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Direitos de Quarta Dimensão

Dos ideais iluministas aos impasses éticos atuais

Agenda 24/04/2014 às 10:13

A globalização trouxe novos paradigmas e a necessidade de ampliação desses que são a base da nossa Carta Magna, de forma a ser inserido em seu texto um ponto contemporâneo complexo que tende a definir os avanços e retrocessos da humanidade: a bioética.

1 INTRODUÇÃO

Os direitos fundamentais são todos os direitos inerentes ao ser humano, postos em um código ou lei, ou seja, positivados. Estes direitos e, também garantias, irromperam-se a partir dos ideais iluministas de racionalidade, com o intuito de proteger os cidadãos do poder do Estado através de Constituições escritas.

O princípio da dignidade da pessoa humana expõe que os direitos fundamentais são aqueles a garantir o mínimo necessário para que o cidadão tenha uma vida digna. E não há de se confundir direitos fundamentais com Direitos Humanos, uma vez que estes são pertinentes apenas a uma jurisdição interna, pois são positivados por uma Constituição, enquanto aqueles são atinentes a toda a humanidade.

Para o jurista português José Joaquim Gomes Canotilho[3], os direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista) enquanto os direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente.

Pode-se afirmar que os Direitos Humanos, quando positivados, convertem-se em direitos fundamentais, visto que os direitos inerentes a todos os cidadãos tornam-se lei na jurisdição interna onde houve sua positivação, assim sendo, seu cumprimento faz-se legislativamente obrigatório.

2 CARACTERÍSTICAS

Suas características são consideradas princípios norteadores, pois antecedem qualquer ordenamento jurídico. São elas:

2.1 Universalidade

            Os Direitos Fundamentais são dirigidos a todo ser humano em geral sem restrições, independentemente de sua raça, credo, nacionalidade ou convicção política.

Em 1993, na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, reafirmando o compromisso outrora firmado pela Carta da ONU em seu artigos 55 e 56[4] foi assinado o tratado internacional denominado Declaração e Programa de Ação de Viena que estabelece:

“Art. 5º - Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais.”

2.2 Imprescritibilidade

            Não estão sujeitos à prescrição, ou seja, não se perdem com o decurso do tempo, entretanto, há direitos que podem, casualmente, ser prescritos, como é o caso da propriedade que poderá ser atingida pela usucapião quando não exercida.

            Os direitos fundamentais, por não estarem sujeitos à prescrição, podem ser agregados a outros direitos, sem que isso os afete de qualquer forma, não permitindo que os direitos já adquiridos sejam prejudicados ou eliminados.

2.3 Historicidade

            Nascidos com o Cristianismo, os direitos fundamentais são parte de um processo histórico, tendo sido adquiridos através de inúmeras revoluções no desdobrar-se da história.

Norberto Bobbio[5] afirma que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras cultuas.

2.4 Irrenunciabilidade

Os direitos fundamentais são irrenunciáveis pelo titular. Ora, não poderia ser de outra forma que não essa, tendo em vista toda a luta para torná-los direitos positivados, se fossem passíveis de renúncia, seria uma causa perdida.

Para Marcelo Alexandrino[6], entretanto, existe a possibilidade de renúncia temporária, podendo ser vista, por exemplo nos programas de televisão conhecidos como reality shows, em que as pessoas participantes, por desejarem receber o prêmio oferecido, renunciam, durante a exibição do programa, à inviolabilidade da imagem, da privacidade e da intimidade.

2.5 Inalienabilidade

São direitos fundamentais intransferíveis, inegociáveis e indisponíveis, não podendo ser desertados, contudo há a possibilidade de sua não atuação. Pode-se exemplificar a inalienabilidade com a distinção entre capacidade de gozo, que são os direitos irrenunciáveis e a capacidade de exercício, onde pode optar por sua execução. Os inalienáveis seriam os direitos que visavam proteger a vida biológica e os que intentassem para a preservação das condições normais de saúde física e mental, bem como a liberdade de tomar decisões sem coerção externa.

2.6 Inexauribilidade

O artigo 5°, parágrafo segundo da Constituição Federal explica que os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Logo, são direitos fundamentais inesgotáveis e sem validade, podendo ser aplicados a qualquer momento, em qualquer tempo.

2.7 Concorrência ou Interdependência

Os direitos fundamentais interagem entre si, influenciando-se, havendo, assim, uma mútua dependência, visto que seus conteúdos vinculam-se e, por vezes, necessitam ser complementados por outros direitos fundamentais.

Exemplificando essa característica, pode-se dizer que a liberdade de locomoção concorre com a garantia do habeas corpus e com o devido processo legal, ou seja, podem ser usadas conjuntamente.

2.8 Aplicabilidade

Os direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata, não podendo, sob nenhuma hipótese, serem postergados. A Constituição Federal determina ser da competência dos poderes públicos a aplicabilidade imediata dos direitos e garantias previstos em lei.

            “Art. 5°, § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”

2.9 Constitucionalização

Konrad Hesse[7] propõe que os direitos fundamentais influem em todo o Direito – inclusive o Direito Administrativo e o Direito Processual – não só quando tem por objeto as relações jurídicas dos cidadãos com os poderes públicos mas também quando regulam as relações jurídicas entre os particulares. Em tal medida servem de pauta tanto para o legislador como para as demais instâncias que aplicam o Direito, as quais, ao estabelecer, interpretar e pôr em prática normas jurídicas, deverão ter em conta o efeito dos direitos fundamentais.

Em suma, são os direitos positivados na Constituição de um país.

2.10 Vedação ao retrocesso

Uma vez estabelecidos os direitos fundamentais não podem ser protelados; são como um axioma.

Para Luís Roberto Barroso[8], apesar de o princípio do não-retrocesso social não estar explícito, assim como o direito de resistência e o princípio da dignidade da pessoa humana (para alguns, questão controvertida), tem plena aplicabilidade, uma vez que é decorrente do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser absolutamente suprimido.

3  LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE

O conceito de Direitos Fundamentais está intrinsecamente ligado à evolução das sociedades, haja vista que há doutrinadores que intitulam de “gerações” e não “dimensões”. Contudo, o termo dimensões, proposto por José Francisco de Faria Costa é melhor empregado, considerando-se que, quando se utiliza do vocábulo gerações, demonstra algo que é findo, podendo ter interpretações errôneas de que uma geração sucede e anula a outra, logo, a geração posterior faz com que a anterior não seja mais efetiva. Não obstante, o vocábulo dimensões apresenta-nos uma interpretação mais adequada, posto que sua explanação manifesta que sua estrutura dimensional possui forma espiral, podendo, assim, ir de uma a outra, acondicionando todas, sem que qualquer delas seja lesada ou se anule.  Desse modo, a liberdade, a igualdade e a fraternidade conquistadas pelos Direitos Fundamentais, sendo tidas como dimensões, demonstram que a primeira não inibe a próxima, ou seja, que não há necessidade de se abrir mão de sua liberdade para conquistar sua igualdade, posto que possuem como característica a interdependência.

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Os iluministas disseminaram seus ideais tornando-os referência para que a humanidade viesse a elaborar sua legislação, tendo na dignidade da pessoa humana seu alicerce fundamental. Com essa base, temos as dimensões dos Direitos Fundamentais.

4  DIREITOS DE PRIMEIRA DIMENSÃO

A primeira dimensão apresenta Direitos Fundamentais de liberdade que estão presentes em todas as Constituições democráticas, sendo estes civis e políticos e inerentes a todo cidadão, como pode ser visto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal Brasileira:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...).”

 

Aborda também o status negativus do Estado, onde este se mantém afastado das relações sociais e individuais com a finalidade de não as transgredir.

5  DIREITOS DE SEGUNDA DIMENSÃO

Essa dimensão compreende os Direitos Fundamentais atinentes à igualdade, abrangendo os direitos sociais, econômicos e culturais. Como herança da obtenção da liberdade pertinente à primeira dimensão, uma grande desigualdade se rompeu e com ela, o individualismo, que fez com que as diferenças sociais se aprofundassem. Por essa razão, o Estado se vê na necessidade de intervir em favor do cidadão, assim, realizando obrigações positivas, como consta no artigo 6º da Constituição Federal Brasileira:

“São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”

Essas prestações, para serem realizadas, necessitam, além da intervenção do Estado, que este disponha de poder pecuniário, seja para criá-las, seja para executá-las, uma vez que sem o aspecto monetário os direitos de segunda dimensão não se podem cumprir efetivamente.

6  DIREITOS DE TERCEIRA DIMENSÃO

Em caráter de humanismo e universalidade, são Direitos Fundamentais com ideal de fraternidade e direcionam-se para a preservação da qualidade de vida, tendo em vista que a globalização a tornou necessária. Tais direitos emergiram após a Segunda Guerra Mundial e foram alicerçados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão[9].

“A essência desses direitos se encontra em sentimentos como a solidariedade e a fraternidade, constituindo mais uma conquista da humanidade no sentido de ampliar os horizontes de proteção e emancipação dos cidadãos. Enfoca-se o ser humano relacional, em conjunção com o próximo, sem fronteiras físicas ou econômicas”. [10]

            Após os efeitos da guerra, surge a proteção internacional dos direitos humanos, voltada para a essência do ser humano, ao destino da humanidade, pensando o ser humano como gênero e não limitado ao indivíduo ou mesmo a uma coletividade determinada.

7  DIREITOS DE QUARTA DIMENSÃO

Norberto Bobbio[11] alega que os direitos fundamentais são adquiridos ao longo do tempo, que nascem quando devem nascer, logo, como nos encontramos em uma era de tecnologia avançada e onde a engenharia genética tende a criar soluções para os problemas humanos, pode ser dito que os direitos de quarta geração nasceram, porque foi propício seu nascimento. Logo, essa dimensão trata das manipulações do patrimônio genético[12] se ocupando do redimensionamento de conceitos e limites biotecnológicos e, por isso, são direitos fundamentais relativos à humanidade.

 Outrora, a evolução das espécies acontecia com o decurso do tempo, naturalmente, enquanto que atualmente, essa evolução já pode ser definida em laboratório. Dessa forma, por tratar-se de questões relacionadas ao principal direito do seu humano, a vida, esta dimensão envolve também a ética, que é a ciência que estuda a conduta e a moral humana.

No início dos anos 70, com o desenvolvimento notório da biologia molecular, houve uma revolução na ciência e juntamente com essa evolução surgiu uma preocupação com a possibilidade de mau uso desses novos conhecimentos adquiridos. Diante dessa questão, o bioquímico americano Van Rensselaer Potter inseriu no vocabulário um neologismo que considerou adequado à situação: bioética, significando, literalmente, a ética da vida. Posteriormente, devido a uma evolução desenfreada na ciência em questão, houve a necessidade de elaborar definições mais específicas e completas a respeito do tema.

“A bioética é um estudo sistemático do comportamento humano na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde, quando se examina esse comportamento à luz dos valores e os princípios morais. Seu objeto material é a vida em sentido amplo: vida humana pessoal e não-pessoal, incluindo todos os organismos capazes de sentir prazer e/ou dor e também o ambiente em geral.” [13]

“Com as conquistas cientí?cas e biomédicas ampliaram-se as possibilidades de intervenção e manipulação na vida do homem, o que justi?ca a exigência rigorosa da avaliação ética de tais intervenções a ?m de garantir o respeito a sua dignidade e autonomia.” [14]

             Com a possibilidade de manipulação genética, a bioética veio para determinar o que se pode ou não fazer com o patrimônio genético humano e instaurar que a dignidade humana seja preservada de tal modo que toda pesquisa deva respeitar e proteger os indivíduos envolvidos. Entretanto, não há precisão ou possibilidade de determinação da bioética que não na preservação da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que ainda não se pode definir com clareza do que se trata, ou do que se tratam as manipulações feitas pela engenharia genética.           

7.1    A posição do Brasil quanto à bioética

Devido ao notável desenvolvimento tecnológico que o país vem sofrendo, surgiu a grande necessidade de regulamentar o permitido e o proibido no tocante às pesquisas que envolvem coleta de material genético, estas, só podendo ser realizadas para os devidos fins previamente especificados e em prol do bem social e ambiental. Para tanto, o governo, além da elaboração de normas, realiza fiscalizações in loco para verificar se as pesquisas estão sendo feitas para os fins a que se propuseram e se estão de acordo com os princípios éticos, do contrário, seu avanço é interrompido.

A Constituição Federal de 1988 contém em seu texto, de forma não muito substancial, artigos que tratam da manipulação do patrimônio genético:

“Art. 225, II – Preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético.”

Entretanto, nos anos de elaboração e promulgação da referida constituição, a questão do patrimônio genético no Brasil era potencialmente voltada para os estudos referentes às questões ambientais e animais; agora, com o avanço tecnológico, houve a necessidade de uma regulamentação mais complexa, abordando assuntos relacionados à engenharia genética[15]. Portanto, para regulamentar a manipulação do patrimônio genético elaborou-se a Medida Provisória 2.186-16/2001, que declara:

“Art. 7º - Além dos conceitos e das definições constantes da Convenção sobre Diversidade Biológica, considera-se para os fins desta Medida Provisória:

VI – acesso ao patrimônio genético: obtenção de amostra de componente do patrimônio genético para fins de pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico ou bioprospecção[16], visando a sua aplicação industrial ou de outra natureza.”

No entanto, como há uma grade dificuldade, seja na determinação do eticamente possível, seja na elaboração de normas efetivas, o texto da Medida Provisória em questão fez parecer que qualquer tipo de obtenção de material genético não seria permitida pela legislação e que qualquer um que realizasse coleta de materiais para estudo estaria infringindo a lei. Por essa razão, para esclarecer a ambígua interpretação da Medida Provisória e seus termos, posteriormente, em 2003, foi elaborada a Orientação Técnica Nº 1 que instaura:

“Art. 1º “(...) entende-se por ‘obtenção de amostra de componente do patrimônio genético” a atividade realizada sobre o patrimônio genético com o objetivo de isolar, identificar ou utilizar informação de origem genética ou moléculas e substâncias provenientes do metabolismo dos seres vivos e de extratos obtidos destes organismos.’”

Em razão dessa publicação tornou-se claro que apenas deveriam estar autorizados pelos órgãos competentes à realização de coleta de material para estudo e análise o que se refere a pesquisas científicas, de bioprospecção e desenvolvimento tecnológico.

Outro segmento criado para regulamentar o patrimônio genético foi a Convenção sobre Diversidade Biológica, que tem como objetivos a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos.

Nota-se, tanto no texto da Emenda Constitucional quanto nos objetivos da Convenção sobre Diversidade Biológica que é fundamental que o uso dos recursos seja empenhado no desenvolvimento de benefícios para a sociedade. Benefícios esses que, quando descobertos, devem ser empregados em prol da sociedade de forma justa e bem distribuídos, podendo, ainda, ser distribuídos de forma gratuita em caso de descoberta de remédios, por exemplo.

O Brasil ainda está se iniciando no tocante à percepção da importância da bioética, visto que consta com pouco mais de dez centros estabelecidos pelo país, enquanto que países como os Estados Unidos da América possuem cerca de quatrocentos centros voltados ao ensino das atividades da bioética.

8  CONFLITOS DE VALORES BIOÉTICOS E JURÍDICOS

A vida e a morte são cada vez mais passíveis de intervenção do homem, podendo este, devido ao avanço tecnológico, realizar façanhas incríveis no que diz respeito a salvar vidas. Contudo, para limitar essa possibilidade e para lembrar ao Homem que ele é apenas Homem, a bioética vem para delimitar essa interferência humana no decurso da vida.

Haja vista que os avanços tecnológicos propiciaram o efetivo avanço da engenharia genética, a bioética aparece dentro do seguinte enfoque: até que ponto o avanço dos estudos relacionados ferem valores e direitos fundamentais dos seres humanos?

Alguns exemplos de comum conhecimento podem ser utilizados na análise dessa questão, como a prática da eutanásia e a pesquisa com células-tronco. Ainda há inúmeras outras questões relacionadas que ocasionam conflitos éticos e jurídicos, mas vamos nos focar nesses dois exemplos comuns.

8.1 Eutanásia

Eutanásia é a ideia da prática utilizada para apressar a morte de um indivíduo em fase terminal buscando aliviar seu sofrimento. Entretanto, essa prática é somente realizada em países cuja legislação permite, como a Holanda, e após autorização médica e familiar somente em indivíduos cuja possibilidade de recuperação é inexistente ou cujo estado é irreversível.

A eutanásia é uma questão muito discutida na bioética e no biodireito[17], visto que, por um lado, sua prática alivia a dor e o sofrimento do paciente e também, indiretamente, dos familiares, enquanto por outro, há um conflito jurídico envolvendo os direitos fundamentais que defendem que a vida é um direito inviolável do ser humano, tendo apenas o indivíduo (paciente) em questão a aptidão para decidir continuar vivo ou não.

Hodiernamente, a eutanásia não se limita apenas a casos terminais, visto que pode ser realizada em bebês anencéfalos ou com más formações congênitas, pacientes em estado vegetativo e àqueles incapazes de se valerem por si mesmos.

No Brasil, essa prática é proibida, podendo aquele que vier a praticá-la ser condenado por homicídio. A Constituição Federal trata de vários temas que vão de encontro à prática da “boa morte”, sendo, alguns deles:

“Art. 1º, inciso III - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Direito Federal, constitui-se em Estado democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana; (...).”

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...).”

8.2 Pesquisas com células-tronco

          As células-tronco são células primitivas, indiferenciadas, podendo ser encontradas em embriões, no cordão umbilical e em tecidos adultos como o sangue e a medula óssea. Por serem células não especializadas, possuem a capacidade de auto renovação que é a capacidade de gerar células-tronco idênticas à original e possui, também, o potencial de diferenciação que é a competência de gerar células especializadas de diferentes tecidos.

          Há, portanto, uma discussão ético-jurídico-religiosa no tocante às pesquisas com células-tronco. 

            A Igreja defende que pesquisas com células-tronco embrionárias, fruto de um óvulo já fecundado são impróprias de realização, dado que o embrião já existe e este, para a instituição, possui alma; por conseguinte, aquele que manipula esses embriões os está tirando a vida. Entretanto, a instituição não se antepõe contra o uso de células-tronco adultas[18], desde que essa ação não fira a dignidade da pessoa humana, pois declinam ser, também e principalmente, uma questão ética e moral.

            No âmbito jurídico, o Brasil promulgou em 24 de março de 2005 a lei de número 11.105 que recebeu o nome de Lei de Biossegurança. A referida lei permite a utilização de células-tronco embrionárias, desde que sejam obtidas de embriões produzidos por fertilização in vitro e com a devida autorização dos genitores; havendo também a possibilidade de utilização de embriões congelados há mais de três anos e a utilização de células-tronco adultas.

            Essa lei proíbe a prática da clonagem das células-tronco, o que leva a um conflito: se há a possibilidade de clonar células que não serão rejeitadas pelo organismo e serão capazes de curar doenças, por que não realizar?

            Primeiramente, porque há uma proibição normativa. Em segundo e ainda mais importante, porque a bioética aparece para firmar que a clonagem por células-tronco é feita a partir da “fabricação de embriões” criados unicamente para serem apenas uma parte, quando poderiam ser um todo, ou seja, essas células-tronco são direcionadas a se tornar determinado órgão ao invés de um indivíduo completo e, essa ação fere dos princípios fundamentais inerentes ao ser humano: a dignidade e a vida.

9  CONCLUSÃO

Temos que a bioética é um campo em construção, visto que, de fato, não se pode definir com plena eficácia o que deve ser feito ou não no campo da engenharia genética, embora seja essa a direção que a bioética deva tomar: de definir. Entretanto, a dificuldade de definição é quase palpável, uma vez que não se pode determinar algo que ainda não é apenas pelo fato de poder ser, porque ainda não sabemos com certeza até que ponto algo é ético ou não no que diz respeito a salvar uma ou várias vidas humanas.

            Embora haja certa dificuldade de normatização, a bioética é simples de ser compreendida, uma vez que defende os direitos fundamentais adquiridos pelos seres humanos ao longo dos anos.

Para Warren Thomas Reich[19], a bioética vai muito além de um sistema particular de valores já dados que de?nem a categoria do bem: ela está na interdependência daquilo que ainda não é, daquilo que ainda precisa ser de?nido. Ou seja, a bioética tem como objeto “não já o ser, mas o não ser do homem: o que ainda não é, o que se poderia fazer, ou se discute se é humano.

            Conclui-se, portanto, que tendo consciência de que a dignidade da pessoa humana é um princípio axiológico fundamental e base para elaboração das legislações ao redor do mundo, cada pessoa deve ser tratada com um fim em si mesma e não como objeto[20], pois ao nascer com vida o indivíduo adquire muito mais que direitos fundamentais, adquire o direito e a garantia de ser.

10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Constitucional Descomplicado, 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.

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BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

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BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 10. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

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BRASIL, Decreto legislativo número 2, de 03 de fevereiro de 1994. Publicado no Diário Oficial da União em 03 de fevereiro de 1994.

CALLAHAN, Danniel. The Troubled Dream of Life: Living With Mortality. New York: Simon & Schuster, 1993.

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FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. DIAFÉRIA, Adriana. Biodiversidade e patrimônio genético no direito ambiental brasileiro. Editora Parma: São Paulo, 1999.

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MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006.

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SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

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SOUZA, Draiton Gonzaga de; ERDTMANN, Bernardo. Org. Ética e Genética II. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

STRATHERN, M. Reproducing the future: essays on anthropology, kinship and the new reproductive technologies. Manchester: Manchester University Press, 1992.

[3] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. p. 320, 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998.

[4] Art. 55 Com o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito do princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas promoverão:

  1. A elevação dos níveis de vida, o pleno emprego e condições de progresso e desenvolvimento económico e social;
  2. A solução dos problemas internacionais económicos, sociais, de saúde e conexos, bem como a cooperação internacional, de carácter cultural e educacional;
  3. O respeito universal e efetivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.

Art. 56 Para a realização dos objetivos enumerados no artigo 55, todos os membros da Organização se comprometem a agir em cooperação com esta, em conjunto ou separadamente.

[5] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, p. 5-19. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

[6] ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Constitucional Descomplicado, 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.

[7] HESSE, Konrad. Significado dos direitos fundamentais. In: Temas Fundamentais do Direito Constitucional. Trad. Carlos dos Santos Almeida. São Paulo: Saraiva, 2009.

[8] BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.158.

[9] Documento elaborado pela ONU após a Segunda Guerra Mundial com o intuito de estabelecer novos alicerces ideológicos a um novo mundo que planejavam construir, visando a liberdade de cada indivíduos e a paz entre os povos.

[10] ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 116.

[11] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, p. 14. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

[12] De acordo com a Medida Provisória nº 2.186-16/2001 em seu artigo 7º, I, Patrimônio Genético é toda informação de origem genética, contida em amostras do todo ou de parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, na forma de moléculas e substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos obtidos destes organismos vivos ou mortos, encontrados em condições in situ, inclusive domesticados, ou mantidos em coleções ex situ, desde que coletados em condições in situ no território nacional, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva.

[13] REICH, Warren Thomas. Encyclopedia of Bioethics. p. 22, 1. ed., vol. I. Nova Iorque: Macmillan Library Reference,1975.

[14] Ibid., p. 22

[15] Conjunto de técnicas capazes de permitir a identificação, manipulação e multiplicação de genes dos organismos vivos.

[16]  Método ou forma de localizar, avaliar e explorar sistemática e legalmente a diversidade de vida existente em determinado local.

[17] O conjunto de leis positivas que visam estabelecer a obrigatoriedade de observância dos mandamentos bioéticos.

[18] Originadas a partir de diferentes órgãos e tecidos, fetais ou adultos, como o fígado, tecido adiposo, sistema nervoso central, pele etc.

[19] REICH, Warren Thomas. Encyclopedia of Bioethics. p. 23, 1. ed. vol. I. New York: Macmillan Library Reference, 1975.

[20] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. 13. ed. Portugal: Edições 70, 2014.

Sobre o autor
Jéssica Coura Mendes

Discente do Curso de Direito FEPI - Centro Universitário de Itajubá, Minas Gerais.

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