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O direito empresarial superando o arcaico sistema dos atos de comércio

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Agenda 01/02/2002 às 01:00

7. O papel do profissional do Direito neste impasse.

            Há dificuldade em se estender àqueles que não praticam atos de comércio, mas que explorem atividade econômica organizada em forma de empresa, os benefícios da concordata e da falência. Isso se deve ao fato de ter o nosso Código Comercial adotado a Teoria dos Atos de Comércio. Ora, como já visto acima, pela sua idade o Código Comercial não poderia ter feito diversamente. Mas agora nós temos uma realidade não contemplada por aquele diploma, por isso ele não satisfaz aos anseios dos empresários. Então por que esse apego ao Código Comercial como se ele ainda fosse um instrumento capaz de oferecer as normas aplicáveis aos problemas da empresa moderna? Bobbio explica o que ele chama de fetichismo da lei, dizendo que "a cada grande codificação desenvolveu-se entre os juristas e juízes a tendência de ater-se escrupulosamente aos códigos (...)"(24).

            Bem, estamos diante de uma situação para a qual não há regulamentação jurídica satisfatória. O que se quer é incluir no âmbito de um benefício uma categoria que está excluída por motivos históricos, qual seja, os empresários (pessoas físicas ou jurídicas) que não pratiquem atos de comércio. Os motivos históricos a que aludo são a idade do nosso Código Comercial, e a insipiência da atividade de prestação de serviços de forma empresarial (em massa) na ocasião da edição do Código.

            Já sabemos que os empresários recebem tratamento diferenciado da lei porque o Estado reconhece a importância da atividade econômica para a sociedade humana. Já sabemos que as empresas prestadoras de serviços são tão (ou mais) importantes para a economia quanto aquelas que praticam atos de comércio. Sabemos que estas duas categorias de empresas estão materialmente em situação igualitária, e que a lei está deficitária, porém, não podemos ficar esperando por ela.

            Como pode o profissional do direito equalizar essa questão com o fito de estender aos empresários a possibilidade de receber o mesmo tratamento dos comerciantes stricto sensu? Podemos aplicar a interpretação teleológica, a analogia, o princípio da isonomia ou a interpretação extensiva para fundamentarmos a extensão do beneficio da falência e da concordata a todas as categorias de empresários. Vejamos.

            A interpretação teleológica consiste em identificarmos a finalidade da lei. A ratio legis da concordata e da falência é justamente a importância da empresa (como atividade econômica organizada) hábil geradora de trabalho, arrecadadora de tributos, geradora de bens e serviços, promotora da circulação do capital, etc. Diz o princípio geral de direito: "Onde houver o mesmo motivo, há também a mesma disposição de direito"(25).

            Já sabemos que os benefícios têm a finalidade de estimular a atividade empresarial que é considerada salutar para a sociedade. Bem, se a finalidade da lei é fomentar a economia, os empresários prestadores de serviços merecem tratamento igualitário, pois cumprem esse mesmo objetivo que a lei visa implementar.

            Podemos aplicar a analogia ou a interpretação extensiva para dilatar os benefícios aos empresários prestadores de serviço. A analogia e a interpretação extensiva estão muito próximas, sendo que a primeira consiste em um "procedimento mediante o qual se explica a assim chamada tendência de cada ordenamento jurídico a expandir-se além dos casos expressamente regulamentados"(26).

            Ora, não seriam as empresas prestadoras de serviço agentes econômicos tais como o são as empresas praticantes de atos comerciais stricto sensu ? A qualidade comum a ambas é de importantes agentes econômicos, o que determina a extensão dos benefícios de uma para outra.

            Se preferirmos utilizar o princípio da isonomia podemos invocar a preceito geral pelo qual um benefício legal só é legítimo à medida em que alcance todos os indivíduos daquela categoria que se encontrem na mesma situação material: todos os empresários são agentes econômicos, logo, todos aqueles que exploram atividade econômica organizada de forma empresarial estão aptos a participar dos mesmos benefícios.

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8. Conclusão

            Finalizando nossas argumentações podemos concluir que não há mais nenhum sustento na afirmação de que somente aqueles que praticam atos de comércio podem ter acesso à falência e à concordata, pois isso fere os princípios mais caros ao Direito de que duas pessoas em situação igualitária merecem o mesmo tratamento jurisdicional.(27) A teoria dos atos de comércio, ao restringir o direito comercial, não atende mais aos novos modelos de empreendimento, cujas atividades fogem do ato de comércio, mas que participam da produção e circulação de bens e serviços com tanta força que chegam a representar um setor significativo na geração de empregos, arrecadação tributária, melhoria da qualidade de serviços e bens consumidos, etc. Assim, podemos aplicar a interpretação teleológica buscando a ratio legis da existência daqueles benefícios, que existem para estimular a atividade empreendedora; podemos ainda utilizar a analogia ou a interpretação extensiva, bem como o princípio da isonomia para incluirmos os empresários prestadores de serviços como aptos a obterem a concordata e a falência.


9.Notas

            1.Bobbio diz que a originária diferenciação entre o direito público e o privado é acompanhada pela afirmação da supremacia do público sobre o privado. Costuma-se dizer que o direito privado regulamenta as relações entre iguais, e o direito público, as relações entre desiguais. In BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade. Para uma teoria geral da política. 6.ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. pgs. 15 e 16. Sendo uma relação (supostamente) entre iguais vigoram os princípios da autonomia e da igualdade, pelos quais dá-se às pessoas o poder de negociação.

            2.O artigo 135, II do Decreto-lei n. 7.661 de 1945 assim dispõe: "Extingue as obrigações do falido: (...) II – o rateio de mais de 40% (quarenta por cento), depois de realizado todo o ativo, sendo facultado o depósito da quantia necessária para atingir essa porcentagem, se para tanto não bastou a integral liquidação da massa".

            3.Vide artigo 156 e incisos do Decreto-lei n. 7661, de 1945.

            4.REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol. 1. 23. ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 1998. pgs. 10 e 11.

            5.GONÇALVES NETO, Alfredo Assis. Manual de Direito Comercial. 2.ª ed. Revisada e atualizada. Curitiba: Juruá, 2000. p. 42.

            6.COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol 1. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 14.

            7.COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol 1. São Paulo: Saraiva, 1998. p.14

            8.COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol 1. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 12.

            9.COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol 1. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 15.

            10.REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol. 1. 23. ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 1998. pg. 13.

            11.BULGARELLI, Waldirio. Direito Comercial. 15 edição. São Paulo: Atlas, 2000. p. 66.

            12.Como foi dito acima os comerciantes do Século XII fundaram suas corporações de ofício com a função de regulamentar sua atividade bem como processar e julgar os comerciantes em litígio, formando assim uma espécie de justiça especial, pois os Tribunais do Comércio tinham exclusividade na jurisdição de contendas envolvendo os comerciantes e seus juízes (chamados cônsules) eram também comerciantes. No Brasil, o Tribunal do Comércio existiu até 1875 quando, por Decreto, sua função judicante foi transferida para a Justiça Comum.

            13.GONÇALVES NETO, Alfredo Assis. Manual de Direito Comercial. 2.ª ed. Revisada e atualizada. Curitiba: Juruá, 2000. p. 47.

            14.GONÇALVES NETO, Alfredo Assis. Manual de Direito Comercial. 2.ª ed. Revisada e atualizada. Curitiba: Juruá, 2000. p. 76.

            15.Outro problema apontado recentemente por essa distinção é a exclusão das empresas prestadoras de serviços do SIMPLES – sistema integrado de pagamento de impostos, que reduz a carga tributária para as microempresas e empresas de pequeno porte. A Lei 9.317/96 em seu art. 9.º, XIII deixou de fora dos prestadores de serviços cuja atividade estivesse relacionada a profissões regulamentadas ou que exigissem um pouco mais de qualificação de seus sócios ou empregados.

            16.A palavra empresa tem o significado de empreendimento, aquilo que se empreende; Porém, para a economia essa palavra assume uma conceituação mais complexa, designando a organização econômica destinada a produção ou venda de mercadorias ou serviços, tendo em geral como objetivo o lucro.

            17.O direito comercial, em sua gênese, excluiu de seu âmbito a compra e venda de bens imóveis porque na Idade Média somente os senhores feudais eram detentores da propriedade da terra. Os comerciantes, mesmo com dinheiro não podiam negociar esses bens, por serem negócios típicos dos senhores feudais. Daí o desinteresse dos comerciantes em regulamentar uma atividade da qual eles não participavam.

            18.BULGARELLI, Waldirio. Direito Comercial. 15 edição. São Paulo: Atlas, 2000. p. 67.

            19.GONÇALVES NETO, Alfredo Assis. Manual de Direito Comercial. 2.ª ed. Revisada e atualizada. Curitiba: Juruá, 2000. p. 74.

            20.BULGARELLI, Waldirio. Direito Comercial. 15 edição. São Paulo: Atlas, 2000. p. 19.

            21.Devemos lembrar que o consumo não é uma opção mas sim uma necessidade.

            22.COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. 3.ed. [revista, atualizada e corrigida] Rio de Janeiro : Forense, 1983. p. 296.

            23.GONÇALVES NETO, Alfredo Assis. Manual de Direito Comercial. 2.ª ed. Revisada e atualizada. Curitiba: Juruá, 2000. p. 79

            24.BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10.ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 121.

            25.In BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10.ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 154.

            26.BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10.ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 151.

            27.Pode-se dizer o mesmo tratamento legal, porém como escrevo na perspectiva de não aguardar o legislador remeto ao poder jurisdicional a atribuição de aplicação dos princípios basilares do Direito.


10. Referências bibliográficas.

            BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade. Para uma teoria geral da política. 6.ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

            ________. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10.ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

            BULGARELLI, Waldirio. Direito Comercial. 15 edição. São Paulo: Atlas, 2000.

            COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol 1. São Paulo: Saraiva, 1998.

            COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. 3.ed. [revista, atualizada e corrigida] Rio de Janeiro : Forense, 1983. p. 296.

            GONÇALVES NETO, Alfredo Assis. Manual de Direito Comercial. 2.ª ed. Revisada e atualizada. Curitiba: Juruá, 2000.

            REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol. 1. 23. ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 1998.

Sobre a autora
Lucíola Fabrete Lopes Nerilo

mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, professora de Direito Comercial na UNOESC, Campus de São Miguel do Oeste (SC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NERILO, Lucíola Fabrete Lopes. O direito empresarial superando o arcaico sistema dos atos de comércio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2698. Acesso em: 18 nov. 2024.

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