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Concurso público e a falácia dos atalhos

Agenda 17/04/2014 às 15:22

Frente a quem entende que todas as artimanhas e/ou fórmulas mágicas para aprender não constituem um mal consentido, diremos simplesmente que é inútil pretender alcançar um fim difícil por meios fáceis.

“El primer principio es que no debes engañarte a ti mismo, y tú eres la persona más fácil de engañar.”  RICHARD P. FEYNMAN

Imaginemos, por um momento, a seguinte situação. Um indivíduo que se prepara para concurso fala com um velho professor:

- Professor, quero perguntar-lhe uma coisa. O senhor acredita que um curso preparatório me dará a aprovação em um concurso?

- Aprovação? – respondeu dubitativo o velho Mestre -. Não, não creio que nenhum curso preparatório possa dar-te a aprovação. Observe a quantidade de gente que faz esse tipo de curso ou que leva anos fazendo e não consegue aprovar. Pura cosmética.

- E ver vídeos ou aulas on-line? – insistiu o sujeito.

- Vídeos, aulas on-line? Não, também não creio. O que mais pode dar-te é algo de entretenimento, uma forma de passar o tempo e, com sorte, alguma informação útil. Seria como se alguém pretendesse aprender tudo sobre as zebras assistindo os documentários da National Geographic. Curiosa falácia.

- E “turbinar” meu cérebro, professor?

- “Turbinar” o cérebro?  Não, eu nunca vi um “cérebro turbinado”. Uma caprichosa fantasia.

O indivíduo, cansado, diz:

- Bem, professor, lhe agradeço pelos conselhos. Creio que a partir de agora vou tentar outros “métodos”: redobrar meus esforços e dedicação pessoal, comprometer-me ativamente com meus estudos e tentar semear meus conhecimentos lendo e estudando por bons livros.

O velho Mestre sorriu e lhe disse:

- Claro, se te comprometes e semeias... se te esforças e semeias, já é outra coisa.

A realidade é que a balsâmica ilusão dos atalhos só existe por culpa de nossa desesperação por encontrar respostas fáceis para grandes problemas, por culpa de nossa necessidade coletiva de soluções rápidas e eficazes, por culpa de nosso irremediável desejo de descobrir meios simples para fins complexos, por culpa de nossa tendência a crer qualquer coisa quando nos anima a esperança de uma satisfação qualquer, por culpa da fenomenal credibilidade que entre o grande público (o espírito do rebanho) alcançou a indústria do “sucesso garantido”... Parece que estamos igualando o fanatismo da fé ao fanatismo do êxito.

Frente a quem entende que todas as artimanhas e/ou fórmulas mágicas para aprender não constituem um mal consentido, diremos simplesmente que é inútil pretender alcançar um fim difícil por meios fáceis. Só é preciso um pouco de sentido comum para ver que as melhores lições costumam ser as mais difíceis. Daí a necessidade de afrontar firmemente a desagradável responsabilidade (a) de não aceitar as opiniões dos que propõem tomar o caminho mais fácil do aprendizado e se orgulham de estar tão “atualizados” que podem transmitir e ensinar, de forma rápida, todo tipo de lixo intelectual; (b) de rechaçar resolutamente as promessas de todos aqueles que pensam que sabem mais do que de fato sabem, que não dispõem da humildade intelectual necessária para reconhecer e saber valorar a enorme quantidade de informação que lhes resulta impossível obter e que não sentem nenhuma necessidade de questionar continuamente os limites do próprio conhecimento. Já sabem: “A ignorância costuma engendrar maior confiança que o conhecimento” (Charles Darwin). 

Por mais atenção e tempo que exija, é sempre mais produtivo e eficaz insistir em estudar por livros que estejam à altura dos critérios de rigor intelectual cada vez mais exigente dos concursos públicos. Abandonar a ideia de estudar por meios que nos resultem mais fáceis e menos complexos é o primeiro passo para tornar-se um candidato mais competente e preparado. Tudo aquilo que requer esforço e perseverança é, neste sentido, difícil,  e, portanto, é algo que nos faz melhor. 

Ademais, o bom conhecimento gerado por um aprendizado significativo ou prática deliberada é um logro, uma atividade ou tarefa na qual, além de constante prática, o indivíduo há de estar presente e de experimentá-la (ativamente) em primeira pessoa. Somente por meio da experiência concreta de estudar, focando nossa atenção e praticando de forma repetida é que poderemos influir eficazmente no modo em que os conhecimentos adquiridos irão cambiando e modelando o substrato neural de nossos pensamentos, de nossa memória e de nosso aprendizado. Um tipo de conhecimento que não se pode realizar e adquirir de forma repentina, quer dizer, que somente adquire uma base segura e sólida ao longo de um incessante e ativo processo de aprendizagem. Com calma, mas sem pausa.

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De fato, todas as propostas sérias para desenvolver o aprendizado dão por sentado a eficácia da prática e do esforço pessoal. Até há pouco tempo isto era mais um artigo de fé que uma hipótese demonstrável. Não obstante, graças ao trabalho de K. Anders Ericsson, hoje sabemos que a “prática deliberada” é o melhor caminho para melhorar nosso rendimento cognitivo; isto é, a prática realizada com plena consciência (e intensa concentração) com o fim de evitar ruídos indesejáveis e resultados negativos. Sem prática deliberada, sem atenção plena, propósito e sentido de direção, todo esforço nunca será suficiente.

Trata-se, em síntese, de um ponto crucial, porque a energia mal gastada em práticas que não estão bem dirigidas equivale a estar drenando o cérebro em atividades desnecessárias ou secundárias para nossos objetivos. Nas palavras do próprio Ericsson: “O trajeto até o desempenho verdadeiramente superior não é para os pusilânimes nem para os impacientes; o desenvolvimento de uma genuína preparação requer luta, sacrifício e um grande esforço pessoal, honrado e com frequência doloroso. Não há atalhos”. 

É verdade que sempre há algo de bem no pior mal e certa porção de mal no bem mais apreciado. Mas, em questão de estudo e aprendizado, deveríamos “cuidar de não perder a substância por agarrar-nos à sombra”. (Esopo, Fábulas)   

Sobre os autores
Atahualpa Fernandez

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

Marly Fernandez

Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Cognición y Evolución Humana pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Teoría del Derecho pela Universidad de Barcelona- UB (Espanha). Pós-doutorado (Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica) pelo Laboratório de Sistemática Humana- UIB (Espanha). Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB pelo Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog (Espanha). Membro do Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB) do Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB (Espanha).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Marly. Concurso público e a falácia dos atalhos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3942, 17 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27557. Acesso em: 23 dez. 2024.

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