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O Ministério Público, "ombudsman", defensor do povo ou função estatal equivalente, como instituição vocacionada para a defesa dos direitos humanos:

uma tendência atual do constitucionalismo

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Agenda 01/05/2000 às 00:00

4. A violação sistemática de direitos humanos como entrave à consolidação de um Estado de direito

4.1. Estado de direito

Segundo Kelsen(10), um Estado não submetido ao Direito é impensável, pois o Estado apenas é existente nos atos do Estado, que são atos postos por indivíduos e são atribuídos ao Estado como pessoa jurídica. E tal atribuição só é possível com base em normas jurídicas que regulam especificamente estes atos. Não é o Estado que se subordina ao Direito por ele criado, mas é o Direito que, regulando a conduta dos indivíduos e, especialmente a sua conduta dirigida à criação do Direito, submete a si esses indivíduos. No entanto, o próprio Kelsen(11) adverte que, "se o Estado é reconhecido como uma ordem jurídica, se todo Estado é um Estado de Direito, esta expressão representa um pleonasmo", por isso, "ela é efetivamente utilizada para designar um tipo especial de Estado, a saber, aquele que satisfaz aos requisitos da democracia e da segurança jurídica."

Abelardo Torré(12) segue a mesma linha de pensamento, afirmando que no sentido lógico-formal, Estado de Direito é o Estado funcionalizado através do direito (ou regime jurídico). Porém numa acepção histórico-político ou político-valorativo, empregada por antomasia, pode-s afirmar que "Estado de Direito é aquele Estado em que têm vigência os direitos fundamentais do homem", significando que toda pessoa tem um vasto âmbito de liberdade, que não pode ser validamente desprezado pelos governantes.

Um Estado de direito também tem sido classicamente identificado pelas distintas instituições ou meios técnicos-jurídicos de que tradicionalmente se compõe. O primeiro deles é a Constituição. Por mais elevada que seja a cultura política e a educação de um povo, sempre ocorrerão violações dos direitos fundamentais dos homens, não sendo possível confiar-se somente na virtude dos governantes e no seu sentido de dever para respeitá-los. Daí por que é necessária uma determinada estrutura institucional que o assegure e que veio a se materializar na Constituição.

Outra característica é a separação entre o poder constituinte e os poderes constituídos. Esta separação é uma dupla manifestação de soberania do povo e tende a uma mais eficaz defesa dos direitos fundamentais do homem, mediante a maior estabilidade que assim adquirem as normas constitucionais. Com efeito, somente o poder constituinte, ou seja, o povo no exercício de tal poder, pode ditar e reformar a Constituição; por sua vez, as atribuições dos poderes constituídos estão limitadas pela mesma Constituição, cuja reforma fica fora de seu alcance.

Ressalve-se que a exigência da separação entre os poderes constituinte e constituídos como característica de um Estado de Direito, e destes entre si, comporta exceções, como é o exemplo da Inglaterra, em que o Parlamento exerce ao mesmo tempo o poder legislativo ordinário e o poder constituinte, entretanto trata-se, quiçá, do país onde mais se respeitam os direitos fundamentais do homem e no qual as normas que na prática têm hierarquia constitucional alcançam maior estabilidade do que em muitos países formalmente organizados como Estados de direito.

A terceira instituição que configura um Estado de direito é separação dos poderes constituídos, teorizada por Montesquieu, especialmente a separação do Poder Judiciário em qualquer tipo de regime de governo, já que a separação entre o Legislativo e o Executivo por natureza é e deve ser maior no regime presidencial e menor no parlamentarista. Somente com um Poder Judiciário independente, que tenha poder jurisdicional até mesmo para declarar a inconstitucionalidade das normas ditadas pelos outros poderes, poder-se-á alçar-se um Estado a Estado de direito.

Ao lado da necessidade de ter uma Constituição, de manter separado o poder constituinte dos poderes constituídos e destes entre si, também é imprescindível para a confirmação de um Estado de direito que sejam asseguradas outras instituições complementares que permitam às pessoas realizarem praticamente os seus direitos fundamentais ou exigirem a sua imediata reparação no caso de violação. São exemplos de tais instrumentos ou ações o habeas corpus e a acción de amparo, na Argentina e, com outras denominações, em praticamente todos os Estados de direito. No Brasil, por exemplo, essas garantias são exercidas por meio de habeas corpus, do mandado de segurança, da ação popular, do habeas data, do mandado de injunção e da ação civil pública.

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Esses são os elementos que, segundo a clássica Teoria do Estado, caracterizam um Estado de Direito. Os tempos atuais, porém, revelam a necessidade de mais um elemento para que se consolide um Estado de direito, que consiste na função estatal acima referida, que tenha a incumbência de fiscalizar e exigir o cumprimento da Constituição e das leis, pelo Estado e pelos particulares, nos casos que versem sobre direitos difusos, sociais e coletivos, bem assim sobre direitos individuais indisponíveis.

          4.2. Estado de direito segundo a ótica da Democracia

Na atualidade, não se concebe como Estado de direto aquele país no qual se permite a violação dos Direitos humanos de seus súditos. Classicamente, Democracia tem sido definida como o governo do povo, entretanto, atualmente, deve ser entendida genericamente como uma contraposição a quaisquer formas arbitrárias de exercício do poder. Além disso, Democracia é definida como um regime onde as decisões políticas são tomadas através de procedimentos que levam em conta a vontade da maioria, mas também um regime onde os cidadãos têm seus direitos e liberdades assegurados através de garantias jurídicas efetivas.

Um Estado não se transforma em Estado de Direito (ou democrático) simplesmente com base no resultado das urnas. Somente se o resultado eleitoral realmente refletir uma ordem jurídica constitucional justa é que se terá obtido como resultado das eleições um Estado de direito.

Existem duas correntes doutrinárias que definem Estado de direito. Para uma primeira corrente, Estado de direito é, pura e simplesmente, um Estado jurisdicizado, ou seja, um Estado em que tudo que se realiza ou se executa é com base no Direito, em leis que o próprio Estado instituiu. Nesse sentido, o Estado de direito poderia conviver com qualquer regime político (Democracia, Monarquia, Aristocracia etc.), pois, para esta corrente, o Estado de Direito é simplesmente um Estado em que não se permite o exercício arbitrário do poder.

A grande virtude de um Estado assim é o fato de tornar-se possível aos indivíduos pautarem suas condutas em conformidade com as leis, sejam elas justas ou injustas, para evitarem a sanção do Estado, ou seja, traz certa segurança jurídica. Porém, tal concepção de Estado de direito, quando vista pela ótica da Democracia, deixa muito a desejar. Na democracia se exige muito mais, porque ela é pautada numa sólida idéia de direito, sem a qual se torna um sistema extremamente inoperante. Em síntese, a noção anteriormente citada não se presta, por si só, para conceituar Estado de direito, quando se cuida de um regime democrático. Na Democracia, abre-se ensejo para discussão da justiça ou injustiça de determinadas regras jurídicas e, especialmente, para discussão do modo como o Estado deve-se organizar para assegurar cada direito.

          A segunda corrente não associa a idéia de Estado de direito à simples jurisdicização do estado, mas sim a um conteúdo de justiça, ou seja, um Estado de direito é aquele que adota um modo de governo onde a ação dos governantes está estritamente submetida à disposição legal, que lhes é externa e superior. Não se trata de qualquer lei, mas sim da lei justa, entendida esta como aquela que além dos requisitos formais específicos (generalidade, abstração e universalidade), deve guardar um outro conteúdo específico: igualdade e liberdade.

Refoge aos objetivos almejados nesta monografia a discussão sobre o significado de Justiça e, por conseguinte, de "direito justo". Não obstante, uma maneira fácil de averiguar se um determinado Estado corresponde a um verdadeiro Estado de direito, segundo a ótica da Democracia, é confrontando as características desse Estado com as do conjunto de instrumentos internacionais existentes para a defesa da pessoa humana, o "International Bill Of Rights". Tão mais próximo estará de um Estado de direito aquele Estado cuja Carta constitucional mais se aproxime do padrão constante do "International Bill of Rights".

          4.3. A ineficácia da Constituição como óbice à consolidação de um Estado de direito

Analisando pormenorizadamente o caso específico do Brasil, Oscar Vilhena Vieira(13), demonstra com bastante propriedade que há duas formas de rompimento da normalidade comum a um Estado de Direito: a primeira é a luta pelo poder, com a vitória de um grupo que impõe a nova ordem, com seu próprio fundamento de validade; e a segunda é quando a ordem jurídica constitucional é, ou se torna, ineficaz.

Carl Schimitt(14) leciona que as rupturas da ordem do Estado de direito, ficam fora de quaisquer limitações jurídicas ou éticas, quando são decorrentes da vitória de um grupo na luta pelo poder. Tais rupturas poderiam ser chamadas de grandes exceções, pois tornam-se "legalizadas" pelos movimentos que assumiram o poder, criando seu próprio fundamento de validade. Esta concepção está vinculada à idéia de Carl Schimitt, de que soberano é aquele capaz de, no momento de exceção, impor uma nova "normalidade". Não é pertinente nenhum tipo de discussão ética sobre o fundamento ou legitimidade do poder, num Estado que vive sob tais circunstâncias. Aliás, para os contratualistas, essa situação nem se enquadraria no universo da política, consistindo mesmo em um não Estado.

A outra hipótese de ruptura da normalidade - que interessa ao presente estudo - ocorre quando se verifica a ineficácia da ordem jurídica constitucional na sua função de aplicação da lei, de monopolização e contenção da violência e do arbítrio, em todos os níveis do aparelho estatal, mesmo estando preservada a estabilidade institucional. Este tipo de ruptura faz surgir um regime de exceção diferente daquele que antes foi citado, mas que guarda muitas das suas características. Trata-se de uma excepcionalidade cotidiana, inerente às relações sociais e institucionais, onde a guerra não atinge um grupo político adversário e organizado que busca chegar ao poder, mas a toda uma comunidade difusa de indivíduos que, em diversos momentos de sua trajetória existencial, se encontram totalmente destituídos de personalidade jurídica, ou melhor, de capacidade de ter direitos.

Em uma situação de conflito dentro de um verdadeiro Estado de direito, existem limites legais aos quais o Estado se submete ao se relacionar ou mesmo ao se defrontar com os cidadãos. Diferentemente, quando num Estado se verifica um espaço de ilegalidade em que prevalece única e exclusivamente a força, temos uma evidente ruptura sob a segunda das formas antes referidas, de que ora se cogita.

Sabe-se que o Estado é o monopolizador da violência e o garantidor de direitos, no entanto, tomando-se como exemplo o caso do Brasil, pode-se visualizar neste Estado, tranqüilamente, um verdadeiro regime de exceção. De fato, a análise exemplificativa de várias situações que constituem o cotidiano das relações na sociedade brasileira constata-se a prevalência única e exclusivamente da força: por exemplo, dados estatísticos do ano de 1992, citados por Vilhena(15) , revelam que só em confrontos com a polícia de São Paulo, morreram cerca de 4,3 civis por dia naquele ano, o que significa que 1/3 dos homicídios ocorridos em 1992, em São Paulo, foi de autoria da Polícia; nos 28 anos que antecederam o ano de 1992, houve 1.681 casos de morte de trabalhadores rurais em função de conflitos no campo, no entanto, apenas 26 casos chegaram a ser julgados, dos quais apenas 15 resultaram em condenação; outros exemplos, dessas situações de exceção com as quais se convive cotidianamente no Brasil são o extermínio de crianças, os justiceiros e a privatização da Justiça, os morros no Rio de Janeiro dominados pelo narcotráfico, os garimpos com suas próprias leis e ainda as fazendas de trabalho escravo, que apesar do trabalho desempenhado pelo Ministério Público do Trabalho, ainda insistem em ressurgir eventualmente.

Além da violência física, também há, no Brasil, a violação sistemática de outros direitos humanos, que configuram claramente um regime de exceção. Basta o exemplo notório envolvendo a proteção constitucional aos direitos da criança e do adolescente e as garantias constitucionais de educação e salário mínimo para todos os brasileiros.

A Constituição do Brasil veda o trabalho de menores de 16 anos de idade (art. 7º, XXXIII), assegura a todo trabalhador "um salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social (...)" (art. 7º, IV). "Garante", também, a mencionada Carta, que são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência social aos desamparados (art. 6º).

Na prática, porém, imensa parcela dos trabalhadores recebe remuneração de apenas um salário mínimo, cujo valor legal vigente é próximo de 80 dólares americanos mensais, a qual não proporciona sequer uma alimentação adequada, muito menos vestuário, lazer e outros bens da vida para os quais deveria ser suficiente, segundo a Constituição. Por sua vez, a educação, até hoje não foi efetivamente implantada, pois são insuficientes as vagas nas escolas e grandes parcelas das existentes têm instalações impróprias e não dispõem de corpo docente qualificado.

Portanto, é claro que, recebendo o salário mínimo (situação da maioria) nacional do Brasil, torna-se difícil para qualquer pessoa até mesmo adquirir a alimentação suficiente para sobreviver, sendo um sonho distante o acesso àqueles outros direitos sociais "assegurados" na Constituição. Assim, nas famílias em que os respectivos chefes recebem apenas um salário mínimo, todos os membros são compelidos a buscarem meios de subsistência, inclusive as crianças ou adolescentes, que ingressam precocemente no mercado de trabalho, sem possibilidade de sequer sonhar com o direito à educação.

Outro exemplo brasileiro é o caso da Saúde, que a Constituição afirma ser um direito universal, entretanto, na prática, trata-se de um direito ao qual tem acesso somente aqueles que pagam por ele.

Esses exemplos todos, quando vistos no seu conjunto, permitem afirmar que, para largas parcelas da população brasileira não existe um autêntico Estado de direito, mas sim uma situação ambígua, em que lei e arbítrio, direito e exceção se entrelaçam, parecendo constituir uma situação institucionalizada no País.

Sobre o autor
Marco Aurélio Lustosa Caminha

Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região. Ex-Procurador Regional do Trabalho. Professor Associado de Direito na Universidade Federal do Piauí. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires, Argentina). Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMINHA, Marco Aurélio Lustosa. O Ministério Público, "ombudsman", defensor do povo ou função estatal equivalente, como instituição vocacionada para a defesa dos direitos humanos:: uma tendência atual do constitucionalismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 41, 1 mai. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/279. Acesso em: 22 dez. 2024.

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