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A democracia e os regimes populistas da América Latina

Agenda 19/03/2014 às 13:32

Objetiva-se definir o que é democracia e explorar seu grau de intensidade em regimes considerados "populistas", a partir da análise de teorias da democracia, fazendo breves comparações com processos políticos em curso na América Latina.

Introduçã?o

A democracia, sistema político em vigor na maioria dos países ocidentais, é teoricamente o tipo de regime que melhor assegura o pluralismo e as liberdades individuais e coletivas. Os cidadãos podem participar ativamente das atividades políticas e eleger seus representantes sem sofrer nenhum tipo de sanção.

Pensando em descrever o que é uma democracia, Dahl (1989) criou o conceito de “poliarquia”, sistema caracterizado por: eleição cidadã das autoridades políticas em processos competitivos; eleições livres e limpas; sufrágio universal; livre acesso à atividade política e direito de competir por cargos públicos; direito de associar-se aos grupos que sejam de interesse; total liberdade de expressão e fontes de informação variadas. Como bem explica Diamond (2004: 118)[1]

Sob este conceito a democracia não somente requer eleições competitivas, justas e livres, senão também liberdades que as façam realmente significativas (como a liberdade de organização e a liberdade de expressão), fontes alternativas de informação e instituições para assegurar que as políticas do governo dependam dos votos e preferências dos cidadãos.

É de se destacar que em alguns países, em particular na América Latina, há sistemas que, ainda que sejam considerados uma democracia, suprimem traços importantes desta. São as chamadas “democracias populistas”. Daí surge a questão: é possível que haja democracia sem liberalização?

O problema das democracias não liberais (“democracias populistas”)

Segundo O’Donnell e Schmitter (1986: 21), liberalização é o processo que amplia e redefine os direitos. Estas garantias clássicas da tradição liberal “protegem indivíduos e grupos sociais ante os atos arbitrários ou ilegais cometidos pelo Estado ou por terceiros”[2]. Se não se garantem estes direitos, a democracia se transforma em um mero formalismo. É o que ocorre, por exemplo, em países como a Venezuela, onde se garantem as eleições livres, mas existem pressões, há impedimentos à livre concorrência, os juízes são parciais e não se garante o devido processo legal (o heabeas corpus, por exemplo, é concedido de modo arbitrário).

Estas democracias “formais” costumam ser comandadas por líderes que creem que como foram eleitos em eleições livres e competitivas, os cidadãos delegaram a eles plena autoridade para decidir, como melhor lhes parece, o que é bom para o país. Quando chegam ao poder, tentam suprimir as instituições[3]. Como bem leciona Freidenberg (2011: 10), neste tipo regime “o líder está por cima das regras, por isso não necessita se preocupar com o Estado de Direito nem com as instituições. Ampara-se nos resultados de umas eleições presidenciais que o outorgam legitimidade para fazer mudanças”[4].

Na Venezuela as próprias eleições não são cem por cento competitivas. Chávez, por exemplo, utilizava os recursos ilimitados que lhe proporcionava o petróleo por meio da PDVSA, mais todos os instrumentos do Estado e os meios de comunicação, aparecendo uma média de cinquenta minutos a mais que seu adversário na televisão e na rádio.

Já na Bolívia, o pluripartidarismo é uma formalidade, posto que o MAS do presidente Evo Morales é, segundo a classificação de Sartori (1992[1976]), um partido hegemónico, e portanto é a única força política de fato.

Para Robert Dahl não se pode chamar de democrático um regime em que há impedimentos para que a oposição se organize em partidos políticos ou que impossibilite a sua competição nas eleições em condições de igualdade. É necessário que o sistema permita a rivalidade entre oposição e governo (DAHL, 1989: 13-15). Desde este ponto de vista, os processos eleitorais na Venezuela e na Bolívia são considerados antidemocráticos.

Outro traço característico dos regimes populistas é a constante perseguição aos meios de comunicação contrários ao regime, em que um dos casos mais emblemáticos foi a não renovação pelo Estado venezuelano da concessão que a emissora de televisão RCTV tinha para operar utilizando um dos espectro radioelétricos disponíveis.

Dia 27 de março de 2007 o canal de TV aberto intitulado RCTV foi notificado de que não teria a sua concessão renovada, após um trâmite processual marcado pela falta de imparcialidade e transparência, em que até o próprio canal de TV, que era parte, teve o seu direito de intervir para ser ouvido e oferecer provas negado, violando as regras processuais em vigência na Venezuela[5]. Em decorrência das violações ao direito de defesa, ao devido processo legal, à liberdade de expressão, à igualdade perante a lei, dentre outros direitos alegados pela emissora postulante, foi o caso levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

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Alegou a RCTV ante a CIDH que o motivo da não renovação da concessão se deu devido à linha editorial do canal. O Estado, por sua vez, alegou que a não renovação da concessão nada tinha a ver com a linha editorial do canal, sendo que se deu para que o governo venezuelano pudesse pôr em prática o “Plan Nacional de Telecomunicaiones” e para que pudesse ser criado um canal público de televisão aberta[6].

Ocorre que, em 2006, o presidente Hugo Chávez e o ministro a cargo do Ministerio de Comunicación e Información passaram a declarar expressamente que não iriam renovar a concessão da RCTV. O presidente Chávez chegou a alegar que não se iria “tolerar nenhuma meio que estivesse a serviço do golpismo, contra o povo, contra a nação, contra a independência, contra a dignidade da república”, e o MINCI chegou a realizar uma campanha oficial para justificar o porquê de não renovar a concessão do canal, com mensagens como “não renovar a mentira”[7]. Contrariamente, o governo venezuelano não logrou provar que o Plan Nacional de Telecomunicaciones havia sido implantado antes da emissão do comunicado que declarou a não renovação da concessão (Comunicación nº 0424). E também não soube explicar por que para cumprir o plano era necessário não renovar a frequência da RCTV, já que haviam outras frequências disponíveis[8].

Há quem postule que o populismo, por incorporar os grupos que antes eram excluídos das instituições, aprofunda a democracia, sendo esta característica inclusiva a que faz com que os líderes populistas sigam sendo elegidos com amplas margens de diferença em relação a seus adversários, pois os partidos tradicionais se demonstraram incapazes de representar os cidadãos e o líder populista melhorou as condições de vida destes.

Outros defendem o contrário. O populismo seria uma “aberração do que deveriam ser as práticas democráticas”[9]. Os líderes manipulam o povo em benefício de seus desejos e o considera como “massas amorfas e irracionais”[10]. Ademais, debilitam as instituições, e ainda que hajam conseguido incorporar os indivíduos, o regime é anti-individualista, coletivista e antidemocrático. Seu discurso polariza a sociedade, se baseando no eterno conflito entre os setores populares e os setores oligárquicos, os grandes inimigos. “O populismo fomenta a ilusão das massas de que agora são elas que estão participando no sistemas mas termina criando outra elite, a que se beneficia do projeto populista, que suplanta a que dominava no sistema anterior”[11] (FREIDENBERG, 2007: 264/ 267). 

Ao final, nos deparamos com um problema conceitual: definir estes regimes como democracias limitadas ou como autoritarismos sob eleições? Para Malloy (1993), a combinação de eleições institucionalizadas com práticas autoritárias resulta em um regime que poderíamos chamar de híbrido. Para Diamond (2004: 120), “são de fato democracias eleitorais, ainda que “incompetentes” e de mal funcionamento”[12].

Considerações finais

Para que haja democracia, ademais de eleições competitivas, livres e justas, é necessário que se respeitem certas garantias consagradas pela tradição liberal. As democracias populistas suprimem certos direitos individuais, como o direito ao devido processo legal e os direitos à liberdade de expressão e de imprensa. Contudo, estes regimes continuam sendo intitulados democráticos, pois as autoridades foram eleitas mediante processos eleitorais, que muitas vezes não foram nem mesmo realmente competitivos. O que podemos concluir é que há “democracias” que utilizam as eleições para legitimar práticas autoritárias.

REFERÊNCIAS

CIDH. Informe No. 112/12. Caso 12.828. Fondo Marcel Granier y otros Venezuela. 2012. Disponível em:
http://search.oas.org/en/default.aspx?k=Informe+No.+112%2f12.+Caso+12.828&s=All+Sites. Acesso em: 02 de dezembro de 2013.

DAHL, Robert. La poliarquía. Participación y oposición. Buenos Aires: REI, 1989.

DIAMOND, Larry. Elecciones sin democracia. A propósito de los regímenes híbridos. Estudios Políticos. Medellín: Universidad de Antioquia, 2004. v. 24.

FREIDENBERG, Flavia. La Tentación Populista: una vía al poder en América Latina. Madrid: Editorial Síntesis, 2007.

FREIDENBERG, Flavia. Los nuevos liderazgos populistas y la democracia en América Latina. LASA Forum. Pittsburgh: Latin American Studies Association, 2011. v. 42. n. 3.

MALLOY, James. Política Econômica e o Problema de Governabilidade Democrática nos Andes Centrais. In: Estado, Mercado e Democracia: Política e Economia Comparada. São Paulo: Paz e Terra, 1993.  

O’DONNELL, Guillermo. Delegative Democracy. Journal of Democracy. Baltimore: John Hopkins University Press, 1994. v. 5. n. 1.

O'DONNELL, G.; SCHMITTER, P. Transitions from authoritarian rule: prospects for democracy. Baltimore: Johns Hopkins Press, 1986. v. 4. n. 1.

SARTORI, Giovanni. Partidos y sistemas de partidos. Madrid: Alianza, 1976. (Edición castellana consultada, 1992).


[1] Tradução própria.

[2] Tradução própria.

[3] Segundo o conceito de democracia delegativa de O’Donnel (1994) os líderes delegativos creem que as eleições os legitima a serem os únicos capazes de tomar decisões e que o controle institucional é uma injustificada trava.

[4] Tradução própria.

[5] CIDH. Informe No. 112/12. Caso 12.828. Fondo Marcel Granier y otros Venezuela. 2012, p. 46. Disponível em: http://search.oas.org/en/default.aspx?k=Informe+No.+112%2f12.+Caso+12.828&s=All+Sites. Acesso em: 02 de dezembro de 2013.

[6] Ibid., p. 47.

[7] Tradução própria. Ibid., p. 48.

[8] Ibid., p. 48-49.

[9] Tradução própria.

[10] Tradução própria.

[11] Tradução própria.

[12] Tradução própria.

Sobre a autora
Ana Tereza Duarte Lima de Barros

Advogada e professora da graduação em Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas de Limoeiro-PE. Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. Foi bolsista do CNPq. Bacharela em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco com graduação sanduíche na Universidade de Salamanca (Espanha).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Ana Tereza Duarte Lima. A democracia e os regimes populistas da América Latina. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3913, 19 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26973. Acesso em: 23 nov. 2024.

Mais informações

Ensaio elaborado inicialmente como condição para aprovação na disciplina "Introducción a la Ciencia Política", ministrada na Universidad de Salamanca (Usal). Ao ensaio foi atribuída nota máxima (dez). Posteriormente foram adicionados dados obtidos em pesquisa de Iniciação Científica realizada na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), cujo tema central é "Jurisidição constitucional e regulação da comunicação na América Latina".

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