A tutela coletiva se trata de uma proteção una de uma situação jurídica coletiva ativa ou efetivação de uma situação jurídica coletiva passiva (deveres jurídicos coletivos)[2]. O processo coletivo, por sua vez, trata-se de um feixe de relações jurídicas[3] nas quais em um dos polos está contida uma coletividade de pessoas[4], um grupo ligado por um fato com uma relação jurídica interna[5].
Emergidas de um ato jurídico complexo de formação sucessiva (procedimento)[6], o processo coletivo se impõe como condição para o exercício do poder jurisdicional, seja em face de uma coletividade, seja em prol dela.
Calha ressaltar, todavia, que a referida coletividade (ou grupo), para os fins de tutela coletiva, não pode ser meramente pessoas distintas a exercer conjuntamente seu direito de ação. Tal fato ensejaria, ao extremo, um litisconsórcio multitudinário[7]. O que gera a legitimidade para a tutela coletiva é a matéria litigiosa a ser discutida.
Por tal fato se fala em uma estrutura molecular de processo, no qual várias estruturas ou sistemas atômicos (individuais e isolados) estariam ligados por um fato ou relação jurídicos.
Afirmam Didier Jr.e Zaneti Jr.[8] que a defesa dos direitos coletivos tem duas origens prováveis: a ação popular advinda da cultura greco-romana e as class actions anglo-saxãs. Interessante brocardo relativo ao referido instituto utilizado na Roma era o que afirmava rei sacrae, rei publicae.
Marcelo Abelha Rodrigues discorre sobre a passagem do Estado Liberal para o Estado Social e sua importância para a abertura do sistema processual brasileiro para a defesa dos direitos coletivos[9]. Para ele, bem como para Didier Jr.e Zaneti Jr., o medo de um estado absolutista e invasivo levou os Códigos Civil e de Processo Civil a um liberalismo deveras exacerbado, o que gerou inúmeros entraves formalistas[10] e supressão de tutelas devidas[11].
Com o transcurso do tempo e estabelecimento de bases jurídicas mais seguras (e.g., a Constituição de 1988), o direito brasileiro criou confiança a ponto de caminhar hoje a largos passos para o neoprocessualismo[12], adaptação da ciência do processo à revolução teórica do constitucionalismo contemporâneo.
Dentre os vários pontos de evolução do ordenamento jurídico, bem como da forma que ele é visto, cabe trazer aquele quanto à força normativa da constituição e os direitos fundamentais.
Nos direitos fundamentais estão contidos aqueles de segunda geração (ou dimensão), quais sejam aqueles que exigem do Estado uma prestação de fazer (direitos sociais). Tais direitos carrearam a defesa dos direitos coletivos através da modernidade liberal – veja-se, por exemplo, os direitos trabalhistas, assim como a influência da revolução industrial para afirmação dos direitos sociais.
No Brasil, a Constituição de 1934, na República Nova, fortemente influenciada pela Constituição alemã de seu tempo (die Weimarer Verfassung ou die Verfassung des Deutschen Reichs), trouxe em seu rol de direitos fundamentais diversos direitos sociais. Ainda mais proeminente foi o rol de direitos sociais trazido pela Constituição da República Federativa do Brasil. Contudo, apesar do avanço formal, o Brasil carrega sequelas de um regime ditatorial, oposto diretamente a um Estado de Direito (aquele que se submete às próprias leis).
Os direitos fundamentais tiveram forte proteção. Vê-se, porém, que aqueles sociais são mais difíceis de se concretizar – exigem não uma conduta omissiva, mas comissiva, o que a Lei da Inércia parece desfavorecer.
Ao observar tal fenômeno, o alemão Karl Loewenstein[13] propôs uma nova classificação das constituições, quanto à sua realidade fática, a chamada Ontologische Klassifierung, através da qual tinha por constituições meramente semânticas (semantische Verfassung) aquelas simbólicas e inaplicadas. Disse ainda serem nominalistas (nominalistische Verfassung) aquelas que tinham por escopo tornar-se normativas (normativ Verfassung), enfim aplicadas.
Para combater o fenômeno da erosão da consciência constitucional[14], também observado por Loewenstein, Konrad Hesse escreveu uma obra entitulada de A Força Normativa da Constituição (Die normative Kraft der Verfassung), defendendo a necessidade de concretização das normas constitucionais.
Fortemente influenciado por tais ideais, o direito brasileiro passou a incorporar esse espírito e desenvolver defesas teóricas e instrumentos processuais para o combate da síndrome de inefetividade das normas constitucionais. Dentre estes se incluem como principais a ação direta de inconstitucionalidade por omissão[15] e o mandado de injunção[16].
Nesse cenário, os direitos coletivos passaram a ganhar força, de forma que a atividade jurisdicional assumiu papel imprescindível na sua defesa.
Assim, com a já crescente industrialização, necessidade de urbanização etc., observou-se ser essencial a ampliação da atividade jurisdicional para a defesa, por exemplo, dos consumidores.
Neste sentido, Didier Jr. e Zaneti Jr. atribuem à necessidade de ações coletivas dois fatores: um sociológico e um político.
O sociológico diz respeito, exatamente, à devida efetivação dos direitos fundamentais, de forma que se conceda a todos uma proteção una e eficaz. Seria, assim, relativo primordialmente ao princípio do acesso à justiça, este cívico e abstrato[17].
Enquanto una, vê-se que essa proteção se tornaria simultaneamente mais eficiente para o Estado, porquanto milhares de vezes mais econômica. O sentido político, portanto, reside no princípio da economia processual.
Os direitos coletivos genericamente tratados são chamados de direitos coletivos lato sensu, compreendidos todos aqueles que fazem jus à tutela coletiva. Como subdivisão dos direitos coletivos lato sensu, temos: os direitos essencialmente coletivos, que seriam os direitos coletivos stricto sensu e os direitos difusos (direitos fundamentais de terceira geração); e aqueles acidentalmente coletivos[18], que seriam os direitos individuais homogêneos.
Os direitos difusos são aqueles direitos metaindividuais e indivisíveis que pertencem a sujeitos indetermináveis e sem qualquer relação jurídica entre eles, e.g., a proteção do meio ambiente, da moralidade administrativa, bem como aquela contra propagandas enganosas e abusivas. Por tal motivo, a coisa julgada resultante de ações para tutela de direitos difusos tem efeitos erga omnes.
Os direitos coletivos stricto sensu são aqueles também metaindividuais e indivisíveis, porém, que são relativos a determinada classe de pessoas, ligadas, previamente à demanda, por uma relação jurídica base. Tal relação pode advir de affectio societatis (no caso de associações) ou mesmo de uma relação com a parte contrária, e.g., contribuintes de um mesmo tributo (fisco) ou estudantes de uma mesma escola.
Nas ações relativas a direitos coletivos stricto sensu a coisa julgada produz efeito ultrapartes[19], ou seja, vai para além das partes mas afetando apenas aquele grupo de pessoas que está sendo processualmente substituído.
Neste sentido, àqueles do grupo que houverem já ingressado como demandas individuais com mesma causa de pedir serão dadas duas opções: suspensão de sua demanda até o fim da ação coletivo ou o chamado right to opt out, que seria o direito de optar pela continuação de sua demanda individual e não submeter-se à coisa julgada coletiva.
Contudo, o art. 81, parágrafo único, III, do Código de Defesa do Consumidor, criou uma nova categoria de direitos a serem coletivamente tratados, os direitos individuais homogêneos.
Os direitos individuais homogêneos são aqueles individuais, mas coletivamente (molecularmente[20]) tratados em razão de sua homogeneidade ou origem comum, gerando uma espécie de coletividade por conta de lesão ou ameaça de lesão em massa. Para Nelson Nery Jr., “essa ação coletiva é deduzida no interesse público em obter-se sentença única, homogênea, com eficácia erga omnes de coisa julgada (CDC 103 III), evitando-se decisões conflitantes”[21].
Neste sentido, a demanda ingressada por órgão de defesa coletiva subsistirá em torno de pedido genérico, posto que as especificações individuais de cada caso deverão ser demonstradas na liquidação da sentença, que será feita individualmente, pela vítima e seus sucessores (art. 97, Código de Defesa do Consumidor). Conquanto processados coletivamente, não se pode olvidar de que se tratam de direitos individuais, de forma que as vítimas deverão ser individualmente ressarcidas/compensadas pelo dano sofrido.
Sendo, portanto, o pedido genérico, assim também o será a sentença[22], que não deverá identificar o beneficiário ou seu prejuízo, apuráveis posteriormente em liquidação individual de sentença. Conforme Luis Rodrigues Wambier, “não há possibilidade, diante da lei posta, de os legitimados obterem sentença que contenha condenação cujo quantum já esteja definido”[23].
Calha repisar que, em se tratando de direitos individuais homogêneos, por seu caráter individual, as vítimas poderão ingressar com ações individualmente (atômicas), bem como em litisconsórcio.
As vítimas ou seus sucessores poderão habilitar seus créditos individualmente para liquidação, e esta poderá ser realizada por arbitramento ou por artigos. Identificadas as vítimas, entretanto, poderá o próprio legitimado (substituto processual) proceder à liquidação individual, bem com à execução individual da sentença, situação na qual o valor da indenização será revertido em prol das próprias vítimas. Neste sentido, divergências jurisprudenciais[24] e doutrinárias, havendo a Suprema Corte, contudo, reconhecido a possibilidade.
A liquidação terá por escopo verificar a extensão do dano e a identidade da vítima.
Conforme o art. 100 do Código de Defesa do Consumidor, passado um ano sem identificação ou habilitação de interessados, a execução será feita coletivamente[25], por qualquer dos legitimados do art. 82[26], e o valor da indenização será revertido para o Fundo Federal de Defesa de Direitos Difusos (fluid recovery[27]). Convém firmar que o prazo de um ano não retira das vítimas o direito de liquidação e execução da sentença, figurando apenas como prazo após o qual se forma legitimidade extraordinária coletiva [28] para tal, de forma residual.
Liquidada individualmente a sentença (pelo interessado ou pelo legitimado), poderá ser instaurado processo autônomo individual para a execução da sentença coletiva liquidada, em contraste com a execução dos direitos coletivos stricto sensu e dos direitos difusos.
[1] Estagiário na Procuradoria-Seccional da Fazenda Nacional em Campina Grande/PB. Acadêmico de Direito FACISA/CESED.
[2] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 9.ª Ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2014. p. 38.
[3] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil e processo de conhecimento. 16.ª Ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2014. p. 22.
[4] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Op. cit., p. 21.
[5] Op. cit., p. 67-75.
[6] DIDIER JR., Fredie. Op. cit., p. 21.
[7] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Op. cit., p. 31.
[8] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Op. cit., p. 23.
[9] RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação Civil Pública. In Ações Constitucionais. 6.ª Ed., rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2014. p. 355.
[10] Op. cit. p. 354.
[11] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Op. cit., p. 25-26.
[12] DIDIER JR., Fredie. Op. cit., p. 30-33.
[13] BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da Consituição brasileira. 8. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 64.
[14] Sobremaneira citado pelo Supremo Tribunal Federal. Vide Informativo de n.º 726. STF. RE 581352/AM. Relator: Min. Celso de Mello. Publicada no DJe de 1º.10.2013.
[15] Art. 103, §2º, Constituição da República Federativa do Brasil e arts. 12-A a 12-H da Lei n.º 9.868, de 10 de novembro de 1999.
[16] Art. 5º, LXXI, Constituição da República Federativa do Brasil e art. 24, parágrado único, da Lei n.º 8.038, de maio de 1990.
[17] NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal (Coleção estudos de direito de processo Enrico Tulio Liebman/ v. 21). 2. Ed. Rev. e aum. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995. p. 91.
[18] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Op. cit., p. 67.
[19] Op. cit., p. 69.
[20] Op. cit., p. 70.
[21] NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado: e legislação extravagante. 7. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 455.
[22] Art. 95. Em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados.
[23] WAMBIER, Luis Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento. 3. Ed. São Paulo: RT, 2006, p. 371.
[24] Vide Informativo nº 431. STF. RE 193.503/SP, RE 193.579/SP, RE 208.983/SC, RE 210.029/RS, RE 211.874/RS, RE 213.111/SP E RE 214.668/ES. Rel orig.: Min Carlos Velloso. Rel. p/ o acórdão: Min. Joaquim Barbosa, DJ 12.5.2006.
[25] Art. 100. Decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida.
[26] Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: I - o Ministério Público, II - a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; III - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código; IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a
autorização assemblear.
[27] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Op. cit., p. 354-356.
[28] Op. cit.