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A legislação consumerista brasileira e o modelo intervencionista estatal.

Avanços e retrocessos da Lei nº 8.078/90

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Agenda 09/05/2014 às 07:59

Pesquisa histórica da Defesa dos Direitos do Consumidor atrelado ao aspecto intervencionista estatal nas relações privadas, buscando através de livros e artigos científicos de base de dados verificar avanços e retrocessos trazidos pelo CDC.

Resumo: O objetivo do presente trabalho foi a pesquisa histórica da Defesa dos Direitos do Consumidor atrelado ao aspecto intervencionista estatal nas relações privadas, buscando através do Google Acadêmico, livros e artigos científicos de base de dados verificar os avanços e retrocessos trazidos pelo Código de Defesa do Consumidor Brasileiro, Lei 8078/90 e a existência ou não da intervenção nos contratos de consumo celebrados entre consumidores e fornecedores com base na aplicação do Dirigismo Estatal. É relevante o entendimento dos mais variadores escritores do assunto, principalmente quando estabelecem no mundo contemporâneo de forma unânime a possibilidade e necessidade do dirigismo contratual nas relações dos contraentes. Neste diapasão, o objetivo do trabalho é trazer à baila os fatos históricos que envolvem o surgimento da defesa do consumidor, a intervenção do estado nas relações de consumo e sua evolução ou retrocesso na atualidade.


HISTÓRICO

Muito se tem feito pela efetivação da legislação consumerista, sua aplicação e cumprimento nas relações de consumo brasileiras.

Em Setembro de 2013, o Código de Defesa do Consumidor completou 20 (vinte) anos e durante este período várias situações que se atrelaram as relações contratuais foram pontualmente tratadas por esta legislação brilhantemente elaborada visando melhor nortear os vínculos jurídicos obrigacionais bilaterais ou plurilaterais caracterizados pelo denominado contrato.

É deste cerne das relações contratuais que tem o Código de Defesa do Consumidor seu ancoradouro primário, buscando averiguar e proteger a boa fé contratual tanto na criação, modificação como também extinção dos acordos bilaterais ou plurilaterais de vontade, buscando caracterizar a denominada relação de consumo a partir da constatação da vulnerabilidade de parte dos envolvidos na relação obrigacional e, assim, evitar também a aplicação generalizada e desenfreada dos institutos previstos no Código de Defesa do Consumidor.

Entretanto, antes de adentrar no cerne dos avanços trazidos pela referida legislação nas relações de consumo, importante frisar que a busca pela proteção da pessoa física ou jurídica que adquire produtos os serviços no mercado brasileiro remonta de meados da segunda metade do século XX, principalmente em razão das alterações do modelo capitalista já aflorado a época.

Nesse sentido, Fernando Costa de Azevedo destaca que “a preocupação com o estabelecimento, nos ordenamentos jurídicos nacionais, de uma tutela das necessidades e interesses dos consumidores se consolidou na segunda metade do século XX, fruto das transformações ocorridas no sistema capitalista de produção de bens e serviços” (Uma introdução ao direito brasileiro do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, a. 2009, n. 69, p. 34).

Acrescentando, importante trazer à baila Cavalieri Filho ao dizer que a mensagem especial do Presidente Norte Americano Kennedy ao Congresso Nacional de seu país apresenta a forma mais clara de se reconhecer um consumidor na atualidade quando disse que “consumidores, por definição, somos todos nós. Os consumidores são o maior grupo econômico na economia, afetando e sendo afetado por quase todas as decisões econômicas, públicas e privadas [...]. Mas são o único grupo importante da economia não eficazmente organizado e cujos posicionamentos quase nunca são ouvidos” (op. cit., p. 5).

Certamente que visando a erradicação dos desequilíbrios existentes na sociedade de consumo generalizado, onde o fornecedor ganhou espaço de relevo, pelo poderio econômico e manuseio da atividade que detém, colocando o consumidor em situação de hipossuficiência que implicou na elaboração do Código de Defesa do Consumidor.

A ideia do Código é anterior a promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988 com criação da Comissão para a elaboração do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor presidida pelo Presidente do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor na época, Dr. Flávio Flores da Cunha Bierrenbach constituído a comissão no âmbito do conselho com a presença de ilustres doutrinadores Nacionais e Internacionais bem como Promotores de Justiça do Estado de São Paulo.

O projeto foi debatido e exposto em todas as regiões do Brasil, o que resultou no anteprojeto do Código publicado no Diário Oficial de Janeiro de 1989 e, segundo Ada Pellegrini e Antônio Herman[1] “para o debate dos pontos polêmicos do Código e apresentação de sugestões, a Comissão Mista realizou ampla audiência pública, colhendo o depoimento e as sugestões de representantes dos mais variados segmentos da sociedade: indústria, comércio, serviços, governo, consumidores, cidadãos. A absoluta transparência e a isenção do relator da Comissão Mista criaram um clima de conciliação, em que se pode chegar ao consenso, adotando-se posições intermediárias, que atendiam a todos os interessados”.

Passada a fase dos debates, surgiu então a tão esperada Lei 8.078/90 que instituiu novos conceitos e institutos, objetivando a partir da existência irrefutável da supremacia do sistema econômico capitalista e, da necessária intervenção do Estado no mercado, reputar o desequilíbrio existente nas relações de consumo, visando resguardar os personagens mais vulneráveis nas relações contratuais consumeristas.

Contudo, feito o breve histórico desta importante legislação, resta verificar se o Código de Defesa do Consumidor assentou-se como mecanismo eficaz de tutela do equilíbrio nas relações de consumo, destacando a existência de avanços e retrocessos pós promulgação do Código de Defesa do Consumidor considerando o modelo de intervenção estatal instituído no Brasil.


O Modelo Intervencionista Estatal e a aplicação da Teoria da Imprevisão

O contrato como instrumento natural de circulação de riquezas, hodiernamente é utilizado sem a devida atenção a pilares básicos da relação de consumo, como a lealdade, boa fé, assistência e informação clara e precisa no que se refere aos objetivos, interesses e interpretação das cláusulas contratuais.

Em razão à desatenção periódica de parcela dos atores na relação consumerista às condições de validade, eficácia e existência do contrato, surgiu então o inevitável “dirigismo contratual” muito bem conceituado por Maria Helena Diniz[2] , ao destacar que tal expressão caracteriza “medidas restritivas estatais que invocam a supremacia dos interesses coletivos sobre os meros individuais dos contraentes, com o escopo de dar execução a política do Estado de coordenar os vários setores da vida econômica.”

A intervenção do Estado nas relações de consumo, diferentemente do liberalismo contratual existente no século XIX, com inspiração no Código Civil francês de 1804 advém de mudanças drásticas daquele período ao que hoje se vivencia na seara consumerista.

Com o advento da reforma protestante, subtrai-se a tese sustentada pelo jusnaturalismo teológico. Pós reforma, inobstante não se negue a divindade, cada pessoa, se for pura de coração e dotada de razão, seria capaz de perceber os desígnios de Deus. Claro que as idéias de Lutero serviram de um grande pano de fundo para se legitimar certas ações do poder, como no caso de Henrique VIII, que criou a igreja anglicana para contrair núpcias que não eram permitidas pela Igreja católica. Ainda assim, começa a ser questionado o poder de Deus, com a convicção de que ele não seria tão poderoso quanto se pensava anteriormente.

Hugo Grotius[3], da corrente chamada de jusnaturalismo antropológico, salientou com clareza merediana que o poder de Deus, apesar de supremo, não seria ilimitado, pois, segundo ele, nem Deus poderia modificar o direito natural, já que "...embora seja imenso o poder de Deus, podem-se, contudo, assinalar algumas coisas as quais não alcança...assim, pois, como nem mesmo Deus pode fazer com que dois e dois não sejam quatro, tampouco pode fazer com que o que é intrinsecamente mau não o seja...Por isso, até o próprio Deus se sujeita a ser julgado segundo esta norma..."

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Surge então, diversas correntes de pensamento, como os canonistas que, sem adentrar de forma aprofundada abriram caminho para a formulação dos princípios da autonomia da vontade e do consensualismo e a escola do direito natural, na qual a obrigação é a vontade livre dos contratantes.

Na fase moderna, começa a ocorrer a identificação dos conceitos de trabalho e ação, próprios da teoria de Hannah Arendt[4]. A ação passa a perder a noção de virtude que lhe era intrínseca, passando a ser observada como uma atividade para a obtenção de fins a partir de determinados meios.

Houve então, aproximação entre jus e lex, onde o olhar para o direito era o mesmo que norma, adotando-se uma razão meramente instrumental.

A atitude política tornou-se centro produtor de bens de uso, como ordem e segurança.

Logo, surge a dicotomia direito individual versus direito coletivo, com a idéia de prevalência deste sobre aquele, muito embora ambas as formas de observação eram sociais. E aqui entra a criação da figura do “Estado” como ente que envolveria ambas as partes da dicotomia social, funcionado como filtro equilibrador dessas forças.

Inevitavelmente, portanto, restou apagada a divindade como centro de um direito natural, em virtude do surgimento da modernidade ocidental com o Estado moderno e as respectivas diferenciações normativas.

Ou seja, no direito contemporâneo, pós-revolução industrial, no qual a força de trabalho se tornou atividade ininterrupta em razão do desenvolvimento capitalista desenfreado, muitas vezes com abuso da livre concorrência, onde o lucro é buscado a qualquer custo em detrimento aos direitos básicos da parte hipossuficiente da relação posta, implicou na edição de normas legislativas estabelecendo condições contratuais mínimas, em que pese a permanência da utilidade e existência da autonomia da vontade, supremacia da ordem pública e obrigatoriedade das convenções ou pacta sunt servanda, mitigado como veremos mais abaixo ao ser tratado caso específico de tutela legal do consumidor.

Nessa medida, considerando a mácula trazida pelo liberalismo caracterizada na má distribuição de renda, com concentração de força nas mãos de poucos, obrigou o Estado a tomar uma postura diferenciada, qual seja, ator efetivo da relação entre fornecedor e consumidor, equilibrando a relação contratual na busca pela sustação dos excessos praticados em períodos remotos, hoje rechaçados.

A autonomia da vontade, antes compreendida como a irrestrita liberdade de contratar e de escolher o conteúdo das avenças, passou a sofrer interferências do Estado (dirigismo contratual), por meio de normas de ordem pública.

De uma forma geral, a intervenção do Estado Brasileiro nas relações contratuais tornou-se então, necessária à manutenção da integridade e eficácia dos direitos fundamentais de segunda geração, tais como direitos sociais, culturais e econômicos.

O motivo foi a identificação que o contrato constitui instrumento natural de circulação de riquezas, produzindo efeitos não apenas em relação aos contraentes, mas também perante toda a sociedade.

Por esta razão a justiça exerceu e certamente exerce papel primordial na busca destes ideais, porque acaba censurando a autonomia da vontade, permitindo que o Estado intervenha na relação contratual a fim de conjugar os interesses das partes com aqueles atinentes à sociedade.

No Brasil, nos Tribunais de Justiça, o fundamento para o dirigismo contratual e, por conseguinte, da revisão de contratos pelo Judiciário, depende do regime jurídico a que estão vinculados os contratantes. Se houver relação de consumo, aplicar-se-á o Código de Defesa do Consumidor. Assim, revisão do contrato ocorrerá em função da teoria da lesão (art. 6º, V, primeira parte do CDC) ou em razão da cláusula rebus sic stantibus[5] - onerosidade excessiva - (art. 6º, V, 2ª parte - CDC). Todavia, não sendo relação de consumo, utilizar-se-á o Código Civil. Neste caso, a revisão contratual funda-se na função social do contrato (art. 421, Código Civil de 2002) ou na onerosidade excessiva (arts. 317 e 479, do Código Civil de 2002).

Diante disso, fica fácil perceber que o contrato deixou de ser algo intangível. O contrato passou erigir deveres de lealdade e boa-fé entre os contratantes, bem como a impor o respeito as regras atinentes à sociedade.

Por tais motivos, verificou-se que caberia ao Poder Judiciário, por meio das normas de ordem pública, fiscalizar os pactos a fim de assegurar que a circulação de riquezas perpetuada pela avença satisfizesse os interesses individuais e coletivos, prestigiando a função social do contrato e a boa-fé objetiva em detrimento da autonomia da vontade.

No mundo contemporâneo, são várias as situações as quais o Estado, por intermédio do Poder Judiciário intervém objetivando a regulamentação das relações de consumo.

O exemplo seria, no caso, importante julgado do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais em relação contratual de consumo na qual o demandante alegava a existência de cláusulas abusivas, senão vejamos:

AÇÃO REVISIONAL - CONTRATO - ALEGAÇÃO CLÁUSULAS ABUSIVAS - INDEFERIMENTO DA INICIAL - IMPROCEDÊNCIA - PEDIDOS CLAROS E ESPECIFICADOS - RELATIVIDADE DO PRINCÍPIO DO PACTA SUNT SERVANDA - SENTENÇA CASSADA . A inicial não é inepta se de sua leitura constata-se conclusão lógica, só devendo ser indeferida quando o autor não expuser de forma clara e especifica os seus pedidos.-A possibilidade jurídica do pedido é a viabilidade da pretensão autoral ser examinada em juízo.- O princípio da pacta sunt servanda, hodiernamente, é dotado de relatividade, sendo permitido ao Poder Judiciário intervir nas relações entre particulares para restabelecer o equilíbrio contratual, mormente quando se tratar de relação de consumo, revelando-se negativa de prestação jurisdicional e ofensa ao direito de ação o indeferimento da inicial de ação revisional de contrato ao fundamento de impossibilidade de intervenção do Poder Judiciário nos contratos livremente celebrados entre as partes.

(Apelação Cível 1.0433.11.003663-2/002, Rel. Des.(a) Antônio de Pádua, 14ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 15/03/2012, publicação da súmula em 22/05/2012).[6] (Destaquei).

Neste prisma, possível destacar também que a regulamentação do mercado de consumo, historicamente exercido seja na via privada, através de convenções coletivas de consumo e boicote, com os consumidores e fornecedores se autocompondo, seja na via pública, por intermédio da intervenção do estado, através da edição de normas, segundo Ada Pellegrini Grinover[7], “nenhum país do mundo protege seus consumidores apenas com o modelo privado. Todos, de uma forma ou de outra, possuem leis que, em menor ou maior grau, traduzem-se em um regramento pelo Estado daquilo que, conforme preconizado pelos economistas liberais, deveria permanecer na esfera exclusiva de decisão dos sujeitos envolvidos”.

E nesta linha de intervenção estatal é que muitos países passaram a regular seus mercados de consumo e, no caso do brasil, adotando o modelo de codificação sistemática das regras de consumo, com a edição de um Código do Consumidor, diferente do que ocorre em outros países onde perdura o sistema de leis esparsas.

Tal proposta foi adotada e levada a cabo pela Assembleia Nacional Constituinte a época de promulgação da Constituição Federal de 1988, tanto que no artigo 5º, inciso XXXII da Constituição Federal é clara a dicção legal no sentido de estabelecer a proteção ao consumidor, ao dizer referido artigo e inciso que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. [8]

E referido asseguramento constitucional ficou garantido pelo Ato das disposições constitucionais transitórias, que no seu artigo 48, estabeleceu que “Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará Código de Defesa do Consumidor”.

Importante esclarecer também que a opção pelo Código de Defesa Consumidor como ele o é teve importante influência de modelos estrangeiros e, segundo Ada Pellegrini, o perfil que o Código Brasileiro de Consumo recebeu foi do “Projet de Code de la Consommation, redigido sob a presidência do professor Jean Calais-Auloy. Também importantes no processo de elaboração foram as Leis gerais da Espanha.

Neste prisma, cabe dizer que a promulgação da Constituição Federal de 1988 no Brasil, trouxe à tutela do consumidor então, o necessário status e efetividade constitucional, trazendo no texto Constitucional várias menções expressas à tutela do consumidor, como por exemplo, as dicções legais dos artigos 24 - que incluiu na esfera da competência legislativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal, a normatização sobre produção e consumo e a responsabilidade por dano ao consumidor – e parágrafo 5º do artigo 150 da CF/88 ao estabelecer que ”a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”.

James Marins (Cit. In Efing 2012) destaca que:

“para alguns assuntos específicos, a Constituição Federal trata de matéria afeta aos interesses do consumidor, como no art. 175, parágrafo único, II, ao referir-se a ‘direitos dos usuários’ com relação a serviços públicos, e o art. 221, IV, que diz respeito aos ‘valores éticos e sociais da pessoa e da família’ em relação à programação de emissoras de rádio e televisão”.

Nesta linha, observa-se que a Constituição inaugurou a fase da atenção primordial à pessoa deixando as questões patrimoniais em segundo plano, tanto que inobstante o mandamento constitucional seja atrelado à função estatal, segundo Antônio Carlos Efing (2012, p. 34), “(...) há alguns anos tem se desenvolvido no Brasil corrente quanto à eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a denominada Drittwirkung pela doutrina alemã. Tal doutrina aborda em que medida os direitos fundamentais – originalmente balizadores das relações Estado-indivíduo - também são eficazes nas relações privadas, seja na interpretação das normas do conflito privado, seja na concretização das cláusulas gerais através de valores constitucionais, ou no preenchimento de eventuais lacunas valorativas no direito provado.”.

Isso porque ao verificar o contexto histórico das relações consumeristas, constatou-se que o descumprimento de prerrogativas consumeristas extravasaram o campo das relações entre Estado e cidadão, mas também no trato privado, o que permitiu concluir que as previsões constitucionais não abarcam tão somente os poderes públicos, mas também à proteção do particulares face ao poder privado.

E é aqui que surge a expressão Rebus Sic Stantibus , ou “estando as coisas assim”, de origem canônica e utilizada para caracterizar, exemplificar a aplicação da “Teoria da Imprevisão” em relações contratuais específicas.

Referida Teoria inobstante ser desprovida de uma previsão legislativa no brasil, ganhou força na medida em que o texto de um código não pode permanecer inerte quando no campo das relações jurídicas surgem novas situações.

Nesta premissa que, contrária ao pacta sunt servanda, já em 1756 o Codex Maximilinianus Bavarius Civilis, incluía a cláusula rebus sic stantibus e tolerava a revisão contratual em casos especiais.

A aplicação de referida cláusula voltou a tomar força quando do surgimento de condições sociais que implicavam na impossibilidade de impedir uma previsão.

Segundo Geraldo Serrano Neves (1956), na Europa, ainda em 1914, buscou-se a aplicação da referida cláusula ainda que pendente Código da França, da Alemanha e da Itália restaurando expressamente o princípio e, citando CAIO TÁCITO, e seu parecer solicitado à época pelo Ministério da Viação e Obras Públicas, comenta o renascimento da cláusula rebus sic stantibus dizendo que:

“As violentas flutuações economicas geradas pelo desequilibrio social e politico oriundo da guerra exigiram dos interpretes e dos Tribunais a mitigação do princípio rígido da imutabilidade dos contratos. Sem atingir o limíte de impossibilidade absoluta, a execução dos contratos pactuados, sob condições anteriores substancialmente modificadas, tornava a obrigação excessivamente onerosa para o devedor e gerava consequencias ruinosas para o comércio e a indústria, tanto em suas relações internas como internacionais. (Revista Forense, 155-99).

O Autor ainda destaca em sua obra os dizeres de Aguiar Dias (Cit. In Neves 1956), quando defendeu que:

“A moral, a equilidade, a ordem social não se empenham no respeito á palavra dada senão enquanto esta corresponda a um elemento de garantia da ordem juridica. Quando deixe de representá-lo, o não cumprimento da palavra empenhada é fator de desolação e de desmembramento da ordem social, e, assim, contraproducente impor-se ao devedor, salvo se se entender que o princípio vale por si proprio e não pela utilidade que encerra.”

Eugenio Cardini, (Teoria de la Imprevisión, Buenos Ayres, 1937), citado por Aguiar Dias (1956) afirmou à época que:

“...la vida suscita de um modo brusco, repentino, imprevisible, circunstancias radicalmente diversas las existentes al momento de contratar. Entonces aparece la teoria de la imprevisión para rever racionalmente essos atos juridicos en geral y especialmente esos contratos, pues si bien es cierto que contratar es prever, ya que todo contrato importa um juicio valerativo del álea que se está disposto a correr, no es menos cierto que no tienen por que respetarse contratos cuya observância constituye una lotería para una de las partes y la ruina para la outra a causa de los combios imprevisibles sobrevenientes.”

No Brasil, Aguiar Dias (1956) destaca ainda que o famoso Doutrinador NELSON HUNGRIA[9], pode ser declarado como um dos precursores da aplicação da teoria da imprevisão às relações contratuais, já que defendia “... a resolubilidade dos contratos de execução futura, em virtude de subsequente mudança radical do estado de fato, não é contemplada expressamente em nossa lei civíl, mas decorre dos principios gerais do direito e exprime um mandamento de equidade”.

Certamente que tal posicionamento foi estabelecido e influenciado em razão da 1ª Guerra Mundial bem como pela clara modificação das sociedades europeias que antes de 1914 eram tachadas de sociedades estáveis, sendo completamente prejudicadas pelo referido período bélico que ocasionava mudanças drásticas constantemente, seja no valor das mercadorias ou na forma de cumprimento da obrigação.

Portanto, este momento ocasionou não só na Europa como também nos países neutros o surgimento do ora Dirigismo Contratual que acabou por flexibilizar a autonomia privada e, assim, inevitavelmente, a interferência do Direito Público no Privado.

É certo que a aplicação desta Teoria exige o cumprimento de alguns requisitos no Brasil, até mesmo para a garantia do cerne do direito consumerista que é o equilíbrio das partes na celebração do contrato, tais como contrato sinalagmático ou bilateral, oneroso, comutativo, de execução continuada ou diferida; acontecimento extraordinário, geral e superveniente; imprevisibilidade do acontecimento e desproporção do cumprimento da obrigação, onde a prestação do devedor acaba por tornar-se excessivamente onerosa, ao mesmo tempo que há um ganho exagerado da parte contrária, in casu, credor.

Muitos alegam que a aplicação da referida Teoria poderia caracterizar a extinção do contrato em sua acepção natural.

Ocorre que tal posicionamento acaba por ser exagerado, ainda mais considerando o brilhante ensinamento de Nelson Nery Junior (2011, p. 520) ao dizer que:

“O contrato não morreu nem tende a desaparecer. A sociedade é que mudou, tanto do ponto de vista social como do econômico e, consequentemente, do jurídico. É preciso que o Direito não fique alheio a essa mudança, aguardando estático que a realidade social e econômica de hoje se adapte aos vetustos institutos com o perfil que herdamos dos romanos, atualizado na fase das codificações do século XIX. A propósito, o último grande movimento reformista do Direito Privado no mundo ocidental ocorreu com a recepção do Direito Romano, o que, convenhamos, não se coaduna com o dinamismo que a sociedade, em constante transformação, está a exigir da ciência do Direito.”

Neste pondo, possível destacar importante inovação trazida pela codificação brasileira das leis de consumo, já que se demonstra alinhado a inovações principiológicas e pensamento contemporâneo, adotando como máxima a chamada boa fé objetiva ou exigência de lealdade na relação contratual entre fornecedor e consumidor.

A título de ilustração, possível destacar o artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor Brasileiro, senão vejamos:

Art. 51 - São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor-pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;

II - subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste Código;

III - transfiram responsabilidades a terceiros;

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;

V - (Vetado)

VI - estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor;

VII - determinem a utilização compulsória de arbitragem;

VIII - imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor;

IX - deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor;

X - permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral;

XI - autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor;

XII - obriguem o consumidor a ressarcir os custos de cobrança de sua obrigação, sem que igual direito Ihe seja conferido contra o fornecedor;

XIII - autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após sua celebração;

XIV - infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais;

XV - estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor.

XVI - possibilitem a renúncia do direito de indenização por benfeitorias necessárias.

O Legislador foi atento à massificação contratual (contratos de massa - adesão) - inovando, porque o Código de Defesa do Consumidor Brasileiro foi a primeira Lei Brasileira a tratar do assunto - onde já não há mais a discussão conjunta de cláusulas e sim a elaboração prévia do contrato pelo fornecedor sem que o consumidor possa modificar substancialmente as regras contidas naquele termo, conforme preconiza o artigo 54 do CDC, previu, a possibilidade da revisão contratual e consequente declaração de nulidade de dispositivos contratuais perniciosos e interesseiros, que só visam o lucro a qualquer custo do fornecedor em detrimento do equilíbrio contratual.

Acrescentando, conforme preconiza o artigo 90 do CDC, o controle das disposições contratuais pode ser feito seja pela via administrativa ou pela via judicial. Via administrativa por intermédio de inquérito, nos termos da Lei 7.347/85 e pela adoção de medidas no âmbito da administração pública.

A título de exemplo, trazemos as considerações de Nelson Nery Junior (2011, p. 537) que destacou a realidade do Estado de São Paulo neste sentido:

“A experiência paulista nessa área tem demonstrado, ao longo de alguns anos, o acerto da adoção do inquérito civil como elememento de pacificação social na tutela dos interesses e direitos difusos e coletivos. Apenas para referir um exemplo, o Ministério Público de São Paulo instaurou inquérito civil para a apuração da existência de cláusulas abusivas em formulários utilizados por algumas escolas de línguas da capital. No curso do inquérito a conclusão comum dos interessados foi no sentido de que determinadas cláusulas eram, efetivamente, abusivas. A fim de evitar a propositura de ação civil pública pelo Ministério Público, com o objetivo de defender os direitos difusos dos consumidores, as escolas resolveram alterar em seus formulários-padrão as cláusulas consideradas abusivas, chamando os alunos que já tinham subscrito o contrato de adesão para que fizessem o respectivo aditivo contratual. Formalizou-se um termo de acordo, celebrado entre o Ministério Público e as escolas, que foi homologado pelo Conselho Superior do Ministério Público.”

Por final, importante aduzir que as inovações trazidas pelo Código de Defesa do Consumidor foram positivas. Ocorre, contudo, que não se pode deixar de esclarecer que muitos preceitos legais, anteriormente esparsos em outros compêndios de Leis (já existentes no ordenamento brasileiro), foram reunidos e positivados pelo CDC, como a cláusula geral de boa-fé e o princípio da interpretação mais favorável ao aderente, adquirindo o CDC desta maneira, a figura de consolidador de teses já remansosas seja na doutrina ou na jurisprudência brasileira.

Nota-se que o perfil de autonomia didática do Código de Defesa do Consumidor buscou garantir “uma subdivisão para melhor elaboração e compreensão das normas que devem regular relações fáticas especiais”. [10]

Sobre o autor
Aparecido Signato de Melo Neto

Advogado, Especialista em Direito Tributário pelo IBET e Processo Civil pela UNIDERP, DPO/EXIN Privacy and Data Protection Essentials, Doutorando em Direito Obrigacional e CEO na Signato de Melo Sociedade de Advogados.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo científico apresentado como exigência para aprovação na matéria de História do Direito no curso de Doutorado pela Universidade de Buenos Aires - Argentina.

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