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O papel da Justiça Eleitoral na consolidação da democracia.

Eleições no ceará: 1994-96

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Agenda 01/03/2002 às 00:00

ÍNDICE: I. Introdução; II. A Organização da Justiça Eleitoral no Brasil e Legislação Eleitoral; III - O Contexto Político do Estado do Ceará; IV - As Ações de Impugnação de Mandato Eletivo; V. Algumas Conclusões; VI. Notas; VII. Bibliografia.


I. Introdução

O presente trabalho é produto de uma pesquisa iniciada em setembro de 1999 com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico- CNPq, através de seu Programa de Iniciação Científica - PIBC. A pesquisa foi orientada por mim, e teve a colaboração decisiva dos alunos do Curso de Direito Jânio Pereira da Cunha e José Valente Neto, em especial no tocante ao levantamento de processos judiciais que tramitaram no Tribunal Regional Eleitoral do Ceará e do material bibliográfico, bem como à anotação das entrevistas realizadas. O alto nível de compromisso com o desenvolvimento da pesquisa por parte dos citados alunos é que possibilitou a organização de todo o material coletado, o que por sua vez tornou igualmente possível a elaboração das reflexões que neste texto se fazem.

A pesquisa se dividiu em dois momentos principais. Num primeiro instante foram catalogadas as Ações de Impugnação de Mandato Eletivo - AIME - relativas ao pleito eleitoral de 1994 e 1996 junto ao Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Ceará - TRE-Ce, doravante. Num segunda perspectiva, procurou a pesquisa conhecer a opinião de operadores do Direito Eleitoral, especificamente, a fim de aclarar as hipóteses a que o resultado do levantamento das AIME conduziram.

Que sobre boa parte das eleições no Brasil ocorridas mesmo sob o período da recente democratização pairam suspeitas - muitas fundadas - de sua não correspondência com a vontade popular, não é novidade. O principal obstáculo à tradução de um resultado que em sua maioria represente a vontade popular de um pleito eleitoral tem sido aquilo que se conhece por abuso do poder econômico de determinados candidatos frente a outros. A prática de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude constitui o motivo, conforme determina o § 10 do art. 14 da Constituição Federal, que possibilita a ação da Justiça Eleitoral como garantidora de uma disputa eleitoral realizada satisfatoriamente nos parâmetros de igualdade de condições entre os candidatos.

O motivo principal da existência da pesquisa encontra, resumidamente, sua justificativa na seguinte pergunta central: por quais razões tem sido rara, pelo menos nos últimos vinte anos, a perda de mandatos decidida pela Justiça Eleitoral [1], enquanto que para qualquer observador menos desatento o abuso do poder econômico é claramente perceptível durante a campanha eleitoral? A esta indagação se adiciona uma outra de maior amplitude: como convive esta realidade com o fato de que se dispõe no Brasil de uma democracia formal razoavelmente consolidada, com ampla liberdade de organização político-partidária e de imprensa?

Respostas que derivam de uma observação lugar-comum pouco podem oferecer para esclarecer o problema. Para além dos aspectos patrimoniais seja da organização político-partidária, seja da formação da Justiça Eleitoral - que se traduz na historicamente conhecida adesão do Poder Judiciário aos objetivos do Estado [2] e de suas elites - entendo existir um campo de investigação interdisciplinar onde Direito e Ciência Política se comunicam, principalmente quando do estudo de processos judiciais e jurisprudência sobre o assunto. Assim é que se tornam importantes o discurso da decisões judiciais e sua articulação com as teses jurisprudenciais e ainda as palavras dos doutrinadores de Direito Eleitoral. A análise destes elementos em conjunto com um contexto sócio-político para o caso específico de eleições locais não tem conseguido chamar a atenção de muitos cientistas políticos e juristas. Ora, exatamente pela importância do poder local na formação do Estado brasileiro é que estudos localizados se mostram importantes para a compreensão da realidade na qual surgem as manifestações deste poder local.

A grande maioria dos trabalhos conhecidos - sobre o caso do Ceará - se limita a fazer levantamento estatístico de eleições, exibindo dados como número de eleitores, suas distribuição espacial no Estado, número de votos válidos, em branco e nulos. No âmbito da Justiça Eleitoral, a estatística apenas se refere ao número de ações ajuizadas e seu trâmite, o controle dos pedidos de candidaturas (acompanhado do resultado respectivo de deferimento ou indeferimento do registro desta candidatura) inexistindo o registro à investigação mais detalhada e interdiscplinar sobre, por exemplo, o papel da Justiça Eleitoral na consolidação da democracia [3].

O presente trabalho se limita, portanto, à investigação sob esta ótica pluralista das eleições ocorridas no Estado do Ceará em 1994 e 1996. Em 1994 foram eleitos o Governador do Estado, dois senadores, os 22 Deputados Federais e 46 estaduais. Em 1996 foram eleitos os prefeitos e vereadores de todos os municípios do Estado. Como objeto das pesquisa foram consideradas somente as Ações de Impugnação de Mandato Eletivo - AIME.

Evidente que para uma visão mais completa do papel da Justiça Eleitoral na consolidação da democracia no Estado do Ceará um estudo que abrangesse o maior número possível de processos de natureza processual distinta seria o aconselhável. Po outro lado, se constituem as AIME na principal das ações eleitorais, uma vez que por meio delas tem o Poder Judiciário a possibilidade de intervir diretamente no processo de representação política, podendo alterar seu resultado, o qual poderá igualmente significar mudança na relação de forças políticas existentes num dado contexto. Embora constitucionalmente autorizado, com a declaração de procedência de uma AIME se constata o Poder Judiciário intervindo na mais elementar das manifestações de soberania popular – definida pelo art. 14 da Constituição Federal, que é o sufrágio universal, com voto direto e secreto, com igual valor para todos. Por sua natureza processual e por determinação da Constituição Federal - art. 14, § 11 - estas ações tramitam em segredo de justiça [4].

A escolha do período - 1994-96 - se justifica por fato singular. Neste período se confirma na chefia do poder do Governo Estadual, e em grande número de seus municípios, o segmento que em 1986 derrotou os tradicionais „coronéis" da política cearense, operando importantes e controversas alterações nas administrações públicas estadual e municipais. Destes três períodos - 1986, 1994 e 1996 - aparecerão alguns dados estatísticos comparativos, tanto para embasar minhas conclusões finais, como também para explicitar a evolução de situações relativas ao tema no Estado do Ceará.

A nova estrutura de poder a partir de 1986 tem contribuído para a mudança de indicadores econômicos no Estado do Ceará, a ponto de este modelo ter servido de inspiração para outras unidades estaduais da Federação Brasileira. Parece quase unânime dentre os que se dedicam ao tema que a mudança destes indicadores econômicos não se estendeu para o campo da política. O grande desafio de 1986 até os dias hoje para o Governo Estadual tem sido não somente o de sua relação com a democracia - o Governo Estadual também governa sujeito à democrática Constituição Federal de 1988 - mas também aquele do questionamento da magnitude dos novos índices econômicos alcançados.

A relação deste contexto político no Estado do Ceará e a crescente atenção que estudos interdisciplinares sobre o Poder Judiciário no Brasil têm despertado especialmente em cientistas políticos [5], faz com que a observação conjunta da dogmática jurídica - aquela relacionada ao Direito Eleitoral, no caso - com aspectos políticos possam resultar na possibilidade de se melhor diagnosticar o papel da Justiça Eleitoral na consolidação real da democracia brasileira, a qual já se encontra razoavelmente solidificada do ponto de vista institucional.


II. A Organização da Justiça Eleitoral no Brasil e Legislação Eleitoral

O deslocamento da tarefa de controle tanto das eleições quanto dos participantes do processo eleitoral no Brasil obedeceu, numa perspectiva histórica, ao desenvolvimento deste controle na experiência liberalizante que se iniciou a partir do século passado. Após a Independência do Brasil de Portugal em 1822, a nação que se constituiu sob a forma de monarquia recepcionou, no que diz respeito à sua organização eleitoral, a formulação de que ao próprio Poder Legislativo é que caberia o controle de eleições, eleitores e candidatos [6].

Este sistema de controle de eleições permaneceu inalterado durante os 67 anos da monarquia no Brasil e durante quase toda a vigência da primeira Constituição republicana de 1891. Ainda sob a vigência desta Constituição, mas após o movimento que deu início à renovação política do Brasil a partir de 1930, foi criado, por meio Decreto nº. 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, a Justiça Eleitoral. A Constituição de 1934 estabeleceu em seu texto uma organização judiciária eleitoral que permanece até hoje.

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Anterior ao sistema de controle judicial das eleições, partidos, candidatos etc., o que se tinha no Brasil era um órgão do próprio Poder Legislativo autorizado constitucionalmente a proceder ao que se denominava de verificação de poderes. A Comissão de Verificação controlava os eleitos: de uma legislatura para a outra, esta Comissão analisava a documentação dos deputados que chegavam de todos os Estados da Federação à então capital do Brasil, o Rio de Janeiro, para declará-los eleitos ou não. Numa época onde a sobrevivência política das oligarquias estaduais dependia de sua ligação com o poder central (e o poder central dependia igualmente do apoio destas oligarquias, veiculado através dos deputados que as representavam no Poder Legislativo) não era difícil imaginar a luta que se travava para o controle político desta Comissão de Verificação [7]. Foi exatamente o enorme desgaste da legitimidade dos resultados eleitorais apurados pela Comissão de Verificação que conduziu o Governo Provisório de Getúlio Vargas a institucionalizar a Justiça Eleitoral, a qual passou a integrar a organização judiciária constitucional brasileira desde 1934.

A Justiça Eleitoral na Constituição de 1988 integra o Poder Judiciário, de acordo com o art. 92, V da Constituição Federal. Juntamente com a Justiça do Trabalho e a Militar, integra a Justiça Eleitoral o que no Brasil se denomina de justiça especial. A Justiça Eleitoral é composta dos seguintes órgãos: o Tribunal Superior Eleitoral - TSE, doravante, última instância em matéria eleitoral; os Tribunais Regionais Eleitorais, sendo um em cada Estado-Membro e funcionando como última instância no âmbito do respetivo Estado, e os juízes eleitorais das comarcas.

A composição do Tribunal Superior Eleitoral é estabelecida pelo art. 119 da Constituição Federal. Este Tribunal é composto de sete membros. Três são escolhidos dentre os membros Supremo Tribunal Federal e pelo próprio Supremo Tribunal Federal em votação secreta. Dois são escolhidos dentre os membros do Superior Tribunal de Justiça, igualmente em votação secreta e pelo próprio Superior Tribunal de Justiça. Os dois membros restantes são escolhidos pelo Presidente da República, após o envio de seis nomes pelo Supremo Tribunal Federal. Os Tribunais Regionais Eleitorais são compostos por sete membros na seguinte forma (de acordo com o art. 120 da Constituição Federal): dois dentre os desembargadores do Tribunal de Justiça do respectivo Estado-Membro, indicados pelo próprio Tribunal de Justiça, dois dentre juízes indicados também pelo Tribunal de Justiça, um juiz federal escolhido pelo Tribunal Regional Federal respectivo, e de um jurista, dentre seis advogados indicados pelo Tribunal de Justiça, nomeado pelo Presidente da República.

Como se observa, a presença das tensões políticas estaduais se deixa refletir na composição dos Tribunais Regionais Eleitorais, uma vez que dois quintos dos desembargadores que compõem o Tribunal de Justiça estadual são nomeados pelo Governador do Estado. Tal dependência política se acentua quando a atual Constituição Federal determinou - § 2º do art. 120 - que o Tribunal Regional Eleitoral será presidido por um dos desembargadores e o outro desempenhará as funções de controle administrativo e judicial, ou corregedor, como determina o próprio texto constitucional.

A Justiça Eleitoral constante da Constituição Federal de 1988 corresponde exatamente àquela da Constituição de 1967/69, elaborada pelo regime militar, quando dos art. 130 a 140 desta Constituição. Referida constatação se insere no âmbito de toda a estrutura do Poder Judiciário no Brasil. Pode-se afirmar que toda a estrutura atual do Poder Judiciário foi pouco alterada com a Constituição de 1988. Que isso é denunciador de uma das grande contradições do texto constitucional brasileiro e que é, ainda, revelador da capacidade mobilizatória do Supremo Tribunal Federal e da magistratura nacional, no âmbito interno do poder do Estado brasileiro, não pretendo discutir detalhadamente aqui. A ligação entre as estruturas estaduais de poder e a formação da Justiça Eleitoral deixar-se-á revelar por si só quando da observação específica neste trabalho sobre o julgamento da ações de impugnação de mandato eletivo.

A Justiça Eleitoral se acha organizada infraconstitucionalmente através do Código Eleitoral, instituído pela Lei nº. 4.737, de 15 de julho de 1965, atualizada pela Lei nº. 9.504, de 30 de setembro de 1997. Nos artigos 16 a 24 se acham explicitadas as disposições centrais sobre o Tribunal Superior Eleitoral; nos de número 25 a 31, aquelas inerentes aos Tribunais Regionais Eleitorais, e do 32 ao 35 as determinações gerais sobre os juízes eleitorais. Além dessa matéria organizacional, o Código Eleitoral brasileiro disciplina assuntos como o alistamento eleitoral, o registro de candidaturas, a forma da representação proporcional, a votação e apuração em todas as suas fases, o processo judicial eleitoral e os crimes eleitorais. Como se observa, consiste o Código Eleitoral na principal legislação sobre Direito Eleitoral existente no Brasil, o que não implica na inexistência de legislação extravagante sobre o assunto, principalmente: a Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei nº. 9.096, de setembro de 1995, atualizada pela Lei nº. 9.504, de 30 de setembro de 1997); a Lei da Inelegibilidade (Lei Complementar nº. 64, de 18 de maio de 1990) e a própria Lei nº. 9.504, de 30 de setembro de 1997.

Tradicionalmente tem dominado um certo casuísmo na legislação eleitoral brasileira, o qual foi, também contraditoriamente, recepcionado pela Constituição Federal de 1988, quando de seu art. 16, com redação alterada pela Emenda Constitucional nº. 04, de 14.09.1993: „A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência" [8]. Referida disposição permitia que a cada eleição fosse elaborada uma nova lei eleitoral, onde era regulamentada, dentro outros pontos, a propaganda eleitoral. Claro está que o partido político ou agrupamento político detentor do maior número de representantes tendia a incluir na lei eleitoral para o ano seguinte dispositivos que lhe favorecessem na disputa eleitoral. Esta orientação só vai dar sintomas de mudanças com a Lei nº. 9.504, de 30 de setembro de 1997. Num primeiro instante, pelo fato de esta Lei se propor a ser uma lei permanente e a reger todas as eleições a partir da data de sua publicação, e não somente as eleições de 1998. Num segundo instante, a imposição de regras do jogo a todos os atores políticos, no momento anterior a formação de maiorias parlamentares, dificulta o casuísmo de elaboração de leis por uma maioria que possa impor sua vontade contra a da minoria, ou seja, onde é possível a alteração das regras do jogo após o início do jogo político.

As ações de impugnação de mandato eleitoral que serão analisadas,como se disse, referem-se aos anos de 1994 e 1996. A eleição de 1994 se deu sob a Lei nº. 8.713, de 30 de setembro de 1993, enquanto a de 1996 foi regida pela Lei nº. 9.100, de 29 de setembro de 1995.


III - O Contexto Político do Estado do Ceará

I.

O Estado do Ceará se localiza no Nordeste brasileiro, com uma área de 148.016 km2, sendo um dos menores Estados da Federação [9]. Entre 1985-87 sua população alcançava 5.917.330 habitantes [10]. Em 1994 esse número chegava a 6.697.183 [11], para em 1995 alcançar o número de 6.734.026 [12] habitantes. Sua capital, Fortaleza, figura hoje como a quinta cidade do Brasil com uma população superior a dois milhões de habitantes.

Em 1986 o Ceará tinha 2.847.057 eleitores cadastrados aptos a votar [13]. Em 1994 este número chegava a 4.006.533, sendo que 995.496 eram eleitores na Capital do Estado [14]. Em 1996 o Ceará tinha 4.338.238, sendo 1.074.587 somente em Fortaleza [15].

No Ceará, a exemplo dos demais Estados nordestinos, a origem da atividade econômica está ligada necessariamente ao setor primário da economia. Esta evolução histórica [16] gerou determinantes políticas e culturais que se repetiram quase linearmente durante a sua formação. Muito mais do que uma vocação endógena de formação político-econômica a se constatar no Ceará, este foi o resultado da tendência do Estado brasileiro desde sua formação: o setor primário - agricultura escravocrata - sustentou a monarquia; a cafeicultura - agricultura oligárquica - deu apoio à República Velha. A capacidade de articular a implementação efetiva de uma política industrializante teve seu início vinculado à existência de um Estado forte, substituído mais tarde pelo populismo desenvolvimentista, o qual foi por sua vez derrubado pelo militarismo nacionalista.

Em todos estes instantes a presença do poder local para a determinação da vida política brasileira exerceu papel fundamental, seja em momentos de vivência democrática ou nos de autoritarismo.

A formação de um poder local com base no setor primário, com forte sustentação no latifúndio e, num passado mais recente, apoiado no militarismo da elite dirigente, não é particularidade nem do Ceará, nem do Nordeste, mas chega a alcançar diversas outras regiões do Brasil, as quais cultural e etnicamente podem ser diferenciadas da nordestina.

Eleições formam, assim, no contexto político cearense o momento decisivo para a solidificação de uma dada forma de poder. Complexamente, o sentimento criado por essa prática eleitoral contínua - ainda que com resultados democraticamente duvidosos - não pode ser desprezado para uma análise da reconquista, por exemplo, da democracia no Brasil a partir de 1988. Sem esse componente fica difícil entender racionalmente os motivos que conduziram setores os mais diversos da sociedade civil organizada a se mobilizarem (mesmo que com certo espontaneísmo) por eleições diretas para Presidente da República já em 1984 e por eleições para uma assembléia nacional constituinte em 1986.

As eleições de 1982 (as primeiras eleições do processo de redemocratização após o governo militar que se iniciou em 1964) confirmaram a sólida aliança entre um poder local de origem agrária, com eleitos representantes do estamento militar da sociedade cearense.

Numa diferença clara de algumas regiões do País - e de alguns estados do próprio Nordeste brasileiro - os governantes do Ceará traduzem a forma explícita de dependência do Governo Federal, uma vez que a existência de uma elite econômica autônoma politicamente era insignificante: „O >pacto dos coronéis<, sacramentado pelo Presidente João Figueiredo em abril de 1982, unindo as três forças políticas oligarcas do Ceará - os Távora, os Bezerra e os Cals - dentro do PDS não só praticamente definiu o resultado das eleições deste ano, como reforçou o processo político local como denominado pela cultura da dependência. (...) Esta dependência é alicerçada por um lado pela inexistência de elites econômicas locais dotadas de maior perenidade histórica e de autonomia agrícola, industrial ou financeira" [17].

A característica de poder político no Estado do Ceará até 1986 era a de dominação por políticos oriundos da tradição militarista-oligárquica, cuja existência consistia na dependência a dois pólos distintos de apoio político: o Governo Federal e os Governos Municipais, o que confirma a importância do poder local no cenário político cearense [18], a exemplo do brasileiro. Se por um lado os aliados municipais significavam a força que os detentores do Governo Estadual exibiam como credencial perante o Governo Federal, eram estes aliados municipais também a fonte de fraqueza dos coronéis cearenses. Os aliados municipais seguiam o chefe do Governo Estadual, independente de sua oligarquia. A mudança de governo deste para aquele coronel significava também uma mudança de maiorias nos aliados municipais, restando apenas alguns poucos fiéis seguidores que, dadas determinadas condições, possibilitavam uma nova ascensão do antigo coronel destronado.

Em si foi a eleição de 1986 uma prova deste mecanismo. A aliança governista que possibilitou a vitória do último Governador eleito com apoio dos coronéis da política cearense e do regime militar não se manteve nesse ano: o Governador rompeu com seus antigos aliados, passando a apoiar um modelo político que se denominou de „projeto das mudanças". Com o domínio da burocracia e do aparelho do Estado para a distribuição patrimonialista de privilégios e benesses, não foi difícil para o Governador convencer os chefes políticos municipais a abandonarem os coronéis da política cearense em nome da renovação proposta pela política das mudanças e se dedicarem à campanha de seus novos aliados: os jovens empresários representantes do Centro Industrial do Ceará - CIC -, unidos sob o projeto das mudanças.

II.

Consiste a alteração do quadro político do Estado do Ceará ocorrida a partir de 1986 na mais significativa mudança vivida pelo Estado desde o começo do século. Esta mudança - a derrota dos coronéis - implicou num deslocamento de poder, que, se se deixa traduzir pelo início da modernização de relações entre exercício de poder e sociedade (um Estado não mais absolutamente privatizado pelo interesse oligárquico), por outro lado mantém a estrutura autoritária de desenvolvimento, na medida em que este desenvolvimento econômico não correspondeu ao progresso na solidificação da democracia, não fortaleceu o discurso político como mediação entre propostas distintas que também foram e ainda são oferecidas por setores da sociedade, as quais não se identificavam com o governo dos coronéis.

Os novos governantes do Estado do Ceará eram jovens industriais que perceberam a necessidade de fazer o setor industrial hegemônico, não somente economica, mas em especial politicamente. Se este setor era unânime contra a forma de governo patrimonial exercida pelo governo dos coronéis e de suas oligarquias aliadas, esta unidade não resistia à discussão sobre o papel do Estado e sobre uma participação democrática verdadeiramente abrangente. Logo após a vitória eleitoral em 1986 a cisão no grupo vencedor se deixava explicitar pelas palavras de seus principais expoentes, onde alguns pensavam na execução da tarefa modernizante sem a mediação de qualquer outros parceiros. Outra importante parte deste grupo desejou submeter esta modernização a discussões não somente com os aliados da esquerda da época das eleições, como também com outros setores que julgava importante [19]. A primeira corrente é a que prevalece até os dias de hoje.

A revelação de divergências internas do modelo aqui apontada é denunciadora de uma dificuldade que não é diagnosticável somente no Estado do Ceará, mas sim em outras esferas de governo do Brasil sejam elas federal, estaduais ou municipais: a democratização de processos decisórios como fator diferenciador da qualidade de uma democracia.

O significado material de um „bom governo nos trópicos" [20] se revela na alteração de alguns dos indicadores sociais e econômicos do Estado do Ceará antes e depois do ciclo das „mudanças". Índices básicos como analfabetismo [21] e mortalidade infantil foram reduzidos. Prêmio das Nações Unidas foi concedido em reconhecimento ao trabalho de redução de mortalidade infantil. Segundo dados do próprio Governo Estadual, cerca de 97% das crianças estão nas escolas públicas, o que significa um feito quase sem comparação para um Estado do Nordeste brasileiro.

Um aspecto onde o ciclo das mudanças insistiu no surgimento de uma nova cultura foi aquele do trato com a burocracia no Estado. Num contexto patrimonialista, o recurso ao empreguismo e nepotismo era fonte de fidelidade e de distribuição de benefícios públicos localizadamente a familiares e aliados. A luta por cargos melhor remunerados e de melhor prestígio da burocracia estadual poderia desencadear conflitos sérios, os quais se solucionavam pela acomodação de interesses a fim de garantir a tranqüilidade dos ímpetos aliados.

A vitória dos empresários agrupados no Centro Industrial do Ceará derivou na procura de aplicação da noção weberiana de burocracia, o que significa necessariamente o rompimento radical com as estrutura e cultura patrimonialistas dos tempos dos coronéis. Efetivamente, este fenômeno se deu não sem custos de governabilidade, especialmente para a primeira experiência do ciclo das mudanças. A não distribuição de cargos, a perspectiva de se racionalizar a burocracia do Estado – por vezes com tentativas perversas de demissões e inversão da ordem racional das coisas, onde o conjunto dos servidores públicos passou a ser visto e sentido como culpado – trouxe realmente uma nova realidade na implementação de uma cultura sobre o papel da burocracia do estado.

Não se deve perder de vista que toda a mudança protagonizada pelo Governo Estadual a partir de 1986 nunca questionou o modelo capitalista de desenvolvimento, buscando, porém, a realização da tarefa de fortalecer uma burguesia industrial local. Esta formulação se confirma quando do resumo feito por Abu-El-Haj a respeito dos objetivos do projeto das mudanças: "i) crítica severa da estatização e do intervencionismo do setor público; ii) defesa intransigente da economia de mercado e da propriedade privada como essência de uma sociedade aberta e democrática; iii) crítica da visão corporativista patronal e das posições conservadoras assumidas pela classe empresarial brasileira e iv) defesa do Nordeste e condenação dos desequilíbrios interregionais" [22].

O sucesso geral do ciclo das mudanças não impediu críticas sobre a qualidade de vida geral no Estado, inclusive por parte de instituições internacionais e aliadas do Governo Estadual, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento.

No debate do predominantemente político alguns observadores já discorrerem sobre a constante tentativa do monopólio de todos os espaços do debate público com o objetivo de tanto se credenciar o jovem e grupo de empresários como o agente capaz de realizar a transformação necessária, como também de deslegitimar qualquer crítica ao contrário, seja ela oriunda das "elites atrasadas" [23] ou de agentes críticos.

Na comprovação da existência de uma oposição formuladora do „contra-debate", - o que também é revelador de que, institucionalmente, o Poder Legislativo pode vir a ser um importante ator, caso seja autônomo - determinados representantes da Assembléia Legislativa do Estado têm se esforçado para demonstrar as contradições internas do modelo desenvolvimentista que se aplica ao caso do Estado do Ceará, notadamente pelo seu caráter extremamente concentrador de renda e de exclusão de mediação política [24].

Este caráter concentrador de renda se confirma também quando de recente pesquisa do Instituto de Geografia e Estatística – IBGE mostrando que somente 3,9% da população ativa do Estado possui remuneração acima de 755,00 reais, ou cerca de 400 dólares americanos [25].

Embora seja o fenômeno do empreguismo cada vez mais raro, deve ser registrado porém, que o nepotismo ainda permanece – no âmbito do Poder Judiciário do Estado do Ceará, em especial – e que se constata uma tolerância estratégica do Governo Estadual com segmentos que a praticam, em especial com seus aliados municipais. Se o projeto das mudanças nutriu a esperança de aglutinar os chefes locais com a expectativa de forçá-los a processos de alteração na sua postura de trato com a coisa pública, os fatos demonstram o fracasso desta visão.

Alegando a secular falta de estruturação dos partidos políticos, os defensores do projeto das mudanças sempre preferiam aliança política com setores que tradicionalmente negociavam a partir de seus interesses. Esta postura, claro, foi responsável pela sobrevivência de oligarquias familiares que, embora controladas pelo Governo do Estado, realizam a ligação entre o passado e o presente no simbolismo do exercício do poder nas localidades do interior do Estado. Esta tolerância em nome da viabilização do projeto das mudanças não se encerra somente no âmbito do poder local. Ela se transmite para as instituições do Estado do Ceará. A Justiça Eleitoral é uma dessas instituições, formada por homens e mulheres de vida acadêmica e profissional no Estado do Ceará, cuja nomeação obedece, como se viu, a critérios políticos que envolvem articulação de poder local e central.

O custo para o desenvolvimento de uma cultura democrática são perceptíveis e, até onde é possível se enxergar, se constata uma relação entre esta visão desenvolvimentista desprovida de maiores preocupações no sentido de maturação de uma cultura democrática e a ação de uma Justiça Eleitoral, cujas decisões são formuladas por juízes com experiência profissional num ambiente acadêmico e político refratário na maior parte das vezes à pressão democrática.

Sobre o autor
Martonio Mont’Alverne Barreto Lima

procurador do Município de Fortaleza, doutor em Direito pela Universidade de Frankfurt

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. O papel da Justiça Eleitoral na consolidação da democracia.: Eleições no ceará: 1994-96. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2726. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Comunicação apresentada ao XVIII Congresso Mundial da IPSA (International Political Science Association), de 1º a 5 de agosto de 2000, em Quebec,Canadá. Publicado no Anuário dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco, nº 11, 2000,pp. 255-287

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