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A adoção do concurso para a seleção e desenvolvimento de projeto de arquitetura para obras públicas

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08/04/2014 às 15:20
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Analisa-se a aplicabilidade do concurso para a seleção de projetos de arquitetura e engenharia, confrontando os conceitos e diretrizes estabelecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro com a prática executada pelos gestores públicos e com a jurisprudência aplicável.

Resumo: Este artigo busca desenvolver a análise crítica da aplicabilidade da modalidade licitatória de concurso para a seleção de projetos de arquitetura e engenharia, confrontando os conceitos e diretrizes estabelecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro com a prática executada pelos gestores públicos e com a jurisprudência aplicável.

Palavras-chave: Licitação; Contrato Administrativo; Concurso; Projeto de Arquitetura.


1. INTRODUÇÃO

Verifica-se que a qualidade das obras públicas está diretamente relacionada com a qualidade dos projetos apresentados. Segundo estudos desenvolvidos no Tribunal de Contas da União (CABRAL, 2002, pp. 125 e 126): “é notório que a má qualidade das obras públicas está diretamente relacionada à baixa qualidade dos projetos básicos”, onde “o resultado deste quadro é o não atendimento ao interesse público, na medida em que os recursos públicos são aplicados em obras de baixa qualidade técnica, que, em futuro próximo, precisarão ser recuperadas ou refeitas”.

A gênese da má qualidade das obras públicas, portanto, está na má qualidade dos projetos apresentados, que são contratados das mais diversas formas pela Administração Pública, nas palavras[1] do Ministro-Chefe da Controladoria Geral da União, Jorge Hage, durante o 6º Encontro de Lideranças do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (ZAMPIER, 2011): “Aí está o embrião dos futuros problemas de sobrepreço, de jogo de planilha, de a empresa pleitear aditivos além dos limites legais. Tudo vem da falta de ter um bom projeto”.

Seja por contratação direta, seja por procedimento licitatório, muitas contratações para a confecção de projetos de arquitetura e engenharia acabam não produzindo documentos satisfatórios a orientar e executar uma futura obra pública, recaindo em graves prejuízos ao Erário e ao interesse público, normalmente em razão da incipiência dos profissionais prestadores do serviço.

Essa situação levanta o questionamento sobre a possibilidade da decisão de escolha do procedimento de seleção do projetista interferir diretamente na qualidade do projeto decorrente, com a obtenção da proposta mais vantajosa à Administração.

Configurado como serviço de natureza predominantemente intelectual, o ordenamento jurídico no Brasil determina que seja adotada preferencialmente a modalidade de concurso, seguida das demais modalidades do tipo técnica ou técnica e preço, e, caso a questão não se revista de maior complexidade intelectual ou técnica, será realizada pelo menor preço.

Cumpre ressaltar ainda que a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, permite a contratação direta dos serviços técnicos especializados, incluindo os projetos, conforme rol[2] descrito pelo seu art. 13, desde que atendidos os demais requisitos configuradores da hipótese e com a sustentação no art. 25 da mesma Lei. Todavia, a contratação direta é a exceção e somente pode ser adotada desde que cumpridos todos os restritivos legais.

Assim, de forma a garantir a eficácia do comando previsto pelo inc. XXI do art. 37 da Constituição da República, impõe-se a aplicação prioritária das modalidades licitatórias previstas pela lei, dentre as quais foi eleito o concurso como preferencial para a prestação de serviços técnicos especializados (§1º do art. 13 da Lei nº 8.666/93).

Embora previsto anteriormente como obrigatório desde a edição da Lei nº 125, de 3 de dezembro de 1935, o concurso, como modalidade licitatória, tem sido pouco desenvolvido no âmbito jurisprudencial e doutrinário, caracterizados ainda pela equivocada interpretação de seu conteúdo e aplicação.

A recente revogação da Súmula nº 157[3] do Tribunal de Contas da União acirrou a discussão sobre o assunto, delimitando novas restrições e necessidades para melhor atendimento do interesse público.

Este artigo busca, dessa forma, colaborar com a análise crítica da aplicabilidade do concurso como instrumento de seleção para projetos de arquitetura destinados às obras públicas, especialmente em razão da representatividade da profissão de arquiteto e urbanista desde a criação do Conselho de Arquitetura e Urbanismo, e das discussões atuais sobre a questão.


2. O CONCURSO

A utilização do concurso como modalidade licitatória para a contratação de projetos de arquitetura tem suscitado diversas interpretações e dúvidas quanto aos procedimentos autorizados pela legislação para sua exequibilidade prática.

Como objeto de seleção por concurso, a arquitetura apresenta características distintivas das demais ordens de aplicação dessa modalidade de seleção. Como ressaltado por Veloso (2011, p. 94), a ideia transcende o mero projeto, interferindo na imagem, cultura e representatividade de uma sociedade:

E, no entanto, para muitos, como o arquiteto Lúcio Costa, é a qualidade estética que distingue a arquitetura de uma construção. Finalmente, caberia aqui destacar a crescente preocupação com a qualidade tectônica do edifício projetado, conceito que vai ao encontro da consistência construtiva assinalada por Piñon, e resgata a noção grega de tekton (carpinteiro ou construtor), que reúne tanto técnica como estética, enfim, a “poética da construção”, em seu sentido primeiro (arché) e indissociável, e da qual derivam os termos arquiteto (primeiro ou principal construtor, o que é facilmente associado à idéia de “deus”) e Arquitetura, como “arte de construir”.

Embora sua previsão legal, verifica-se que a ausência de regulamentação e as incertezas de aplicação prejudicam a utilização da modalidade preferencial de concurso dada pela lei em relação aos serviços específicos relacionados, resultando na situação exposta por Sobreira (2009):

No Brasil, apesar da tradição de sua arquitetura, ainda não existe uma política consolidada sobre a idealização do espaço público, que seja baseada no concurso como instrumento de promoção da qualidade arquitetônica. (...) mesmo que em alguns casos o concurso seja previsto em lei como um “instrumento preferencial” de contratação pública, tal preferência não se concretiza em prática.

O concurso como modalidade licitatória está previsto pelo inc. IV do art. 22 da Lei nº 8.666/1993, com definição dada pelo §4º do mesmo dispositivo legal, nos seguintes termos:

Art. 22. (...)

§ 4º  Concurso é a modalidade de licitação entre quaisquer interessados para escolha de trabalho técnico, científico ou artístico, mediante a instituição de prêmios ou remuneração aos vencedores, conforme critérios constantes de edital publicado na imprensa oficial com antecedência mínima de 45 (quarenta e cinco) dias.

Em um recorte de aplicabilidade, constata-se que há possibilidade de utilização do concurso para a seleção de projetos de arquitetura, caracterizado pelo processo pelo qual uma obra de arquitetura é concebida. Contudo a questão que se apresenta é como poderia ser realizado e quais seriam os seus limites.

O Instituto dos Arquitetos do Brasil – IAB, por seu presidente Sérgio Magalhães (2013, p. 8), defende que “cada obra pública precisa ser considerada como um instrumento para qualificar o ambiente urbano – e o concurso de projeto, escolhendo a melhor proposta, é a sua garantia”.

Inicialmente cumpre diferenciar o concurso público previsto pelo inc. II do art. 37 da Constituição da República da modalidade licitatória concurso, pois se caracterizam de natureza e finalidades diversas e, por muitas vezes, tem gerado confusão entre os operadores do direito, inclusive em normas internas, como ilustra o seguinte julgado do Tribunal Regional Federal da 3ª Região:

ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. SERVIDORES CIVIS. COMPETENCIA DA PRIMEIRA SEÇÃO. I -EMBORA O PAR. 2, ITEM II, DO ARTIGO 10 DO REGIMENTO INTERNO DO TRIBUNAL EXPRESSE O TERMO 'CONCURSO PÚBLICO', NÃO SE TRATA DAQUELE DESTINADO AO PREENCHIMENTO DE VAGAS NA ADMINISTRAÇÃO PUBLICA E SIM DO REALIZADO COM FINS LICITATORIOS. II - DECLINA-SE DA COMPETENCIA, REMETENDO-SE OS AUTOS A E. VICE-PRESIDENCIA, PARA REDISTRIBUIÇÃO A UMA DAS TURMAS DA PRIMEIRA SEÇÃO. (REOMS 90030162140, DESEMBARGADOR FEDERAL SILVEIRA BUENO, TRF3 - PRIMEIRA TURMA, DOJ DATA: 12.08.1991).

O concurso de interesse do estudo não é o destinado ao provimento de cargos públicos, regulamentado pela Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, mas a modalidade licitatória estabelecida em atendimento ao disposto pelo inc. XXI do art. 37 da Carta Magna que, conforme Jorge Ulisses Jacoby Fernandes (2008, p. 126), “pretende um resultado concreto do trabalho predominantemente intelectual, técnico, científico ou artístico”.

As incorreções interpretativas quanto ao concurso não se limitam ao seu fundamento legal. Diante da baixa discussão e aplicação da modalidade de concurso para a seleção de projetos de arquitetura, constata-se pouca produção literária e jurisprudencial sobre o assunto, sendo as existentes, por mais das vezes, equivocadas e conflitantes. É o que se depreende da manifestação de José Cretella Júnior (2006):

A Legislação Federal é bem pobre a respeito do concurso, limitando-se, o primeiro diploma a abordar o tema, o Decreto-lei nº 200/67 a admitir sua realização para projetos, com estipulação de prêmios, obedecidas as condições que se fixarem em seu regulamento (art. 144). A Lei nº 5.194/66, ao disciplinar o exercício das profissões de Engenheiro, Arquiteto e Agrônomo, admite-o também, e proíbe a concorrência de preços para trabalhos profissionais (art. 83).

Duas impropriedades principais ressaltam da manifestação do autor. A primeira, referente à inauguração da modalidade de concurso para projetos, na qual se comprova que o procedimento seletivo específico foi previsto desde a edição da Lei nº 125/1935 com caráter obrigatório para a realização de obras públicas. Inclusive, a modalidade de concurso, já em março de 1957, possui notório exemplo de aplicação indicada por Lucas Rocha Furtado (2013, p. 184) da seguinte forma:

 A fim de que se possa melhor entender essa modalidade de licitação, podemos citar o processo para a escolha do projeto arquitetônico de Brasília, vencido por Lúcio Costa, como exemplo de concurso realizado pelo Governo Federal.

A segunda impropriedade se refere à vedação conferida pelo art. 83 da Lei nº 5.194, de 24 de dezembro de 1966, proibição revogada expressamente pelo art. 126 da Lei nº 8.666/93.

Da mesma forma se observa que, embora as valorosas contribuições do saudoso Hely Lopes Meirelles (2010) para a formação do Direito Administrativo Brasileiro, muitas das visões defendidas acerca dos procedimentos licitatórios, em considerável parte, não mais prosperam. Em relação ao concurso não é diferente, pois o mestre Meirelles (2010, p. 90) assim se posiciona:

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O concurso exaure-se com a classificação dos trabalhos e o pagamento do prêmio ou da remuneração, não conferindo qualquer direito a contrato com a Administração. A execução do projeto escolhido será objeto de nova licitação, já agora sob a modalidade de concorrência, tomada de preços ou convite, da qual não poderá participar seu autor, salvo como consultor ou técnico, nos termos do art. 9º, §1º.

Conforme se discutirá adiante, essa ortodoxia do posicionamento de Meirelles não pode ser tida, atualmente, de maneira absoluta. A dinâmica e evolução dos procedimentos licitatórios com o aperfeiçoamento das técnicas e mecanismos de controle interno e externo, além do controle social e o desenvolvimento do acesso à informação com a internet, acabam por exaurir o conteúdo do posicionamento doutrinário de diversos autores.

Existem ainda diferenças consideráveis em relação aos procedimentos definidos em âmbito internacional, tanto sob o prisma conceitual quanto de aplicabilidade da modalidade licitatória concurso.

Destarte, há necessidade imperativa de se diferenciar a modalidade licitatória de concurso com a sistemática de concurso utilizada no estudo comparado, pois os procedimentos adotados no exterior, especialmente em países do bloco europeu, em muito se afastam do modelo de contratação pública adotado pela Lei nº 8.666/93 e do comando insculpido no inc. XXI do art. 37 da Constituição da República Federativa do Brasil.

Conforme Sobreira (2014, p. 137), a seleção por concurso de projetos adotada pela União Internacional dos Arquitetos apresenta características e requisitos que se contrapõem ao sistema adotado no Brasil, tal como a obrigatoriedade de contratação do “projeto premiado para desenvolvimento do projeto executivo”. Segundo o mesmo autor, outras características peculiares são adotadas no âmbito da Comunidade Européia (Directiva 2004/18/CE) e Países Escandinavos.

Verifica-se, ainda, que não há consenso quanto à caracterização da aplicação da modalidade de concurso para a seleção do melhor projeto de arquitetura, pois, como enfatiza Sobreira (2014, p.138), “o Royal Architectural Institute of Canada (Raic) (INSTITUT ..., 2009a) não considera o concurso uma forma preferencial de contratação de serviços de arquitetura, e sim uma modalidade, entre outras, de contratação”, condição que se mostra obrigatória na França para projetos acima de determinado valor previsto no Código de Obras Públicas da França (FRANÇA, 2006). Embora ateste a variedade de modalidades para seleção de projeto de arquitetura, o RAIC elenca algumas vantagens técnicas do concurso.

Os principais quesitos em relação à configuração do sistema de seleção de projetos por concurso já foi analisado por Sobreira (2014, p. 134), recaindo-se nas seguintes conclusões preliminares:

  • Existem na legislação elementos fundamentais que destacam a preferência ao concurso na contratação e projetos e os princípios básicos a serem seguidos na elaboração de regulamentos.
  • A preferência sugerida na lei (por não se tratar de uma obrigatoriedade) não se traduz em uma prática cotidiana e o resultado é o número reduzido de concursos.
  • Apesar das diretrizes básicas apresentadas, percebe-se a necessidade de regulamentação dos concursos, a fim de evitar a diversidade de formatos e procedimentos.
  • Apesar de eventuais lacunas e limitações, a Lei nº 8.666/1993 deve ser considerada uma referência positiva para uma eventual proposta de regulamentação de procedimentos.
  • O que se observa é que a não obrigatoriedade e principalmente a ausência de regulamentação do procedimento fazem dos concursos uma modalidade pouco usual na administração pública brasileira e eventualmente criticada por alguns segmentos da gestão pública e da profissão, apesar das vantagens e dos atrativos potenciais do processo e do reconhecido esforço de diversas instituições, particularmente o Instituto de Arquitetos do Brasil, na promoção desses eventos.

Verifica-se ainda que os procedimentos adotados para a realização dos concursos públicos de seleção de projetos de arquitetura não se limitam aos aspectos administrativos de sua condução e escolha, pois atingem o direito subjetivo dos demais candidatos não “eleitos” pela banca, uma vez que os examinadores concentram seus esforços em descrever os motivos da escolha dos vencedores, mas olvidam-se em detalhar os fatores de não qualificação dos vencidos, caracterizada por Veloso (2011, p. 96) da seguinte maneira:

Esta é talvez a parte mais obscura do processo de avaliação posto que os pareceres esclarecem muito mais sobre os critérios de eleição dos primeiros colocados (a maioria por consenso ou, em alguns casos, por maioria de votos), deixando dúvidas quanto aos quesitos que levaram à exclusão. Enfim, a ênfase é no acerto dos vencedores. Aos demais, restam apenas incertezas.

Em suma, em que pese à previsão do concurso para a seleção de projetos de arquitetura, constata-se que os procedimentos adotados para sua execução, as disfunções na aplicação e a ausência de regulamentação específica acabam dificultando a sua ampla utilização no Brasil.


3. O DESENVOLVIMENTO DO PROJETO DE ARQUITETURA DECORRENTE DO CONCURSO

A defesa do desenvolvimento do projeto de arquitetura pelo próprio autor vencedor do concurso, nas manifestações das instituições de classe dos arquitetos e urbanistas, tais como o Instituto dos Arquitetos do Brasil e o Conselho de Arquitetura e Urbanismo, se sustenta, principalmente, na alegação da impossibilidade de fracionamento do projeto concebido e na questão de direitos autorais, sobre o prisma moral, bem como da responsabilidade técnica.

Verifica-se também que lavra certa confusão acerca das restrições impostas pela Lei nº 8.666/93 sobre a limitação da participação do autor do anteprojeto na futura licitação de desenvolvimentos arquitetônico, no escopo executivo de detalhamento. Pela declaração de órgãos de classe da arquitetura, há considerável dúvida acerca das determinações legais sobre o assunto.

Em recente manifestação publicada no sítio da internet do Instituto dos Arquitetos do Brasil - Departamento Nacional (IAB/DN, 2014), discutindo o teor do Edital de Concurso AA nº 01/2014-BNDES publicado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, constata-se a seguinte alegação:

O concurso do BNDES para a construção do prédio anexo, no Rio, está dando o que falar. Isso porque o arquiteto vencedor não poderá acompanhar o desenvolvimento do projeto, e ainda terá de ceder os direitos autorais para o banco.

Duas principais impropriedades declaradas, consoante será desenvolvido: a primeira, referente à impossibilidade do arquiteto vencedor (autor do anteprojeto) acompanhar o desenvolvimento posterior; a segunda, acerca da indução de erro quanto à cessão de direitos autorais à entidade promotora.

Sob uma primeira análise, do ponto de vista concreto, não se verifica qualquer restrição no edital publicado pelo BNDES para que o vencedor do concurso participe do processo de acompanhamento do seu desenvolvimento em nível executivo. Pelo contrário, dispõe expressamente o respectivo edital (BNDES, 2014):

10.5 O BNDES, a seu exclusivo critério, poderá contratar o vencedor do Concurso para realizar as adequações necessárias ao desenvolvimento dos demais projetos decorrentes do anteprojeto vencedor, visando a garantir a manutenção da concepção arquitetônica original e a harmonização e perfeita integração entre os projetos.

Essa mesma situação é ilustrada por Hamilton Bonatto (2012, p. 81), onde ressalta que “um exemplo interessante e recorrente para quem trabalha com licitações de obras públicas e serviços de engenharia é o da contratação de profissional para readequar projeto de sua autoria”.

Contudo, convém destinar extrema prudência nessa condição, pois deverá estar plenamente configurada a necessidade da adequação, de maneira restrita às definições e especificações já existentes no projeto original, de forma a evitar que o Administrador se utilize dessa situação como subterfúgio ao procedimento licitatório para o desenvolvimento dos projetos.

Aliás, um dos fatos que acirrou a discussão sobre a utilização do concurso como modalidade licitatória para a seleção de projeto de arquitetura destinado à obra pública é justamente a publicação do edital de concurso pelo BNDES, especialmente em razão de dois pontos principais: a intenção de atendimento das diretrizes emanadas pelo Tribunal de Contas da União na forma do Acórdão nº 3.468/2012 – Plenário, que revogou a Súmula 157, e do Acórdão nº 3.361/2011 – Segunda Câmara; e a representatividade econômica do prêmio do concurso, estabelecido em R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais) ao vencedor.

A limitação de contratação do autor do projeto básico previsto pelo inc. I do art. 9º da Lei nº 8.666/93 não se confunde com qualquer limitação para contratação do autor de anteprojeto selecionado por concurso. Determina o referido dispositivo legal:

Art. 9º Não poderá participar, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários:

I - o autor do projeto, básico ou executivo, pessoa física ou jurídica;

Constata-se que a limitação se aplica à contratação do autor do projeto básico, ou executivo, dotado das características de detalhamento suficientes à execução da obra nos termos dos incisos IX e X do art. 6º da Lei nº 8.666/93, na fase subsequente de contratação de efeitos concretos.

A delimitação legal se justifica no sentido de evitar que o autor do projeto básico ou executivo - como elemento necessário e orientador da licitação nos termos do inc. I do §2º do art. 7º do Estatuto das Licitações - possa incluir requisitos que o beneficiarão na fase subsequente de execução, restringindo a competitividade e prejudicando o interesse público preconizado pelo inc. XXI do art. 37 da Constituição da República.

Todavia, verifica-se que a própria lei não desvinculou a possibilidade de acompanhamento da execução do projeto por seu autor, limitando somente a questão de sua participação na execução da obra vinculada, pois o §1º do art. 9º do Estatuto das Licitações:

Art. 9º (...)

§ 1º É permitida a participação do autor do projeto ou da empresa a que se refere o inciso II deste artigo, na licitação de obra ou serviço, ou na execução, como consultor ou técnico, nas funções de fiscalização, supervisão ou gerenciamento, exclusivamente a serviço da Administração interessada.

O anteprojeto, por sua limitação técnica quanto ao detalhamento inerente ao projeto básico, dessa forma, não configura a possibilidade de limitação exposta pelo inc. I do art. 9º da Lei nº 8.666/93.

No próprio exemplo descrito pelo Edital de Concurso AA nº 01/2014-BNDES, embora o corpo do instrumento convocatório determine a possibilidade de contratação do vencedor do concurso, a entidade promotora fez publicar, no dia 23 de março de 2014, um documento denominado “Fato Relevante[4]”, no qual é descrita a confirmação da futura contratação direta, por inexigibilidade de licitação, nos seguintes termos:

Esses valores, buscados pelo BNDES ao optar pela modalidade concurso, serão garantidos com a participação do Arquiteto vencedor, que será contratado por inexigibilidade de licitação, desde que preenchidos os requisitos legais, para realizar as adequações necessárias ao desenvolvimento dos demais projetos decorrentes do anteprojeto vencedor. (grifou-se).

Por outro lado, ao se verificar a grande probabilidade de que o autor vencedor do concurso seja contratado em decorrência de sua vitória na seleção anterior, constatam-se nuanças de ilegalidade do procedimento já apontadas pelo Tribunal de Contas da União nos termos do Acórdão nº 3.361/2011 – Segunda Câmara, onde o Ministro-Relator, Raimundo Carreiro, assim entendeu:

13.    A exceção só poderia ocorrer se a Administração, ao invés de realizar o certame, justificasse a inexigibilidade com demonstração inequívoca de que somente o escritório efetivamente contratado era capaz de executar o projeto escolhido.

14.    Essa demonstração, no entanto, jamais foi feita, pois, como dito acima, a Administração partiu da premissa que somente o vencedor do concurso poderia executar seu próprio projeto, e é aí que repousa a irregularidade.

A contratação direta subsequente do vencedor do concurso para o desenvolvimento do projeto de arquitetura e, no mínimo, a coordenação dos complementares, não apresenta sustentação legal válida, nos termos do julgado mencionado, pois, em nenhum momento, a lei de regência estabelece essa possibilidade ao Administrador Público.

Destarte, as alternativas para a execução promovem a criatividade discricionária do Administrador, que justifica a contratação do vencedor do concurso de diversas formas.

Uma dessas formas é a própria contratação como “prêmio” do concurso, que contraria toda a doutrina conceitual de caracterização do concurso, pois produto premiado ainda estará por ser desenvolvido.

Outra é a contratação por inexigibilidade de licitação fundada no inc. II do art. 25 c/c o inc. I do art. 13, ambos da Lei nº 8.666/93, apresentando a recente variação de que a contratação se daria para a adaptação ou desenvolvimento do anteprojeto de arquitetura em razão da elaboração dos projetos complementares.

A inexigibilidade de licitação mencionada não se justifica pelos dois principais prismas de análise, considerados por Joel de Menezes Niebuhr (2008, p. 56) como pressupostos objetivos e subjetivos.

Sob o primeiro, não há inviabilidade de competição concretamente configurada, uma vez que, indubitavelmente, não é somente o vencedor do concurso que terá condições de atender ao interesse público buscado, ou, em outras palavras, a escolha do vencedor em concurso não representa a vinculação da Administração em desenvolver o anteprojeto apresentado. Nas palavras de Niebuhr (2008, p. 56), “não basta que o profissional seja reputado notório especialista, porque, antes de levá-lo em consideração, é essencial que o serviço visado requeira os préstimos de alguém assim qualificado”.

O segundo se refere à especialização. Não é porque um concorrente venceu um concurso onde foi selecionada a melhor produção que implica, necessariamente, na especialização para o projeto e alta aptidão para desenvolver as demais fases da proposta, pois essa questão não foi aferida durante a seleção do concurso.

Ou seja, o concurso pode selecionar um autor do anteprojeto altamente qualificado para concepção arquitetônica, mas pode não dispor de qualificação técnica necessária ao desenvolvimento da proposta até o nível executivo, inclusive com a compatibilização de interferências dos projetos complementares.

A especialização, pressuposto de ordem subjetiva, segundo Niebuhr (2008, p. 56) é “pertinente às qualidades do profissional a ser contratado, que deve demonstrar experiência, estudos aprofundados, trabalhos científicos, publicações, cursos de pós-graduação, etc.”. Assim, pela lição apresentada, comprova-se que não há qualquer requisito exigido nesses termos para o vencedor do concurso ser contratado.

A própria ideia condutora do concurso se contrapõe à especialização exigida na forma da lei. Como explicita Sobreira (2014, p. 131), “os concursos são utilizados quando a escolha da melhor ideia se sobrepõe à escolha do profissional com mais experiência ou notoriedade” e, assim, não há como justificar a contração calcada em quesito que se mostra superado pela própria modalidade licitatória escolhida para a seleção.

Conforme leciona Marçal Justen Filho (2008, p. 162) sobre o tema, “a Lei não se satisfez em qualificar os serviços como “técnicos” [...] a Lei refere-se a serviços técnicos “profissionais especializados”, onde, desenvolvendo a questão, o autor ilustra que “trata-se de um serviço técnico. Mas, além de técnico, é profissional. E, além de profissional, é especializado. Não basta uma habilitação genérica para o desempenho dessa qualidade de serviços”. Logo, comprova-se a hipótese de que a vitória no concurso não proporciona o grau de especialização exigido para a contratação direta, pois se configura mero pressuposto de direito autoral e responsabilidade técnica, a ser apurada no caso em concreto.

Sobre o requisito de especialização, Justen Filho (2008, p. 162) ainda reforça que:

A especialização significa a capacitação para o exercício de uma atividade com habilidades que não estão disponíveis para qualquer profissional. A especialização identifica uma capacitação maior do que a usual e comum, envolvendo uma parcela definida e delimitada do conhecimento humano. A especialização é produzida pelo domínio de uma área restrita, com aprofundamento que ultrapassa o conhecimento normal. O especialista é aquele prestador de serviço técnico profissional que, ademais, dispõe de uma capacitação diferenciadora, que a ele permite o atendimento de modo mais perfeito e satisfatório às necessidades relevantes.

Contudo, convém registrar-se uma ressalva quanto à possibilidade de contratação direta pós-concurso, caracterizada pela estrita necessidade de adequação dos projetos já apresentados (e não a sua complementaridade), notadamente em razão da proteção dos direitos autorais no que se refere a aspecto moral, consoante será tratado adiante.

Hamilton Bonatto (2012, p. 82) adianta a questão da seguinte maneira:

Está claro que perante o direito autoral que protege o profissional que elaborou o projeto inicial, não há alternativa para a Administração Pública, a não ser contratar este mesmo profissional, autor do projeto original, para a elaboração das alterações necessárias em seu próprio trabalho, tornando a licitação inexigível.

Em suma, verifica-se que, segundo o entendimento jurisprudencial e da doutrina, o sistema adotado pela lei nº 8666/93 não prevê a possibilidade de destinação da contratação direta como prêmio resultante de concurso, nem a contratação direta do vencedor da seleção para desenvolvimento das etapas subsequentes ou para os projetos complementares.

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Sobre o autor
Cleverson Lautert Cruz

Gerente-Executivo de Segurança Institucional do Ministério Público do Trabalho. ex-Diretor-Geral Adjunto do Ministério Público do Trabalho. Ex-Assessor de Controle Interno do Ministério Público do Trabalho. Ex-Assessor Jurídico da Procuradoria-Geral do Trabalho. Graduado em Administração pela Universidade de Brasília e em Direito pela Universidade Paulista. Pós-graduado em Direito Público e em Administração Pública.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LAUTERT CRUZ, Cleverson. A adoção do concurso para a seleção e desenvolvimento de projeto de arquitetura para obras públicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3933, 8 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27574. Acesso em: 18 abr. 2024.

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