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O direito sucessório nas uniões estáveis e a (in)constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil

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Agenda 01/06/2014 às 09:28

3 DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.790 DO CÓDIGO CIVIL

Para que se chegue ao cerne da questão é necessária uma reflexão sobre o artigo 226, §3º, da Constituição Federal.

Para iniciar o tópico, faz-se necessário externar as duas posições chaves acerca da (in) constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil.

Parte significativa da jurisprudência e doutrina afirma não haver qualquer inconstitucionalidade no mencionado dispositivo. Fundamentam que, inobstante haver proteção constitucional da união estável, esta não se iguala ao casamento. Por se tratar de institutos diversos, também o pode ser em relação aos efeitos sucessórios deles decorrentes  (Agravo de Instrumento Nº 70055701619, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 18/09/2013).

Outros juristas defendem a equiparação entre as entidades familiares do casamento e união estável. Para esta corrente, qualquer diferenciação no tratamento dispensado deverá ser considerada inconstitucional por afronta direta ao artigo 226 da Constituição Federal, como ocorre no artigo 1.790 do CC/02. Assim posicionam-se Fábio Ulhoa Rodrigues (2006, p.272), Maria Berenice Dias (2005, p. 163), Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (2010), Zeno Veloso (2008, p. 1955), dentre outros.

Thatiana de Arêa Leão Candil (2012, p. 94), em brilhante obra, menciona o posicionamento dos juízes que compõem as varas de família e sucessão do estado de São Paulo em relação a questão, sedimentado nos enunciados 49 e 50 do I Encontro dos Juízes das Varas de Família e das Sucessões, em novembro de 2006, in verbis:

49. O art. 1.790 do Código Civil, ao tratar de forma diferenciada a sucessão legítima do companheiro em relação ao cônjuge, incide em inconstitucionalidade, pois a Constituição não permite diferenciação entre famílias assentadas no casamento e na união estável, nos aspectos em que são idênticas, que são os vínculos de afeto, solidariedade e respeito, vínculos norteadores da sucessão legitima.

50. Ante a inconstitucionalidade do art. 1.790, a sucessão do companheiro deve observar a mesma disciplina da sucessão legítima do cônjuge, com os mesmos direitos e limitações, de modo que o companheiro, na concorrência com descendentes, herda nos bens particulares, não nos quais tem meação.

Como visto, a orientação dos juízes paulistas é no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade no tratamento diferenciado na sucessão causa mortis entre cônjuges e companheiros.

As correntes apresentadas são as mais radicais, havendo outras com posicionamentos mais temperados. Dentre as intermediárias, algumas merecem destaque por serem seguidas em maior número.

Há julgados que reconhecem a inconstitucionalidade exclusivamente do inciso III do artigo 1.790 do CC/02, que prevê a concorrência do companheiro com os “outros parentes sucessíveis” (termo que engloba ascendentes ad infinitum e colaterais atpe quarto grau), na qual aquele terá direito a 1/3 da herança[7]. Para seus defensores[8], elevar à condição de concorrentes os ascendentes e os colaterais até o quarto grau com o companheiro o poria em situação muito desvantajosa, beirando o absurdo. Assim, na ausência de descendentes e ascendentes, aplica-se imediatamente o inciso IV do mesmo dispositivo, conferindo direito à totalidade da herança ao companheiro, excluindo a concorrência sucessória dos colaterais.

Alguns tribunais que possuem Órgão Especial determinam a suspensão do processo, até que este decida o incidente de inconstitucionalidade, em conformidade com o artigo 97 da Constituição Federal.

Há ainda, decisão isolada e curiosa, digna de ser citada nesta obra. Trata-se do Agravo de Instrumento nº 598.268.4/4, do TJSP. Foi decidida remessa ao Órgão especial da Corte para apreciar incidente de inconstitucionalidade arguido por descendentes do de cujus, fundamentando que, no caso concreto, o regime jurídico aplicável às uniões estáveis conferia mais direitos ao companheiro que se casado fosse, tendo em vista a grande quantidade de patrimônio adquirido durante o relacionamento (TJSP, Agravo de Instrumento nº 598.268.4/4, Acórdão nº 3446085, Barueri, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Grava Brasil, julgado em 20/01/2009, DJESP 10/03/2009).

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Como facilmente depreendido, não há consenso e nem se está perto disto. Há um “carnaval” de decisões e posicionamentos acerca da matéria, chegando Flávio Tartuce (2010, p. 1244) a fazer referência a situação de como sendo uma Torre de Babel.

Pois bem. Expostos os principais argumentos, ainda que de forma superficial e didática, passa-se à análise da constitucionalidade do polêmico artigo.

Como já mencionado em linhas anteriores, a união estável foi erigida à condição e entidade familiar pelo artigo 226, §3º, da CF/1988, com a seguinte redação:

Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Trata-se de instituto diverso do casamento. Isso fica claro e evidente na última parte da redação do dispositivo que dispõe: “devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Apesar de diversos os institutos, ambos gozam de proteção constitucional.

A percepção em igualar os institutos por alguns juristas deve ser visto com certo temperamento. Não há, realmente, qualquer disposição legal ou constitucional que os equiparem. A ótica pela qual devem ser observados é diversa. Porém, o fato de não serem institutos idênticos não é suficiente para afastar a discussão acerca da constitucionalidade do disposto no multicitado artigo 1.790. O cerne da questão centra-se em saber se a proteção constitucional conferida às uniões estáveis deve ser a mesma do casamento em relação ao direito sucessório.

É necessário balizar o atual regramento sucessório aplicável ao cônjuge (art. 1.829) e ao companheiro (art. 1.790) com as disposições constitucionais, não somente com o artigo 226, mas também com os princípios constitucionais norteadores de todo o sistema (princípios gerais), mormente aqueles previstos nos artigos 1º, 3º e 5º da CF/1988.

Não assiste razão ao Des. Luiz Felipe Brasil Santos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, quando, ao proferir voto em incidente de inconstitucionalidade nº 70029390374, aduz que:

[...]o princípio da dignidade humana já está um tanto quanto gasto. Toda regra que alguém acha injusta, com a qual não concorda, invoca-se o princípio da dignidade da pessoa humana para dizer que ela, por ofender esse princípio basilar da Constituição, é inconstitucional. (Incidente de Inconstitucionalidade Nº 70029390374, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Leo Lima, Julgado em 09/11/2009).

O princípio da dignidade da pessoa humana é o norteador de todo direito privado em todas suas relações, inclusive nas mais íntimas, aquelas ligadas à família. É a mola propulsora do Direito Civil-Constitucional.

Realmente, talvez não seja o princípio da dignidade da pessoa humana o fundamento para declarar a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC/2002, mas não se pode concebê-lo como fundamento superado, apto a ter sua incidência afastada dos campos familiar e sucessório. Ademais, há de se admitir a disposição legal como um retrocesso social e legislativo que não atende os anseios da sociedade moderna e deixa de contemplar uma evolução natural dos movimentos sociais.

O retrocesso social é, via oblíqua, causa de inconstitucionalidade. É permitir que o direito legitimado pelo atendimento às expectativas da sociedade seja alterado por novas disposições injustas alheias à realidade fática social.

E aqui merece destaque a lição extraída de um artigo de autoria de Ricardo Maurício Freitas Soares (2011), cujo teor vale citar, in litteris:

A ideia de vedação ao retrocesso deflui, originariamente, da afirmação de que as conquistas relativas aos direitos fundamentais não podem ser elididas pela supressão de normas jurídicas progressistas. A vedação ao processo permite, assim, que se possa impedir, pela via judicial, a revogação de normas infraconstitucionais que contemplem direitos fundamentais do cidadão, desde que não haja a previsão normativa do implemento de uma política pública equivalente, tanto do ponto de vista quantitativo, quanto da perspectiva qualitativa. Sendo assim, a vedação do retrocesso desponta como o núcleo essencial dos direitos sociais, constitucionalmente garantido, já realizado e efetivado através de medidas legislativas, devendo-se considerar inconstitucionais quaisquer medidas estatais que, sem a criação de outros esquemas compensatórios, se traduzam numa anulação, revogação ou aniquilação desse núcleo essencial.No sistema jurídico brasileiro, a idéia de uma vedação ao retrocesso em matéria de direitos fundamentais decorre da interpretação sistemática e teleológica dos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito (art. 1°, caput), do desenvolvimento nacional (art. 3°, II), da máxima eficácia das normas definidoras de direitos fundamentais (art. 5°, parágrafo primeiro), da segurança jurídica (art. 5°, XXXVI), e, sobretudo, da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III).

CANDIL (2012, p. 97), em comentários acerca da constitucionalidade do artigo 1.790 do CC/2002, leciona que “apesar de ser injusta a lei ordinária que estabelece diferença quanto ao direito sucessório concedido aos companheiros e aos cônjuges, não há afronta à Constituição Federal”. Inobstante adjetivar a legislação de injusta, a referida jurista dá a entender que se posiciona pela legalidade e constitucionalidade em conferir menos direitos à união estável.

De fato, a doutrina majoritária manifesta-se por não haver hierarquia ou primazia de um instituto sobre o outro, o que nos leva a concluir que ambos gozam da mesma proteção constitucional, ou seja, a tutela da família. Ademais, a família, segundo Gustavo Tependino (1999), é meio para se chegar ao fim que é a promoção da pessoa enquanto ser humano. O homem como ser social necessita das relações intersubjetivas para viver e desenvolver suas faculdades mentais.

Ora, seguindo a lógica do atual desenvolvimento do direito privado, especificamente do direito de família, não é difícil concluir que esta representa a forma mais íntima e significativa de interação social com vistas à felicidade e desenvolvimento pessoal.

Sendo assim, não coaduna com os princípios constitucionais diferenciar, não os institutos, mas os efeitos sucessórios decorrentes deles, privilegiando um e desprivilegiando outro, uma vez que a proteção conferida situa-se no mesmo plano, tutelando direitos da mesma natureza, e a ratio essendi da norma constitucional é o desenvolvimento da pessoa humana. Seja qual for o fundamento utilizado, dentre os apresentados nesta obra, o resultado a que se chega deverá ser o mesmo. Seja pela equiparação das entidades familiares, pela vedação ao retrocesso social, pela isonomia ou pela dignidade da pessoa humana.


4. CONCLUSÃO

Em linhas conclusivas, sem qualquer embargo, afirma-se que a Constituição Federal de 1988 causou uma enorme revolução no direito privado, inclusive no campo familiar.

Ao denominar a antiga figura do concubinato puro como união estável restou clara a intenção de abandonar antigos preconceitos sofridos por aquele instituto. Inobstante a boa intenção e o grande avanço trazido ao direito positivo aplicável às relações familiares, os tribunais demoraram a atender o comando constitucional somente o fazendo após a regulamentação da matéria pelas por leis infraconstitucionais (Leis 8.971/1994 e 9.278/1996). Em muito, a ineficácia da norma é atribuída aos resquícios do período do regime militar, no qual era relegado o poder normativo da Constituição.

Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, com seu projeto original do ano de repleto de emendas, após longos 26 (vinte e seis) anos de tramitação (DINIZ, 2013, p. 69), ao revés do que se esperava pelos estudiosos, houve um retrocesso no trato da união estável em relação ao casamento. Deixou a nova legislação de avançar, como vinha fazendo com a edição das leis infraconstitucionais anteriores, ao trazer a redação das mais polêmicas em seu artigo 1.790.

O referido artigo, que suscintamente disciplina a matéria sucessória aplicável às uniões estáveis, trata de forma diferenciada em relação ao casamento. Em muitas hipóteses comete o absurdo equívoco de submeter o companheiro a uma situação de imensa desvantagem em comparação a se casado fosse. É o que ocorre, v. g., com o inciso III do referido dispositivo legal que prevê a concorrência sucessória com os colaterais até quarto grau.

A partir de então passaram a surgir numerosos posicionamentos que afirmam a existência de vícios de inconstitucionalidade no dispositivo. Uma das correntes mais contundentes é a da inconstitucionalidade de todo artigo, sob o fundamento de que o tratamento desigual entre cônjuge e companheiro encontra óbice na Constituição Federal, devendo, portanto, ser expurgado do ordenamento jurídico. Via de consequência, os seguidores desta corrente defendem a aplicação do artigo 1.829, que disciplina a matéria sucessória do cônjuge, às uniões estáveis.

Os tribunais então, quando as matérias foram sendo submetidas à sua apreciação, passaram a decidir sem o mínimo consenso, havendo uma grande diversidade de entendimentos aplicáveis. Muitas decisões foram baseadas unicamente na equiparação ou não da união estável ao casamento. Contudo, de plano de fundo surgem outros fundamentos diversos dos que tem recebido enfoque dos julgadores. É o caso, v.g., dos princípios constitucionais da vedação do retrocesso social e da dignidade da pessoa humana.

Portanto, muda-se o fundamento e enfoque da equiparação das entidades familiares para abrir a tábua axiológica constitucional e verificar a harmonia da disposição legal. Em confronto com os valores constitucionais chega-se à conclusão que, ainda que se trate de entidades/institutos diversos, a proteção constitucional conferida, tanto a uma como a outra, é a mesma, sem distinções. E mais, a noção atual de família é baseada no afeto das relações intersubjetivas e possui vistas à promoção do ser humano como tal, a denominada família eudemonista. Assim, a interpretação a ser dada a toda e qualquer norma de direito privado tem que primar pela pessoa humana, individual e coletivamente considerada, em detrimento de qualquer outro bem, inclusive abandonando contundentemente “ranços preconceituoso” (DIAS, 2005, p.163).

Sobre o autor
Matheus Monteiro Queiroz da Rocha

Advogado Militante. Pós-Graduado em Direito Civil pela LFG/Universidade Anhanguera, Coord. Pablo Stolze. Ex-estagiário de nível superior do 6º Juizado Especial Cível de Acidentes de Trânsito da Comarca de Aracaju/SE. Ex-estagiário de nível superior da Turma Recursal Única do Estado de Sergipe.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Matheus Monteiro Queiroz. O direito sucessório nas uniões estáveis e a (in)constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3987, 1 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28043. Acesso em: 15 nov. 2024.

Mais informações

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência parcial para a obtenção de título em curso de Pós-Graduação em Direito Civil, sob a orientação do Professor Renato Sedano Onofri.

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