4. OS EFEITOS DO CONCURSO NO TEMPO
Outra característica inerente ao concurso e demonstra a possível incompatibilidade da contratação direta como medida pós-concurso decorrente, especialmente se considerado o tempo de ocorrência do fato.
Em comentário ao inc. I do art. 13 da Lei nº 8.666/93, Marçal Justen Filho (2008, p. 164) ressalta que “todas expressões possuem, porém, um mesmo núcleo. Trata-se da previsão técnico-científica, teórica e antecipatória do desenvolvimento de uma tarefa futura”. Logo, a execução característica da contratação especializada é antecipatória do desenvolvimento de uma tarefa futura.
Essa questão particular é desenvolvida por Justen Filho (2008, p. 253) da seguinte forma:
Nas modalidades comuns (concorrência, tomada de preços e convite), a execução da prestação por parte do terceiro faz-se após a licitação. Os interessados formulam proposta e o vencedor será contratado para executar uma determinada prestação. No concurso, o interessado deverá apresentar (como regra) o trabalho artístico ou técnico já pronto e acabado. Não há seleção entre “propostas para futura execução”. (...) não cabe ao vencedor desenvolver, após o julgamento, alguma atividade de execução.
Ou seja, pelo exposto verifica-se que a situação de contratação direta decorrente de concurso é artificialmente “fabricada” pelo próprio procedimento seletivo, sem haver previsão legal expressa nesse sentido, uma vez que eventual contratação somente poderá ser subsidiada pela inviabilidade pura de competição, dada pela função normativa autônoma do caput do art. 25 da Lei nº 86.66/93 – condição altamente questionável considerando as razões de origem que orientam a inexigibilidade.
Contrario sensu, verifica-se que interpretação dada pela doutrina e jurisprudência não possui plena compatibilidade com o texto normativo, uma vez que o descritivo legal estabelece uma relação de causa-efeito do concurso, gerando a possibilidade de desenvolvimento posterior, que é ignorada pelos doutrinadores e pelas Cortes de Contas.
Do ponto de vista de atendimento ao interesse público, há necessidade de se ponderar as definições dadas ao concurso pela doutrina majoritária, pois, como se verifica no caso em apreço, o interesse público não se finaliza com a escolha do melhor anteprojeto de arquitetura. Portanto, não está satisfeito com o produto do concurso. Logo, o prêmio (ou remuneração) não se dá em razão de um produto pronto e acabado, mas sim em razão de uma concepção apta a ser desenvolvida.
A possibilidade de execução de serviço posterior foi levantada por Jacoby Fernandes (2008, p. 129), embora reconhecendo a posição da doutrina pátria, da seguinte maneira:
O assunto, contudo, merece maior reflexão, quando se discute a possibilidade de a Administração escolher, mediante concurso, a empresa ou profissional para a realização do serviço do seu interesse. Deve-se reconhecer tal possibilidade, embora aceitável como regra, a noção de que a execução do serviço é posterior ao edital e anterior ao julgamento.
Com efeito, o §1º do art. 13 da Lei nº 8.666/93 é claro em estabelecer que “os contratos para a prestação de serviços técnicos profissionais especializados deverão, preferencialmente, ser celebrados mediante a realização de concurso”.
Ou seja, o comando legal estabelece a condição da realização de concurso para que os contratos destinados à prestação de serviços técnicos profissionais especializados sejam celebrados, numa clara situação de causa-efeito de que o concurso originará um contrato para a prestação dos serviços particularizados. Somente haverá a consequência (contrato) se for realizado o concurso que o antecede.
Considerando a premissa de que a lei não inclui palavras inúteis, desprovidas de conteúdo normativo, não haveria sentido em estabelecer o contrato como ato decorrente do concurso, legalmente definido[5] como “todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada”, se o concurso se exaurisse com a entrega do prêmio (ou remuneração) e eventual transferência dos direitos patrimoniais estabelecidos pelo art. 11 da Lei nº 8.666/93, expressamente dispensado pelo §4º do art. 62 da mesma Lei.
Constata-se, em suma, pela definição clara da lei, que a interpretação doutrinária (que orienta a interpretação jurisprudencial atual) pode estar equivocada, uma vez que o comando legal estabelece que “os contratos para a prestação de serviços” se configura, indubitavelmente, como uma ação futura de execução decorrente do prélio licitatório realizado. Em outras palavras, o concurso premia a concepção do projeto, a produção artística, que será posteriormente desenvolvida pelo autor (serviço a ser prestado) para permitir a concretização do interesse público.
Essa constatação se coaduna com a definição técnica do projeto, que apresenta diversas atribuições e áreas de conhecimento, mas deve ser considerado integral, in totum, pois se referem à única obra, cujo planejamento se origina desde a demanda, passando pelo projeto e construção, chegando à sua operação e manutenção. Nesse sentido, a lição de Magalhães (2013, p. 6):
Como visto, as compras públicas de serviços de projeto criaram procedimentos que vieram a configurar um verdadeiro “fatiamento” das atividades projetuais.
O projeto deixou de ser uma unidade conceptiva e passou a ser composto por partes erroneamente consideradas autônomas, a serem agrupadas segundo a conveniência do construtor ou do contratante – como se faz em supermercado.
O parcelamento das atividades inerentes ao projeto, quando não presentes justificativas técnicas para sua consideração integral, é considerado obrigatório pela doutrina dominante e pela jurisprudência do Tribunal de Contas da União[6], notadamente em observância ao previsto pelo §1º do art. 23 da Lei nº 8.666/93.
Contudo, pode se considerar que há plena justificação técnica para a contratação integral do projeto, considerando que a concepção a ser seguida é una, indissociável, que não pode ser parcelada. Neste ponto, constata-se novo equívoco de interpretação do que é sujeito ao parcelamento e do que se constituem escalas e aspectos característicos de um processo único.
Essa condição é bem ilustrada por diversos autores renomados da área de projetos e arquitetura, na qual Sérgio Magalhães (GREGOTTI, 1975 apud MAGALHÃES, 2013, p. 7) ressalta:
[…] o projeto é elaborado em processo compositivo, complexo e assequencial, onde o percurso não é retilíneo, mas de paciente e contínua reelaboração.
Defende-se, portanto, uma simultaneidade de escalas, da maior à menor e vice-versa, em um sistema sem hierarquias, mas de permanentes ajustes entre síntese e análise, entre gênese e produto, entre partido e detalhe. A reelaboração constante do projeto ocorre desde a concepção da ideia ao longo da totalidade do processo de projetação.
Todavia, considerando a típica atribuição de fiscalização exercida pelo Poder Legislativo com o auxílio de seus Tribunais de Contas, o Administrador Público se vê limitado à adequada aplicação da lei em virtude de interpretações equivocadas das Cortes de Contas sobre o assunto, optando, normalmente, pela opção mais confortável e prevista de forma subsequente nas licitações das demais modalidades, por melhor técnica, técnica e preço ou menor preço, tal como relata Lucas Rocha Furtado (2013, pp. 184 e 185):
No caso de projeto arquitetônico, temos observado determinadas situações em que a Administração tem preferido adotar outras modalidades de licitação – concorrência, tomada de preços ou mesmo o convite – utilizando o critério da técnica e preço ou melhor técnica para julgar as propostas, nos termos do art. 46, caput, da Lei nº 8.666/93.
5. OS RISCOS DA CONTRATAÇÃO COM SEDE EM CONCURSO
A sistemática atual adotada, sem a criação do vínculo legal estabelecido obrigatoriamente pelo contrato, determina a ponderação dos riscos do impasse quanto ao valor e às condições de contratação eventual decorrente, uma vez que o vencedor do concurso não é obrigado a se submeter aos requisitos (inclusive de habilitação) exigidos pelo Poder Público, nem acordar com os valores propostos pela Administração. Essa situação gera extremo risco para a atividade administrativa, pois poderá condenar o processo de adequada produção do projeto que atenderá ao interesse público.
Mesmo nos casos em que a contratação direta do autor original possa entender-se admitida, a falta de concordância em relação ao preço poderá impossibilitar o adequado atendimento ao interesse público representado no projeto escolhido, uma vez que a proposta premiada não poderá ser utilizada pela Administração sem as alterações necessárias e autorizadas pelo seu conceptor.
Ressalta-se ainda que essa condição em relação ao preço é de observância obrigatória pela Administração, tanto sob o prisma legal com o comando inserto pelo inc. III do Parágrafo único do art. 26 da Lei nº 8.666/93, quanto pelo atendimento ao Princípio da Economicidade, consoante leciona Bonatto (2012, p. 83): “Ainda, faz-se necessário comprovar que o preço acertado está adequado ao mercado, de forma a validar o procedimento, isto é, a contratação deve demonstrar que atende ao Princípio da Economicidade”.
Além disso, algumas questões adicionais trazidas à análise do Administrador Público aumentam os riscos da adoção da modalidade e a insegurança subjetiva do procedimento, tais como ressaltados por Sobreira (2014, p. 136):
Apesar de importantes exemplos de concordância e sucesso, não se pode ignorar a parcela dos gestores públicos que ainda veem os concursos como um processo complexo, caracterizado pela perda do poder de decisão; ameaça à discricionariedade do gestor; ausência do diálogo no processo de desenvolvimento do projeto; e que temem a subjetividade do julgamento e as incertezas sobre a viabilidade técnica e orçamentária dos eventuais premiados.
Assim, verifica-se que a sistemática adotada decorrente da interpretação equivocada da lei determina uma situação de insegurança no procedimento, pois, comprovando-se a necessidade de contratação posterior do autor-vencedor, seja para desenvolvimento ou adequação dos projetos de arquitetura, o processo coloca a consecução de seus objetivos em risco e ao alvitre do particular.
6. A EXISTÊNCIA DE OBRIGATORIEDADE LEGAL
Algumas instituições defendem ainda a obrigatoriedade legal para a adoção do concurso como modalidade licitatória adequada para contratação dos projetos de arquitetura com base na aplicabilidade do disposto pelo art. 2º da Lei nº 125/1935, que assim estabelece:
Art. 5º Nenhum edifício público de grande proporções, será construido sem prévio concurso para escolha do projeto respectivo.
No concurso tomarão parte sómente profissionaes habilitados legalmente. (redação original)
Embora não se registre a revogação expressa do dispositivo legal, verifica-se a sua perda de eficácia.
O Tribunal de Contas da União, nos termos do Acórdão nº 2.923/2010-Plenário, remeteu a avaliação da regularidade do procedimento analisado ao cumprimento de requisitos expressos da Lei nº 125/1935, especialmente no que concerne aos artigos 1º a 4º, indicando a validade da eficácia da norma legal em relação específica a esses requisitos, uma vez que não foi lançada norma posterior que versasse sobre o mesmo assunto.
Todavia, em relação ao conteúdo material do art. 5º da Lei nº 125/1935, verifica-se que não subsiste mais condição de considerar válida sua aplicabilidade, notadamente em razão da edição da Lei nº 8.220, de 4 de setembro de 1991, que disciplinou a questão da exigência do concurso para a seleção de projeto arquitetônico.
Ou seja, pela interpretação sistemática do ordenamento, constata-se que o conteúdo disposto pelo art. 5º da Lei nº 125/1935 foi absorvido pela norma posterior (Lei nº 8.220/1991), que conferiu a forma de execução do concurso de acordo com os ditames constitucionais decorrentes do advento da Carta Magna de 1988, não mais subsistindo a validade do comando normativo anterior.
Já quanto às novas regras estabelecidas pelo escopo da Lei nº 8.220/1991, também se verifica sua inaplicabilidade com a revogação expressa determinada pelo art. 126 da Lei nº 8.666/93, ficando a matéria do concurso adstrita às definições constantes do §4º do art. 22 e do §1º do art. 13, ambos do Estatuto das Licitações, além de alguns dispositivos esparsos na mesma lei.
Dessa forma, a escolha do concurso como modalidade licitatória para seleção dos objetos aplicáveis se reveste da discricionariedade do Administrador, como leciona Jessé Torres Pereira Júnior (2007, p. 183): “toda norma instituidora de opção preferencial para a Administração abre, ao mesmo tempo, espaço para que o preencha a autoridade com ato de matriz predominantemente discricionário”.
Logo, do ponto de vista legal, conclui-se que não há obrigatoriedade do Administrador Público em adotar a modalidade de concurso para a seleção de projetos de arquitetura para as obras públicas.
7. DOS DIREITOS AUTORAIS E RESPONSABILIDADE TÉCNICA
Outro ponto de argumentação da impossibilidade de cisão do projeto de arquitetura escolhido mediante concurso refere-se à questão dos direitos autorais, previsto pelo inc. X do art. 7º e pelo art. 26, ambos da Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e de responsabilidade técnica.
Quanto à responsabilidade técnica, as diversas nuanças e particularidades de normatização técnica e utilização das metodologias adequadas a cada caso permitem a avaliação pericial objetiva para a caracterização da responsabilidade sobre determinado fato ou ação, estando expressamente descrita pela OT-IBR 003/2011, emitida pelo Instituto Brasileiro de Auditoria de Obras Públicas – IBRAOP, da seguinte forma:
4.4 A responsabilidade por defeitos precoces nas obras atinge também os projetistas ou empresas de consultoria, por falhas ou omissões nos projetos, ainda que os mesmos tenham sido recebidos e aprovados pela Administração Pública.
Já quanto aos direitos autorais, a situação é diferente.
Segundo Magalhães (2013, p. 6), o ato de projetar não se limita à concepção, pois atinge todo o processo de elaboração, adequação, revisão e acompanhamento, até que a obra seja concluída, ressaltando que:
O que faz a mágica da autoria de um projeto é que, ao iniciá-lo, o projetista tem disponível todas as possibilidades de escolher. Ele pode fazer todas as formas, utilizar todos os materiais, desenhar todos os sonhos.
Mas o projeto consiste, justamente, em abandonar milhões de possibilidades e optar por apenas uma – aquela que a sua sensibilidade, a sua técnica e o seu conhecimento concebem.
Projetar é escolher. É autoral.
A questão assume especial relevância ao avaliar-se a situação dos direitos autorais do vencedor do concurso de arquitetura, pois a manutenção, inalienável e irrenunciável, do direito moral sobre a obra configura um espectro de análise extremamente subjetiva, que atinge o foro íntimo, personalíssimo, do autor, embora o art. 111 da Lei nº 8.666/93 seja clara no sentido de que os direitos disponíveis (dentre eles o patrimonial) decorrentes da autoria devem ser cedidos à Administração.
Nesse ponto se verifica que a Resolução nº 67 do Conselho de Arquitetura e Urbanismo visa estabelecer os parâmetros de defesa dos direitos autorais em relação aos projetos de arquitetura. Embora se possa entender que a norma do Conselho de Arquitetura e Urbanismo padece de vício de legalidade, por adentrar em campo que extrapola a competência do conselho e pré-determina ao Poder Judiciário os parâmetros de violação do direito autoral e suas consequências, há necessidade de que o dano moral decorrente da eventual violação do direito autoral seja apurado no caso concreto e individual, uma vez que se trata de apuração de índole subjetiva.
A alternativa seria permitir ao projetista revisor a possibilidade de realizar alterações significativas no projeto, desde que tecnicamente justificáveis, utilizando-se do disposto pelo art. 16 da Lei nº 12.378, de 31 de dezembro de 2010, que assim estabelece:
Art. 16. Alterações em trabalho de autoria de arquiteto e urbanista, tanto em projeto como em obra dele resultante, somente poderão ser feitas mediante consentimento por escrito da pessoa natural titular dos direitos autorais, salvo pactuação em contrário.
Todavia, permanece a possibilidade de repúdio do autor originário em relação às alterações do seu projeto como conteúdo inafastável de apreciação pelo Judiciário, mas que deverá ser tratado como caso excepcional, considerando-se o grau de subjetividade envolvido.
Constata-se, assim, que a proteção dos direitos autorais do projetista original é garantida restritivamente quanto às modificações de sua obra, oportunidade em que as adequações necessárias poderão, excepcional e justificadamente, ser contratadas diretamente pela Administração, como aponta Bonatto (2012, pp. 82 e 83): “Assim, a razão da escolha do executor, neste caso, fica justificada, posto que não há possibilidade de competição frente ao direito autoral do profissional que elaborou o projeto inicial”.