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Dolo eventual nos acidentes de trânsito

Agenda 01/03/2002 às 00:00

"O Tribunal é o coração do advogado,

martírio e delicia de sua vida."

CALAMANDREI

SUMÁRIO: 1. Generalidades. 2. Distinção entre culpa consciente e dolo eventual. 3. Elemento subjetivo do ébrio ao volante e do participante de "rachas". 4. Conclusão.


1.Generalidades.

Os números avassaladores da violência no trânsito brasileiro fazem com que a sociedade exija maior punição à motoristas que dão causa a acidentes. Estatísticas e imagens, cada vez mais chocantes, contribuem para fomentar o desejo de vingança, tornando ensurdecedor o clamor popular. Diga-se de passagem que reportagens sobre este tema são um "prato cheio" para pseudo-jornalistas que infestam a mídia brasileira.

Uma solução encontrada por diversos tribunais pátrios para satisfazer aos anseios da população é a aplicação da figura do dolo eventual aos crimes praticados por motoristas embriagados. Segundo esta teoria, o motorista, ao assumir a direção de um automotor sob o efeito de álcool ou qualquer outra substância entorpecente, não estaria preocupado com a ocorrência ou não de um evento danoso a outrem. O mesmo ocorreria com participantes de "rachas" - abomináveis apostas automobilísticas, em plena via pública. Assim, motoristas que causassem acidentes fatais, nestas condições, seriam julgados pelo tribunal do júri, com a possibilidade de aplicação da mesma pena destinada a um homicida comum.

Sustentam os defensores desta tese que estes condutores realmente não se importa em causar um acidente. Seria o famoso "dane-se": se eu atropelar alguém, dane-se!

Busca-se, assim, ao mesmo tempo punir o responsável por homicídio em via pública e, através da imposição de temor aos motoristas, fazer com que estes obedeçam às normas de trânsito, através da ameaça de maior punição.

Trata-se de questão que levou a grave embate doutrinário e jurisprudencial. Mas, embora decisões neste sentido sejam cada vez mais freqüentes, os números continuam a subir e os motoristas imprudentes continuam a matar.


2. Distinção entre culpa consciente e dolo eventual

Faz-se necessário, antes de prosseguir a discussão sobre o acerto ou não destas decisões, distinguir-se as figuras mais aplicadas nestes casos: a culpa consciente e do dolo eventual.

A primeira hipótese ocorre quando o agente, embora prevendo o resultado (ou devendo prever), continua a agir, confiando em sua perícia, crendo firmemente que o resultado não ocorrerá. Age levianamente, embora não deseje o resultado de sua imprudência e o reprove.

Assim, embora tenha consciência da possibilidade do resultado - daí porque o termo culpa consciente - age contra ele, utilizando-se de toda a habilidade que dispõe para evitá-lo.

Por seu turno, no dolo eventual o agente prevê o resultado mas não age para evitá-lo. Assume o risco de produzi-lo, não fazendo qualquer diferença a ocorrência ou não do mesmo, embora não vise a sua ocorrência diretamente.

Note-se que assumir um risco não é somente prever o resultado. Deve o agente, além de prevê-lo, aceitar ou, ao menos, tolerar, e não se importar com o mesmo.

Vale lembrar aqui o sábio ensinamento do mestre Damásio E. de Jesus: "A culpa consciente se diferencia do dolo eventual. Neste o agente tolera a produção do resultado, o evento lhe é indiferente, tanto faz que ocorra ou não. Ele assume o risco de produzi-lo. Na culpa consciente, ao contrário, o agente não quer o resultado, não assume o risco de produzi-lo e nem ele lhe é tolerável ou indiferente. O evento lhe é representado (previsto), mas confia em sua não produção." [1]

Assim, quando age com culpa consciente, o agente não quer o resultado, mas, por erro ou excesso de confiança (imprudência), por negligência ao deixar de empregar a diligência necessária ou por falta de preparo para concretizar seu intento, acaba por lhe dar causa ocasioná-lo.

Já no dolo eventual ocorre uma aceitação do resultado – o agente não se interessa pelo que pode vir a ocorrer, é indiferente ao resultado de sua conduta.


3. Elemento subjetivo do ébrio ao volante e do participante de "rachas".

Para que se possa graduar a culpabilidade do agente em qualquer delito é necessária uma acurada análise do elemento subjetivo que impulsionou à ocorrência do resultado. Evidente que nos delitos do trânsito não pode ser diferente.

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Partimos da seguinte questão: alguém que assume a direção de um automotor embriagado ou para participar de "rachas" realmente não se preocupa com o que venha a ocorrer ou repudia o evento mas acredita que nada acontecerá, confiando em sua própria perícia?

Ao assumir a direção de automóvel, todo motorista tem confiança de que nada acontecerá e que chegará em segurança a seu destino. Muito embora saiba que, por vezes, um descuido mínimo pode levar a uma tragédia. Assim, a ocorrência de evento danoso é fato previsto, devendo ser evitada a qualquer custo.

Por outro lado, veja-se que ninguém deseja produzir efeito danoso a outras pessoas ao conduzir seu veículo (excetuando-se, obviamente, quando da existência de dolo direto).

A nós parece que o simples fato de assumir a direção de um automotor já é assumir o risco de provocar um acidente. Então é de se admitir que o agente quando conduz um veículo embriagado prevê a possibilidade de ocorrência de um acidente, mas confia que não ocorrerá, repudiando eventual ocorrência de tal natureza, como qualquer outro motorista que não tenha ingerido bebidas alcoólicas.

Aliás, é cena cotidiana: um sujeito, embriagado, põe-se a dirigir, embora advertido por terceiros, dizendo que está bem, que tem condições de conduzir seu automóvel. Também vê-se com freqüência jovens promoverem os já citados rachas, provavelmente buscando algum tipo de glória ou promoção pessoal, embora advertidos do risco desta conduta. Em ambos os casos, o agente prevê a possibilidade de um acidente, mas continua a agir levianamente, colocando em risco tanto a vida de terceiros, quanto a sua própria vida.

À evidência, pois, que a vida do agente também fica ameaçada com sua conduta. Mais evidente ainda é o fato de que ninguém concorda com ameaçar sua própria vida. Então, conclui-se que o agente repudia a ocorrência de acidente com seu veículo, eis que não pode prever qual será a conseqüência - se ocorrerá um dano para si, para terceiros ou nenhum dano.

Por outro lado, atingir a terceiros certamente também levará o agente a sofrer prejuízos, tanto de ordem material quanto de ordem moral: o motorista causador de um acidente desta natureza fica obrigado a indenizar a vítima ou sua família, arcar com os danos em seu próprio veículo, responde por ilícito criminal e, não raro, passa a vida a consumir-se em culpa pela ocorrência do sinistro. Fácil, pois, a conclusão de que é evento repudiado pelo motorista.

Assim, a conduta do agente não se enquadra no dolo eventual, pois neste o agente não se preocupa com a ocorrência do evento. Mais correta, pois, é a classificação de tal conduta como culpa consciente, ou seja, assumindo-se que o agente não concordava com o resultado e o repudiava, confiando que não ocorreria, embora pudesse prevê-lo.


4. Conclusão.

Conclui-se, pois, que o dolo eventual nos Acidentes de Trânsito é mera ficção jurídica e que a aplicação deste instituto nestas situações representa demasiado elastecimento do mesmo.

Por outro lado, observamos que um simples aumento na punição aplicada a motoristas imprudentes não basta para reduzir o número de acidentes fatais. Certamente a conscientização dos condutores, seu adequado treinamento e a melhora nas condições das vias de tráfego são maneiras muito mais efetivas para concretizar este intento, mormente porque são medidas preventivas e não meramente punitivas.

Por fim, destacamos que a aplicação do dolo eventual para motoristas causadores de fatalidades é movida unicamente por "política criminal" e nada mais representa do que um excesso cometido pelo poder judiciário, que visa tão somente satisfazer à opinião pública, ainda que calcado em teorias consagradas do Direito Penal.

A nós que assistimos e, por vezes, participamos da barbárie no trânsito brasileiro resta esperar que os motoristas tenham maior respeito pela vida humana e que as autoridades encontrem saídas mais adequadas para a efetiva prevenção dos acidentes.


Notas

1.JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 1º Volume. 6ª Edição. 1980. Editora Saraiva. Pág. 287.

Sobre o autor
César Vidor

Advogado em Apucarana (PR). Especializando em Direito Civil e Processo Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIDOR, César. Dolo eventual nos acidentes de trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2776. Acesso em: 20 nov. 2024.

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