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Direito e Ciência na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen

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Agenda 01/02/2002 às 01:00

O VIÉS HERMENÊUTICO: CONTAMINANDO O MÉTODO JURÍDICO.

As objeções mais fortes ao relativismo axiológico de Kelsen, que acabou por reduzir a ciência jurídica aos estreitos limites do formalismo normativista, vêm sendo elaboradas no bojo do chamado movimento de renascimento da filosofia jurídica, ocorrido após a trágica experiência histórica do Estado-assassino de Hitler.[11] Além do ressurgimento das questões axiológicas, trazidas pela urgência civilizatória do novo pacto ético celebrado em torno da defesa intransigente dos direitos humanos, novas abordagens epistemológicas acerca do direito e de sua ciência, com um visível acento na hermenêutica e na argumentação jurídica, vão conduzir a um cenário hoje denominado de pós-positivismo. Sobre essa virada, nos fala Margarida Maria Lacombe Camargo:

"(...) Kelsen cinge-se à idéia do resgate da objetividade e da segurança no campo do direito, propondo a construção de uma teoria que excluísse quaisquer elementos de natureza metafísico-valorativa. Como vimos, a idéia era a de que a atividade jurisdicional ficasse circunscrita a operações lógico-dedutivas extraídas de um sistema dinâmico de normas feitas pelo Estado capaz de gerar uma norma individual como sentença para cada caso concreto.

No entanto, as correntes que vêem a aplicação do direito como atividade criadora insurgem-se em opor severas críticas ao positivismo kelseneano, apontando para a falibilidade do modelo lógico-dedutivo. Acredita-se que o direito existe concretamente e não de forma virtual, ou melhor, que ele vale à medida que é capaz de compor interesses, desconsiderando-se o seu valor meramente potencial, Este movimento, que encerra o predomínio da dogmática tradicional, é denominado pós-positivismo."[12]

Segundo Camargo, destacam-se nesse universo, as contribuições teóricas da tópica de Theodore Viehweg, a nova retórica de Chaim Perelman, a filosofia da lógica do razoável, de Recasen Siches, etc. Não caberia, no espaço deste artigo uma discussão mais aprofundada acerca dos desdobramentos teóricos de cada uma dessas formulações. Portanto, elas serão apresentadas, à guisa de conclusão, apenas na medida em que representam novos pontos de partida para a reinserção da teoria jurídica na concretude histórica de onde foi arrancada pela pureza cética do positivismo jurídico.

Pois bem, contra o caráter sistêmico-normativo atribuído ao Direito pelo positivismo, Viehweg opõe a tópica como método ou estilo típico do raciocínio jurídico, que os antigos chamavam de prudência. No prefácio à edição brasileira de Tópica e Jurisprudência, Tércio Sampaio Ferraz Jr. assim descreve as bases da análise de T. Viehweg:

"Nas origens, Viehweg remonta a Aristóteles, para quem se coloca uma diferença entre demonstrações apodíticas e dialéticas. O grego tinha um conceito bastante estrito de ciência. A cientificidade é apenas atribuível à coisa tal como ela é (Na. Post. 1, 2, 71b). Ou seja, ao conhecimento da causalidade, da relação e da necessidade da coisa. Nestes termos nos falava ele em conhecimento universal. A lógica deste conhecimento é a analítica, que constrói suas demonstrações a partir de premissas verdadeiras, por meio de um procedimento silogístico estrito. Neste sentido, as demonstrações da ciência são apodíticas, em oposição às argumentações retóricas, que são dialéticas. Dialéticos são os argumentos que concluem a partir de premissas, aceitas pela comunidade como parecendo verdadeiras. A dialética é, então, uma espécie de arte de trabalhar com opiniões opostas, que instaura entre elas um diálogo, confrontando-as no sentido de um procedimento crítico. Enquanto a analítica está na base da ciência, a dialética está na base da prudência.

É esta prudência, enquanto sabedoria, virtude de saber sopesar os argumentos, confrontar opiniões e decidir com equilíbrio, que Viehweg investiga em seu livro, desde a jurisprudência romana, passando pelo mos itálicos e pela Era Moderna, até a civilística contemporânea. (...)."[13]

Viehweg parte do conceito aristotélico de tópica, estilo de pensar a partir de situações problemáticas, e que fornece caminhos decisórios, em busca de premissas mais ou menos aceitas, no contexto de uma disputa argumentativa e dialética, em oposição à analítica, que se caracteriza pelo método, segundo aristóteles, propriamente científico, dedutivo e sistemático. Assinala Viehweg:

"A tópica é um conhecimento em busca de premissas, conforme sublinhou Cícero, ao diferenciá-la, como ars inveniendi, da lógica demonstrativa, ou ars iudicandi. Isto tem pleno sentido. Pois é possível distinguir uma reflexão que busca o material para pensar, de outra que se ajusta à lógica. É igualmente claro que na prática esta última deve vir depois daquela. Vista desta maneira, a tópica é uma meditação prológica. A tópica mostra como se acham as premissas; a lógica recebe-as e as elabora.

O modo de buscar as premissas influi na índole das deduções e, ao contrário, a índole das conclusões indica a forma de buscar as premissas."[14]

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Segundo Viehweg, é com o racionalismo moderno - principalmente depois da consolidação do positivismo como paradigma científico no Direito - que a cultura jurídica moderna, pretendendo emprestar ao Direito uma estrutura lógica de sistema de normas e conceitos, realiza a substituição do estilo tópico pelo método dedutivo, em nome dos ideais de certeza e racionalidade. No entanto, a idéia de um sistema jurídico, logicamente perfeito, é para este autor algo impossível de se atingir. É que, desde a escolha dos princípios objetivos fundamentais (axiomas) que irão constituir o topo do sistema de deduções, até propriamente a tarefa das puras operações lógico-dedutivas, ocorrem influências ou infiltrações tópicas. Com isso, ressalta que o sistema jurídico, isto é, o Direito efetivo - realidade normativa passível de descrição científica, como quer Kelsen - é algo, de saída, impuro, contaminado pela interpretação, que é um tipo de pensamento que deve, segundo Viehweg, mover-se dentro do estilo da tópica. Parte daí para sustentar que a jurisprudência (ou o que chamamos de ciência jurídica) é uma disciplina essencialmente problemática, sendo que suas partes integrantes (conceitos e proposições) "têm de ficar ligados de um modo específico ao problema e só podem ser compreendidos a partir dele."[15]

O problema último, ou a aporia fundamental, que se estabelece no raciocínio jurídico e que atribui sentido aos conceitos é, segundo Viehweg, a aporia da justiça, levando-se em conta - contra o jusnaturalismo - as condições históricas.[16] Esse raciocínio permite até, digamos, uma compatibilização entre a tópica e a visão sistêmica. Não obstante, mantendo-se o foco nos problemas, os sistemas jurídicos devem conservar uma textura aberta em torno da atualização constante das questões relacionadas à realização da justiça.[17]

Viehweg reconhece a existência de sistemas jurídicos - assim mesmo, no plural - como conjunto de tópicos elaborados como premissas mutáveis, permanecendo constante apenas a pergunta fundamental em torno da justiça. Mais uma vez, permito-me citar o texto do próprio autor tendo em vista o espaço sintético deste artigo e a necessidade de preservar ao máximo a autenticidade de sua elaboração. Assim, conforme Viehweg:

"A estrutura total da jurisprudência, como dissemos mais acima (cf. I, 1), só pode ser determinada a partir do problema. (...) Ao tomar posição de uma determinada maneira frente ao problema fundamental (por exemplo, a autonomia privada parece justa), origina-se um conjunto de questões que se pode determinar com bastante precisão e que baliza o âmbito de uma disciplina especial, por exemplo, o do direito privado. Toda a organização de uma disciplina jurídica se faz partindo do problema. Quando se diferenciam certas séries de questões do modo indicado, agrupam-se ao redor delas as tentativas de resposta do respectivo direito positivo. Naturalmente, estes quadros de questões não devem ser sobreestimados em sua constância. Sua formação depende de alguns pressupostos de compreensão que não são imutáveis. O único efetivamente permanente é a aporia fundamental. Porém, isto não impede que, com frequência, uma situação de longa duração permita formular certos complexos de perguntas permanentes. Em suas linhas fundamentais e em suas conexões, têm geralmente um alto grau de fixidez, do mesmo modo que as soluções. Cabe à Sociologia do Direito a tarefa de investigar com mais detalhe as relações que aqui existem, ainda que sem cair num sociologismo todo-poderoso e unilateral."[18]

Na esteira desse raciocínio, certeira, me parece, é a análise de Perelman, para quem Kelsen e sua teoria pura partem de uma pressuposto equivocado que é a cisão absoluta dos planos de ser e dever-ser. Ora, fracassado o intento de purificar o objeto, a ciência jurídica deve, pois, atuar no desenvolvimento de uma racionalidade prática, escapando da tentação relativista que lhe impõe o positivismo, enquanto procura de critérios e mecanismos razoáveis de decisão. É que uma conseqüência paradoxal desse relativismo na teoria pura é a equiparação da decisão do juiz - autorizado pela normatividade a proferir, nos casos concretos, uma norma individual (sentença) - à decisão do legislador, que também autorizado pela normatividade, cria regras gerais. Ambos participam da dinâmica do Direito, havendo entre eles apenas uma diferença de grau. Mas aí, Kelsen é forçado a reconhecer que não é possível para a ciência jurídica estabelecer qualquer tipo de juízo preventivo acerca das decisões judiciais, pois o juiz assim como o legislador cria direito novo, condicionados apenas formalmente por uma moldura normativa.[19] E aqui o paradoxo: como sustentar a idéia de um sistema jurídico unitário e escalonado de normas em que as decisões que realimentam esse sistema são assim incontroláveis e, portanto, em probabilidade, contraditórias? Sabendo de antemão que, no processo criativo (ou dinâmico, como prefere Kelsen) do Direito, a contaminação fático-axiológica típica do procedimento hermenêutico resulta da relação constante entre autoridades competentes e cientistas, parece mesmo vã a tentativa purificadora.

Segundo Menezes Cordeiro, diante da riqueza dos casos concretos, as posturas positivistas e formalistas se mostram insuficientes. Expõem suas limitações diante das necessidades de efetiva realização do Direito nas situações mais críticas, quais sejam: a proibição do non liquet (o juiz é obrigado a decidir) diante das lacunas do ordenamento; a ocorrência cada vez mais freqüente de conceitos indeterminados, ou normas em branco (urgência, relevância, ordem pública, relevante valor social ou moral, etc.); as colisões de princípios fundamentais (privacidade e direito à informação); e, finalmente, "o juspositivismo detém-se perante a questão complexa, mas inevitável das normas injustas".[20]

Conclui o autor português, confirmando as conseqüências paradoxais da epistemologia positivista, quando aplicada aos processos jurídicos concretos:

"(...) obrigado, pela proibição do non liquet a decidir, o julgador encontrará sempre uma qualquer solução, mesmo havendo lacuna, conceito indeterminado, contradição de princípios, ou injustiça grave. Munido, porém, de instrumentação meramente formal ou positiva, o julgador terá de procurar, noutras latitudes, as bases da decisão. A experiência, a sensibilidade, certos elementos extra-positivos e, no limite, o arbítrio do subjectivo, serão utilizados. Dos múltiplos inconvenientes daqui emergentes, dois sobressaem: por um lado, a fundamentação que se apresente será aparente: as verdadeiras razões da decisão, estranhas aos níveis juspositivos da linguagem, não transparecem na decisão, inviabilizando o seu controlo; por outro, o verdadeiro e último processo de realização do Direito escapa à Ciência dos juristas: a decisão concreta é fruto, afinal, não da Ciência do Direito, mas de factores desconhecidos para ela, comprometendo, com gravidade, a previsibilidade, a seriedade e a própria justiça de decisão."[21]

Mais uma vez, recorro ao texto dos autores aqui mencionados, para concluir, com Perelman que:

"Se se adota o dualismo kelseniano, que é também o de Hägeström, deve-se renunciar à ilusão da razão prática em todos os domínios, e não somente em direito. (...) Mas então, pode-se falar seriamente em uma decisão razoável, de um julgamento bem motivado, de uma escolha fundamentada, de uma pretensão fundamentada? E se semelhantes asserções não forem mais do que racionalizações destinadas a enganar os ingênuos, exprimiria toda a vida social alguma coisa que não relações de força? E a filosofia prática serviria a outra coisa senão para cobrir com um manto de respeitabilidade aquilo que os interesses e paixões impõem pela coerção?

Parece-me que todos os paradoxos da teoria pura do direito, bem como todas as suas implicações filosóficas, derivam de uma teoria do conhecimento que não atribui valor senão a um saber incontroverso, inteiramente fundado nos dados da experiência e na prova demonstrativa, negligenciando totalmente o papel da argumentação. (...)

Mas, seria possível, à falta de prova demonstrativa, renunciar a justificar por uma argumentação igualmente convincente e possível nossas escolhas e decisões, nossos valores e normas? E seria preciso, na ambição de constituir uma ciência do direito e uma teoria pura do direito, considerar como juridicamente arbitrário tudo o que só pode ser justificado mediante semelhante argumentação?[22]

Essas ponderações questionadoras e problematizantes de Perelman conseguem colocar em xeque os postulados kelseneanos, mas, como afirmei atrás, aqui foram expostos apenas alguns pontos de partida para uma investigação epistemológica e seus necessários desdobramentos. Impossível, portanto, seria a tentativa de concluir-se, decretando o total esgotamento do legado de Kelsen para a ciência jurídica, e celebrar o advento de um novo paradigma epistemológico marcado pelo que chamei de o viés hermenêutico. Ora, nem aquele se esgotou, embora seja merecedor de muitas das críticas a si direcionadas, nem este se instalou, enquanto nova matriz epistemológica da ciência jurídica. Ademais, convém ressalvar que uma metodologia centrada na total autonomia e no voluntarismo dos intérpretes, ou, como costumamos chamar, dos operadores do Direito - que não é o caso, é preciso dizer, nem da tópica de Viehweg, que nos fala em catálogos de tópicos, orientados pela realização da justiça, nem da lógica argumentativa de Perelman, que lembra a necessidade de desenvolverem-se mecanismos e critérios racionais de justificação das decisões que vão compor o mundo jurídico - perderia, assim, até suas pretensões de cientificidade, posto que não se submeteria a nenhuma espécie de controle ou de verificação.

Não obstante, esse novo viés hermenêutico reúne, a meu ver, as potencialidades para a reconstrução das bases epistemológicas da ciência jurídica, principalmente porque a partir dele será possível trazer para a luz aquilo que o brilho da normatividade pura tinha ofuscado: os dados da experiência histórica, analisados sociologicamente, relevantes para o jurista, na medida em que resultem na formulação de finalidades éticas, que devam realizar-se normativamente, no contexto de discursos de poder que, por sua vez, não se furtem a justificar de forma racional suas decisões.

Sobre o autor
Mauro Almeida Noleto

mestre em Direito pela Universidade de Brasília, professor de Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e do Instituto de Ensino Superior de Brasília (IESB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOLETO, Mauro Almeida. Direito e Ciência na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2644. Acesso em: 20 nov. 2024.

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