Introduçã?o
A democracia, sistema político em vigor na maioria dos países ocidentais, é teoricamente o tipo de regime que melhor assegura o pluralismo e as liberdades individuais e coletivas. Os cidadãos podem participar ativamente das atividades políticas e eleger seus representantes sem sofrer nenhum tipo de sanção.
Pensando em descrever o que é uma democracia, Dahl (1989) criou o conceito de “poliarquia”, sistema caracterizado por: eleição cidadã das autoridades políticas em processos competitivos; eleições livres e limpas; sufrágio universal; livre acesso à atividade política e direito de competir por cargos públicos; direito de associar-se aos grupos que sejam de interesse; total liberdade de expressão e fontes de informação variadas. Como bem explica Diamond (2004: 118)[1]
Sob este conceito a democracia não somente requer eleições competitivas, justas e livres, senão também liberdades que as façam realmente significativas (como a liberdade de organização e a liberdade de expressão), fontes alternativas de informação e instituições para assegurar que as políticas do governo dependam dos votos e preferências dos cidadãos.
É de se destacar que em alguns países, em particular na América Latina, há sistemas que, ainda que sejam considerados uma democracia, suprimem traços importantes desta. São as chamadas “democracias populistas”. Daí surge a questão: é possível que haja democracia sem liberalização?
O problema das democracias não liberais (“democracias populistas”)
Segundo O’Donnell e Schmitter (1986: 21), liberalização é o processo que amplia e redefine os direitos. Estas garantias clássicas da tradição liberal “protegem indivíduos e grupos sociais ante os atos arbitrários ou ilegais cometidos pelo Estado ou por terceiros”[2]. Se não se garantem estes direitos, a democracia se transforma em um mero formalismo. É o que ocorre, por exemplo, em países como a Venezuela, onde se garantem as eleições livres, mas existem pressões, há impedimentos à livre concorrência, os juízes são parciais e não se garante o devido processo legal (o heabeas corpus, por exemplo, é concedido de modo arbitrário).
Estas democracias “formais” costumam ser comandadas por líderes que creem que como foram eleitos em eleições livres e competitivas, os cidadãos delegaram a eles plena autoridade para decidir, como melhor lhes parece, o que é bom para o país. Quando chegam ao poder, tentam suprimir as instituições[3]. Como bem leciona Freidenberg (2011: 10), neste tipo regime “o líder está por cima das regras, por isso não necessita se preocupar com o Estado de Direito nem com as instituições. Ampara-se nos resultados de umas eleições presidenciais que o outorgam legitimidade para fazer mudanças”[4].
Na Venezuela as próprias eleições não são cem por cento competitivas. Chávez, por exemplo, utilizava os recursos ilimitados que lhe proporcionava o petróleo por meio da PDVSA, mais todos os instrumentos do Estado e os meios de comunicação, aparecendo uma média de cinquenta minutos a mais que seu adversário na televisão e na rádio.
Já na Bolívia, o pluripartidarismo é uma formalidade, posto que o MAS do presidente Evo Morales é, segundo a classificação de Sartori (1992[1976]), um partido hegemónico, e portanto é a única força política de fato.
Para Robert Dahl não se pode chamar de democrático um regime em que há impedimentos para que a oposição se organize em partidos políticos ou que impossibilite a sua competição nas eleições em condições de igualdade. É necessário que o sistema permita a rivalidade entre oposição e governo (DAHL, 1989: 13-15). Desde este ponto de vista, os processos eleitorais na Venezuela e na Bolívia são considerados antidemocráticos.
Outro traço característico dos regimes populistas é a constante perseguição aos meios de comunicação contrários ao regime, em que um dos casos mais emblemáticos foi a não renovação pelo Estado venezuelano da concessão que a emissora de televisão RCTV tinha para operar utilizando um dos espectro radioelétricos disponíveis.
Dia 27 de março de 2007 o canal de TV aberto intitulado RCTV foi notificado de que não teria a sua concessão renovada, após um trâmite processual marcado pela falta de imparcialidade e transparência, em que até o próprio canal de TV, que era parte, teve o seu direito de intervir para ser ouvido e oferecer provas negado, violando as regras processuais em vigência na Venezuela[5]. Em decorrência das violações ao direito de defesa, ao devido processo legal, à liberdade de expressão, à igualdade perante a lei, dentre outros direitos alegados pela emissora postulante, foi o caso levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Alegou a RCTV ante a CIDH que o motivo da não renovação da concessão se deu devido à linha editorial do canal. O Estado, por sua vez, alegou que a não renovação da concessão nada tinha a ver com a linha editorial do canal, sendo que se deu para que o governo venezuelano pudesse pôr em prática o “Plan Nacional de Telecomunicaiones” e para que pudesse ser criado um canal público de televisão aberta[6].
Ocorre que, em 2006, o presidente Hugo Chávez e o ministro a cargo do Ministerio de Comunicación e Información passaram a declarar expressamente que não iriam renovar a concessão da RCTV. O presidente Chávez chegou a alegar que não se iria “tolerar nenhuma meio que estivesse a serviço do golpismo, contra o povo, contra a nação, contra a independência, contra a dignidade da república”, e o MINCI chegou a realizar uma campanha oficial para justificar o porquê de não renovar a concessão do canal, com mensagens como “não renovar a mentira”[7]. Contrariamente, o governo venezuelano não logrou provar que o Plan Nacional de Telecomunicaciones havia sido implantado antes da emissão do comunicado que declarou a não renovação da concessão (Comunicación nº 0424). E também não soube explicar por que para cumprir o plano era necessário não renovar a frequência da RCTV, já que haviam outras frequências disponíveis[8].
Há quem postule que o populismo, por incorporar os grupos que antes eram excluídos das instituições, aprofunda a democracia, sendo esta característica inclusiva a que faz com que os líderes populistas sigam sendo elegidos com amplas margens de diferença em relação a seus adversários, pois os partidos tradicionais se demonstraram incapazes de representar os cidadãos e o líder populista melhorou as condições de vida destes.
Outros defendem o contrário. O populismo seria uma “aberração do que deveriam ser as práticas democráticas”[9]. Os líderes manipulam o povo em benefício de seus desejos e o considera como “massas amorfas e irracionais”[10]. Ademais, debilitam as instituições, e ainda que hajam conseguido incorporar os indivíduos, o regime é anti-individualista, coletivista e antidemocrático. Seu discurso polariza a sociedade, se baseando no eterno conflito entre os setores populares e os setores oligárquicos, os grandes inimigos. “O populismo fomenta a ilusão das massas de que agora são elas que estão participando no sistemas mas termina criando outra elite, a que se beneficia do projeto populista, que suplanta a que dominava no sistema anterior”[11] (FREIDENBERG, 2007: 264/ 267).
Ao final, nos deparamos com um problema conceitual: definir estes regimes como democracias limitadas ou como autoritarismos sob eleições? Para Malloy (1993), a combinação de eleições institucionalizadas com práticas autoritárias resulta em um regime que poderíamos chamar de híbrido. Para Diamond (2004: 120), “são de fato democracias eleitorais, ainda que “incompetentes” e de mal funcionamento”[12].
Considerações finais
Para que haja democracia, ademais de eleições competitivas, livres e justas, é necessário que se respeitem certas garantias consagradas pela tradição liberal. As democracias populistas suprimem certos direitos individuais, como o direito ao devido processo legal e os direitos à liberdade de expressão e de imprensa. Contudo, estes regimes continuam sendo intitulados democráticos, pois as autoridades foram eleitas mediante processos eleitorais, que muitas vezes não foram nem mesmo realmente competitivos. O que podemos concluir é que há “democracias” que utilizam as eleições para legitimar práticas autoritárias.
REFERÊNCIAS
CIDH. Informe No. 112/12. Caso 12.828. Fondo Marcel Granier y otros Venezuela. 2012. Disponível em:
http://search.oas.org/en/default.aspx?k=Informe+No.+112%2f12.+Caso+12.828&s=All+Sites. Acesso em: 02 de dezembro de 2013.
DAHL, Robert. La poliarquía. Participación y oposición. Buenos Aires: REI, 1989.
DIAMOND, Larry. Elecciones sin democracia. A propósito de los regímenes híbridos. Estudios Políticos. Medellín: Universidad de Antioquia, 2004. v. 24.
FREIDENBERG, Flavia. La Tentación Populista: una vía al poder en América Latina. Madrid: Editorial Síntesis, 2007.
FREIDENBERG, Flavia. Los nuevos liderazgos populistas y la democracia en América Latina. LASA Forum. Pittsburgh: Latin American Studies Association, 2011. v. 42. n. 3.
MALLOY, James. Política Econômica e o Problema de Governabilidade Democrática nos Andes Centrais. In: Estado, Mercado e Democracia: Política e Economia Comparada. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
O’DONNELL, Guillermo. Delegative Democracy. Journal of Democracy. Baltimore: John Hopkins University Press, 1994. v. 5. n. 1.
O'DONNELL, G.; SCHMITTER, P. Transitions from authoritarian rule: prospects for democracy. Baltimore: Johns Hopkins Press, 1986. v. 4. n. 1.
SARTORI, Giovanni. Partidos y sistemas de partidos. Madrid: Alianza, 1976. (Edición castellana consultada, 1992).
[1] Tradução própria.
[2] Tradução própria.
[3] Segundo o conceito de democracia delegativa de O’Donnel (1994) os líderes delegativos creem que as eleições os legitima a serem os únicos capazes de tomar decisões e que o controle institucional é uma injustificada trava.
[4] Tradução própria.
[5] CIDH. Informe No. 112/12. Caso 12.828. Fondo Marcel Granier y otros Venezuela. 2012, p. 46. Disponível em: http://search.oas.org/en/default.aspx?k=Informe+No.+112%2f12.+Caso+12.828&s=All+Sites. Acesso em: 02 de dezembro de 2013.
[6] Ibid., p. 47.
[7] Tradução própria. Ibid., p. 48.
[8] Ibid., p. 48-49.
[9] Tradução própria.
[10] Tradução própria.
[11] Tradução própria.
[12] Tradução própria.