Capítulo 2-A DISSOLUÇÃO DO CASAMENTO
2.1. RETROSPECTIVA HISTÓRICA
Como visto anteriormente, o casamento era fortemente protegido pela Igreja Católica, a qual exercia grande influência no ordenamento jurídico brasileiro, havendo, inclusive, disposições quanto à indissolubilidade do casamento nas Constituições passadas. Entretanto, o Código Civil de 1916 previa a figura do desquite, como forma de rompimento somente da sociedade conjugal, como bem leciona Dias:
Sob a égide de uma sociedade fortemente conservadora e influenciada pela igreja, justificava-se a concepção do casamento como instituição sacralizada. Quando da edição do Código Civil de 1916, o enlace juramentado era indissolúvel. A única possibilidade legal de romper com o matrimônio era o desquite, que, no entanto, não o dissolvia. Permanecia intacto o vínculo conjugal, a impedir novo casamento, mas não novos arranjos familiares, pois cessavam os deveres de fidelidade e de manutenção da vida em comum sob o mesmo teto. Remanescia, no entanto, a obrigação de mútua assistência, a justificar a permanência do encargo alimentar em favor do cônjuge inocente e pobre[101].
Assim, o Código Civil precedente ao atual, previa como causas terminativas do casamento a morte de um dos cônjuges, a nulidade ou anulação do casamento e o desquite (amigável ou judicial), como bem se extrai da letra da lei na obra de Magalhães:
Dizia o Código Civil:
“Art. 315. A sociedade conjugal termina:
I – pela morte de um dos cônjuges.
II – pela nulidade ou annullação do casamento.
III – pelo desquite, amigavel ou judicial.
Parágrafo único. O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges, não se lhe aplicando a presumpção estabelecida neste Código, art. 10, 2ª parte”. (sic)[102].
Percebe-se, deste modo, que somente a invalidade do casamento e a morte de um dos cônjuges permitiam a celebração de novas núpcias, sendo que tanto o desquite judicial, quanto o amigável, apenas colocava termo à vida em comum do casal e regularizava a questão patrimonial. Neste ínterim, explana Magalhães sobre as duas modalidades de desquite, quais sejam, a amigável e a judicial:
O Código Civil, a exemplo do Decreto nº 181, previa o desquite litigioso e o amigável. Aquele só poderia fundar-se no adultério, tentativa de morte, sevícia ou injúria grave; e o abandono voluntário do lar conjugal por dois anos contínuos (art. 317). O desquite por mútuo consentimento dos cônjuges exigia que eles fossem casados por mais de dois anos (artigo 318)[103].
A indissolubilidade do casamento foi novamente prevista na Constituição de 1969, perdurando até a edição da Emenda Constitucional nº 9 de 28 de junho de 1977, que deu nova redação ao artigo 175, § 1º da referida Constituição, e que segundo Gonçalves “[...] não só suprimindo o princípio da indissolubilidade do vínculo matrimonial como também estabelecendo os parâmetros da dissolução, que seria regulamentada por lei ordinária[104]”.
Desta forma, excluindo-se a indissolubilidade do casamento da carta constitucional, foi possível a aprovação da Lei nº 6.515/77, a conhecida “Lei do Divórcio”, que previa a dissolução do vínculo matrimonial após três anos da separação judicial.
Neste sentido, ensina Dias:
Para a aprovação da Lei do Divórcio (L 6.515/77), foi necessário manter o desquite, tendo ocorrido somente uma singela alteração terminológica. O que o Código Civil chamava de desquite (ou seja, não “quites”, alguém em débito para com a sociedade) a Lei do Divórcio denominou separação, com idênticas características: põe fim à sociedade conjugal, mas não dissolve o vínculo matrimonial[105].
Sobre o assunto também discorreu Azevedo:
Na chamada lei brasileira do divórcio, estabeleceu-se, em seu art. 5º, § 1º, que a separação judicial poderia ser pedida por um dos cônjuges se provasse “a ruptura da vida em comum há mais de um ano”, tornando-se “insuportável a vida em comum”. É claro que a insuportabilidade convivencial decorre da ausência de coabitação, pelo período apontado na Lei nº 6.515/77, que, quando foi editada era de cinco anos. Essa ruptura era automática; bastava o decurso do prazo para que os cônjuges, em conjunto ou isoladamente, pudessem pedir a separação, à época. Assim, independentemente, da alegação de culpa, pelo simples decurso do tempo[106].
Com o advento da Lei nº 6.515/77, surgiram duas modalidades que colocavam termo ao vínculo matrimonial. A primeira, chamada de divórcio-conversivo, previa que o casal primeiramente devia se separar judicialmente, e após três anos estavam aptos a requerer a conversão em divórcio. Por sua vez, o chamado divórcio direto, permitia o divórcio ao casal que já estava separado de fato há cinco anos antes da publicação da emenda constitucional. Extrai-se, neste sentido, da obra de Gonçalves:
A sua modalidade básica era o divórcio-conversão: primeiramente o casal se separava judicialmente, e depois de três anos requeria a conversão da separação em divórcio. O divórcio direto era forma excepcional, prevista no art. 40 das disposições transitórias, ao alcance somente de casais que já estavam separados de fato há mais de cinco anos em 28 de junho de 1977[107].
Com mais detalhes, também leciona Dias:
Com o advento do divórcio, surgiram duas modalidades de “descasamento”. Primeiro, as pessoas precisavam se separar. Só depois é que podiam converter a separação em divórcio. A dissolução do vínculo conjugal era autorizada uma única vez (LD 38). O divórcio direto era possível exclusivamente em caráter emergencial, tanto que previsto nas disposições finais e transitórias (LD 40). Nitidamente, a intenção era admiti-lo somente para quem já se encontrava separado de fato, quando da emenda da Constituição: 28 de junho de 1977. Era necessário o atendimento cumulativo de três pressupostos: (a) estarem as partes separadas de fato há cinco anos; (b) ter esse prazo sido implementado antes da alteração constitucional; e (c) ser comprovada a causa da separação[108].
A Lei do Divórcio foi tão bem aceita pela sociedade, que o constituinte de 1988 não obteve outra saída a não ser “[...] institucionalizar o divórcio direto, perdendo o caráter de excepcionalidade[109]”. Entretanto, moldou as novas disposições a realidade da época, e desta forma, reduziu o prazo da separação de fato para um ano no divórcio-conversão, e de dois anos no divórcio direto. Importante, destacar, ainda, conforme leciona Gonçalves, que a Lei nº 7.841/89 reformulou a Lei nº 6.515/77 excluindo qualquer possibilidade de discussão a respeito da causa eventualmente culposa da separação[110].
Verifica-se, então, que o único requisito para a concessão do divórcio direto passou a ser a comprovação da separação de fato por mais de dois anos[111]. Também, aduz Azevedo:
[...] bastava a separação de fato do casal, sem coabitação, por mais de dois anos, para que, em conjunto ou isoladamente, pudessem os cônjuges pedir o divórcio, bastando evidenciar, na presença do juiz, que o decurso do tempo ocorreu, independentemente de prova de culpa[112].
Pouco mais de quatorze anos depois da promulgação da Constituição de 1988, o Código Civil de 2002 incluiu o divórcio no rol de causas terminativas do casamento (art. 1.571, IV), tendo o condão de dissolver o vínculo matrimonial (art. 1571, § 1º). Ademais, segundo Gonçalves “[...] o mencionado Codex regula a conversão da separação em divórcio, dispondo no art. 1.580[113]”.
Posteriormente, em 4 de janeiro de 2007, a Lei nº 11.447 instituiu a separação e o divórcio extrajudicial, quando não houver filhos menores ou incapazes, sempre respeitando os prazos então vigentes (art. 3º da referida Lei). Azevedo ensina que “deve ser lavrada escritura pública, com a descrição e a partilha dos bens comuns, com a fixação da pensão devida e a estipulação de como ficará o nome do cônjuge[114]”.
Sobre a validade da separação e do divórcio extrajudicial, extrai-se do livro de Silva:
Dispensa-se a homologação judicial das escrituras, que são títulos hábeis aos registros civis e imobiliários, tendo em vista, respectivamente, a averbação no assento de casamento e nascimento, este em caso de modificação do sobrenome, e a transferência de bens e direitos[115].
Ainda:
Essas escrituras também são títulos hábeis aos registros referentes a bens imóveis, como de transferência de veículos no Detran, de ações ou cotas sociais na Junta Comercial e no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, de direitos de utilização de linhas telefônicas nas respectivas companhias e de numerários em instituições financeiras, entre outros (Resolução n. 35/2007, art. 3º)[116].
As disposições referentes à separação e ao divórcio constantes no Código Civil de 2002 vigoraram até meados do ano de 2010, quando em 14 de julho do referido ano, foi publicada a Emenda Constitucional nº 66, que deu nova redação ao art. 226, § 6º da Constituição Federal, e retirou a separação judicial da letra constitucional.
Neste ínterim, surgiu a discussão acerca da revogação tácita dos artigos do Código Civil no tocante à separação judicial, conforme será exaustivamente estudado no capítulo seguinte.
2.2. VÍNCULO MATRIMONIAL E SOCIEDADE CONJUGAL
Para a correta análise das causas terminativas do casamento, é de extrema importância realizar uma distinção entre a dissolução da sociedade conjugal e a dissolução do vínculo matrimonial, conceitos que aparentemente são similares, mas que na prática, possuem consequências distintas.
Extrai-se da obra de Gonçalves que:
Sociedade conjugal é o complexo de direitos e obrigações que formam a vida em comum dos cônjuges. O casamento cria a família legítima ou matrimonial, passando os cônjuges ao status de casados, como partícipes necessários e exclusivos da sociedade que então se constitui. Tal estado gera direitos e deveres, de conteúdo moral, espiritual e econômico, que se fundam não só nas leis como nas regras da moral, da religião e dos bons costumes[117].
Desta forma, entende-se que a sociedade conjugal é apenas uma pequena parcela de algo muito maior, o casamento, e assim, como bem leciona Rizzardo, “pode haver dissolução da sociedade conjugal, sem a dissolução do vínculo matrimonial, mas toda a dissolução do vínculo acarreta, obrigatoriamente, a da sociedade conjugal[118]”.
No mesmo sentido, é o entendimento de Diniz:
O casamento é, sem dúvida, um instituto mais amplo que a sociedade conjugal, por regular a vida dos consortes, suas relações e suas obrigações recíprocas, tanto as morais como as materiais, e seus deveres para com a família e a prole. A sociedade conjugal, embora contida no matrimônio, é um instituto jurídico menor do que o casamento, regendo, apenas, o regime matrimonial de bens dos cônjuges, os frutos civis do trabalho ou indústria de ambos os consortes ou de cada um deles. Daí não se pode confundir o vínculo matrimonial com a sociedade conjugal[119].
Compulsando o Código Civil, verifica-se que o legislador arrolou as hipóteses de dissolução da sociedade conjugal no artigo 1.571, caput, senão vejamos:
Art. 1.571. A sociedade conjugal termina:
I - pela morte de um dos cônjuges;
II - pela nulidade ou anulação do casamento;
III - pela separação judicial;
IV - pelo divórcio[120].
Por sua vez, o vínculo matrimonial dissolve-se nas circunstâncias previstas no parágrafo único do mesmo dispositivo legal:
§ 1º O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente[121].
Na prática, esta distinção acarreta no fato de que, somente quando dissolvido o vínculo matrimonial o ex-cônjuge poderá contrair novas núpcias, o que não é autorizado com a simples quebra da sociedade conjugal. Nesse ínterim, extrai-se da obra de Rizzardo:
A sociedade conjugal pode deixar de existir, isto é, o casamento como manifestação real ou concretização da união entre marido e mulher pode terminar, permanecendo, todavia, o vínculo. E, na ordem do art. 1.571, fica dissolvida a união ou a sociedade conjugal por um daqueles quatro fatores – morte de um dos cônjuges, nulidade ou anulação do casamento, separação judicial e divórcio. Já em face do parágrafo único, dissolve-se o vínculo, deixando de existir o casamento, com a morte ou o divórcio. Apenas estas duas formas dissolvem o vínculo, autorizando o novo casamento [...][122].
Da mesma forma entende Diniz:
A separação extrajudicial ou a judicial dissolve a sociedade conjugal, mas conserva íntegro o vínculo, impedindo os cônjuges de convolar novas núpcias, pois o vínculo matrimonial, se válido, só termina com a morte real ou presumida de um deles com o divórcio[123].
Entretanto, com o advento da Emenda Constitucional número 66, alguns doutrinadores entenderam que com a extinção da separação judicial, irrelevante seria a distinção entre dissolução da sociedade conjugal e dissolução do vínculo matrimonial. Assim, neste sentido leciona Dias:
Com o fim do instituto da separação o art. 1.571 perdeu sentido, por não existir mais qualquer causa que “termine” a sociedade conjugal, a não ser a separação de fato e a separação de corpos. Somente pode ocorrer sua “extinção” pela morte de um dos cônjuges; quando do trânsito em julgado da sentença anulatória do casamento; ou com o divórcio[124].
Neste ínterim, percebe-se que o casamento é constituído pela sociedade conjugal e pelo vínculo matrimonial, figuras até então distintas, mas que após a nova redação dada ao artigo 226, § 6º da Constituição Federal não possuem mais diferenças de cunho prático, a não ser, que se adote o entendimento de que a separação judicial persiste mesmo após o advento da chamada “Emenda Constitucional do Divórcio”.
Ademais, compulsando o artigo 1.571, caput e § 1º, verifica-se que o Código Civil aduz que a sociedade conjugal extingue-se também pela nulidade ou anulação do casamento, hipótese rechaçada por diversos doutrinadores do assunto, a exemplo de Oliveira e Muniz, citados por Dias:
“Terminar” significa pôr fim, acabar, concluir. A mera nulidade, enquanto não reconhecida judicialmente, não afeta a higidez do matrimônio, que existe e produz todos os efeitos. A ação anulatória tem eficácia desconstitutiva, e a sentença só gera efeitos depois do seu trânsito em julgado. Assim, não é a nulidade ou anulação do casamento que levam ao seu término, mas o trânsito em julgado da decisão judicial que o anula. De outro lado, tanto a declaração de nulidade do casamento, por infectado de nulidade absoluta (CC 1.548), com sua anulação, quando acometido de nulidade relativa (CC 1.550), têm efeito ex tunc, descontituindo-se desde a celebração (CC 1.563), como se jamais tivesse existido[125].
No mesmo sentido, e o entendimento de Lafayette e Gomes apud Diniz:
“[...] a sentença de nulidade do casamento torna-o írrito desde o momento de sua clebração (CC, art. 1.563, 1ª parte), logo, não é modo de dissolução da sociedade conjugal, pois tão-somente declara que tal sociedade nunca existiu. [...] A anulabilidade do matrimônio não pode ser tecnicamente considerada como modo de dissolução do vínculo conjugal, uma vez que a sentença de anulação não apaga todos os efeitos produzidos, não destrói o casamento com efeito retroativo[126]”.
Assim, o casamento nulo ou anulado não produz efeitos jurídicos sob as partes envolvidas, pois não levam ao término da sociedade conjugal, mas sim a torna inexistente, passando os ex-cônjuges ao estado civil de solteiros novamente.
2.3. CAUSAS TERMINATIVAS DO CASAMENTO
2.3.1. Morte de um dos cônjuges
A morte de um dos cônjuges como causa terminativa do casamento está prevista no artigo 1.571, I do Código Civil e no § 1º do mesmo dispositivo legal, sendo que sua ocorrência acarreta na dissolução tanto do vínculo matrimonial quanto o da sociedade conjugal.
Rizzardo aduz que:
Este fator de dissolução não traz maiores dificuldades, por ser natural e não poder se imputar a responsabilidade a qualquer dos cônjuges. A partir de sua ocorrência, de regra desaparecem os efeitos do casamento, como os direitos e deveres que antes vigoravam. Permite-se que o cônjuge sobrevivente contraia novo casamento[127].
Ao cônjuge sobrevivente atribui-se o estado civil de viúvo, o que no entendimento de Dias “constituiu violação do direito à intimidade[128]”, pois declara publicamente um fato infeliz ocorrido na vida do indivíduo. Para a mesma autora, tal identificação serve somente para:
[...] saber a situação do patrimônio do viúvo, pois permite questionar se os bens lhe pertencem com exclusividade ou necessitam submeter-se a inventário. Para isso, de todo desnecessário que a pessoa seja praticamente rotulada como viúva[129].
Em que pese à autorização de contrair novas núpcias após morte do cônjuge, entendeu pertinente o legislador, no tocante à mulher, a observação do prazo temporal de dez meses para tanto, no intuito de evitar-se o turbatio sanguinis[130].
Neste passo, bem explica Dias:
Com a morte de um, cessa o impedimento do cônjuge sobrevivente para o casamento. No entanto, a mulher só pode casar depois de 10 meses (CC 1.523 II), exceto se antes desse prazo der à luz um filho, ou provar não estar grávida (CC 1.523 parágrafo único). A espera decorre do fato de a lei presumir que os filhos nascidos nesse período foram concebidos na constância do casamento, sendo filhos do finado (CC 1.597 II)[131].
No entanto, importante destacar, que a dissolução do casamento também se opera com a morte presumida, sendo esta hipótese prevista no artigo 1.571, § 1º, segunda parte, do Código Civil, pois bem:
Art. 1.571. A sociedade conjugal termina:
[...]
§ 1º O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente (grifos nossos)[132].
Assim, entende-se dissolvido o casamento do cônjuge presumidamente morto, previsto no artigo 6º, in fine, do Código Civil, “nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva[133]”.
O Código Civil de 2002 inovou no tocante aos efeitos da presunção de morte do indivíduo, pois no antigo ordenamento jurídico, tais efeitos limitavam-se ao patrimônio, pois somente permitiam a abertura da sucessão provisória.
Neste ínterim, explana Gonçalves:
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Tal abertura, que antes só acarretava efeitos de ordem patrimonial, passa a produzir também efeitos pessoais, na medida em que se constitui, tal como a morte real, causa de dissolução do casamento do ausente. Uma vez declarada judicialmente, permite a habilitação do viúvo ao novo casamento[134].
Desta forma, a morte de um dos cônjuges mostra-se como uma das formas mais simples de dissolução do casamento, pois diferentemente das outras causas terminativas, decorre simplesmente de uma causa fática (morte de um dos cônjuges), não havendo discussão jurídica sobre tanto.
2.3.2. Separação antes da Emenda Constitucional nº 66/2010
A separação, uma das causas terminativas do casamento sem rompimento do vínculo matrimonial, foi considerado extinto por alguns doutrinadores de Direito de Família em razão de sua retirada da Carta Magna após a edição da Emenda Constitucional nº 66. Entretanto, em que pese os entendimentos divergentes, entende-se pertinente fazer uma breve análise desta modalidade que por décadas integrou o ordenamento jurídico brasileiro.
Como já arguido anteriormente, a separação judicial somente põe termo a sociedade conjugal, cabendo somente ao divórcio a dissolução do vínculo matrimonial. Neste passo, Cahali aduz que “os dois institutos se afinam e se completam antes a circunstância de representar a separação judicial a antecâmara, o prelúdio necessário do divórcio, a que se converte por vontade de qualquer dos cônjuges.[135]”
Basicamente, havia duas formas de separação judicial, uma por vontade de ambos e outra por vontade unilateral.
Sucintamente, preleciona Otoni:
A primeira ocorria se ambos os cônjuges desejassem se separar de maneira pacífica e só poderia ser requerida após um ano da celebração do matrimônio. Já a separação litigiosa era viável quando um dos cônjuges não desejava se separar ou não estava de acordo com os termos da dissolução[136].
Neste tocante, a manifestação consensual independia de comprovação da culpa, sendo que para sua efetivação, o casal necessita aguardar um ano de aniversário das núpcias. Por sua vez, a separação por vontade de um dos cônjuges devia-se atribuir culpa pelo falecimento do casamento a um dos cônjuges.
Sobre o tema, diz Dias:
Quando mútua era a intenção de romper o casamento, não havia necessidade de apontar qualquer motivação para o decreto judicial de separação. O casal precisava esperar o decurso de um ano de celebração das núpcias para pleitear o divórcio (CC, 1.574). Mesmo que antes desse prazo tivesse acabado o vínculo afetivo, e o par não mais convivesse sob o mesmo teto, a lei, de forma aleatória e arbitrária, impingia a mantença do status de casados[137].
Ainda, Gomes citado por Diniz, entende que “se deve considerar igualmente consensual a separação requerida por uma das partes e aceita pela outra[138]”. No tocante ao requerimento de separação por ato unilateral, também se recorre da lição de Dias:
Quando somente um dos cônjuges desejava terminar a sociedade conjugal, para pleitear a separação, tinha de atribuir ao outro culpa pelo fim da união ou comprovar a ruptura da vida em comum há mais de um ano (CC 1.572). A jurisprudência, no entanto, já vinha afastando a necessidade de identificar culpados. Antes do decurso desse interstício, ou na ausência de motivo que pudesse ser imputado ao outro, resistia o Estado em chancelar a vontade de um dos cônjuges[139].
A propositura da ação de separação, tanto a consensual quanto a litigiosa, devia ser feita obrigatoriamente por um dos cônjuges, ou na incapacidade de um deles, pelo representante legal. Sobre o caráter personalíssimo da separação judicial, Gonçalves aduz que “somente eles têm a iniciativa da ação, que é privativa e intransmissível, não comportando intervenção de terceiros[140]”. Em uma abordagem mais profunda do tema, ressalta Diniz que “todavia a lei admite, excepcionalmente, em caso de incapacidade de um deles, que tal ação seja intentada por curador, ascendente ou irmão, que represente legalmente o cônjuge[141]”.
A respeito da legislação aplicada, extrai-se da doutrina de Rizzardo:
O caráter pessoal da formalização da dissolução da sociedade está contida no início do parágrafo único do art. 1.576: “O procedimento judicial da separação caberá somente aos cônjuges” (a regra constava no art. 3º, § 1º, primeira parte, da Lei nº 6.515). O art. 1.572 do mesmo Código, na sua primeira parte, também enseja a restrição da ação aos cônjuges: “Qualquer dos cônjuges poderá propor a ação de separação judicial.” Limitação esta que se repete em outros dispositivos e reflete um consenso em todas as legislações[142].
Assim, proposta a ação por um ou ambos os cônjuges (ou excepcionalmente representante legal), é imperiosa a realização de audiência de conciliação com as partes, devendo o juiz, conforme se extrai da letra da lei na obra de Rizzardo, “promover todos os meios para que as partes se reconciliem ou transijam, ouvindo pessoal e separadamente cada uma delas e, a seguir, reunido-as em sua presença, se assim considerar necessário[143]”.
Sobre a obrigatoriedade da tentativa de conciliação entre as partes na separação judicial consensual, afirma Gonçalves que “tem a jurisprudência proclamado a inadmissibilidade da supressão da aludida audiência e da oportunidade para que as partes se reconciliem ou transijam, considerando a regra de ordem pública[144]”.
Entretanto, esta audiência de conciliação já vinha sofrendo severas críticas dos estudiosos do Direito, pois fugia da esfera de conhecimento do juiz presidente da audiência os detalhes íntimos do casal litigante, bem como a técnica psicológica necessária. Neste ver, Rodrigues, citado por Venosa, aduz que “a ideia de impor ao juiz o encargo de exercer uma pressão sobre a vontade das partes, no sentido de reconciliá-las, é totalmente descabida, pois o juiz não é conselheiro sentimental[145]”
Superada a fase de conciliação e ouvido o representante do Ministério Público, poderia o juiz homologar o acordo ou decretar a separação, colocando termo aos deveres de coabitação, fidelidade recíproca e ao regime de bens, conforme aduz o artigo 1.576 do Código Civil.
Extraem-se da obra de Diniz os efeitos pessoais da separação em relação aos cônjuges:
1) Pôr termo aos deveres recíprocos do casamento, coabitação, fidelidade e assistência imaterial [...]. 2) Impedir o cônjuge de continuar a usar o nome do outro, se declarado culpado pela separação litigiosa [...]. 3) Impossibilitar a realização de novas núpcias [...]. 4) Autorizar a conversão em divórcio [...]. 5) Proibir que a sentença que decretar ou homologar a separação judicial de empresário e o ato de reconciliação sejam opostos a terceiros [...]. 6) Possibilitar, a qualquer tempo, seja qual for a causa da separação judicial (consensual ou litigiosa), a reconciliação do casal [...][146].
No entanto, Dias preceitua que os efeitos do fim da sociedade conjugal não produziam efeitos necessariamente a partir da sentença que homologou ou decretou a separação, podendo retroagir a data da separação de fato. Nestes termos:
A sentença que decreta a separação produz efeitos a partir de seu trânsito em julgado. É o que a Lei do Divórcio assegura. No entanto, a sentença dispõe de efeito retroativo, alcançando a separação cautelar (LD 8.º). Ou seja, os efeitos da sentença da separação judicial retroagem á data da separação de corpos. Apesar de a sentença dispor de eficácia desconstitutiva – termina a sociedade conjugal -, tal se opera desde a separação de corpos. Em face deste permissivo legal construiu-se uma firme jurisprudência emprestando à separação de corpos todos os demais efeitos do término da sociedade conjugal: romper com os deveres conjugais e pôr fim ao regime de bens[147].
Neste ínterim, atendidas as peculiaridades do caso, e reconhecida a separação do casal, dissolvia-se a sociedade conjugal e, consequentemente, findavam-se quase todos os efeitos do casamento, permanecendo somente a proibição de novas núpcias com terceiros. Nesta via, o ponto final do matrimônio dar-se-ia somente com o divórcio, por meio da ação de conversão, como será visto a seguir.
2.3.3. Divórcio antes da Emenda Constitucional nº 66/2010
Inicialmente, é importante destacar que as considerações feitas neste momento, dizem respeito ao procedimento de divórcio anteriormente a alteração constitucional inserida pela Emenda nº 66, e desta forma, não mais persistem integralmente no sistema pátrio de dissolução do casamento.
Em um primeiro momento, importante conceituar o divórcio como modalidade de extinção do casamento com a dissolução do vínculo conjugal, o que implicaria no termo de todos os efeitos do casamento, inclusive na proibição de contrair novas núpcias.
Assim como na separação judicial, o ordenamento jurídico brasileiro previa duas modalidades de divórcio, o direito e o indireto, sendo este último resultado do pedido de conversão da separação.
Primeiramente, o divórcio direto era aquele que independia de prévia separação judicial, caso comprovada a separação de fato por mais de dois anos. Neste passo, o único requisito para a sua concessão era o decurso do prazo de mais de dois anos, previsto na Constituição Federal.
Sobre o tema, é a lição de Diniz:
O divórcio direito distingue-se do indireto, porque resulta de um estado de fato, autorizando a conversão direta da separação de fato por mais de 2 anos, desde que comprovada, em divórcio, sem que haja partilha de bens (CC, art. 1.581) e prévia separação judicial, em virtude da norma constitucional [...][148].
No mesmo sentir, aduz Venosa:
[...] as portas do divórcio-remédio foram definitivamente abertas no ordenamento brasileiro, seguindo tendência da maioria dos legisladores. Destarte, basta alegar e comprovar a separação de fato do casal por dois anos ou mais, não havendo necessidade de ser declinada a causa dessa separação[149].
No tocante ao lapso temporal de dois anos, importante ressaltar que não mais se exigia que fossem consecutivos, pois como se extrai das palavras de Gonçalves “encontros esporádicos do marido e da mulher, sem o ânimo de reconciliação, não tem o condão de interromper o prazo da separação de fato ensejadora do divórcio direito[150]”.
Destaca-se, ainda, que assim como no procedimento da separação, autorizava-se tanto o pedido de divórcio direto consensual, quanto o litigioso, sendo que segundo Gonçalves, no primeiro adotava-se o procedimento previsto nos arts, 1.120 a 1.124 do Código de Processo Civil, referentes à separação consensual e no segundo caso, o divórcio requerido unilateralmente seguirá o procedimento ordinário, segundo o disposto no art. 40, § 3º, da Lei do Divórcio[151].
Por sua vez, o divórcio indireto era a regra para a dissolução do casamento até 13 de julho de 2010, e devia ser concedido após um ano da separação judicial.
Nestes termos Rizzardo diz que:
Denomina-se, também, “divórcio-sanção”, ou “divórcio-conversão”, pois tem sua origem ou na separação que, não raras vezes, advém da infração dos deveres conjugais, ou da concessão após a separação judicial consensual. Se os ex-cônjuges se encontram separados judicialmente há mais de um ano, conforme art. 226, § 5º, da Constituição Federal, e o art. 1.580 do Código Civil (anteriormente à Constituição Federal de 1988 o prazo era de três anos), podem requerer a conversão da separação em divórcio[152].
Desta forma, homologada ou decretada a separação judicial, os cônjuges poderiam requerer a conversão em divórcio depois de um ano, sem que para tanto, tivesse que observar quaisquer outras formalidades. Neste ínterim, era dispensada a realização de audiência para a oitiva das partes, pois de acordo com Dias “assim, era dispensável a solenidade, até porque inexistia qualquer empecilho para vetar a conversão em divórcio[153]”.
Do mesmo modo, Venosa leciona que “[...] nada indica que seja necessária audiência de conciliação na conversão da separação em divórcio, porque se trata de mera chancela de situação consumada[154]”.
Ademais, não mais se podia discutir o culpado pelo fim do casamento, sendo este tópico findo durante a instrução do procedimento anterior, como também se extraia da obra de Dias:
Na sentença que decretava o divórcio, não cabia qualquer referência à causa da separação (CC 1.580). Mesmo que na anterior ação de separação tivesse sido proclamada a culpa de um dos cônjuges, tal motivação desaparecia quando da sua conversão em divórcio[155].
No tocante ao procedimento de conversão em divórcio, Dias preleciona que o requerimento somente poderia ser realizado depois de um ano do trânsito em julgado da sentença que decretava a separação judicial; da decisão judicial que deferia a separação de corpos ou da escritura de separação extrajudicial[156].
Superado o requisito objetivo mínimo, os cônjuges não possuíam prazo máximo para requerer a medida cabível, sendo a ação de conversão considerada imprescritível, podendo, assim, persistir por tempo indeterminado o estado civil de separado. Diante deste fato, Venosa entende que:
Na verdade, a faculdade para requerer a dissolução do vínculo matrimonial, seja por separação, seja por divórcio, insere-se no rol dos direitos facultativos ou potestativos, cuja possibilidade de promover a ação persiste enquanto for mantida determinada situação jurídica. Desta forma, os cônjuges podem manter-se separados judicialmente por tempo indeterminado, podendo a qualquer tempo requerer a conversão. Atentemos que em nosso sistema não ocorre o divórcio pelo simples decurso de prazo: há necessidade de sentença que o decrete[157].
O referido requerimento poderia ser formulado de forma consensual, firmando os cônjuges petição em comum juntamente com advogado[158], ou de forma litigiosa, acrescentando Venosa, que neste último caso, “[...] a contestação, quanto ao mérito, se restringirá ao aspecto do lapso temporal necessário[159]”.
Por ser um processo autônomo, a conversão será distribuída e conforme leciona Gonçalves “será apensado aos autos da separação judicial quando formulado no mesmo juízo desta (Lei do Divórcio, art. 35, parágrafo único)[160]”. No entanto, Venosa ressalta que “não há prevenção de juízo e a conversão pode ser proposta em outro juízo se diverso do domicílio atual dos cônjuges[161]”.
O foro competente, ainda deverá respeitar a norma prevista no art. 100, I, do Código de Processo Civil, o qual determina o foro privilegiado da mulher[162].
Desta análise, percebe-se que o sistema dual de dissolução do casamento existente até então, revestia-se de burocracia, no intuito de dificultar ao máximo a dissolução do casamento, com entende Rabelo que:
Por questões puramente sociais, tanto a Lei do Divórcio de 1977, quanto o Código Civil de 2002, dotavam de meios para desestimular o fim do matrimônio, obrigando o cônjuge na manutenção de um casamento muitas vezes falido e infeliz[163].
Portanto, são estas as breves considerações a serem feitas sobre o instituto do divórcio, sendo esta matéria discutida com maior propriedade no capítulo seguinte.