fala em cláusulas pétreas, temos, então, o núcleo intangível do poder constituinte reformador, um conjunto de matérias que não podem ser suprimidas por emenda. Além de ser mais difícil o processo para alteração da Constituição por decorrência da rigidez constitucional decorrente da sua supremacia, há ainda um núcleo intangível, que não pode ser suprimido nem mesmo com esse procedimento mais dificultoso. Tratam-se das cláusulas pétreas (explícitas e implícitas). Daí se verificar, inclusive, alguns doutrinadores falarem que a nossa Constituição seria super-rígida, pelos somatório dos dois fatores: procedimento mais dificultoso de alteração da Constituição (emendas constitucionais) e existência de núcleo intangível não suscetível de supressão (cláusulas pétreas).

Mas se uma emenda constitucional não pode suprimir as cláusulas pétreas, de modo que torne menos dificultoso o processo de alteração constitucional, poderia, contudo, aumentar o âmbito das cláusulas pétreas para tornar ainda mais dificultoso a possibilidade de reforma constitucional? Ou seja, já se sabe que diminuir os limites impostos pelo poder originário não será possível, seja do ponto de vista dos limites materiais (cláusulas pétreas explícitas), seja do ponto de vista dos limites formais e circunstanciais (cláusulas pétreas implícitas), mas seria possível aumentar o limite para reforma constitucional, por exemplo, com o acréscimo de cláusulas pétreas? O assunto é muito polêmico na doutrina, de saber se o poder reformador (emenda) poderia aumentar os limites de reforma à Constituição ou se apenas ao poder originário caberia a delimitação desses limites. Isto é, estaria o poder reformador adstrito apenas a não tender a abolir os limites já existentes (cláusulas pétreas), ou poderia o poder reformador estabelecer novos limites ao próprio poder reformador no futuro, aumentando esse núcleo intangível já existente?

A análise da questão bifurca-se em duas possibilidades: (a) novos limites a partir da alteração do conjunto das cláusulas pétreas com a inclusão de novas cláusulas além das já existentes; (b) novos limites a partir do aperfeiçoamento ou acréscimo das cláusulas pétreas já existentes sem que sejam incluídas outras cláusulas. Conforme jurisprudência do STF, no primeiro caso, não é possível, já no segundo, é admissível. Na primeira hipótese, de fato, não poderia uma emenda trazer uma cláusula pétrea adicional, porque nesse caso o poder reformador estaria agindo como se legislador originário fosse, estabelecendo novo rol de limites para o reformador futuro. Porém, o poder reformador presente e futuro são iguais, logo, não cabe imposição de limites entre iguais, mas somente pelo poder originário, por isso não é possível mudança no rol das cláusulas pétreas pelo poder reformador, o qual se submete aos limites fixados pelo originário. Seria logicamente contraditório que o poder constituinte derivado pudesse limitar ainda mais o exercício dele próprio a ser exercido no futuro, pois o poder reformador de agora não é mais legítimo que o do futuro a ponto de impor limites a este, não podendo o constituinte reformador trazer limites aonde o constituinte originário não o fez, daí porque é inadmissível emenda que busque alterar as cláusulas pétreas.

Contudo, na segunda hipótese é diferente, pois não se altera o rol protetivo, mas estabelecem-se novos limites dentro do conjunto já existente. A cláusula pétrea não é um núcleo absolutamente intangível. O que não pode haver é medida tendente a abolir, mas é possível a alteração que aumente a sua abrangência. Nesse sentido, veja-se a exata dicção do art. 60, §4°: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir...". Citemos, por exemplo, a razoável duração do processo, criada com a EC 45/04, aumentando o rol dos direitos fundamentais, acabando por criar, em decorrência, novo limite ao poder reformador futuro, tornando-se cláusula pétrea. Logo, conforme STF, uma emenda não poderá alterar o rol das cláusulas pétreas, mas se já há, por exemplo, a cláusula pétrea dos direitos e garantias fundamentais, o aperfeiçoamento desses não é óbice ao poder constituinte derivado reformador. Logo, não se pode criar um novo feixe de cláusulas pétreas, mas pode-se aperfeiçoar os núcleos já existentes. Esse é o entendimento do STF.

2.3.    Mutação Constitucional Informal

Vimos atrás que o poder constituinte derivado reformador é a possibilidade que o povo tem, através de seus representantes eleitos, para alterar a Constituição já existente, o que pode ser feito por meio da Revisão Constitucional (art. 3º, do ADCT) ou através da Emenda Constitucional (art. 60, CF/88). Ocorre que existe uma outra possibilidade de alteração da Constituição que não se trata de alteração formal do seu texto. Temos, agora, a chamada mutação constitucional informal, que alguns chegam a denominar de poder constituinte difuso. Contudo, esse instituto de modificação constitucional sem alteração formal do seu texto é denominado pela maioria esmagadora da doutrina contemporânea como fenômeno da mutação constitucional informal.

Na verdade, há duas possibilidades de mudança (mutação) da Constituição. A primeira delas, como falado antes, decorre do poder constituinte derivado reformador e se realiza por meio da revisão constitucional ou de emendas constitucionais, alterando formalmente o texto constitucional. Todavia, admite-se uma outra forma de mudança (mutação) da Constituição, trata-se da mutação constitucional informal, que são processos informais de alteração do seu conteúdo, sem que haja modificação de seu texto. Ou seja, a mutação constitucional informal não é uma mudança formal do texto da Constituição. O texto constitucional não muda, permanece inalterado. A rigor, trata-se da chamada modificação hermeneutica ou modificação interpretativa. Por isso, fala-se em modalidade informal de modificação da Constituição, porque, de fato, não se está mudando a Constituição no seu plano formal, o texto fica intacto, apenas está sendo alterada a forma de interpretá-la.

Isso ocorre porque a norma jurídica é o produto da interpretação que se faz em determinada época. As palavras constantes nas normas jurídicas trazem sentidos, os quais podem variar conforme a evolução social, sobretudo com os avanços na sistemática jurídica, quando será possível uma releitura, fazendo-se uma reinterpretação da norma, sem alteração do texto constitucional. Na verdade, associa-se a mutação constitucional informal ao chamado poder constituinte difuso porque seria uma alteração da Constituição feita pela via interpretativa, mas que pode ser feita por todos, já que um dos postulados do direito constitucional moderno é a democratização da interpretação constitucional. Não há grupos exclusivos autorizados a interpretar a Constituição, mas todos somos democraticamente autorizados a interpretá-la. Por isso, então, tratar-se-ia de poder constituinte difuso, embora não seja tecnicamente a melhor denominação.

De todo modo, essa nova perspectiva decorre da sociedade aberta, democrática, pluralista. Por um lado, a mutação constitucional informal seria uma externalização do poder constituinte, pois embora não haja efetiva alteração formal do texto da Constituição, esta acaba sendo informalmente alterada, pela via hermeneutica. Por outro lado, seria um poder difuso porque, embora a interpretação do judiciário tenha um peso mais significativo sobre a ordem jurídica, todos são intérpretes da Constituição e estão legitimados para proceder à sua interpretação, não apenas os órgãos do Poder Judiciário, como também os demais poderes públicos, além dos múltiplos atores presentes na sociedade civil, que em seus debates travados na esfera pública participam da tarefa de atribuir e dar sentido às normas constitucionais.

Um exemplo de mutação informal, por exemplo, seria o art. 5º, XI, da CF/88: "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial". Antigamente, entendia-se o termo “casa” como sinônimo de residência. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal evoluiu para entender que, hoje, essa proteção constitucional foi ampliada e o termo "casa", agora, refere-se não apenas à residência, mas também, por exemplo, um quarto de hotel ocupado, um trailer que serve de casa ambulante, o estabelecimento empresarial e o local de trabalho, todas essas localidades podem ser abrangidas no rol protetivo do direito fundamental à inviolabilidade de domicílio.

 Outro exemplo, esse com intenso debate na doutrina e jurisprudência, seria o art. 52, X, da CF/88: "Compete privativamente ao Senado Federal: X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal". Conforme manifestações da Corte Suprema, a Constituição de 1988 teria modificado de forma ampla o sistema de controle de constitucionalidade, sendo inevitáveis as reinterpretações ou releituras dos institutos vinculados ao controle incidental de inconstitucionalidade, especialmente a exigência da suspensão de execução da lei pelo Senado Federal. Nesse sentido, o STF propunha uma mutação constitucional em face do art. 52, X, da CF/88, para defender a possibilidade de que as decisões proferidas pela Corte Maior, em sede de controle incidental, ao invés de gerar efeitos apenas inter partes, operasse efeitos erga omnes, independente da decisão do Senado quanto à suspensão da execução da lei impugnada.

Nesse sentido, o art 52, X, da CF/88, conforme a tese levantada no âmbito do Supremo, indicaria agora uma mera comunicação pelo STF ao Senado, o que indica que a própria Corte vem fazendo uma releitura do citado dispositivo constitucional, entendendo que a natureza idêntica do controle de constitucionalidade, quanto às suas finalidades e aos procedimentos comuns dominantes para os modelos difuso e concentrado, não mais parece legitimar a distinção quanto aos efeitos das decisões proferidas no controle direto e no controle incidental. Trata-se da chamada Teoria da Abstrativização do Controle Concreto, que veremos logo a seguir. Todavia, a tese encampada pela Corte Suprema ainda não vingou, sendo mera tendência que se observa no âmbito do STF.

Sobre o autor
Francisco Gilney Bezerra de Carvalho Ferreira

Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Direito Público pela Faculdade Projeção e MBA em Gestão Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e Engenharia Civil pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Procurador Federal em exercício pela Advocacia-Geral da União (AGU) e Professor do Curso de Graduação em Direito da Faculdade Luciano Feijão (FLF-Sobral/CE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Francisco Gilney Bezerra Carvalho. Mutação constitucional informal e a abstrativização do controle concreto de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3841, 6 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26225. Acesso em: 23 dez. 2024.

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