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A legitimidade do Ministério Público como forma de garantir o acesso à justiça

Agenda 01/11/2000 às 00:00

1-INTRODUÇÃO

A legitimidade do Ministério Público para a propositura de determinadas ações é um dos temas mais controvertidos da atualidade, tendo tanto a doutrina quanto à jurisprudência ora caminhado num sentido de legitimação do parquet, ora procurando expungir tal legitimidade.

Dentre as várias questões que mereceriam análise, optamos por escolher os problemas sobre a legitimidade do parquet para propor ação civil coletiva visando impedir a cobrança de tributo ilegal e a necessidade de reconhecimento da legitimidade do parquet para propor a Revisão Criminal (1).

Buscar-se-á expor ambas as correntes, esperando fornecer subsídios para que haja o convencimento da legitimidade ad causam do Ministério Público nas situações retro-expostas como forma de garantir o acesso à justiça de um grande número de contribuintes ou de um condenado injustiçado.


2 DA LEGITIMIDADE DO PARQUET PARA A PROPOSITURA DE AÇÃO CIVIL COLETIVA QUE VISA IMPEDIR A COBRANÇA DE TRIBUTO INDEVIDO.

2.1 POSIÇÃO RESTRITIVA

Alguns autores entendem que o mecanismo a ser utilizado pelo Ministério Público na proteção dos contribuintes deve ser a Ação Direta de inconstitucionalidade e não a ação civil pública (coletiva), dentre os defensores dessa corrente pode-se citar Hugo de Brito Machado (2) que na conclusão de estudo sobre o tema afirmou: " O Ministério Público não está legitimado a promover ação civil pública como forma de defender direitos individuais homogêneos dos contribuintes em geral, contra a exigência de tributo fundada em lei inconstitucional ..... A defesa do Direito coletivo de que as leis sejam conforme a Constituição pode e deve ser defendido pelo Ministério Público, mas para tanto deve atuar o seu órgão legitimado para o controle direto de constitucionalidade, que oferece o instrumento adequado para esse fim."

A legitimidade para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade pelo parquet é incontroversa, todavia a utilização da ação civil coletiva tem grandes vantagens sobre a Ação Direta, conforme explanado no tópico a seguir.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal negou legitimidade ao Ministério Público para a propositura de ação civil pública relativamente à cobrança de tributos (3).

O Superior Tribunal de Justiça também negou legitimidade em acórdão assim ementado: "Ação civil pública- Tributo-direito individual- Não cabe ação civil pública para substituir ação direta de inconstitucionalidade e impedir a cobrança de imposto ou taxa.Contribuinte de tributo não é consumidor a ser representado pelo Ministério Público. Pagamento de tributo corresponde a direito individual, divisível e quantificável, não se equiparando a direito difuso – Agravo regimental n 1853/99/Sp (4)"

2.2 POSIÇÃO LEGITIMADORA.

Aprioristicamente, cabe destacar que Constituição Federal, a Lei da Ação Civil Pública, a Lei Orgânica do Ministério Público não apenas autorizam, mas pugnam para que o Parquet atue na proteção dos interesses dos cidadãos principalmente contra os abusos do Estado..

Cabe lembrar o disposto na Carta Magna em seu artigo 129 inciso II que afirma:

Art 129 São funções institucionais do Ministério Público

II - Zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias as sua garantias.

Sabe-se que uma das matérias em que o Estado brasileiro vem freqüentemente violando (extirpando) os direitos assegurados na Constituição é na criação e cobrança de Tributos de inconstitucionalidade solar (5).

Como exemplo desses tributos inconstitucionais pode-se citar a taxa de iluminação pública (6), que foi instituída em inúmeras comarcas do interior do Maranhão em flagrante prejuízo para os cidadãos.Qual remédio jurídico deve ser utilizado como forma de combater esse tipo de abuso do Poder Público? Parece ser a ação civil pública o remédio adequado, senão vejamos:

A ação civil pública instrumento criado no Brasil em 1985, com inspiração nas class-actions do direito americano, tem por missão efetivar o acesso à justiça na proteção dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (7).

A cobrança de tributo inconstitucional pode ser considerada como interesses individuais homogêneos a serem tutelados pelo parquet via ação civil coletiva. Deveras, a definição legal de direitos individuais homogêneos está corporificada no inciso III do artigo 81 do CDC ao afirmar ser : "interesses individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum", sendo tal artigo explicado por Nery (8) ao afirmar que são os "direitos individuais cujo titular é perfeitamente identificável e cujo objeto é divisível e cindível. O que caracteriza um direito individual comum como homogêneo é sua origem comum"

A origem dos direitos dos contribuintes no caso em análise é comum, qual seja a norma inconstitucional que cria o tributo (lembre-se de que a única fonte da tributação é a lei- princípio da legalidade tributária (9)), além de ser plenamente identificável cada titular.

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É certo que no mundo fático faz-se necessário que cada contribuinte pratique o fato gerador para surgir à obrigação tributária. Ocorre que como a ameaça de lesão é cristalina, tendo em vista que o tributo é cobrado mediante atividade administrativa plenamente vinculada, tal momento para fins de propositura de ação não é tão importante, bastando lembrar, para corroborar tal afirmativa, da costumeira prática de utilizar mandado de segurança preventivo em matéria tributária por ameaça a lesão de direito decorrente de tributo inconstitucional.

Cabe, nesse contexto, frisar que a ação civil coletiva tem várias vantagens em relação à Ação Direta de inconstitucionalidade (10), primus a propositura no local do dano, deveras a proximidade com a população faz com que haja uma maior consciência da urgência e relevância da adoção de medidas que impeçam a continuidade da cobrança de tributo inconstitucional; secundus- a simples declaração de inconstitucionalidade implica em que cada contribuinte tenha o dever de propor uma ação visando o ressarcimento do período da cobrança indevida, por outro lado à decisão positiva na ação civil coletiva permite ao contribuinte liquidar e executar a sentença, nos termos do § 3º do artigo 103 da lei 8078/90, tertius- Muitas vezes a lei instituidora é anterior a Constituição Federal o que inviabiliza a ação Direta de inconstitucionalidade, conforme pacífico entendimento do STF (na doutrina Gilmar Mendes admite tal controle), restando apenas a possibilidade de propor a ação civil coletiva como remédio transindividual ao abuso da tributação.

Deve-se ainda lembrar que o pagamento de tributos não é uma disponibilidade do contribuinte ficando ao seu critério o pagamento da obrigação, pois, de acordo com o Código Tributário Nacional um dos caracteres do Tributo é a sua compulsoriedade, logo impossível falar de disponibilidade, pois o não pagamento traz inúmeras conseqüências como multa de mora e juros.

De outra banda, querer que cada contribuinte individualmente entre com uma ação visando extirpar a cobrança do tributo, além de sobrecarregar o judiciário implicará num processo de seleção em que os mais pobres, por não possuírem recursos para a contratação de um advogado e nem possuírem uma defensoria pública estruturada a ponto de atingir o interior dos Estados, continuarão sofrendo indevidamente a cobrança de tributos inconstitucionais, violando no mundo fático o princípio da igualdade.

É viável lembrar precisa lição de Sérgio Coelho (11) ao apontar: "O Ministério Público tem legitimidade para a propositura de ação civil pública em matéria tributária em face do disposto no artigo 129, incisos II e IX da Constituição Federal, artigos 5º, inciso I, alínea g e inciso II alínea a e 6º, inciso VII, alínea d e inciso XII da lei complementar 75/93, bem como o artigo 80 da lei 8625/93"

Indubitavelmente, exsurge de maneira límpida da nossa ordem jurídica a legitimidade do Ministério Público (12), devendo o Poder Judiciário acatar tal legitimidade para que os contribuintes não fiquem a mercê da voracidade do fisco.


3 DA LEGITIMIDADE DO PARQUET PARA A PROPOSITURA DA REVISÃO CRIMINAL

3.1 POSIÇÃO RESTRITIVA

A corrente que restringe a legitimidade do parquet tem como alicerce de sua argumentação o disposto no artigo 623 do Código de Processo Penal que afirma in verbis " Art 623- A revisão poderá ser pedida pelo próprio réu ou por procurador legalmente habilitado ou, no caso de morte do réu pelo cônjuge, ascendente, descendente ou irmão".

O argumento utilizado é muito simples a omissão do legislador relativamente ao parquet no artigo 623 do CPP implica na sua falta de legitimidade para a propositura dessa ação.

A jurisprudência tem acatado tal entendimento podendo-se citar "TAMG- O promotor de justiça não possuí legitimidade para requerer revisão criminal, direito personalíssimo das pessoas elencadas no artigo 623 do CPP, limitada sua atuação ao âmbito da primeira instância, na forma da lei orgânica do Ministério Público" (RT 694/375)

3.2 POSIÇÃO LEGITIMADORA

Impende lembrar que todos os dispositivos legais devem ter como suporte de validade e de interpretação a Constituição Federal, deveras ela é o início, o meio e o fim da ordem jurídica (pós) moderna.

Não se pode buscar a definição da legitimidade ou não do Ministério Público a partir de um único artigo feito à época do Estado-Novo.

O perfil constitucional do Ministério Público garante a sua legitimidade para a propositura de revisão criminal.

Lembremos que ficou no passado a imagem do promotor de justiça como acusador oficial. O Promotor é cônscio de sua missão na proteção da sociedade combatendo a criminalidade, todavia o faz respeitando os direitos humanos, o princípio da intervenção mínima do direito penal, a tipicidade, culpabilidade e proporcionalidade/individualização da pena, ou seja não se acusa por acusar, mas o faz na medida da necessidade para a sociedade.

Destaca-se que o Ministério Público atua sempre visando a proteção à materialização da justiça, afinal pode indiscutivelmente requerer o arquivamento do inquérito policial ou, ainda, pedir a absolvição do réu. Que razão excepcional justificaria o bloqueio à revisão criminal?

Não se deve argumentar que o Ministério Público pode impetrar habeas-corpus a favor do réu e portanto é despicienda a legitimidade para a ação de revisão criminal, tal justificativa não convence até porque o réu pode também utilizar o remédio constitucional do habeas corpus e geralmente não o faz, em virtude de que neste caso o habeas corpus não é o remédio mais eficaz.

Sempre que estiver presente uma das restritas hipóteses de cabimento de utilização da ação impugnativa conta a res judicata penal (13) o Ministério Público tem o dever de propor a revisão criminal.

Frise-se que o sucesso da atuação do parquet não é medido pelo número de anos impostos na condenação criminal, mas sim pela realização de justiça. Se esta não foi alcançada, como se verifica pelo cabimento da revisão criminal, tem que existir mecanismos para que o Ministério Público continue a lutar para que ela seja atingida, sendo então inexorável o reconhecimento da legitimidade para a propositura de revisão criminal.

Por fim, é de citar a lição de Demercian e Maluly (14) ao afirmar : " Não há previsão legal de que o membro do Ministério Público proponha o pedido revisional, contudo, como fiscal da correta aplicação da lei, tem o promotor legitimidade para tanto, à semelhança do que já se admite em relação à possibilidade de recurso em favor do réu ou mesmo de formular pedido de habeas corpus"


4- CONCLUSÃO

A instituição ministerial vem passando por profundas mudanças no Brasil, reafirmando cada vez mais o seu compromisso com a democracia e principalmente com a justiça, encarada esta na sua mais bela acepção.

O perfil constitucional do parquet é o ponto de partida para a definição da legitimidade da instituição para a propositura de ações que tem como pedido a proteção dos interesses tutelados pelo Ministério Público, afinal o Código de Processo Penal, Civil e as demais leis infra-constitucionais têm que se amoldar e integrar com a norma ápice.

Não se trata de mero discurso corporativo, mas sim de garantir o acesso à justiça de cada cidadão lesado pela atuação do Estado, ou que vem sofrendo injustamente as terríveis conseqüências de uma condenação criminal.

É indispensável essa visão coletiva de direitos no mundo globalizado, o Direito não pode apenas resolver problemas entre Mélvio e Tício, há de se garantir uma proteção efetiva e igual a todos os cidadãos, independentemente de sua condição econômica, sendo que a tutela desses direitos meta-individuais tem no Ministério Público um porto que precisa ser fortificado, a fim de que as angustias do mundo moderno sejam compensadas pela materialização da justiça.

Reconhecer, então, a legitimidade do parquet para a propositura da ação civil coletiva que visa obstar a cobrança de tributo inconstitucional e da revisão criminal é em última instância conceder a cada cidadão, beneficiado pela posterior decisão judicial, a confiança inabalável de que os operadores jurídicos além do discurso, realizam justiça.


NOTAS

1. outras polêmicas existem sobre a legitimidade do parquet , exempli gratia a discussão sobre a legitimidade do parquet para propor a ação civil ex delicto se a vítima for pobre, apesar de uma parte da jurisprudência entender ser tal ação atribuição exclusiva da defensoria pública, acreditamos ser atribuição concorrente do Ministério Público com a defensoria pública; a legitimidade do parquet para propor a ação visando cobrar multa decorrente de sentença penal, uma parte da doutrina entende que pela nova dicção do artigo 51 do Código Penal (lei 9268/96) a atribuição para execução seria da Procuradoria do Estado, todavia entendemos pelo fato da multa, apesar de ser considerada dívida de valor inscrita em dívida ativa, continuar sendo uma sanção penal que tal atribuição é exclusiva do parquet.

2. MACHADO, Hugo de Brito.Ministério Público e ação civil em matéria tributária.Revista Dialética de Direito Tributário, n52, janeiro 2000, p 90

3. ver informativo STF nº 174, 6 a 10 de dezembro de 1999.

4. RDA 218/288

5. sobre esse rol de inconstitucionalidades ver artigo de Marcelo Uchôa da Veiga Júnior- O Judiciário- um poder injustiçado in Revista Tributária, ano 08, n30- janeiro-fevereiro de 2000, p 9-21

6. Como argumentos que justificam a inconstitucionalidade de tal taxa devemos lembrar que A Constituição Federal prevê em seu artigo 145 a possibilidade de instituir taxas somente nas seguintes hipóteses : " Art 145 II taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição".

O Código Tributário nacional , nos incisos II e III do artigo 79 , esclareceu que " Art 79 Os serviços públicos a que se refere o art 77 consideram-se: II específicos- quando possam ser destacados em unidades autônomas de intervenção, de utilidade ou de necessidade pública, III- divisíveis, quando suscetíveis de utilização, separadamente, por parte de cada um dos seus usuários".

Ora, na conformidade de nossa ordem jurídica qualquer taxa somente pode ser cobrada se o serviço público for específico e divisível. A iluminação pública não pode ser enquadrada como um serviço público específico e nem divisível, logo a cobrança de tal tributo é inconstitucional.

Deveras, como pode ser dividida a prestação do serviço de iluminação pública? Simplesmente é impossível dividir este serviço público, que deve ser prestado pelo Estado.

7. A proteção aos direitos transindividuais ficou conhecida na obra deCappelletti como a segunda onda do processo na busca do acesso à justiça. A primeira onda consubstanciou a criação das defensorias públicas, enquanto a terceira onda busca formas alternativas para a composição dos litígios.

8. NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil COMENTADO, 2 ed RT, 1996 p 1705

9. princípio mitigado jurisprudencialmente pela possibilidade de medida-provisória tratar de matéria tributária.

10. impende aclarar que o objeto da ação civil pública não se confunde com o da ação direta de inconstitucionalidade. Para dissipar qualquer dúvida é conveniente transcrevermos o escólio de Nelson Nery: " O objeto da Ação civil pública é a defesa de um dos direitos tutelados pela CF, CDC e pela LACP. A ACP pode ter como fundamento a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. O objeto da Adin é a declaração em abstrato, da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, com a conseqüente retirada da lei declarada inconstitucional do mundo jurídico por intermédio da eficácia erga-omnes da coisa julgada. Assim o pedido da ACP é a proteção do bem tutelado pela CF, CDC ou LACP, que pode ter como causa de pedir a inconstitucionalidade de lei... São inconfundíveis os objetos da ACP e da Adin."

11. COELHO, Sérgio Neves. Da legitimidade do Ministério Público para a propositura de ação civil pública na defesa de interesses de contribuintes. 13º Congresso nacional do Ministério Público, livro de teses, vol 2, 1999, p350.

12. sobre a legitimidade do Ministério Público propor ação civil pública contra a cobrança indevida de taxa de iluminação pública, ver Resp 49272-6RS, Primeira Turma STJ, rel Min Demócrito Reinaldo, j 21.9.94 ou STJ Recurso especial nº109.103-MG, julgado em 17.6.1997

13. Art 621 CPP- "A revisão dos processos findos será admitida:

I quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos II quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos;

III quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição da pena"

14. DEMERCIAN, Pedro Henrique, MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. Atlas, 1999, p490.

Sobre o autor
Américo Bedê Freire Júnior

procurador da Fazenda Nacional no Maranhão, professor da Escola Superior do Ministério Público do Maranhão

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. A legitimidade do Ministério Público como forma de garantir o acesso à justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 47, 1 nov. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/272. Acesso em: 23 dez. 2024.

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