EMENTA: Terceira Turma - DANO MORAL. PRESERVATIVO EM EXTRATO DE TOMATE.
A Turma manteve a indenização de R$ 10.000,00 por danos morais para a consumidora que encontrou um preservativo masculino no interior de uma lata de extrato de tomate, visto que o fabricante tem responsabilidade objetiva pelos produtos que disponibiliza no mercado, ainda que se trate de um sistema de fabricação totalmente automatizado, no qual, em princípio, não ocorre intervenção humana. O fato de a consumidora ter dado entrevista aos meios de comunicação não fere seu direito à indenização; ao contrário, divulgar tal fato, demonstrando a justiça feita, faz parte do processo de reparação do mal causado, exercendo uma função educadora. Precedente: REsp 1.239.060-MG, DJe 18/5/2011. REsp 1.317.611-RS, Min. Rel. Nancy Andrighi, julgado em 12/6/2012.
TRECHOS DO VOTO DO RELATOR:
“(...)
O segundo feixe de impugnações deste recurso diz respeito ao montante do dano moral fixado. A recorrente afirma que um fato superveniente conduziria à conclusão de que o dano moral alegado inexistiria. A recorrida deu entrevista a meios de comunicação falando do ocorrido, narrando sua versão dos fatos. Para a recorrente “aquele que sofre com abalo em sua moral, em que pese as variantes de características pessoais, de forma geral normalmente (sic) não têm (sic) a intenção de propagar o fato que lhe teria causado o engodo”. A recorridoa, contudo, “parece relativamente confortável ao contar a sua hitória e propagá-la pelos meios de comunicação, adotando uma postura no mínimo estranha” (fl. 242, e-STJ).
Esses argumentos, contudo, não infirmam as conclusões do acórdão recorrido. Ao contrário do que supõe o recorrente, o abalo causado a uma dona de casa que encontra, num extrato de tomate que já ulitizou para consumo de sua família , um preservativo aberto, é muito grande. Isso é do senso comum. É perfeitamente natural que, diante da indignação sentida numa situação como essas, desperte-se no cidadão o desejo de obter justiça. Uma parte da satisfação que aplaca a dor sentida pela pessoa está justamente em obter a indenização pleiteada e, não só isso, demonstrar à população que, ainda que tardia, a justiça não lhe faltou. Contar o que aconteceu é parte do processo de expiação do mal. Dividir com todos a indignação e a reprimenda faz com que a pessoa passe, da indignação ao sentimento de dever cumprido. O próprio fundamento do dano moral, que além de reparação do mal também exerce uma função educadora, justifica a divulgação do fato à imprensa.
De resto, o valor arbitrado pelo TJ/RS, mantendo a sentença que fixara a indenização em R$ 10.000,00, é módico e não carece de revisão, notadamente considerando que há, nesta Corte, precedente no qual a indenização foi fixada em R$ 15.000,00 para uma hipótese muito semelhante à presente, na qual o consumidor encontrou uma barata dentro de uma lata de leite condensado. (...)
(...)”
PRECEDENTE:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO CONSUMIDOR. RECURSO ADESIVO. ADMISSIBILIDADE. REQUISITOS. AQUISIÇÃO DE ALIMENTO COM INSETO DENTRO. INGESTÃO PELO CONSUMIDOR. DANO MORAL. EXISTÊNCIA. VALOR. REVISÃO PELO STJ. POSSIBILIDADE, DESDE QUE IRRISÓRIO OU EXORBITANTE.
1. Além de subordinar-se à admissibilidade do recurso principal, nos termos do art. 500 do CPC, o próprio recurso adesivo também deve reunir condições de ser conhecido. Nesse contexto, a desídia da parte em se opor à decisão que nega seguimento ao recurso adesivo inviabiliza a sua apreciação pelo STJ, ainda que o recurso especial principal venha a ser conhecido.
2. A avaliação deficiente da prova não se confunde com a liberdade de persuasão do julgador. A má valoração da prova pressupõe errônea aplicação de um princípio legal ou negativa de vigência de norma pertinente ao direito probatório. Precedentes.
3. A aquisição de lata de leite condensado contendo inseto em seu interior, vindo o seu conteúdo a ser parcialmente ingerido pelo consumidor, é fato capaz de provocar dano moral indenizável.
4. A revisão da condenação a título de danos morais somente é possível se o montante for irrisório ou exorbitante. Precedentes.
5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido. Recurso adesivo não conhecido.
REsp 1.239.060/MG, Terceira Turma, rel. Min. NANCY ANDRIGHI, DJe 18/5/2011.
SÍNTESE: O julgado em comento trata de situação que, infelizmente, tem se tornado comum no mercado de consumo, em que o consumidor, ao adquirir um produto, se depara com objetos estranhos em meio ao respectivo conteúdo. Nos termos do art. 12 do CDC, a situação configura fato do produto, isto é, acidente de consumo, tendo em vista que o defeito atinge o consumidor não só em sua incolumidade econômica, mas também em sua incolumidade físico-psíquica. Conforme destacado, é irrelevante para a configuração do dano o fato de o consumidor falar à imprensa sobre os fatos, o que, inclusive, no entender do órgão julgador, faz parte do processo de purga do mal experimentado. No que tange à revisão da verba indenitária, a Turma entendeu que isso somente é possível em caso de condenações irrisórias, isto é, naquelas hipóteses em que o valor devido à vítima, a título de compensação pelo mal causado, não seja capaz de cumprir seu duplo escopo, a saber: o de compensar a vítima pelo mal sofrido, e o de impingir ao ofensor uma sanção para que não volte a causar novos danos.
COMENTÁRIOS
O Código de Defesa do Consumidor disciplina, na Seção II, do Capítulo IV, a chamada responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço, a qual se encontra pormenorizada entre os arts. 12 e 17 do código.
A questão que analisamos nesta oportunidade enquadra-se no que está disposto no art. 12 do CDC , isto é, investiga-se a ocorrência de fato do produto, também chamado acidente de consumo. Nesses casos, há um evento cujos efeitos, além de gerar repercussões na esfera econômica do consumidor, provocando uma depreciação do produto, afeta sua incolumidade físico-psíquica, causando-lhe um dano patrimonial ou extrapatrimonial, ou ambos. Assim, vale memorizar: (i) no vício, a anormalidade fica restrita ao produto ou serviço; (ii) no fato, o defeito extrapola a órbita estritamente econômica do produto, causando danos ao consumidor.
O art. 8º do CDC contém a norma que fundamenta a responsabilidade civil dos fornecedores no sistema protetivo consumerista. Eis o seu teor:
Art. 8° Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito (grifei).
Sendo assim, o CDC estabelece um dever jurídico que obriga os fornecedores a disponibilizar ao consumidor produtos cujo consumo seja seguro, de modo que não acarrete riscos à sua saúde ou segurança. Interessante notar que o dispositivo fala em riscos, e não em danos. Essa observação é importante, pois, como sabemos, para que haja responsabilidade civil, é necessária a ocorrência de um dano - pressuposto inafastável do dever de indenizar.
Então, o CDC admite que meros riscos de dano sejam indenizados? Absolutamente, não! O que gera o dever de reparar são os reflexos danosos desses riscos na esfera físico-psíquica do consumidor; esses reflexos é que configuram o dano, e não o risco isoladamente. Nada obstante, tudo vai depender da verificação do tipo de risco envolvido, isto é, se um risco abstrato ou concreto. Havendo um risco abstrato, este fato em si não será capaz de gerar o dever de indenizar. Do contrário, se for houver um risco concreto à saúde do consumidor, isto é, se houver o receio de que o consumo de um produto contaminado poderá lhe ocasionar danos à saúde física ou mental, presente estará o dever de reparação civil.
No caso em tela, o estudioso do Direito do Consumidor deve compreender que o dever de indenizar decorreu de ofensa à incolumidade psíquica do consumidor. Embora este não tenha efetivamente experimentado um dano à sua saúde; que ninguém de sua família tenha se intoxicado com o consumo do extrato de tomate, foram os sentimentos de nojo, ojeriza, asco, repugnância etc., causados pela surpresa de encontrar um preservativo em meio a um alimento após consumi-lo, que geraram o dever de reparação civil.
Há que se distinguir duas situações: (i) consumidor que apenas se depara com um corpo estranho em um alimento, sem que chegue a consumi-lo; (ii) consumidor que, após consumir o produto, descobre que este estava contaminado, vindo a sofrer um dano à sua saúde ou o receio concreto de sofrer tal prejuízo.
Na primeira situação, embora o consumidor possa, eventualmente, sentir-se enojado ao ver que o alimento está maculado por algum corpo estranho, não haverá dano, pois sequer houve risco à sua saúde ou segurança. Em outras palavras, o consumidor não terá sido exposto ao risco. Nada obstante, o TJ-SP já teve a oportunidade de condenar uma fabricante de refrigerantes a compensar uma consumidora por danos morais, só pelo fato de ela ter adquirido uma garrafa da bebida que continha fungos, sem que, no entanto, tivesse havido consumo, verdadeiramente condenando a fabricante por dano potencial, decisão que, em nossa opinião, foi incorreta, por ignorar exatamente o principal pressuposto do dever de indenizar, que é o dano (vide AP.CIV 9189895-46.2008.8.26.0000). Ademais, nesses casos, merece atenção o chamado duty to mitigate the loss (dever de mitigar a perda), doutrina segundo a qual, com base no princípio da boa-fé, existe o dever de a vítima minimizar o próprio prejuízo, caso reúna condições para tanto.
Diversamente, na segunda situação, haverá o dever de reparar o dano, pois são perfeitamente presumíveis aqueles sentimentos adversos de nojo após consumir um produto cuja contaminação é perceptível pelo consumidor. É exatamente essa a situação apreciada pela Terceira Turma do STJ neste julgado. No caso, o risco concreto à saúde dos consumidores envolvidos gerou neles o receio de intoxicação alimentar, bem como as sensações adversas acima descritas. Ou seja, esse conjunto de reflexos negativos configurou o dano moral indenizável.
No que se refere à exposição pública do fato, a Turma considerou, corretamente, que a atitude da consumidora lesada não afasta nem diminui o dever do fornecedor no sentido de reparar o dano. Obviamente, uma pessoa cujos direitos da personalidade foram violados não precisa, necessariamente, guardar luto do fato. Normalmente é o que ocorre, mas esse não é um pressuposto do dever de indenizar. Demonstrados a ação ou omissão, o nexo causal e o dano, haverá responsabilidade civil. Lembrando, ainda, que a responsabilidade civil no sistema protetivo consumerista é objetiva, isto é, independentemente de culpa do fornecedor na causação do evento danoso. Em outras palavras, basta que o consumidor demonstre a conduta do fornecedor, o nexo causal e o dano. No caso de fato do produto, as únicas hipóteses de não responsabilização dos sujeitos descritos no art. 12 estão taxativamente (numerus apertus) elencadas no respectivo § 3°, que merece transcrição:
Art. 12. (...)
§ 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar:
I - que não colocou o produto no mercado;
II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste;
III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
Assim, o CDC institui verdadeira regra de distribuição do ônus da prova (ope legis), ao atribuir àqueles sujeitos o dever de provar a ocorrência de alguma das hipóteses acima arroladas.
Passando ao destaque afeto à revisão da verba indenitária fixada nos casos envolvendo danos extrapatrimoniais, dissemos linhas atrás que as condenações por danos dessa natureza possuem dupla função: reparadora e pedagógica. Sobre o tema, Flávio Tartuce esclarece que a função reparatória tem caráter principal; a pedagógica reveste-se de caráter acessório. São suas palavras:
“(...) é preciso salientar que a reparação deve estar sempre presente, sendo o caráter disciplinador de natureza meramente acessória (teoria do desestímulo mitigado)”. Seguindo essa tendência, colaciona-se: ‘Responsabilidade civil - Dano moral – Valor da indenização. O valor do dano moral tem sido enfrentado no STJ com o escopo de atender a sua dupla função: reparar o dano buscando minimizar a dor da vítima e punir o ofensor para que não volte a reincidir. Fixação do valor que não observa regra fixa, oscilando de acordo com os contornos fáticos e circunstanciais. 4. Recurso especial parcialmente provido’ [STJ, REsp. 604.801/RS, Recurso especial, 2003/0180031-4, Ministra Eliana Calmon (1114) T2 – Segunda Turma 23.03.2004, DJ 07.03.2005, p. 214]’ (TARTUCE, Flávio. Direito Civil 2 - Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. 7ª ed. São Paulo: Método, 2012, pp. 406-407).
Posto isto, de fato não faz sentido a fixação de uma verba irrisória a título de compensação por danos morais, uma vez que será incapaz de amenizar a dor sofrida pela vítima, tampouco desestimular o ofensor a atuar canhestramente. Dentro dessa perspectiva, o órgão julgador houve por bem manter o valor fixado em segunda instância, e para tanto levou em conta o valor fixado a tal título pelo próprio STJ em caso semelhante, em que fora encontrado um inseto no interior de uma lata de leite condensado (REsp. 1.239.060/MG, 3ª Turma, DJ 10/05/2011). Segundo o relator, “não há, para os fins deste julgamento, diferenças significativas entre a repulsa que se sente ao encontrar uma barata ou um preservativo dentro de um alimento que se acaba de consumir”.
Por todo o exposto, consideramos que a decisão da Terceira turma do STJ foi acertada, na medida em que atribuiu correto tratamento à matéria, mostrando-se afinada com as normas protetivas do consumidor.