1. Jurisdição e Competência
Há muito está assente na doutrina que jurisdição e competência são conceitos inconfundíveis.
Deveras, todo juiz possui jurisdição, quer dizer, o poder geral de, na dimensão constitucional, aplicar e realizar o Direito[2]. Vale lembrar que, segundo respeitável doutrina, o encargo jurisdicional se revela, ao mesmo tempo, como poder (aplicação impositiva de decisões), função (pacificação justa de conflitos) e atividade (prática de atos tendentes a exercer esse poder e cumprir essa função)[3]. Isso significa que todo e qualquer magistrado – o chamado Estado-juiz – está revestido do poder de declarar e realizar concretamente o direito, ainda que de maneira forçada[4].
A jurisdição, em si, é una e indivisível. Entretanto, para que melhor seja administrada e à vista da imensa variedade de conflitos que diuturnamente pululam do meio social, convencionou-se em se prefixar uma quantidade de jurisdição a cada órgão jurisdicional, uma esfera dentro da qual o exercício da jurisdição poderá ser praticado de forma válida e eficaz[5]. Por isso, malgrado legal e legitimamente investido na função jurisdicional, nem todo juiz ou órgão judicante possui competência, ou seja, nem sempre o julgador poderá colocar em prática o exercício pleno de sua jurisdição na apreciação e julgamento de determinados tipos de questões[6]. Daí se afirmar, como um clássico de doutrina, que competência é a medida da jurisdição[7].
A respeito, segue a atilada lição de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, in verbis:
“[...] o Estado, para exercer o ‘poder jurisdicional’, precisa de vários juízes, juízos e tribunais, principalmente em um país com a dimensão territorial do Brasil, pelo que, para que a ‘justiça’ possa ser ordenada e efetivamente exercida, é necessários que os vários casos conflitivos concretos sejam classificados e agrupados de acordo com pontos que têm em comum, que os Processos que a eles servem de instrumento têm em comum, ou que as pessoas que neles estão envolvidas possuem em comum, distribuindo-se o poder jurisdicional na medida dos casos que forem agrupados. Como o poder jurisdicional deve ser distribuído, dá-se o nome de competência à jurisdição que pode e deve ser exercida por um órgão, ou por vários órgãos, em face de um determinado grupo de casos. A competência, portanto, nada mais é do que uma parcela da jurisdição que deve ser efetivamente exercida por um órgão ou grupo de órgãos do Poder Judiciário” (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 2ª Edição. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 37-38).
A competência, pois, é um conceito que não guarda relação com aspectos meramente estáticos e abstratos. Ao revés, a correta percepção da noção de competência vai apontar para a aplicação prática do poder jurisdicional, cujo exercício, na dinamicidade que lhe é inerente e em cada caso concreto, há de ser sempre legítimo, porque pautado à luz de regramentos previamente estabelecidos[8]. E isso, vale rememorar, constitui uma expressa garantia constitucional: “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (CF, art. 5º, LIII).
2. Competência Territorial: Ideia Básica
Solucionada a questão da competência material, ou seja, sabedor sobre qual ramo do Poder Judiciário deverá apreciar e julgar determinada demanda individual (no nosso caso, Justiça do Trabalho), o próximo passo será “definir, dentre as muitas varas identicamente competentes pelo critério objetivo em todo o Brasil [...], aquela a qual efetivamente caberá processar e julgar o feito. É por isso que se afirma que a competência territorial é critério de distribuição de competência entre órgãos do mesmo tipo” (MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Código de Processo Civil Interpretado: Artigo por Artigo, Parágrafo por Parágrafo. 9ª Edição. Barueri, SP : Manole, 2010, p. 125).
Com efeito, a competência territorial, também conhecida como competência em razão do lugar ou ex ratione loci, é aquela que cuida dos limites geográficos do exercício da jurisdição[9]. Atende ao interesse das partes, visando a lhes facilitar o acesso ao Judiciário, o que demonstra se tratar de uma competência de cunho relativo, já que passível de modificação pela simples vontade humana. Em assim sendo, não cabe ao juiz dela conhecer de ofício.
3. Competência Territorial das Varas Trabalhistas
3.1. Compreendendo o art. 650 da CLT
Dispõe a CLT, em seu art. 650, que “a jurisdição de cada Junta de Conciliação e Julgamento abrange todo o território da Comarca em que tem sede, só podendo ser estendida ou restringida por lei federal”.
Esse dispositivo exige, no mínimo, três esclarecimentos.
Em primeiro lugar, cumpre destacar que o tema tratado nesse enunciado celetista não é o poder jurisdicional, mas, sim, o seu exercício legítimo, dentro de uma determinada área geográfica (“todo o território da Comarca em que tem sede”). Logo, muito embora faça menção a “jurisdição”, in vero o texto da lei está se referindo ao instituto da “competência”[10].
Em segundo lugar, é preciso ter em conta que a CLT, em diversos de seus dispositivos, trata das “Juntas de Conciliação e Julgamento” como órgão de primeira instância, composto por um juiz concursado, chamado de Presidente, e dois juízes temporários, representantes dos trabalhadores e empregadores, leigos e indicados por suas respectivas entidades sindicais. A Constituição Federal de 1988, em seu texto originário, manteve essa estrutura colegiada, realidade que só foi alterada com a Emenda Constitucional nº 24/1999, que extinguiu a representação classista da Justiça do Trabalho e transformou sua primeira instância em órgão monocrático, exercido apenas por um juiz concursado[11].
Por conta disso, o art. 111, III, da Carta Magna, foi alterado para apontar como órgão da Justiça do Trabalho não mais a Junta de Conciliação e Julgamento, mas o próprio Juiz do Trabalho, cuja jurisdição passou a ser exercida em uma unidade jurisdicional denominada de “Vara do Trabalho”. Para espancar qualquer dúvida, suprimiu-se do art. 113 a parte que garantia, nessa Justiça Especializada, a paridade de representação de trabalhadores e empregadores, passando o art. 116 a regrar, peremptoriamente, que “nas Varas do Trabalho, a jurisdição será exercida por um juiz singular”.
Dessa forma, a partir da Emenda Constitucional nº 24/1999, bem assim levando em consideração que, infelizmente, até hoje nenhuma alteração formal foi realizada no texto da CLT, sempre que o leitor se deparar, em seu texto, com a expressão “Junta de Conciliação e Julgamento”, há de se entender por “Vara do Trabalho”, operando uma adaptação mental da redação da CLT, com vistas a harmonizá-la com as disposições constitucionais vigentes.
Em terceiro lugar – e já aplicando os esclarecimentos acima –, convém frisar que está derrogado o art. 650 da CLT, na específica parte que estatui que a competência da Vara do Trabalho só pode “ser estendida ou restringida por lei federal”. Isso se dá porque a Lei nº 10.770/2003, amenizando esse rigor, dispôs, em seu art. 28, que compete ao Tribunal Regional do Trabalho, no âmbito de sua região, mediante ato próprio, alterar e estabelecer a jurisdição das Varas do Trabalho, bem como transferir-lhes a sede de um Município para outro, de acordo com a necessidade de agilização da prestação jurisdicional trabalhista. Logo, hoje, basta um ato administrativo, exarado no âmbito do próprio Tribunal, para implementar alterações na competência territorial de suas Varas do Trabalho.
Segundo Eduardo Henrique Raymundo von Adamovich, esse art. 28 da Lei nº 10.770/2003 é “manifestamente inconstitucional, porque envolve delegação da competência do Poder Legislativo ao Poder Judiciário, ao arrepio dos arts. 112 e 113 da Constituição” (ADAMOVICH, Eduardo Henrique Raymundo von. Comentários à CLT – Consolidação das Leis do Trabalho. 2ª Edição. Rio de Janeiro : Forense, 2010, p. 357). Não enxergamos, porém, qualquer traço de inconstitucionalidade nesse dispositivo. A se ver debaixo da ótica do art. 113 da Constituição Federal, trata-se de regramento emitido por quem detinha plena competência para tanto (Poder Legislativo), aviado através do meio jurídico adequado (lei ordinária), onde, acertadamente, com espeque no princípio da eficiência (CF, art. 37, caput), delega interessantes atribuições aos Tribunais Regionais do Trabalho, a fim de que cada qual, da melhor maneira possível, (re)organize a distribuição do serviço judiciário à luz da dinamicidade socioeconômica subjacente à sua própria realidade local. Isso se justifica mais ainda quando rememoramos que o Brasil é um país dotado de gigantesca dimensão geográfica e enorme diversidade social, cultural e econômica, o que só ratifica o acerto dessa importante nótula de flexibilidade implantada pelo legislador.
3.2. Exegese do art. 651 da CLT. Questões prévias dotadas de especial relevância
O artigo 651 da CLT versa, mais diretamente, sobre a competência territorial das Varas Trabalhistas. Mas antes de pontuar alguns aspectos a respeito de sua exegese, reputamos oportuno trazer à baila duas questões prévias dotadas de especial relevância para o trato do tema.
Em primeiro lugar, um importante aspecto histórico. Como veremos mais adiante, no que concerne à competência territorial da Justiça do Trabalho em dissídios individuais, o regramento celetista gira em torno da ideia de local da prestação de serviços, sendo certo que sua formatação obedeceu a uma visão de mundo estreitamente conectada com a realidade de um Brasil essencialmente rural, de pouco fluxo migratório e marcado por postos de trabalho fixos e permanentes. Essa legislação não contava, portanto, com o forte deslocamento de trabalhadores e o enorme êxodo rural que viria a marcar o Brasil já logo a partir da década de 50, pouco depois do advento da CLT, que é de 1943[12]. Pensamos que essa profunda alteração de fatores relacionados à vivência socioeconômica brasileira deve merecer especial atenção na interpretação e aplicação do texto consolidado.
Em segundo lugar, um valioso aspecto jurídico. Isso porque o estudo, a interpretação e a aplicação desses dispositivos não apenas devem atentar para o contexto social hodierno. Mais que isso, convém apreciá-los, acima de tudo, na esteira de uma perspectiva que se afine com o contexto jurídico atual, sobretudo à luz da nova ordem constitucional instaurada com a Carta Federal de 1988. Logo, ao cuidar da temática da competência territorial da Justiça do Trabalho, certamente recairá sobre o intérprete o dever de, sempre e sempre, testar suas colocações junto ao rigorosíssimo crivo da axiologia constitucional, nomeadamente em face dos princípios da inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV), do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), da duração razoável do processo (CF, art. 5º, LXXVIII) e, claro, da igualdade (CF, art. 5º, caput e I) e da própria dignidade da pessoa humana, este último fundamento da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, III)[13].
Essas duas questões, de ordem histórica e jurídica, ainda que de modo implícito, serão sempre levadas em conta no estudo que nos propomos fazer ao longo deste capítulo, porquanto impera em nossa consciência a inarredável assertiva de que o intérprete, na tarefa de construir o sentido do texto jurídico, deve prestar inteira fidelidade ao compromisso de associar rigor técnico com sensibilidade social, de sorte a aproximá-lo, o máximo possível, da dinâmica realidade contemporânea[14].
Feitas essas considerações de ordem geral, debrucemo-nos, enfim, sobre o quanto dispõe o artigo 651 da CLT.
3.3. Compreendendo o caput do art. 651 da CLT
O artigo 651 da CLT dispõe em seu caput: “A competência das Juntas de Conciliação e Julgamento é determinada pela localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestar serviços ao empregador, ainda que tenha sido contratado noutro local ou no estrangeiro”.
Nesse enunciado, o legislador revelou o critério geral fixador da competência territorial da Justiça do Trabalho, no que respeita aos dissídios individuais: o local da prestação de serviços. Eis, no que toca ao assunto, a regra a ser observada na processualística laboral: a lex loci executionis[15].
Essa redação pertence ao texto original da CLT. Mas o critério do local da prestação dos serviços já estava consagrado no sistema jurídico brasileiro há algum tempo. De acordo com o art. 33 do Decreto-lei nº 1.237/1939, que organizou a Justiça do Trabalho, “a competência das Juntas, juízes e tribunais do trabalho é determinada pelo local do estabelecimento onde o empregado, reclamante ou reclamado, exerça atividade profissional, ou onde ocorra o dissídio coletivo”. Mais tarde, com o art. 8º do Decreto nº 6.596/1940, que aprovou o regulamento da Justiça do Trabalho, esse critério ficou mais explícito, ao dispor que “a competência das Juntas de Conciliação e Julgamento é determinada pela localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestar serviços ao empregador, ainda que tenha sido contratado noutro local ou no estrangeiro”, regra que, depois, foi mantida no bojo do texto celetista, publicado, como sabemos, em 1943[16].
Cotejando com os principais regramentos processuais, podemos afirmar que, ao seguir nessa linha, a CLT, ao que parece, afasta-se da regra geral de competência territorial firmada no processo civil, cujos artigos 134, caput, do CPC de 1939, e 94, caput, do CPC de 1973, sempre firmaram ser o foro do domicílio do réu[17], e se aproxima, de certo modo, do processo penal, que trabalha com a noção de local da infração, ou, no caso de tentativa, local em que for praticado o último ato de execução, como estabelecido no art. 70, caput, do CPP vigente[18].
Por localidade onde se presta serviço há de se entender, certamente, não como bairro ou distrito. A verdade é que o legislador se valeu de uma palavra não jurídica (localidade) para, àquela época, referir-se, muito provavelmente, à noção de município. Essa tese se convalida quando recordamos que o próprio TST assim interpreta essa locução, quando trata do tema da equiparação salarial[19]. Aliás, por força do enorme crescimento de algumas cidades, cuja aproximação por vezes suscita um espaço geográfico detentor de similar padrão de vida, já até se confere à palavra “localidade” um alcance bem mais alargado, abrangendo a área de mais de um município, desde que, comprovadamente, pertençam à mesma região metropolitana (Súmula nº 06 do TST, item X[20]). Não há razão para, aqui, pensar-se diferente.
Perceba-se, ademais, que esse enunciado legal é claramente marcado pelo princípio protetivo, porquanto a intenção do legislador celetista, às claras, foi a de ofertar uma regra que favoreça ao trabalhador, facilitando-lhe o acesso ao Poder Judiciário. Exatamente por isso, a compreensão desse dispositivo não pode desprezar essa veia tuitiva que lhe marca: trata-se de uma regra que, iniludivelmente, destina-se a favorecer o empregado e não o empregador, devendo ser esse um forçoso vetor hermenêutico a influenciar o intérprete em qualquer discussão a respeito do assunto[21]. Justamente por isso, concordamos in totum com o magistério de Cleber Lúcio de Almeida, quando, decerto fulcrado em uma visão constitucional, afirma:
“A regra disposta no caput do art. 651 da CLT tem por finalidade facilitar o acesso do trabalhador à Justiça do Trabalho e, com isso, à defesa de seus direitos. Por força do escopo do legislador ao adotar a regra enunciada no art. 651, caput, da CLT, a facilitação do acesso do trabalhador à justiça deve informar a resposta a qualquer indagação a respeito da competência para conhecer de sua demanda ou da demanda contra ele proposta” (ALMEIDA, Cleber Lúcio de. Direito Processual do Trabalho. 3ª Edição. Belo Horizonte : Del Rey, 2009, p. 151).
Mas onde estaria, em termos mais precisos, esse proclamado viés protetivo?
Em primeiro lugar, conforme a cristalina dicção da lei, porque a regra do local da prestação de serviço se impõe mesmo que, no plano do direito material, o empregado “tenha sido contratado noutro local ou no estrangeiro”. Logo, se o obreiro foi contratado em Marabá (PA), mas prestou serviços em Belém (PA), a rigor, a competência territorial é de uma das Varas do Trabalho da capital paraense. Igualmente, se o trabalhador foi contratado no Chile, mas prestou seus serviços na cidade de São Paulo (SP), a competência territorial, de regra, é de uma das Varas do Trabalho da capital paulista. O conhecimento que se deve assimilar, aqui, é esse: o critério geral não é o local da contratação dos serviços, mas, sim, o local da prestação dos serviços. Havendo coincidência entre os locais da contratação e da prestação dos serviços, o debate, por óbvio, perde utilidade prática.
Em segundo lugar, ainda conforme o expresso texto da lei, porque a regra do local da prestação de serviço se impõe, pouco importando, no plano do direito processual, qual o polo ocupado pelo trabalhador na ação trabalhista. Dessa forma, seja figurando como reclamante, seja como reclamado, o critério para o ajuizamento da ação, no tocante à competência territorial, será o mesmo: o do local da prestação dos serviços. De consequência, o ajuizamento de uma ação de consignação em pagamento, cujo polo passivo, de regra, é ocupado pelo trabalhador, decerto há de obedecer ao critério do local da prestação de serviço do empregado/consignado, o mesmo ocorrendo em caso de inquérito para apuração de falta grave ou em ação movida pelo empregador em busca de indenização por danos (morais ou materiais) praticados pelo empregado. O conhecimento que se deve assimilar, aqui, é esse: mesmo que a ação seja proposta pelo empregador, o critério geral continua sendo o do local da prestação dos serviços do empregado.
Em terceiro lugar, essa regra se impõe à revelia de qualquer discussão a respeito da nacionalidade do empregado. Como a lei não faz distinção e à vista da profundidade do princípio isonômico estabelecido no art. 5º, caput e XIII, da Carta Magna[22] – que prima por igualdade de tratamento entre brasileiros e estrangeiros residentes no país, inclusive na esfera laboral –, não há outra conclusão senão a de que a regra destina-se a beneficiar a todo e qualquer empregado que atue em terrae brasilis, brasileiro ou estrangeiro[23].
Mesmo diante dessas colocações, alguém poderia ainda perguntar: afinal de contas, onde estaria, em termos práticos, essa tal conotação tuitiva que se afirma impregnar esse dispositivo? Enfim, em termos mais pragmáticos, qual a teleologia específica desse enunciado normativo?
De um lado, o primeiro benefício prático que advém ao trabalhador por força da fixação do local da prestação dos serviços está centrado em um fator econômico. A lei trabalha, em uma perspectiva externa, com a presunção de que o local da prestação dos serviços é o mesmo local onde o obreiro vive, de modo que o ajuizamento da ação em Vara Trabalhista da mesma circunscrição geográfica de sua residência serve para propiciar um mínimo de custo de deslocamento. Cuida-se de um escopo material, ancorado na hipossuficiência financeira do obreiro[24].
Mas não é só. Essa opção legal também é altamente benfazeja ao trabalhador na perspectiva interna, relativa ao processo propriamente dito. Deveras, o fato de poder ajuizar a ação no mesmo local da prestação dos serviços é circunstância altamente facilitadora no que toca à coleta de provas. Nesse particular, a lei trabalha com a presunção de que o local da prestação dos serviços é um ponto de referência para toda a documentação atinente ao pacto laboral, o que facilita sua coleta e produção probatória, ainda que sob encargo patronal. Demais disso, o local do exercício das atividades laborais é também um ponto de referência entre os colegas de trabalho, o que facilita ao obreiro angariar testemunhas. Não bastasse, também é o local da prestação de serviços que, por vezes, deve merecer averiguação pericial, como em casos de pleito de adicionais de periculosidade e insalubridade. Não há dúvidas, portanto, que, em tese, o ajuizamento da ação em Vara Trabalhista da mesma circunscrição geográfica do local da prestação de serviços serve para propiciar, em termos mais diretos, um máximo de capacidade probatória. Trata-se de um escopo processual, ancorado na hipossuficiência técnica do obreiro[25].
Reconhecendo essas colocações, colacionamos a seguinte decisão:
“EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA RATIONE LOCI. ART. 651 DA CLT. INTENÇÃO DO LEGISLADOR. A despeito de o artigo 651 da CLT estabelecer expressamente que "A competência das Varas do Trabalho é determinada pela localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestar serviços ao empregador", certo é que a mens legis de referido dispositivo consistiu unicamente em tornar a Justiça Laboral mais acessível ao trabalhador hipossuficiente, ficando-lhe garantida a propositura de reclamações trabalhistas no local da prestação de serviços e não no do domicílio do reclamado. Não menos certo que o legislador estabeleceu tal critério de fixação de competência considerando, também, a provável residência do trabalhador próximo ao local da prestação dos serviços, dada a necessidade de comparecer diariamente (ou pelo menos habitualmente) ao trabalho. Razoável ainda pela facilidade de produção de provas testemunhais, pois as testemunhas envolvidas no caso não precisariam se deslocar longas distâncias para depor em juízo, sendo certo que o contrário inevitavelmente dificultaria a produção de referida prova. Assim, a atuação do julgador não deverá se ater à aplicação da seca literalidade do artigo, mas deve observar, principalmente, o princípio da razoabilidade, bem assim, se está sendo atendida a verdadeira intenção do legislador, que, in casu, é propiciar ao trabalhador hipossuficiente maior acessibilidade à Justiça” (TRT 23ª (MT), 2ª Turma, RO 00508.2006.026.23.00-9, Relator: Desembargador Osmair Couto, DJ de 19.12.2006).
Insta consignar, por oportuno, que ambos os escopos citados confluem para um irrefutável lugar comum: a facilitação do acesso a uma ordem jurídica justa. E, aqui, segue o ponto nodal da questão: no fundo, hoje, em verdade, o que melhor legitima o quanto disposto no caput do artigo 651 da CLT não são essas ponderações alusivas à minimização dos recursos financeiros ou mesmo à maximização dos recursos probatórios do trabalhador. O que confere mesmo magnitude a esse sistema, já desde quando formulado na dicção originária da CLT, é exatamente sua especial vocação em forjar um ambiente processual de acesso fácil e desenvolvimento justo, compromisso legal que, na atual vivência jurídica, vai ao pleno encontro dos ditames principiológicos consagrados na Constituição Federal de 1988, em particular da feição material do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV)[26].
Como exemplo dessa preocupação em ler o artigo 651 da CLT com olhos postos nos ditames constitucionais, vale conferir o seguinte julgado:
“EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DO LUGAR. ART. 651 DA CLT. RECURSO ORDINÁRIO. CABIMENTO. PROVIMENTO. Numa interpretação literal do caput do art. 651 da CLT, estaria afastada a competência das Varas do Trabalho da Capital deste Estado para conhecer e julgar o feito. Todavia, a interpretação literal não é a melhor a ser dada às disposições legais, devendo o intérprete – e principalmente o aplicador da lei - buscar o real sentido e a finalidade precípua na norma, com o objetivo de acompanhar a evolução social e atualizar e dinamizar a própria norma a ser aplicada, mantendo a ordem jurídica sempre em sintonia com a ordem social e com os ideais de justiça. Deve o aplicador do direito utilizar-se das interpretações sistemática e teleológica, as quais orientam no sentido de que, na fixação da competência territorial, deve-se dar relevância à questão da insuficiência econômica do trabalhador, bem como facilitar o seu acesso ao Poder Judiciário. Na interpretação e aplicação das disposições do art. 651, da CLT, deve-se ter como escopo facilitar ao litigante economicamente mais fraco o ingresso em juízo em condições mais favoráveis à defesa de seus direitos, sem que isso resulte em prejuízo à demandada. Ademais, a fixação da competência territorial da 9ª Vara desta Capital de Mato Grosso dá efetividade aos princípios constitucionais que orientam nossa ordem jurídica, tais como o da valorização da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da inafastabilidade da apreciação pelo Poder Judiciário de lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV), além do que estende a aplicabilidade dos princípios processuais constitucionais do contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV) e da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII). Recurso da Reclamante a que se dá provimento para declarar a competência da egrégia 9ª Vara do Trabalho de Cuiabá - MT para processar e julgar a reclamação trabalhista. (TRT - RO - 00562.2007.009.23.00-0; Fonte: DJE/TRT 23ªR nº 0314 / 2007 de 06/09/2007; Data de Publicação: 10/09/2007)”.
Para encerrar este tópico, segue uma última reflexão. Há quem afirme que, na hipótese do empregado ter trabalhado em diversos estabelecimentos, mas sempre em locais diferentes – fato muito comum entre os bancários –, a competência territorial da Vara do Trabalho deve ser fixada com base no último local de prestação de serviços[27].
Discordamos, porém, dessa assertiva. Imaginemos o caso de um empregado que laborou por 10 anos em Porto Alegre (RS), mas que, transferido, atuou nos últimos dois meses de labor em Pelotas (RS), por força de transferência provisória. Ora, onde houve maior lapso de efetiva prestação de serviço desse obreiro? Onde estariam, em tese, as testemunhas que deporiam a respeito da maior parte do seu contrato de trabalho? Por isso, perfilhamos da tese de que o trabalhador poderá ajuizar sua ação trabalhista em qualquer das localidades em que tenha atuado, mesmo que em caráter provisório – na hipótese gizada, seja em Porto Alegre (RS), seja em Pelotas (RS) –, porque em ambas houve prestação de serviços, único requisito exigido pela lei[28].
Justamente por isso – porque tal requisito não está na lei, muito menos decorre de sua principiologia –, é totalmente despiciendo avaliar se essa transferência se deu em caráter provisório ou definitivo, para fins de influência na fixação da competência territorial trabalhista. Basta que tenha ocorrido uma dedicada e relativamente prolongada prestação de serviços, algo, pois, que não tenha sido eventual ou de curtíssima duração – v.g., por algumas horas, uma tarde ou mesmo somente um dia. Mas não é só: o acolhimento da tese contrária também “estaria propiciando ao empregador quase que a totalidade do direito de escolha do foro, já que é este detentor, em tese, do direito de transferência do empregado”[29], circunstância que, à toda evidência, atritaria com o notório propósito tutelar que lastreia todo o dispositivo celetista em estudo[30].
3.4. Compreendendo o § 1º do art. 651 da CLT: Empregado Agente ou Viajante
A CLT, no caput do artigo 651, fincou de modo claro a regra geral, no tocante ao critério estabelecedor da competência territorial das Varas Trabalhistas: o local da prestação dos serviços. E, ao assim proceder, resta evidente que o regramento celetista trabalha com uma específica compreensão de dinâmica laboral: aquela onde a prestação de serviços se dá em um mesmo e único local, em tom permanente. Noutros termos: a regra geral por ali delineada pressupõe uma referência fixa, no que refere ao local da execução do serviço. Trabalha-se, pois, sempre, no mesmo lugar.
Entretanto, o próprio legislador trabalhista reconheceu a existência, ainda que em caráter excepcional, de hipóteses de trabalho cuja execução do serviço dá-se por diversas localidades, seja pela natureza do serviço realizado pelo empregado, seja pela própria natureza do empreendimento. Nesses casos, por inexistir uma referência fixa, no que tange ao local da prestação dos serviços, resta, então, como inaplicável o critério geral legalmente estabelecido no caput do art. 651 da CLT.
Desse modo, surge a necessidade de criar exceções àquela regra geral, cujas hipóteses são tratadas nos três parágrafos que seguem ao caput do citado enunciado legal. Vejamos.
A primeira exceção está contida no § 1º do art. 651 da CLT, cujo teor é o que segue: “Quando for parte de dissídio agente ou viajante comercial, a competência será da Junta da localidade em que a empresa tenha agência ou filial e a esta o empregado esteja subordinado e, na falta, será competente a Junta da localização em que o empregado tenha domicílio ou a localidade mais próxima”.
O preceito celetista trata do caso do agente ou viajante comercial, no que se aventurou a reger aquelas situações onde é intrínseco à atividade obreira o exercício de um mister laboral que se perfaz pelo atravessar de várias cidades, Estados ou mesmos regiões[31]. O foco central está, portanto, no trabalhador, mais particularmente suas especiais condições de trabalho: realização de atividades em vários locais, sem se fixar em qualquer deles[32]. É o caso do vendedor externo que, nada obstante vinculado à filial de Salvador (BA), detém uma zona de atuação que abrange diversos outros municípios do sul da Bahia[33].
Mas é preciso que façamos uma leitura escorreita do dispositivo, de modo a refutar qualquer alegação de que seu texto tem como destinatários apenas e tão somente agentes ou viajantes comerciais. Não se pode querer emprestar ao dispositivo um traço hermético que nunca possuiu, uma linha de taxatividade a que nunca se prestou, prendendo-se, em demasia, à literalidade da lei. Como acentua Homero Batista Mateus da Silva:
“Todas as ocupações que não se concentram numa só localidade devem ser canalizadas para a regra do § 1º do art. 651, por ser muito mais adequado à fixação da competência. São pessoas que guardam em comum o cotidiano de deslocamentos intensos, que nada têm a ver com simples transferências periódicas de cidades. Podem ser vendedores com poderes efetivos de negociação, mas também podem ser simples divulgadores dos produtos, propagandistas de remédios que visitam clínicas e hospitais, promotores de vendas que percorrem padarias e supermercados, arrumadores de prateleiras que devem visitar cinco ou dez pontos de venda todos os dias (e em várias cidades), montadores de feiras e eventos e assim sucessivamente” (SILVA, Homero Batista Mateus da. Curso de Direito do Trabalho Aplicado. Vol. 8: Justiça do Trabalho. Rio de Janeiro : Elsevier, 2010, p. 183).
Não olvidemos que, mesmo cuidando de exceção à regra geral fixada no caput, o § 1º continua compromissado com o mesmo tônus protetivo que alimenta toda a estrutura normativa do art. 651 da CLT. Por isso, o dispositivo deve ser aplicado a favor de qualquer empregado cujas atividades laborais sejam assemelhadas às condições do “agente ou viajante comercial”. Mais claro: o preceito merece interpretação ampliativa no que toca ao seu destinatário, postura hermenêutica que lhe deixa bem mais consentâneo com o princípio da condição mais benéfica, vetor de incontestável status constitucional (CF, art. 7º, caput)[34]. Ou seja: a letra da lei não pode ser usada para anular a própria principiologia que lhe empresta força: a crescente otimização da condição social do trabalhador, nesse caso através da facilitação do exercício de seu direito constitucional de ação (CF, art. 5º, XXXV)[35].
É de bom tom esclarecer que essa é uma redação mais recente, advinda com a Lei nº 9.851/1999. O texto originário, que vigorou por mais de cinquenta anos, detinha os seguintes termos: “Quando for parte no dissídio agente ou viajante, é competente a Junta da localidade onde o empregador tiver o seu domicílio, salvo se o empregado estiver imediatamente subordinado à agência, ou filial, caso em que será competente a Junta em cuja jurisdição estiver situada a mesma agência ou filial”.
Aparentemente, a CLT, quando veio à baila, regrou a situação dos empregados viajantes de maneira diametralmente oposta ao critério geral fixado no caput, lançando, como regra de competência territorial, o local do domicílio do empregador, transmitindo a impressão de que, nesse particular, ao invés de almejar beneficiar o polo obreiro, cuidou de atentar aos interesses patronais. Ledo engano. Mesmo com essa estranha previsão, o texto consolidado não se desprendeu de sua essência protetiva: partiu do pressuposto de que – mercê da especificidade daquele que atua, paralelamente, por diversas cidades – era precisamente ali, no domicílio do empregador, que se encontrariam mais facilmente todas as provas relativas à controvérsia[36], além de provavelmente coincidir com o centro de interesses pessoais do empregado[37].
O novo texto, conferido pela Lei nº 9.851/1999, deixa patente seu intuito de facilitar ainda mais o acesso ao Poder Judiciário, operando uma sadia simplificação do regramento em questão e expurgando do sistema esse insólito critério do domicílio do empregador[38]. Agora, de acordo com o texto celetista, a fixação da Vara Trabalhista competente para apreciar e julgar eventual demanda individual de empregado que atua por diversas localidades observará a seguinte ordem: 1º) a Vara da localidade onde a empresa tenha agência ou filial e esteja o empregado a ela subordinado; 2º) inexistindo essa vinculação, o obreiro poderá optar entre a Vara do local de seu domicílio ou a Vara mais próxima.
Logo, em caso de empregado que exerça suas atividades em diversas localidades, não havendo como se apontar um local fixo para a prestação de seus serviços, a primeira análise que a CLT impõe seja feita é essa: existe alguma filial ou agência diante da qual o empregado está subordinado?
Se a resposta for positiva, a Vara Trabalhista territorialmente competente, segundo o § 1º do art. 651 da CLT, será aquela da localidade onde está situada essa agência ou filial. Tem inteira razão Homero Batista Mateus da Silva: nessa hipótese, o legislador associou o local da prestação de serviço com o local da prestação de contas, conferindo prestígio ao conceito de centro gravitacional do contrato de trabalho[39]. Ilustrativamente, se um vendedor externo, em sua atividade laboral, percorre toda a região litoral do Rio de Janeiro, mas deve prestar contas na filial de sua empresa que está localizada na capital fluminense, então será ali, em uma das Varas Trabalhistas da “Cidade Maravilhosa”, onde deverá ajuizar sua ação. Em caso de resposta negativa – ou seja, não estando subordinado a qualquer agência ou filial –, o enunciado celetista descortina diante do trabalhador uma bela opção: ajuizar a ação no foro de seu próprio domicílio ou no da localidade mais próxima. Nesse último quadro, não há qualquer dificuldade em perceber que o exercício do direito de ação fica mesmo altamente facilitado.
Como vemos, a se prender em uma ótica literal, forçoso será reconhecer a plena vigência dessa ordem de análise, que demanda, por primeiro, a averiguação da existência ou não de subordinação do empregado a uma agência ou filial. É que, deveras, o texto legal é claro quando usa a expressão “na falta”, de modo que, debaixo dessa luz, de matiz infraconstitucional, o empregado só teria aquela liberdade de opção, francamente mais protetiva, quando não possuísse qualquer laço subordinativo com filial ou agência da empresa que toma seus serviços[40].
Todavia, cremos ser possível ir avante. Para tanto, urge que se proceda a uma necessária releitura do § 1º do art. 651 da CLT, interpretando-o à luz da inarredável força normativa que emana do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, cuja nótula mais significativa está centrada no fomento ao mais amplo acesso ao Poder Judiciário. A proposta é simples: ao invés de tomar aquelas opções como estaticamente sucessivas, basta passar a encará-las como dinamicamente concorrentes. Ou seja: tratando-se de caso de empregado agente ou viajante comercial, tal qual disposto nesse polêmico dispositivo legal, o obreiro teria à sua disposição, desde logo e de pronto, a alternativa de demandar na Vara da localidade que, ao seu inteiro talante, seja a mais cômoda para o exercício do seu direito fundamental de ação, dentre as seguintes opções: i) pelo foro do local onde a empresa tenha agência ou filial e a ela esteja subordinado; ii) pelo foro do local de seu domicílio; iii) ou, ainda, pelo foro da Vara mais próxima[41]. Trata-se, portanto, de uma leitura constitucionalmente adequada do § 1º do art. 651 da CLT[42].
A se partir dessa ótica mais elevada, de nítida ancoragem constitucional, acreditamos ser viável a produção de um modelo hermenêutico mais consentâneo com os clássicos propósitos tutelares imanentes à seara juslaboral, além de bem mais contextualizado com o princípio da inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV), ofertando algum contributo para a consecução do árduo desiderato político-constitucional de se construir uma sociedade cada vez mais livre, justa e solidária (CF, art. 3º, I)[43]. Certamente, dentre inúmeros outros fatores, a concretização desse escopo vai exigir a contínua e corajosa edificação de uma ambiência jurídica livre de qualquer empecilho formal e à margem de qualquer legalismo estéril, garantindo ao cidadão o precioso ensejo de poder alavancar sua dignidade através da busca consciente e aberta de uma tutela judicial efetiva de seus direitos, violados ou mesmo que sob simples ameaça de violação.
Também vale trazer à tona outra curiosa discussão. Homero Batista Mateus da Silva acentua que, inexistindo qualquer Vara Trabalhista na cidade de domicílio do trabalhador e não estando essa cidade debaixo da jurisdição de qualquer outra Vara Trabalhista, o § 1º do art. 651 da CLT, ao falar de “localidade mais próxima”, poderia ter quebrado a regra geral de que a pretensão do empregado, nessa situação, deveria ser dirigida ao juiz de direito da localidade – investido, excepcionalmente, da jurisdição trabalhista –. A seu ver, “trata-se de situação especialíssima em que, mesmo não havendo Vara Trabalhista na região, atribui-se competência para outra Vara Trabalhista das redondezas, conquanto isso não tenha constado da lei que a instituíra” (SILVA, Homero Batista Mateus da. Curso de Direito do Trabalho Aplicado. Vol. 8: Justiça do Trabalho. Rio de Janeiro : Elsevier, 2010, p. 185).
Todavia, em nossa opinião, a se tomar esse rumo intelectivo, acabar-se-á fazendo restrição não condizente com a tônica de máxima abertura impressa pela legislação, que, de maneira contundente, põe à disposição do empregado uma rara liberdade de ajuizar sua ação trabalhista do modo mais cômodo possível, optando entre o local de seu domicílio ou a “localidade mais próxima”.
Destarte, somos do entendimento de que é facultado ao empregado o ajuizamento de sua ação no foro de seu domicílio ou na “localidade mais próxima”, assim, simples, exatamente como preceitua a lei, sem qualquer espécie de restrição, pouco importando, pois, se esse aforamento dar-se-á diante de juiz do trabalho ou – em sendo o caso e de acordo com a normatização pertinente – diante de juiz de direito, revestido do exercício atípico de jurisdição trabalhista. Em termos mais claros: mesmo nessa temática, permanece em vigor o comando estampado no artigo 112 da Constituição Federal[44]. Com isso, salvaguarda-se essa alvissareira linha de franca potencialização do exercício do direito de ação, enquanto expressão de concretude da dignidade humana[45].
3.5. Compreendendo o § 3º do art. 651 da CLT: Atividade que abrange diversas localidades
A CLT também flexibilizou a regra geral do local da prestação de serviços com a situação descrita no § 3º do art. 651 da CLT, que assim dispõe: “Em se tratando de empregador que promova realização de atividades fora do lugar do contrato de trabalho, é assegurado ao empregado apresentar reclamação no foro da celebração do contrato ou no da prestação dos respectivos serviços”.
O preceito celetista supracitado postulou reger aquelas situações onde seria intrínseco à atividade patronal o exercício de um empreendimento que se realiza através de um constante deslocamento físico do trabalhador. Ao contrário do que vimos no § 1º, aqui o foco central está no empregador, mais particularmente suas especiais condições de exercício empresarial: realização de atividades em vários locais, fora do lugar da contratação e de modo sempre constante, sem fixar-se em qualquer deles[46]. A doutrina clássica sempre apontou as atividades circense e teatral como os exemplos mais perfeitos da ideia que o dispositivo deseja transmitir[47].
Mas da mesma forma que o § 1º não pode ficar restrito aos empregados “agentes ou viajantes comerciais”, também esse § 3º não pode servir a apenas uma ou duas atividades empresariais. Essas disposições legais, com total naturalidade, comportam – para não dizer que até recomendam – interpretação ampliativa, para torná-las hábeis a alcançar aquelas mais variadas situações que, de algum modo, ajustam-se à essência do que cada qual propõe, adaptando suas bem intencionadas proposições normativas às intrigantes nuanças de um mundo tido hoje como pós-moderno, espantosamente diverso daquele que vicejou lá pelos idos da década de 40, quando foi gestada a CLT.
Nem se argumente que tais parágrafos, justamente por materializarem exceções ao caput, deveriam merecer exegese restritiva. Já destacamos: irrefutavelmente, o princípio que anima todo o art. 651 da CLT é o protetivo, do início ao fim, do caput a todos os parágrafos. Mesmo quando buscou excepcionar a regra geral alocada na cabeça do dispositivo, o fito do legislador permaneceu idêntico: a proteção do trabalhador. Quer dizer: quanto à sua letra, a exceção é patente; mas ainda nessas cláusulas excetivas é possível enxergar um mesmo espírito a animar toda a sua estrutura semântica. Teleologicamente, pois, todo o encadeamento normativo que dá existência ao artigo 651 da CLT só tem uma única razão de ser: possibilitar que o empregado tenha facilitado o seu acesso à Justiça.
Por isso, não anuímos com a tese daqueles que, por partir de uma interpretação um pouco mais estreita, entendem, por exemplo, que esse dispositivo só seria aplicado quando o empregado for o autor da ação, já que a dicção do enunciado legal menciona “apresentar reclamação”[48]. À luz das diretrizes há pouco lançadas, partilhamos do entendimento de que, mesmo quando o empregado figure como réu ou reclamado da ação trabalhista, a competência territorial a ser observada pelo empregador será ou o foro do local da celebração do contrato ou o da prestação dos respectivos serviços, exatamente como retratado no § 3º do art. 651 da CLT[49].
Igualmente, discordamos da interpretação esposada por quem reputa que o § 3º reportar-se-ia àquelas “raras hipóteses em que o empregador desenvolve seu trabalho em locais incertos, eventuais ou transitórios, como é o caso das atividades circenses, artísticas, feiras, exposições, promoções etc.” (CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 33ª Edição. São Paulo : Saraiva, 2008, p. 515).
Pensamos que, em verdade, qualquer atividade empresarial que, por sua própria natureza, em caráter permanente ou não, implique prestação de serviços por locais diversos daquele da pactuação, abrirá ensejo ao trabalhador para optar por ajuizar sua ação trabalhista no local da contratação ou em qualquer dos lugares onde prestou serviços[50]. A respeito, fazemos coro com a doutrina de Carlos Henrique Bezerra Leite, quando afirma:
“[...] a interpretação teleológica do § 3º do art. 651 da CLT autoriza uma opção legal para o empregado de empresa que realiza atividades em locais diversos da contratação do obreiro, pouco importando se a título permanente ou esporádico, ajuizar a ação no foro do lugar da contratação ou no da prestação de serviço. Ademais, deve-se analisar a questão sob a perspectiva do alargamento do acesso ao Judiciário e, sobretudo, enaltecendo o princípio da economia processual, máxime quando não há prejuízo para a defesa” (LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 9ª Edição. São Paulo : LTr, 2011, p. 281).
Ilustrativamente, podemos citar o que se dá com os motoristas de ônibus e de empresas transportadoras, que, muito embora atuando em linhas fixas, que atravessam diversas cidades ou mesmo Estados, sujeitam-se a trabalharem em um ramo empresarial cujo deslocamento é intrínseco à atividade em si[51]. Ainda que o empregado, ao final, retorne sempre para a mesma cidade, cremos que cada um desses destinos pode ser tomado como local de prestação de serviços, plenamente passível de receber uma demanda trabalhista[52].
Sergio Pinto Martins, de sua parte, arrola os seguintes exemplos de atividades que poderiam ser enquadradas no art. 651 § 3º da CLT, verbis:
“Deve-se entender por empresas que promovem a prestação de serviços fora do lugar da contratação as seguintes: especializadas em auditorias, instalação de caldeiras, reflorestamento, em atividades circenses, artísticas, feiras, exposições, promoções, desfiles de moda, promotora de rodeios, montadoras industriais etc. Nessas atividades, o empregado é requisitado para prestar serviços em atividades eventuais, transitórias e incertas. É o que ocorre com as pessoas que vão fazer auditoria, exposições em feiras ou desfiles de moda. Acabado o evento, não mais trabalham naquela localidade para a qual foram designadas” (MARTINS, Sergio Pinto. Direito Processual do Trabalho. 32ª Edição. São Paulo : Atlas, 2011, p. 133).
Anuímos com esse elenco – ressalvado o aspecto da eventualidade e incerteza enfatizado pelo autor, com o qual não concordamos, conforme já exposto alhures. Ou seja, o rol se enquadra perfeitamente nos lindes do texto legal em estudo não porque sinaliza com atividades transitórias, mas porque expressa atividades cuja execução dos serviços se dá com ampla mobilidade e fora do local da contratação, circunstância suficiente para a sua incidência.
Urge refletir, neste momento, sobre a exegese da expressão “local da celebração do contrato”. A primeira coisa que vem à mente é que o local da contratação seria aquele onde se dá a oficialização do contrato laboral. Apesar da razoabilidade da intelecção, o fervilhar da realidade tem mostrado que por vezes a coisa não é tão simples assim. Recordemos da corriqueira situação em que trabalhadores são arregimentados em sua cidade natal e conduzidos para outros Estados, onde ocorre a assinatura do respectivo contrato e a prestação dos serviços. Regra geral, o obreiro, quando o vínculo se encerra, retorna para a sua cidade de origem, ocasião em que passa a ter enormes dificuldades – notadamente de ordem financeira – para ajuizar eventual reclamação trabalhista, porque teria, para tanto, segundo a fria letra da lei, que retornar à localidade da prestação dos serviços e oficialização do contrato de trabalho.
Por força dessa situação delicada, bem como à vista dos princípios protetivo[53], da primazia da realidade[54] e da boa-fé objetiva[55], lastreando-se, ainda, no que reza o art. 9º da CLT[56], bem assim com fulcro no direito constitucional de amplo acesso à Justiça (CF, art. 5º, XXXV), é possível, tranquilamente, defender a tese de que o local da celebração não necessariamente coincide com o local da prestação dos serviços, tampouco com o local da assinatura do contrato. Por vezes, há de ser assim considerado o local onde as partes, concreta e mesmo que informalmente, ajustam a respeito do exercício da atividade de trabalho[57]. A consequência prática desse raciocínio é fazer valer, a favor do trabalhador sujeito a essa situação, os benefícios depositados no § 3º do art. 651 da CLT[58].
É essa espécie de consideração que dá vida ao Enunciado nº 07 da 1ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho (1ª JDMPT), realizada em novembro de 2007, cujo teor está assim redigido: “Em se tratando de empregador que arregimente empregado domiciliado em outro município ou outro Estado da federação, poderá o trabalhador optar por ingressar com a reclamatória na Vara do Trabalho de seu domicílio, na do local da contratação ou na do local da prestação dos serviços”[59]. Nesse sentido, confira-se o seguinte julgado:
“COMPETÊNCIA EM RAZÃO DO LUGAR. PRORROGAÇÃO. FACILITAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA. Em razão do princípio da facilitação do acesso à Justiça, a competência da Justiça do Trabalho em razão do lugar deve ser prorrogada, podendo o empregado instalar reclamatória no local onde reside e que informa ter sido contratado, mesmo que verbalmente, sobretudo quando não oposta a tempo e modo a exceção de incompetência. (TRT 3ª Região - 4ª Turma. 00303-2008-097-03-00-1-RO. Data da publicação: 21.02.2009. Relatoria: Juíza Adriana Goulart de Sena)”.
3.6. Compreendendo o § 2º do art. 651 da CLT: Litígios ocorridos em agência ou filial no estrangeiro
Outra exceção àquela regra geral prevista no caput está contida no § 2º do mesmo artigo 651 celetista, cujo conteúdo está assim vazado: “A competência das Juntas de Conciliação e Julgamento, estabelecida neste artigo, estende-se aos dissídios ocorridos em agência ou filial no estrangeiro, desde que o empregado seja brasileiro e não haja convenção internacional dispondo em contrário”.
Perceba-se que, até então, o art. 651 vem cuidando do labor que é praticado dentro dos limites do território brasileiro, ainda que a contratação tenha ocorrido no exterior. Agora, nesse § 2º, o cenário é inverso: o foco central está nos serviços que, malgrado contratados em solo pátrio, são integralmente executados fora do território nacional. Esse dispositivo autoriza, portanto, que um litígio trabalhista ocorrido no estrangeiro seja dirimido pelo Poder Judiciário brasileiro, porquanto “exigir que o trabalhador se desloque ao estrangeiro para aforar a sua ação é o mesmo que impedir o seu acesso à justiça, em face dos elevados custos desse deslocamento” (ALMEIDA, Cleber Lúcio de. Direito Processual do Trabalho. 3ª Edição. Belo Horizonte : Del Rey, 2009, p. 151-152).
Exatamente por força disso, o dispositivo em análise, fugindo inteiramente da lógica impressa nos demais termos do art. 651 da CLT, longe de cuidar de competência, em verdade versa sobre o instituto mais amplo da jurisdição – daí o porquê de, neste arrazoado, sua análise ter se dado apenas ao final. Perceba-se, ademais, que tal enunciado, ao atribuir ao Judiciário Trabalhista nacional o poder-dever de solucionar conflitos laborais ocorridos no estrangeiro, abre interessante exceção ao conhecido princípio da territorialidade, “pelo qual a lei e a jurisdição seriam as do País onde se tivesse desenrolado a relação de emprego” (PINTO, José Augusto Rodrigues. Processo Trabalhista de Conhecimento. 7ª Edição. São Paulo : LTr, 2005, p. 178).
Trata-se, todavia, de uma simples mitigação do princípio da territorialidade – nunca sua irrefreada negação. Perceba-se que, nada obstante a lide trabalhista ocorrida em agência ou filial situada no estrangeiro esteja amplamente sujeita à apreciação da Justiça brasileira, os direitos aplicáveis à espécie, a rigor, serão aqueles previstos na legislação do país onde se desenvolveu a prestação dos serviços, diretriz, por sinal, há muito constante do art. 198 do Código de Bustamante, ratificado pelo Brasil e promulgado pelo Decreto nº 18.871/1929.
Ou seja, muito embora, no plano processual, o dissídio seja regido pelas normas brasileiras, no plano material, os direitos perseguidos, em tese, devem ser amparados nas normas do país onde se perpetrou a prestação dos serviços (lex loci executionis). É o que está assentado na Súmula 207 do TST, in verbis: “Conflitos de leis trabalhistas no espaço. Princípio da Lex loci executionis. A relação jurídica trabalhista é regida pelas leis vigentes no país da prestação de serviço e não por aquelas do local da contratação”. Por isso e de acordo com o art. 337 do CPC, quando preceitua que “a parte que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim determinar o juiz”, bem assim como medida de celeridade processual (CF, art. 5º, LXXVIII), propugnamos que em hipóteses como essas seria de todo pertinente que o reclamante, antecipando-se em se desincumbir desse encargo probatório, já instrua a sua petição inicial com a prova do teor e da vigência da legislação estrangeira que embasa seus pleitos[60].
Mas o fato é que essa regência, ainda vigente, acabou por avalizar inúmeras situações de grande injustiça, notadamente quando o país de destino detinha um sistema de direitos trabalhistas de patamar protetivo bem inferior ao brasileiro. Sensível a essa realidade, o legislador pátrio entendeu por bem, através da Lei nº 11.962/2009, alterar o art. 1º da Lei nº 7.064/1982 – anteriormente aplicada apenas aos funcionários de empresas prestadoras de serviços de engenharia, consultoria, projetos e obras, montagens, gerenciamento e congêneres, e que atuavam no exterior –, que passou a ostentar texto genérico, açambarcador de toda e qualquer espécie de empregado, pouco importando a sua área de atuação. Confira-se sua novel redação: “Esta Lei regula a situação de trabalhadores contratados no Brasil ou transferidos por seus empregadores para prestar serviço no exterior”. Desse modo, com a Lei n. 11.962/09, todos os trabalhadores brasileiros que prestam serviço no exterior passaram a ter sua relação de emprego regida pelas disposições contidas na Lei 7.064/1982.
Essa modificação legislativa tencionou garantir uma melhor proteção para o trabalhador que atua no estrangeiro, assegurando-lhe, independentemente do país de destino, um patamar mínimo de direitos materiais trabalhistas, tais como FGTS e férias. Ela também vem reforçar o entendimento, que aos poucos ganhava fôlego, no sentido de que a Lei 7.064/82 aplicava-se, por analogia, a todos os trabalhadores domiciliados no Brasil e contratados ou transferidos para prestar serviços no exterior, independentemente da área de atuação das empresas contratantes[61].
Ultrapassada essa discussão de órbita internacional, insta consignar que a leitura do texto legal permite entrever duas exigências para a sua aplicação.
Em primeiro lugar, a lei reza expressamente que o empregado deve possuir nacionalidade brasileira, o que inclui, pela falta de ressalva, tanto o brasileiro nato quanto o naturalizado[62]. Pensamos, porém, que esse dispositivo, na parte que limita seus destinatários apenas ao âmbito dos trabalhadores brasileiros, não foi recepcionado pela nova ordem jurídica instaurada com a Constituição Federal de 1988. Para justificar esse entendimento, mais uma vez invocamos aquele importante comando isonômico estabelecido em seio constitucional, que prima por igualdade de tratamento entre brasileiros e estrangeiros residentes no país, inclusive no que toca à esfera laboral (CF, art. 5º, caput e XIII[63])[64].
A propósito, seria até possível invocar, ainda, para abono dessa tese, o quanto disposto no art. 318 do Código de Bustamante, que trata da submissão voluntária dos litigantes à Justiça de qualquer país, desde que uma das partes seja nacional ou nele simplesmente seja domiciliada. Entretanto, aprofundando um pouco mais a questão, acabamos mesmo por manifestar plena anuência com a pertinente lição de Eduardo Henrique Raymundo Von Adamovich, quando afirma que:
“o dispositivo constitucional, de certa maneira, alarga o alcance até mesmo do art. 318 da Convenção de Direito Internacional Privado de Havana, denominada Código Bustamante [...] Assim, estão protegidos pelo dispositivo legal em comento os brasileiros, os estrangeiros domiciliados no país e aqueles outros meramente residentes que estejam realizando atividade profissional devidamente autorizada” (ADAMOVICH, Eduardo Henrique Raymundo von. Comentários à CLT – Consolidação das Leis do Trabalho. 2ª Edição. Rio de Janeiro : Forense, 2010, p. 359).
Em segundo lugar, alerta o art. 651, § 2º, da CLT, que seu comando só terá incidência em caso de inexistência de qualquer convenção internacional dispondo em sentido contrário. Nesse particular, assevera Homero Batista Mateus da Silva, mais uma vez com total pertinência, ad litteram:
“... não se conhece convenção ou tratado internacional que proíba a Justiça do Trabalho brasileira de oferecer a prestação jurisdicional a quem dela se socorra. Essa ameaça constante ao final da redação do § 2ª é novamente um capricho histórico, tendo o legislador de 1943 se precavido quanto a eventual oscilação do direito internacional público, mas foi exatamente o oposto o que aconteceu – isto é, os tratados internacionais, como o Pacto de São José da Costa Rica e demais documentos ligados aos direitos fundamentais do ser humano, incentivam a acessibilidade judiciária e não o contrário” (SILVA, Homero Batista Mateus da. Curso de Direito do Trabalho Aplicado. Vol. 8: Justiça do Trabalho. Rio de Janeiro : Elsevier, 2010, p. 186-187).
Logo, para acionar o permissivo constante do art. 651, § 2º, da CLT, urge, necessariamente, como requisitos cumulativos, que: i) o empregado envolvido no dissídio seja brasileiro (nato ou naturalizado) ou mesmo estrangeiro (aqui domiciliado ou meramente residente) (elemento subjetivo); ii) inexista qualquer convenção em sentido contrário estabelecida entre os países envolvidos (elemento objetivo). Percebemos, desse arquétipo, que só não se justifica a competência internacional da Justiça do Trabalho brasileira quando está envolvida situação de trabalho que não guarda qualquer elemento de ligação com o território e o ordenamento jurídico brasileiros[65].
Neste compasso, cumpre-nos trazer à tona outra importante questão. É que, malgrado mostrando preocupação em fixar a incidência da jurisdição laboral mesmo para casos ocorridos no estrangeiro, o legislador celetista, curiosamente, silenciou quanto ao específico critério a ser usado, internamente, em casos que tais, para fixação da competência territorial, haja vista a patente impossibilidade de se seguir a regra geral do local da prestação de serviços – por não ter ocorrido atividade laborativa no país. Limitou-se, como vimos, a estabelecer que o fato do dissídio ter surgido no exterior em nada afeta a possibilidade de acionamento da jurisdição trabalhista brasileira[66].
Mas, na hipótese em tela, qual será a referência para a competência territorial? Perante qual Vara Trabalhista a ação deve ser ajuizada? Por evidente, a omissão do legislador não pode inviabilizar o acesso ao Judiciário, sob pena de se abraçar interpretação assaz desarrazoada e inconstitucional, por frontal ofensa ao direito fundamental de ação (CF, art. 5º, XXXV). Estamos, nesse particular, com Homero Batista Mateus da Silva, para quem “o propósito do § 2º foi apenas explicitar que a jurisdição brasileira alcança litígios vivenciados em território estrangeiro, mas a questão da competência local continua a ser disciplinada pelo caput e pelos dois outros parágrafos do art. 651” (SILVA, Homero Batista Mateus da. Curso de Direito do Trabalho Aplicado. Vol. 8: Justiça do Trabalho. Rio de Janeiro : Elsevier, 2010, p. 186).
Deveras, caso o empregado inicie seu labor no Brasil, em seguida transferindo-se para o exterior, incidiria a regra geral do caput do art. 651 da CLT, qual seja, o local da prestação dos serviços em terrae brasilis. Já na hipótese do trabalhador ser contratado no Brasil para atuar direta e integralmente no estrangeiro, visualizamos a possibilidade de se aplicar o seu § 1º, abrindo ao obreiro a faculdade de, uma vez tendo retornado ao solo brasileiro, ajuizar sua ação no local onde a empresa mantiver sede ou filial, no foro de seu domicílio ou mesmo na localidade mais próxima, também sendo possível manusear, em paralelo, o § 3º do mesmo dispositivo, na parte em que permite o ajuizamento da ação no local da celebração do contrato[67].
Reitere-se que, no nosso sentir, essa incidência há de ser concorrente, na medida em que tendente a facilitar ao máximo a concretização do direito fundamental de livre acesso ao Judiciário (CF, art, 5º, XXXV)[68], rendendo ainda especial prestígio ao princípio protetivo, em sua faceta que prima pela garantia da condição mais benéfica ao trabalhador (CF, art. 7º, caput). Aliás, nada obsta que, preferindo o trabalhador, até mesmo opte por demandar a empresa perante a jurisdição do país onde prestou seus serviços[69].
Debate a doutrina se a empresa necessariamente deva ter agência ou filial no Brasil para que o regramento celetista tenha aplicação. Mauro Schiavi, por exemplo, defende esse tipo de exigência, afirmando que “não haverá possibilidade de imposição da jurisdição trabalhista em território sujeito a outra soberania (princípio da territorialidade da jurisdição)”, destacando, ainda, que “como o referido dispositivo configura exceção à competência do local da prestação de serviços, a interpretação deve ser restritiva”, advogando, por consequência, que a expressão “empresa que tenha agência ou filial no estrangeiro” deve ser lida “no sentido de que a empresa também tenha sede no Brasil” (SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito Processual do Trabalho. 3ª Edição. São Paulo : LTr, 2010, p. 255). O mesmo entendimento é esposado por Sergio Pinto Martins, aduzindo que “se a empresa não tiver sede no Brasil, haverá impossibilidade da propositura da ação, pois não será possível sujeitá-la à decisão de nossos tribunais” (MARTINS, Sergio Pinto. Direito Processual do Trabalho. 32ª Edição. São Paulo : Atlas, 2011, p. 132).
Acreditamos, porém, que essa exegese restritiva não merece prevalecer, basicamente por quatro motivos.
Primo, porque – convenhamos – em nenhum momento o § 2º do art. 651 da CLT exige que a empresa tomadora dos serviços do empregado que atua no exterior tenha sede ou filial no Brasil[70]. Secundo, porque a linha sugerida destoa por completo da dinâmica empresarial contemporânea, cuja configuração, mercê dos notáveis avanços tecnológicos e da globalização econômica, tem sido marcada pela descentralização produtiva e gerencial, sendo totalmente normal, hodiernamente, v.g., que uma empresa situada na Holanda, sem qualquer representação no Brasil, contrate os serviços empregatícios de um profissional brasileiro para atuar na cidade de Amsterdã. Não vai qualquer absurdo, portanto, em se imaginar que toda essa operação possa ser praticada sem necessidade da empresa holandesa se instalar, fisicamente, no território brasileiro. Tertio, porque o mesmo Código de Bustamante, já citado e igualmente integrante do ordenamento jurídico brasileiro, prevê em seu art. 318 a submissão voluntária dos litigantes à Justiça de qualquer país, desde que uma das partes seja nacional ou simplesmente esteja nele domiciliada, de sorte que mesmo nas normas de direito internacional privado não se vê qualquer tendência restritiva a respeito do assunto. Quatro, porque a irrefragável tendência contemporânea, imersa nas facilidades propiciadas pelos avanços tecnológicos, tem apontado para uma crescente busca de superação de entraves formais e burocráticos em questões envolvendo juízos diversos, inclusive quando a pendência precise ser resolvida em outro país, de modo que essa auspiciosa intensificação da cooperação judiciária é uma meta que só tem a facilitar o cumprimento de comandos jurisdicionais perante pessoas localizadas em território estrangeiro[71].
Logo, a nosso ver, pouco importa se a empresa empregadora é brasileira ou estrangeira[72]. Se estrangeira, tampouco interessa se tem sede ou mesmo qualquer filial em solo brasileiro. O que interessa mesmo, pelo menos no aspecto subjetivo, é que o empregado seja contratado no Brasil com vistas a uma atuação no exterior[73].
3.7. Mais Algumas Singelas Considerações Adaptadoras do Tema à Legalidade Constitucional
3.7.1. Por uma nova mentalidade
A densa carga axiológica espraiada por toda a tessitura constitucional exige do intérprete do direito uma nova postura hermenêutica, uma verdadeira modificação de pensamento, um mover-se inteiramente fiel ao anseio de se ver cumprir, sempre atento às especificidades de cada caso concreto, aqueles valiosos vetores principiológicos constitucionais. Quanto à magistratura, em específico, cumpre reconhecer que a implementação dos desejos da Constituição – correspondentes aos próprios anseios da sociedade – vai muito longe de ser uma mera opção. Bem ao contrário, trata-se de um genuíno dever de ofício do juiz[74].
Por conta disso, entendemos que as regras de competência territorial celetistas não podem ser compreendidas como direções incontornáveis, justas por natureza para todo e qualquer caso, sempre a demandar um cumprimento robótico do quanto facilmente encontrado no texto da lei. Em seu cotidiano forense, é preciso que o magistrado sempre reflita sobre os efeitos concretos produzidos com uma possível aplicação irrefletida dessas diretrizes, confrontando-os, o quanto possível, com a sólida ambiência constitucional[75].
Logo, quando necessário for, será preciso se afastar da frieza dos ditames legais e se aproximar do calor dos princípios constitucionais, sempre em busca da solução mais justa para o caso concreto. Noutros termos: perder o incômodo de, em hipóteses excepcionais e com verve criativa, julgar na aparência de um raciocínio contra legem, desde que inteiramente convicto de que seu trilhar é intra jus[76], assim compreendido como aquele caminhar seguro em direção aos anseios sociais de justiça encrustados nos princípios constitucionais[77].
3.7.2. Facilitação da defesa de direitos através de regra do CDC
Alicerçados nesses fundamentos, consignamos nossa certeza quanto a ser plenamente possível, em casos excepcionais, a sadia flexibilização daquelas regras formais de competência territorial gizadas na CLT. Para tanto – e sempre no desiderato de facilitar o acesso ao Judiciário –, poderá o magistrado trabalhista aplicar, a favor do cidadão investido no papel social de trabalhador, o mesmo direito que lhe é legalmente reservado quando investido do papel social de consumidor, qual seja, a facilitação da defesa de seus direitos, tal qual previsto no art. 6º, VIII, do CDC[78], quando, no caso concreto, tenha a clara percepção de que a utilização da regra celetista malogrará o próprio fim social a que se propôs atingir (Lei de Introdução, art. 5º[79]), ou seja, quando a aplicação gélida da lei gerar como efeito um odioso empecilho – seja pelo aspecto técnico, seja pelo aspecto financeiro – para o pleno exercício do direito de ação, malferindo importante diretriz constitucional (CF, art. 5º, XXXV).
Como importante aporte doutrinário, podemos nos valer do teor do Enunciado nº 66 produzido perante a 1ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho (1ª JDMPT – Brasília/2007), que, inteligentemente, dispõe: “Aplicação subsidiária de normas do processo comum ao processo trabalhista. Omissões ontológica e axiológica. Admissibilidade. Diante do atual estágio de desenvolvimento do processo comum e da necessidade de se conferir aplicabilidade à garantia constitucional da duração razoável do processo, os arts. 769 e 889 da CLT comportam interpretação conforme a Constituição Federal, permitindo a aplicação de normas processuais mais adequadas à efetivação do direito. Aplicação dos princípios da instrumentalidade, efetividade e não retrocesso social”[80].
Foi o que ocorreu em julgado publicado junto ao TRT da 4ª Região (RS), de onde se lê: “o julgamento da ação por uma das Varas do Trabalho de Belém do Pará inviabilizaria o acesso do autor à Justiça, considerando-se residir atualmente nesta Capital [Porto Alegre], já que não teria condições para arcar com os custos dos deslocamentos e demais despesas, frente à declaração da fl. 63 (reclamante desempregado e sem condições de arcar com os custos do processo sem prejuízo de seu sustento). Na hipótese, é o clube reclamado quem tem considerável estrutura e melhores condições financeiras para o deslocamento a esta Cidade. Recurso do autor provido para declarar a competência da Comarca de Porto Alegre para julgamento da demanda”[81].
Acertadíssima a decisão, na medida em que, segundo os parâmetros constitucionais, a falta de recursos financeiros em hipótese alguma pode servir de intransponível obstáculo para o livre acesso ao Poder Judiciário. Note-se, a propósito, que, nesse caso, em nenhum momento se fala em inconstitucionalidade de qualquer dispositivo que seja. Cuidou-se, tão-somente, de averiguar que, nada obstante plenamente constitucional o dispositivo legal cabível na espécie (no caso, segundo a nobre relatora, o caput do art. 651 da CLT), o resultado prático de sua incidência naquela específica situação seria afrontoso à Constituição Federal. Ou seja, a inconstitucionalidade, no caso vertente, não recaiu sobre o objeto da interpretação (o enunciado legal), mas sobre o produto dela (a norma produzida para o caso concreto)[82]. Em termos mais simplórios: a inconstitucionalidade é uma mácula que pode recair não apenas sobre o dispositivo normativo, como sói acontecer, mas também sobre o efeito concreto de sua regular aplicação, sendo essa uma realidade jurídica que o jurista não pode desprezar[83].
3.7.3. Regra especial para o trabalhador senil
Mas não é só. É preciso admitir a aplicação, também no processo do trabalho, de certas regras processuais de tutela de situações diferenciadas. É o caso, por exemplo, da regra especial prevista no Estatuto do Idoso, onde é garantida, para aquele cidadão que tem mais de 60 anos, a possibilidade de ajuizar ação no foro de seu próprio domicílio (Lei n. 10.741/2003, artigos 71, caput, e 80)[84]. Dessa forma, tratando-se, nos termos da lei, de trabalhador senil, o mesmo benefício há de ser observado no âmago do processo do trabalho, autorizando que sua ação trabalhista seja ajuizada no foro do local de seu próprio domicílio, o que facilita sobremaneira o acesso à Justiça[85]. Como destacado pelo Ministro Emmanoel Pereira, “a proteção do idoso nada mais é do que um corolário da dignidade da pessoal humana, diante da presunção de que o indivíduo idoso encontra-se em situação de vulnerabilidade [...], em face da reduzida expectativa de vida que lhe resta, de modo que uma justiça em prazo razoável para um indivíduo comum talvez nunca seja uma justiça eficaz para o idoso, se já falecido”[86].
3.7.4. Regra especial para o trabalhador sujeito a vulnerabilidade extrema
Seria possível, ainda, à luz do art. 1.211-A, caput, do CPC (com redação conferida pela Lei nº 12.008/2009)[87], dar esse mesmo tipo de tratamento para os casos de trabalhadores portadores de doença grave. Aliás, emprestando leitura mais dilatada a esse dispositivo, seria possível falarmos até em algo como uma excepcional prioridade para os casos de vulnerabilidade acentuada (idade, doença grave, deficiência ou qualquer outro fator assemelhado)[88]. Ou seja, ainda que não idoso, mas sendo o caso, v.g., de trabalhador acometido de neoplasia maligna, legítimo seria interpretar essa prioridade de tramitação também como uma anuência para que o ajuizamento de sua ação possa se dar, desde logo, no foro de seu próprio domicílio, por exegese sistemática e teleológica dos artigos 71 e 80, do Estatuto do Idoso, artigo 1.211-A, do CPC, artigo 9º, da Lei nº 7.853/1989[89], artigo 652, parágrafo único, da CLT[90], e, nomeadamente, artigos 5º, § 2º, e 7º, caput, da CF/88[91], sendo essa uma proposta hermenêutica que decerto prestigia, a um só tempo, a dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, III), e a celeridade processual, direito fundamental reservado a todo e qualquer cidadão (CF, art. 5º, LXXVIII)[92].
Não custa lembrar que mesmo antes da Lei nº 12.008/2009, que deu nova redação ao art. 1.211-A, caput, do CPC, a jurisprudência já se aventurava em ampliar as hipóteses de trâmite preferencial para além daquelas rigidamente fixadas na lei. Para tanto, com inteira propriedade, bastou a invocação do princípio da dignidade da pessoa humana. Segundo a Ministra Nancy Andrighi, do STJ, ao enfrentar caso em que se pleiteava tramitação preferencial em razão da parte estar acometida do vírus HIV:
“mostra-se imprescindível que se conceda a pessoas que se encontrem em condições especiais de saúde, o direito à tramitação processual prioritária, assegurando-lhes a entrega da prestação jurisdicional em tempo não apenas hábil, mas sob regime de prioridade, máxime quando o prognóstico denuncia alto grau de morbidez. [...] Não há necessidade de se adentrar a seara da interpretação extensiva ou da utilização da analogia de dispositivo infraconstitucional de cunho processual ou material, para se ter completamente assegurado o direito subjetivo pleiteado pela recorrente. Basta buscar nos fundamentos da República Federativa do Brasil o princípio da dignidade da pessoa humana que, por sua própria significância, impõe a celeridade necessária peculiar à tramitação prioritária do processo em que figure parte com enfermidade como o portador do vírus HIV, tudo isso pela particular condição do recorrente, em decorrência de sua moléstia” (STJ, 3ª Turma, Resp 1026899/DF, Relatora: Ministra Nancy Andrighi, julgado em 17/04/2008, DJ 30.04.2008).
3.7.5. Competência Territorial Celetista e Nova Competência Material da Justiça do Trabalho
Em arremate a este tópico, insta questionar: levando em conta o teor da Emenda Constitucional nº 45/2004 – que ampliou de forma significativa a competência material da Justiça do Trabalho, a ponto de atribuir a incumbência de solucionar conflitos inseridos não apenas em relações de emprego (espécie), mas também em qualquer relação de trabalho (gênero) (CF, art. 114, I) –, as regras de competência territorial traçadas na CLT também valem para os trabalhadores não empregados? Um profissional autônomo igualmente deverá atentar, no ajuizamento de sua ação trabalhista, para a regra geral do local da prestação de seus serviços?
Ora, a maximização da competência material da Justiça Laboral representou muito mais que uma simples transferência técnica de atribuições competenciais. Em verdade, tratou-se de um persuasivo reconhecimento do grandioso papel social reservado ao Judiciário Trabalhista, que, agora, passa a atender um leque extremamente mais amplo de potenciais “clientes”, que, até então, estavam alijados de um campo judiciário cujo acesso sempre foi reconhecidamente mais barato, simples e efetivo[93].
Não temos dúvidas, portanto, em sinalizar por uma resposta afirmativa. Sim, hodiernamente, também os trabalhadores em geral, mesmo que não inseridos na ambiência de um elo de emprego, poderão se beneficiar de todo o rico arcabouço de regras e princípios processuais protetivos encontrados no texto e no espírito da CLT, incluindo-se, obviamente, as salutares disposições celetistas reservadas ao trato da competência territorial trabalhista. Afinal de contas, se a ideia for a da mantença da mesma estrutura processual cível a que estavam sujeitos, então, havemos de convir, a modificação competencial não teve sentido algum[94].
Registre-se que mesmo antes da Emenda Constitucional nº 45/2004 a Justiça do Trabalho, ainda que em caráter excepcional, já detinha competência material para processar e julgar algumas causas envolvendo trabalhadores sem vínculo de emprego, com tranquila aplicação das regras processuais previstas na CLT. É o caso, v.g., do pequeno empreiteiro (CLT, art. 652, III). O que aconteceu, agora, com a nova redação conferida ao artigo 114 da Carta Constitucional, foi a correta eliminação desse quadro excetivo e a consequente dilatação de toda essa densa malha formal protetora, prevista na CLT, que passa a açambarcar prestadores de serviço outros que, apesar de inseridos em um contexto laboral assemelhado ao quadro empregatício, ainda não gozavam de tamanho privilégio processual. Desse modo, anuímos com a abalizada doutrina de José Augusto Rodrigues Pinto, in verbis:
“Até aqui, presidiu esse aspecto da determinação, projetando sua força sobre a lei formal trabalhista, o princípio da proteção do hipossuficiente econômico. Parece-nos razoável que assim continue a ser observado, sopesando-se a circunstância de que na esmagadora maioria das relações de trabalho [...] a inferioridade econômica do prestador da energia pessoal é manifesta em face do tomador do resultado. Por isso, o lineamento geral do art. 651 da CLT, se muito com pequenas adaptações tópicas, continua servível, a despeito do deslocamento do eixo da determinação da competência absoluta da matéria para a pessoa do trabalhador” (PINTO, José Augusto Rodrigues. Processo Trabalhista de Conhecimento. 7ª Edição. São Paulo : LTr, 2005, p. 175-176)[95].
Assim se dá porque essa notável transferência, por óbvio, não pode ser encarada apenas na esteira de uma simples migração, meramente quantitativa, de toda uma massa de cidadãos para as portas do Judiciário Federal Trabalhista. Certamente, há algo de qualitativamente especial que justifica toda essa movimentação: a promissora inclusão social de toda uma gama de trabalhadores que, a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004, também passou a contar com a esplendorosa estrutura que dá corpo à Justiça do Trabalho, nisso incluído, claro, o curso processual intrinsecamente diferenciado e o fluxo procedimental essencialmente dúctil que, de longa data, servem de substrato para a efetividade da tutela jurisdicional aplicada às causas sujeitas à sua competência[96].
Essa tese acabou sendo institucionalmente acolhida quando exsurgiu no cenário jurídico a Instrução Normativa nº 27/2005 (Resolução nº 126/2005 – DJ 22.02.2005)[97], editada pelo Tribunal Superior do Trabalho para fazer frente às duvidas processuais e procedimentais exsurgidas com o advento da citada Emenda Constitucional nº 45/2004[98]. É o que constatamos logo em seu artigo de abertura, in verbis: “As ações ajuizadas na Justiça do Trabalho tramitarão pelo rito ordinário ou sumaríssimo, conforme previsto na Consolidação das Leis do Trabalho, excepcionando-se, apenas, as que, por disciplina legal expressa, estejam sujeitas a rito especial, tais como o Mandado de Segurança, Habeas Corpus, Habeas Data, Ação Rescisória, Ação Cautelar e Ação de Consignação em Pagamento”[99].
Pontue-se, porém, que, por força de legislação especial e, sobretudo, mais protetiva, cremos que o representante comercial autônomo, mesmo diante dos novos contornos da competência material da Justiça do Trabalho, é detentor do direito de ajuizar sua ação trabalhista no local de seu domicílio, haja vista os claros termos do artigo 39 da Lei nº 4.886/1965[100]. Mas atenção: perceba-se que, embora, na espécie, a letra celetista deixe de ser aplicada, seu espírito continua vivamente aceso, através de regramento outro, sempre na perseguição do mesmo desiderato tutelar e da mesma aspiração de amplo acesso à Justiça. Daí a inteira plausibilidade na tese da manutenção de sua regência[101].