3 NEXO DE CAUSALIDADE
Superados os debates sobre a conduta humana e o dano injusto, passa-se agora ao exame da relação de causalidade, campo em que se apresentam as maiores divergências enfrentadas pela doutrina e jurisprudência sobre o tema em questão.
Este estudo é marco divisor para a pesquisa, uma vez que a definição da natureza jurídica da teoria da perda de uma chance irá emanar, principalmente, dos pressupostos aqui estabelecidos.
Com esse enfoque, portanto, segue adiante o conceito básico do instituto intitulado, assim como algumas considerações pertinentes ao seu estudo. Na sequência, são examinadas as teorias suscitadas para tratar dessa relação de causalidade, principiando com as denominadas teorias tradicionais (equivalência das condições, causalidade adequada e causalidade direta e imediata) e, tratando, em seguida, das teorias que enfrentam o nexo de causalidade de forma alternativa (causalidade parcial e causalidade presumida). Neste último exame faz-se presente uma análise comparativa com alguns institutos da common law.
Ainda neste título, a teoria da imputação objetiva também é chama da ao debate, muito embora seja proveniente do Direito Penal.
Por derradeiro, são expostas as causas excludentes do nexo de causalidade.
Feitos esses necessários esclarecimentos, passa-se, então, ao estudo propriamente dito.
Muito embora uma considerável parcela dos juristas enfrente a relação de causalidade como sendo um instituto de simples compreensão, a prática jurídica não permite essa postura leviana frente ao tema, impondo severas consequências negativas às pretensões levadas ao Judiciário sem o seu devido exame e ponderação. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 133), por exemplo, alertam que este elemento é o mais melindroso da matéria.
No posterior estudo da teoria da perda da chance será observado que esta temática possui ainda maior relevância em seu contexto, tendo em vista ser um dos principais responsáveis pela aceitação (ou não) dessa modalidade de responsabilidade civil.
Conceituando esse instituto, Silvio de Salvo Venosa (2008, p. 47-48) assim leciona:
O conceito de nexo causal, nexo etiológico ou relação de causalidade deriva das leis naturais. É o liame que une a conduta do agente ao dano. É por meio do exame da relação causal que concluímos quem foi o causador do dano. Trata-se do elemento indispensável. A responsabilidade objetiva dispensa a culpa, mas nunca dispensará o nexo causal. Se a vítima, que experimentou um dano não identificar o nexo causal que leva o ato danoso ao responsável, não há como ser ressarcida [...].
Conforme se extrai do referido trecho, a configuração do nexo de causalidade se mostra indispensável a qualquer situação de responsabilidade81, tanto subjetiva quanto objetiva. Diante disso, não se concorda, por exemplo, com o entendimento trazido por César Fiuza82 (2008, p. 723), que o define como a “[...] relação de causa e efeito entre a conduta culpável do agente e o dano por ela provocado”. Acredita-se que esta concepção não abrange a real extensão da relação causal, uma vez que as hipóteses em que há objetividade (prescindindo de culpa) também serão pressupostas desse elemento.
Destaque-se, por fim, a pertinente ressalva feita por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 133-134). Eles alertam sobre o cuidado necessário para se distinguir imputabilidade de nexo de causalidade. Em citação ao posicionamento de Serpa Lopes, é exposto que o nexo se relaciona “[...] com os elementos objetivos, externos, consistentes na atividade ou inatividade do sujeito, atentatória do direito alheio, ao qual vulnera produzindo um dano material ou moral [...]” (grifos do autor), e que a imputabilidade “[...] diz respeito pura e simplesmente a um elemento subjetivo, interno, relativo tão só ao sujeito [...]”.
Verifica-se, portanto, que a imputabilidade não se confunde com as causas do dano, mas tão somente à possibilidade do seu causador enfrentar uma tutela jurisdicional, o que não se vincula diretamente ao presente estudo.
Diante dessas considerações se observa que, a priori, o tema parece não enfrentar maiores percalços. Todavia, como já foi dito, essa ideia não se confirma, em razão do caráter genérico dos referidos conceitos, o que dá margem à confecção de diversas teorias explicativas desse liame de causalidade.
Passa-se, portanto, ao exame das que mais se destacam.
3.1 Teorias tradicionais
Dentre as várias teorias que têm como objeto a relação de causalidade, algumas delas estão engajadas de forma mais consistente no ordenamento jurídico pátrio, havendo, inclusive, citação expressa em texto legal. Por serem elas mais bem aceitas teoricamente e doutrinariamente recebem o nome de teorias tradicionais83. Segue-se o estudo de cada uma delas.
3.1.1 Equivalência de condições ou “conditio sine qua non”
Conforme se infere de sua própria denominação, esta primeira teoria possui vínculo direto com as condições sem as quais o dano não ocorreria. Nas palavras de Sergio Cavalieri Filho (2006, p. 72):
[...] essa teoria não faz distinção entre causa (aquilo de que uma coisa depende quanto à existência) e condição (o que permite à causa produzir seus efeitos positivos ou negativos). Se várias condições concorrerem para o mesmo resultado, todas têm o mesmo valor, a mesma relevância, todas se equivalem. Não se indaga se uma delas foi mais ou menos eficaz, mais ou menos adequada. Causa é a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido, sem distinção da maior ou menor relevância que cada uma teve.
Ou seja, diante de determinado evento, todas as condições que concorreram para a sua consecução serão consideradas suficientes para causá-lo, não se mostrando relevante o grau dessa interferência.
Neste contexto, Silvio de Salvo Venosa (2008, p. 48) ensina uma fórmula para enfrentar o tema na prática. Segundo o autor, ao examinar um fato, o aplicador do direito deverá retirar mentalmente cada condição que acredita ter contribuído para o dano. Se este desaparece com esse exercício de retirada, ela não era causa dele, enquanto, persistindo, será considerada para fins de reparação.
Melhor explicando esse exercício mental, Rogério Greco (2012, p. 218) aponta que ele foi idealizado pelo professor sueco Thyrén, tendo recebido o nome de “processo hipotético de eliminação”. Para Thyrén haverá três etapas para se constatar que determinado fator foi causa do resultado:
1º) temos que pensar no fato que entendemos como influenciador do resultado;
2º) devemos suprimir mentalmente esse fato da cadeia causal;
3º) se, como consequência dessa supressão mental, o resultado vier a se modificar, é sinal de que o fato suprimido mentalmente deve ser considerado como causa deste resultado (GRECO, 2012, p. 218).
Conforme se observa, de um exame realizado sob esta perspectiva emergem inúmeras causas de um mesmo dano, o que, na concepção de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 135), inviabiliza a adoção da teoria. Em exemplo clássico, eles afirmam que num caso de homicídio até mesmo o fabricante do revólver utilizado incorreria em responsabilidade84.
Não obstante a existência dessas severas críticas, a teoria é adotada expressamente pelo Código Penal brasileiro, em seu artigo 1385. Os penalistas asseveram que o problema de extensão é solucionado pelo exame da culpa ou dolo do agente, de modo que inexistindo esses elementos em sua conduta o fato será atípico. Indicam que a teoria é mais utilizada para excluir as causas que não concorrem, do que para identificá-las diretamente (MIRABETE, 1999, p. 136).
Apesar de se mostrar pertinente essa forma de enfrentar a teoria, ela não é bem aceita na esfera cível, porquanto trabalha com esses inconvenientes que não se apresentam nas demais vertentes, conforme será observado.
3.1.2 Causalidade adequada
Contrapondo a grande abrangência (e consequente insegurança jurídica) presente na teoria da equivalência das condições, a causalidade adequada se dedica a alcançar a causa exclusiva de um dano, realizando juízos objetivos sobre a capacidade de determinada conduta produzir o resultado danoso. Nesse sentido, assim leciona Sergio Cavalieri Filho (2006, p. 73):
Causa, para ela, é o antecedente não só necessário mas, também, adequado à produção do resultado. Logo, nem todas as condições serão causa, mas apenas aquela que for a mais apropriada a produzir o evento. [...] Não basta, como observa Antunes Varela, que o fato tenha sido, em concreto, uma condição sine qua non do prejuízo. É preciso, ainda, que o fato constitua, em abstrato, uma causa adequada do dano (grifos do autor).
Verifica-se que, neste caso, não serão consideradas todas aquelas causas que interferiram para a concretização do evento danoso, mas somente aquelas que, razoavelmente, detinham potencial para alcançar tal desfecho.
Em sequência, o citado autor pondera que o principal problema enfrentado pela teoria será identificar qual condição, dentre as diversas, poderá ser considerada adequada. Respondendo à sua indagação, ele aponta que “Considera-se como tal aquela que de acordo com a experiência comum, for a mais idônea para gerar o evento” (CAVALIERI FILHO, 2006, p. 73).
Diante desse critério tão incerto, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 138) alertam para os perigos de se conceder tamanha parcela de discricionariedade ao julgador86. Na sequência, ainda afirmam que “[...] esta ‘abstração’ característica da investigação do nexo causal segundo a teoria da causalidade adequada pode conduzir a um afastamento absurdo da situação concreta, posta ao acertamento judicial”.
Muito embora se mostrem presentes esses inconvenientes, tanto Sergio Cavalieri Filho (2006, p. 73) quanto Silvio de Salvo Venosa (2008, p. 48) apontam ser esta a teoria adotada pelo atual Código Civil.
Por fim, é importante consignar que, por diversas vezes, esta teoria é confundida com a próxima a ser estudada – a causalidade direta e imediata. O citado Silvio de Salvo Venosa (2008, p. 48-49), por exemplo, conceitua a causalidade adequada, nos exatos termos acima, e conclui que ela está devidamente consolidada no Código Civil de 2002 pela expressão “efeito direto e imediato”. Ou seja, há uma unificação dos institutos.
Com a devida venia, não se concorda com essa conclusão, tendo em vista se tratar de teorias com ideais divergentes. Muito embora haja confusão prática entre ambas (o que será exposto adiante), não se mostra adequado ignorar as suas peculiaridades no campo teórico. Das suas origens já se percebe não se tratar do mesmo instituto. A causalidade adequada resultou de estudos realizados pelo filósofo alemão Von Kries, ao passo que a causalidade direta e imediata foi desenvolvida pelo Professor brasileiro Agostinho Alvim (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 136 e 138).
Portanto, para a obtenção de conclusões mais sólidas sobre o assunto, mostra-se indispensável essa bipartição proposta. E é neste rumo que se sequencia o estudo.
3.1.3 Causalidade direta e imediata
Encerrando as hipóteses tradicionais sobre o nexo de causalidade, tem-se esta vertente que, na concepção dos citados Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 140), é a mais adequada, “[...] eis que não apresenta o nível de insegurança jurídica e subjetividade apresentados em alto grau pelas teorias anteriores”. Indicando ser ela também conhecida por teoria da interrupção do nexo causal e teoria da causalidade necessária, estes mesmos autores assim a definem:
Causa, para esta teoria, seria apenas o antecedente fático que, ligado por um vínculo de necessariedade ao resultado danoso, determinasse este último como uma consequência sua, direta e imediata (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 140).
Conforme se verifica, a teoria sugere que causas não são somente aquelas que abstratamente eram adequadas à produção do resultado danoso, mas que sua verificação dependerá do antecedente fático que se mostrou necessária ao desfecho dos eventos. Ou seja, a casuística é imprescindível para se identificar a causa.
Extrai-se de uma das denominações indicadas pelos citados autores, que esta teoria é marcada pela interrupção do nexo causal, ou seja, causa será aquela que intervém no curso normal dos eventos, mostrando-se o dispositivo necessário à ocorrência do dano87. Isso permite classificá-la como direta e imediata ao dano. Eventuais “condições sem as quais”88 que não possuam vínculo direto e imediato com o dano serão eliminadas da cadeia dos fatos, respondendo o causador delas apenas por prejuízos que ocasionaram até o momento da interrupção do nexo por uma nova causa (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 138-139).
Citado por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 139), essa questão é elucidada por Gustavo Tepedino nos seguintes termos:
[...] a causa relativamente independente é aquela que, em apertada síntese, torna remoto o nexo de causalidade anterior, importando aqui não a distância temporal entre a causa originária e o efeito, mas sim o novo vínculo de necessariedade estabelecido, entre a causa superveniente e o resultado danoso. A causa anterior deixou de ser considerada, menos por ser remota e mais pela interposição de outra causa, responsável pela produção do efeito, estabelecendo-se outro nexo de causalidade.
Em complemento a essa definição, Rafael Peteffi da Silva (2007, p. 38) leciona que “[...] conseqüências diretas são aquelas que não resultam da intervenção de outras causas em tempo posterior”.
Sequenciando, o mesmo autor alerta para o perigo de se interpretar de forma gramatical as expressões “dano direto e imediato”, tendo em visa que poderia supor não estarem envolvidos os danos indiretos ou os danos remotos, como, por exemplo, o dano por ricochete89. Nesse sentido, assim ensina:
Gustavo Tepedino afirma que diante de tal dificuldade passou-se a considerar a construção evolutiva da teoria do dano direto e imediato, denominada de subteoria da necessariedade da causa, a qual admite a reparação de danos indiretos, desde que estes sejam “conseqüências direta” da ação ou omissão do agente (SILVA, 2007, p. 38).
Conforme se verifica, o simples fato da conduta danosa ter afetado indiretamente outro bem jurídico da própria vítima ou, por reflexo, uma terceira pessoa, em nada altera os pressupostos da teoria, posto que apenas será observada a causa necessária para o desfecho. Não havendo o surgimento de nenhuma outra razão que resulte na consecução do dano indireto ou por ricochete, a conduta que, inicialmente, visava determinado alvo, também será causa da ofensa aos demais atingidos.
Como já mencionado, os citados Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 141) acreditam ser esta a teoria que melhor trabalha a matéria, bem como ter sido ela a adotada pelo ordenamento jurídico pátrio. Em defesa desse entendimento, fazem menção ao artigo 403 do CC/02, que assim leciona:
Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual (BRASIL, Vade Mecum, 2012, p. 175).
Observa-se desse dispositivo legal que, por uma interpretação gramatical, não restam dúvidas ser esta a teoria adotada pelo atual Código Civil. Todavia, Rafael Peteffi da Silva (2007, p. 25-26) atenta para o inconveniente de estar esse texto inserido no título que trata especificamente do inadimplemento das obrigações (título IV), campo de atuação da responsabilidade negocial/contratual. Ou seja, isso poderia limitar a atuação dessa teoria a essa seara, não se aplicando à responsabilidade aquiliana. Em resposta à própria crítica, o mesmo autor conclui, em seguida, que o simples local em que foi disposta a teoria não tem o condão de limitar a sua aplicabilidade, sendo a premissa expansiva a todas as circunstâncias de responsabilidade civil.
Comungando dessa mesma ótica, o Superior Tribunal de Justiça rompe qualquer limitação ao campo contratual, dispondo que a causalidade direta e imediata se aplica a todo o ordenamento jurídico:
RESPONSABILIADE CIVIL. FALÊNCIA DE EMPRESA. AÇÃO INDENIZATÓRIA PROPOSTA EM FACE DO SEBRAE. ELABORAÇÃO DE PROJETO DE VIABILIDADE ECONÔMICO-FINANCEIRA. NÃO CONFIGURAÇÃO CAUSA DIRETA, IMEDIATA E NECESSÁRIA DA INSOLVÊNCIA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. [...] Somente rende ensejo à responsabilidade civil o nexo causal demonstrado segundo os parâmetros jurídicos adotados pelo ordenamento, vigorando no direito civil pátrio, sob a vertente da necessariedade, a "teoria do dano direto e imediato", também conhecida como "teoria do nexo causal direto e imediato" ou "teoria da interrupção do nexo causal" [...] (STJ, Relator: Min. Luis Felipe Salomão, Data do julgamento: 21/10/2010, Número do Processo: REsp 1.154.737) (2012)90.
Nesse mesmo sentido, mostra-se imprescindível destacar o julgado do Supremo Tribunal Federal que formou um marco divisor sobre essa temática. Em demanda que versava sobre responsabilidade extracontratual, assim se manifestou o Ministro Moreira Alves91:
Responsabilidade civil do Estado. Dano decorrente de assalto por quadrilha de que fazia parte preso foragido vários meses antes. - A responsabilidade do Estado, embora objetiva por força do disposto no artigo 107 da Emenda Constitucional n. 1/69 (e, atualmente, no parágrafo 6. do artigo 37 da Carta Magna), não dispensa, obviamente, o requisito, também objetivo, do nexo de causalidade entre a ação ou a omissão atribuída a seus agentes e o dano causado a terceiros. - Em nosso sistema jurídico, como resulta do disposto no artigo 1.060 do Código Civil, a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal. Não obstante aquele dispositivo da codificação civil diga respeito a impropriamente denominada responsabilidade contratual, aplica-se ele também a responsabilidade extracontratual, inclusive a objetiva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjetiva, afasta os inconvenientes das outras duas teorias existentes: a da equivalência das condições e a da causalidade adequada [...] (STF, Relator: Min. Moreira Alves, Data do Julgamento: 12/05/1992, Número do processo: RE 130764/PR) (2012)92.
Verifica-se, portanto, que, pelo menos no campo teórico, a causalidade direta e imediata tem prevalecido. Muito embora seja de longa data esse julgado do Supremo, as condições em que ele foi proferido se assemelham a esta realidade, no que concerne à matéria debatida. Conforme se extrai de recentes julgados proferidos pela mesma corte, o referido posicionamento foi mantido nos seus exatos termos93.
Em que pese essa delimitação da matéria, a prática não permite tamanha distinção entre os critérios adotados na identificação do nexo de causalidade, e isso decorre do fato de que as teorias muito de assemelham. Há um forte vínculo entre todas elas, de modo que mais se complementam, do que se repelem.
Sobre essa distinção das teorias, Rafael Peteffi da Silva (2007, p. 42) tece a seguinte observação:
[...] acredita-se que, na maioria dos casos nos quais é possível imaginar ou comprovar outras causas supervenientes e eficazes para a causação do dano, o vínculo entre a causa anterior e o prejuízo final passa a esvanecer, maculando inexoravelmente o seu “caráter de adequação”, pois outras causas se apresentam como mais adequadas.
Por esse entendimento de Peteffi, o resultado da utilização da teoria da causalidade direta e imediata será, portanto, o mesmo da causalidade adequada. A causa que interrompe o nexo causal, inevitavelmente será responsável por tornar inadequada a causa anterior, sendo esta última, concomitantemente, necessária e adequada.
Sequenciando, o mesmo autor afirma que a teoria da equivalência das condições também estará inclusa em todas as demais elencadas, posto que somente será causa adequada ou necessária aquela sem a qual o resultado não teria ocorrido (SILVA, 2007, p. 45)94.
Segundo Rafael Peteffi da Silva (2007, p. 41-42), “Grande parte da doutrina nacional já se deu conta do pouco valor da distinção entre a teoria da causalidade adequada e do dano direto e imediato”. Ele afirma “[...] que as duas teorias analisadas propõem enfoques distintos sobre o mesmo conceito de nexo de causalidade”.
Diante dessas razões, pode se concluir que a teoria da causalidade direta e imediata (ou da causalidade necessária) foi teoricamente adotada, sobretudo, por ser a mais completa. Nela estão contidas, em síntese, as essências das outras duas teorias. Nos seus moldes, a causa deverá ser condição sem a qual o dano não ocorreria, não será admitida a intervenção de uma outra causa (sob pena de atribuir a esta a responsabilidade pelo resultado danoso), bem como ela se mostrará, por consequência, adequada à produção do dano.
Essa adequação objetiva da causa, no entanto, não será tão valorada pela teoria da causalidade direta e imediata quanto na teoria da causalidade adequada, motivo pelo qual se mostra importante citar o alerta feito por Rafael Peteffi da Silva (2007, p. 42), baseado nos ensinamentos de William Prosser e W. Page Keeton. Para demonstrar que também é importante o exame dessa capacidade objetiva da causa provocar o dano, o autor traça o seguinte paralelo com o conceito de causas na commom law:
No direito norte-americano, a lição de William Prosser e W. Page Keeton vem diretamente ao encontro da presente análise. Destarte, os autores asseveram que a teoria da “causa direta” poderia estabelecer limites muito brandos à causalidade, chegando à reparação de danos que gerariam em todos o sentimento de se estar indo longe demais. Assim, aqueles tribunais que têm garantido a aplicação da causalidade a todas as consequências diretas da ação ou omissão do agente vêm admitindo que o critério da previsibilidade entre “pela porta dos fundos”, como fator auxiliar para determinar o que seriam conseqüências diretas. Em rigor, os magistrados utilizam os critérios da adequação causal para coibir os abusos que poderiam ser gerados pela doutrina do dano direto e imediato (SILVA, 2007, p. 42, grifos do autor).
Conforme se nota, os critérios da common law muito se assemelham àqueles adotados pelo vigente Código Civil. A ressalva que se faz é que lá o entendimento tem se filiado a ambas as teorias (causalidade adequada e causalidade direta e imediata) de forma mais fiel, sopesando de forma equiparada cada requisito trazido por elas.
Diante do exposto acima, pode se observar que, muito embora haja um misto das teorias no direito brasileiro, o que o diferencia da common law, nesse sentido, é que nele há uma adoção majoritária da teoria do dano direto e imediato. Em que pese esta teoria trabalhar com os conceitos das demais teorias, na hipótese de conflito entre os seus fundamentos, esta tende a preponderar. Ou seja, o requisito de ser a causa abstratamente suficiente à ocorrência do dano (causa adequada) cede lugar à causa necessária para a sua configuração no caso concreto (direta e imediata).
Por fim, é importante mencionar sobre as hipóteses de causalidade múltipla95, objeto causador de grandes dificuldades no estudo do tema. O citado Rafael Peteffi da Silva (2007, p. 27) dispõe que elas podem ser sucessivas ou simultâneas. Estas consistem nas hipóteses em que um dano é causado por duas condutas concomitantes e aquelas podem ser verificadas nas situações em que um dano é resultado de uma sequência de condutas, sendo imprescindíveis todas elas para a sua consecução. Segundo o autor:
Tanto no caso das concausas simultâneas como no de concausas sucessivas, pode-se estar diante de um concurso de causas que será enquadrado no suporte fático contido respectivamente nos arts. 1.518 do Código de Beviláqua e 942 do novo Código Civil, o qual determina que se deve aplicar a responsabilidade solidária entre os agentes do dano. Desse modo, a vítima poderá escolher qual dos autores do dano irá executar, sendo que o executado terá ação regressiva contra os outros, na medida de suas “culpas” (SILVA, 2007, p. 27).
Ou seja, se depois de realizadas as necessárias ponderações, for constatado que há mais de uma causa, e que todas elas são necessárias para a existência do dano, a responsabilidade será de todos os causadores solidariamente.
Essa observação possui grande importância pelo fato de que incumbir ao magistrado a identificação de apenas uma causa, seria obrigá-lo a proferir decisões aleatórias em algumas circunstâncias excepcionais, o que desvirtuaria totalmente o objetivo das teorias. Portanto, haverá hipóteses em que mais de uma condição poderá se amoldar aos requisitos acima elencados, ensejando, por conseguinte, a responsabilização de todos os agentes causadores (existirá mais de uma condição necessária).
Eis, em síntese, as mais frequentes peculiaridades e debates envolvendo as teorias tradicionais sobre o nexo causal. Valendo-se dessas premissas expostas acima, passa-se, portanto, ao exame das teorias alternativas sobre o instituto em comento.
3.2 Teorias alternativas
Ainda nessa ideia de multiplicidade de supostas causas de determinado dano, as teorias alternativas sobre o nexo de causalidade são chamadas ao debate. Ocorre, todavia, que na hipótese de atuação destas teorias não se pode afirmar que o dano final decorreu das várias causas, como na causalidade concorrente. Aqui não se fala em atuação conjunta destas, mas se tenta eleger qual delas foi causa capaz de originar o desfecho danoso no caso em exame. Ou seja, apesar de várias hipóteses abstratas, é desconhecida a causadora concreta do dano.
Fernando Noronha (2010, p. 681-682) define o instituto sob análise da seguinte forma:
Temos causalidade alternativa quando existem dois ou mais fatos com potencialidade para causar um determinado dano, mas não se sabe qual deles foi o verdadeiro causador. Por exemplo, não se sabe se a morte de uma pessoa ou o agravamento de sua doença são devidos à evolução natural da moléstia de que sofria, ou se a um erro médico, devidamente comprovado.
Conforme se extrai do citado exemplo, a morte da paciente não pode ser inequivocamente atribuída a nenhum dos dois fatores elencados, o que, pelas teorias tradicionais, impossibilitaria a compensação do dano. Estaria ausente a prova da conditio sine qua non.
Supondo-se que fosse utilizando o processo de Thyrén: excluindo mentalmente a falha médica, não há certeza de inocorrência do óbito, pois a paciente já estava acometida de moléstia. Em contrapartida, se excluído o agravamento da moléstia, também não há se falar em vida certa, pois o erro médico era capaz de ensejar o óbito.
Resumindo, embora não haja dúvida de que uma das condições causou o dano, não se pode asseverar qual delas era condição necessária para tanto.
Para solucionar esse impasse, a doutrina optou por alternativas que prescindissem da conditio sine qua non, por meio da instituição de presunções de causalidade, bem como da adoção de uma causalidade parcial (SILVA, 2007, p. 46-49).
3.2.1 Causalidade parcial
Consoante disposto acima, a causalidade parcial incidirá naquelas hipóteses em que a prova da conditio sine qua non restar prejudicada, ante a existência de várias causas capazes de ocasionar o dano, não se sabendo definir qual delas atuou nesse sentido.
Citado por Rafael Peteffi da Silva (2007, p. 50), Jacques Boré indica que, frente a essas situações, duas são as providências cabíveis:
A primeira acredita que o prejuízo final não possui carga de certeza requerida pelo ordenamento, estando ausentes as presunções sérias e concordantes, necessárias para se fazer o “salto do desconhecido ao conhecido” para que a prova respalde a indenização do dano final. Como segunda alternativa, o magistrado pode reduzir o prejuízo na medida do vínculo causal que ele constata com o erro do ofensor (grifos do autor).
Verifica-se desse citado trecho, que o autor francês indica, inicialmente, a apreciação do caso sob uma perspectiva tradicional do nexo de causalidade, tornando impossível a indenização, diante da ausência de certeza (pela falta da condição sem a qual). Em seguida, Boré aponta para a possibilidade de aplicação da causalidade parcial, indenizando apenas na medida em que a conduta do agente se vinculou ao dano.
Melhor conceituando o instituto, Peteffi (2007, p. 50) leciona que:
[...] se o prejuízo final não está em relação causal totalmente provada com o ato do ofensor, ou seja, se este não representa uma conditio sine qua non para a realização da perda da vantagem esperada – pode-se conceder a reparação para um prejuízo parcial e relativo [...].
Em seguida, assim exemplifica o autor:
[...] a reparação deverá ser quantificada de acordo com a probabilidade de causalidade provada96. Se existem oitenta por cento (80%) de probabilidade de que a conduta do réu tenha causado o dano experimentado pela vítima, o dano será quantificado em oitenta por cento (80%) do prejuízo total sofrido. Da mesma forma, se o conjunto probatório indica uma probabilidade causal de quarenta por cento (40%), é exatamente segundo esta proporção que será calculada a indenização (SILVA, 2007, p. 50).
Verifica-se que, em síntese, a utilização da causalidade parcial consiste no arbitramento de uma indenização proporcional à probabilidade de participação do agente no resultado danoso97. Haverá, portanto, uma análise da sua atuação no evento, oportunidade em que será alcançado determinado percentual. Este será presumido causa, na medida do montante aferido.
Muito embora a teoria trabalhe com uma elevada parcela de álea, três matrizes são utilizadas para sustentar a sua eficiência.
Primeiramente, é defendido por Jacques Boré que o progresso científico possibilitou ao magistrado utilizar-se de confiáveis estatísticas num exame sério dessas circunstâncias. Segundo ele, as decisões indenizatórias consistentes em presunções, fazendo um salto do conhecido ao desconhecido “[...] é mais arbitrária e mais fraca como fundamento do livre convencimento do magistrado, que teria um conteúdo científico mais apreciável se baseado nas estatísticas” (SILVA, 2007, p. 59).
John Makdisi, citado por Peteffi (2007, p. 59), sustenta que os outros dois pilares consistem na “eficiência econômica de um padrão proporcional de causalidade” e no “caráter pedagógico que deve ser observado na responsabilidade civil”.
Entende-se por eficiência econômica aquelas condutas que apresenta um resultado final positivo à sociedade, de modo que as condutas ineficientes são, em contrapartida, caracterizadas pelo reflexo negativo no meio social (SILVA, 2007, p. 59-60).
O que explica essa característica ser um dos fundamentos da causalidade parcial é o fato de que nas condutas ineficientes nem sempre será vislumbrada a conditio sine qua non. Assim, se utilizadas as teorias tradicionais, não haverá qualquer ônus ao praticante de atividades nocivas ao meio social, motivo pelo qual é defendida a utilização dessa noção de causalidade (SILVA, 2007, p. 59-60).
Tornando prático esse fundamento, Rafael Peteffi (2007, p. 60) o exemplifica da seguinte forma:
[...] Imagine-se que uma companhia de geração de energia adote um processo de produção de energia atômica. Esse novo processo representa um ganho adicional anual para a companhia de R$1.000.000,00. Entretanto, o processo atômico aumentou a incidência de câncer na população que habita as imediações da usina de geração de energia. Os custos médicos e de inabilitação para o trabalho, devido ao aumento dos casos de câncer, produzem uma despesa anual de R$10.000.000,00 e, ainda, existe uma probabilidade de trinta por cento (30%) de que novos casos de câncer sejam causados pelo processo de geração de energia atômica. Pelo exposto, poder-se-ia afirmar que a empresa foi a causadora de R$3.000.000,00 em despesas para as vítimas de câncer, já que este valor corresponde a trinta por cento (30%) de R$10.000.000,00. Neste caso, o novo processo de geração de energia é economicamente ineficiente, visto que produz um resultado final negativo para a sociedade, pois é responsável pela criação de um lucro adicional inferior à despesa adicional criada.
Como se verifica, no caso exposto não se mostra viável a comprovação de um liame certo entre a geração de energia e os casos de câncer (há somente probabilidades), sendo afastada a incidência da conditio sine qua non e, por conseguinte, o dever de reparar (isso pelas teorias tradicionais). Sendo assim, a atividade será sequenciada sem qualquer óbice na concepção tradicional sobre o nexo de causalidade, motivo pelo qual se defende com mais este argumento a adoção da causalidade parcial.
Por fim, tem-se que a aceitação da causalidade parcial é impositiva pelo seu caráter pedagógico. Essa questão muito se assemelha à eficiência econômica da conduta, uma vez que tem como objetivo desestimular a prática ilícita.
Para justificar esse argumento, Rafael Peteffi da Silva (2007, p. 60) sustenta que a utilização de um padrão “tudo ou nada” é pedagogicamente prejudicial. Esse padrão consiste na concessão de indenização integral aos casos que mostrarem-se com um maior percentual de probabilidades de uma conduta ser a causa de determinado dano e, noutro giro, deixar de se indenizar os casos em que essa probabilidade não foi tão elevada.
Ou seja, se a conduta antijurídica não resultar em uma sanção, pela ausência de certeza quanto à sua participação no dano, será o indigitado agente estimulado a persistir na sua postura danosa, ao passo que haveria reparação de fatos aleatórios quando optado pela reparação do prejuízo total.
Nesse sentido, assim conclui o referido autor:
[...] o padrão “tudo ou nada” de causalidade estaria, em muitos casos, patrocinando subcompensações ou ultracompensações (overcompensation and undercompensation). Com a utilização da causalidade parcial, réu será condenado a pagar apenas pelo dano que, segundo as estatísticas, se espera que ele tenha causado (SILVA, 2007, p. 60).
São esses, portanto, os principais argumentos articulados em defesa desta concepção sobre o nexo de causalidade98.
3.2.2 Causalidade presumida
Proveniente do direito anglo-saxônico, a teoria da causalidade presumida também relativiza a necessidade de comprovação da conditio sine qua non, assim como ocorre na teoria da causalidade parcial. No entanto, como dispõe o próprio nome, esta vertente utiliza-se de algumas presunções na identificação da causa de determinado dano e, assim feito, o repara integralmente.
Conforme ensina Rafael Peteffi da Silva (2007, p. 32-33), para definir as situações em que essas presunções serão utilizadas, os juristas da common law se baseiam no denominado “fator substancial”99, segundo o qual a certeza da intervenção de determinada conduta no curso normal dos eventos é prescindível para que esta seja vista como causa, bastando ser observado se aquele fator é substancialmente100 capaz de ocasionar o desfecho danoso. Se assim o for, estar-se-á diante de uma proximate cause, sendo imperativo o dever de indenizar101.
Diante desse conceito aberto de fator substancial, as hipóteses de sua configuração se mostrariam muito abstratas, pelo que foi desenvolvida a fórmula more likely than not102, para sua verificação. Essa fórmula dispõe que frente ao caso concreto é necessário se fazer a seguinte ponderação: “[...] é mais provável que o dano tenha sido causado pela ação ou omissão do réu do que por uma causa estranha, mesmo que não exista um sólido convencimento sobre a verdadeira causa do dano” (SILVA, 2007, p. 35).
Verifica-se desse raciocínio que a conditio sine qua non (tratada por condição but for pelos juristas da common law), é dispensada na identificação da causa, sendo suficiente que haja maior probabilidade de um dano ter sido causado pelo agente do que por outras causas.
Tornando prática essa fórmula, Rafael Peteffi da Silva (2007, p. 35) tece as seguintes considerações:
Para se ter idéia do alcance deste padrão probatório, seria possível dizer que, se a fórmula “more likely than not” fosse posta em termos estatísticos, toda causa que apresentasse cinqüenta e um por cento (51%) de chances de ter sido causa do dano já seria considerada como “but for”, ou seja, como conditio sine qua non. Assim, o simples fato de apresentar uma probabilidade igual ou superior a cinqüenta e um por cento (51%) já seria suficiente para caracterizar a condição necessária.
Conclui-se desse método estatístico que bastará ao autor de uma demanda dessa natureza comprovar que o percentual da participação do ofensor no curso normal dos eventos superou a parcela de interferência das demais causas, que seja em pelo menos um por cento (1%). Assim terá o seu pleito atendido na totalidade. Em contrapartida, havendo igual parcela estatística com os demais fatores (50% a 50%), a demanda será julgada totalmente improcedente.
Eis, portanto, a principal característica trazida pela fórmula more likely than not.
Outra vertente suscitada pelos adeptos da causalidade presumida dispensa o uso do fator substancial e, consequentemente, da referida fórmula em algumas circunstâncias, de modo que toma como base o parágrafo 323 do Restatement (second) of Torts103, que assim dispõe:
Aquele que se incumbe de prestar, de forma gratuita ou onerosa, serviços que são reconhecidos como necessários para garantir a segurança pessoal e patrimonial de outrem deverá ser responsabilizado pelos danos físicos causados à vítima, se a sua negligência tiver aumentado os riscos para a consecução do dano (SILVA, 2007, p. 68)104.
Conforme se verifica, neste cenário não se faz necessária a comprovação do percentual mínimo (51%) para o surgimento da responsabilidade, bastando, para tanto, que haja a criação de riscos que outrora inexistiam em desfavor do ofendido105.
Esclarecendo essa questão, Patrice Jourdain e Geneviève Viney, citados por Peteffi (2007, p. 70), ressaltam para a seguinte situação:
Temos exemplos específicos de concessão de reparação por ‘probabilidade de causalidade’ na reparação de acidentes de trânsito, antes da incidência da lei de 5 de julho de 1985, nos quais não se podia estabelecer com certeza a relação de causalidade entre o fato do ofensor e o dano, mas se sabia com certeza que o responsável havia cometido uma infração. Assim, a indenização era concedida apenas pela constatação de que a infração havia criado um risco injustificado.
De um exame restrito ao referido parágrafo 323 se deduz que a aplicação desse método baseado no risco ocorreria somente aonde preexistira relação jurídica (responsabilidade contratual). Entretanto, conforme entendimento trazido pelo supracitado trecho, a aplicação extensiva aos casos de responsabilidade aquiliana não encontra uma barreira intransponível.
Sobre essa dicotomia proveniente do uso da fórmula more likely than not ou do parágrafo 323 do Restatement (second) of Torts, Rafael Peteffi da Silva (2007, p. 69) indica que, apesar das peculiaridades, ambas as concepções compõem a mesma categoria, haja vista atenuarem o ônus da prova do nexo de causalidade.
Por fim, o mesmo autor faz destaque para as contundentes críticas sofridas pela teoria, sobretudo no que concerne à manutenção do comentado padrão “tudo ou nada” (SILVA, 2007, p. 69).
Essas questões suscitadas serão debatidas no próximo capítulo sob a perspectiva da responsabilidade civil pela perda de uma chance.
3.3 Imputação objetiva
Ao contrário das teorias que foram estudadas até aqui, a imputação objetiva não apresenta uma nova forma de se identificar a relação de causalidade. Ela mais se aproxima das causas excludentes deste nexo. Por esse motivo, Rogério Greco (2012, p. 243) afirma que “[...] o termo mais adequado seria o de teoria da não-imputação, uma vez que a teoria visa, com as suas vertentes, evitar a imputação objetiva (do resultado ou do comportamento) do tipo penal a alguém”.
Consoante se depreende da parte final desse citado trecho, o mencionado autor faz referência ao instituto num contexto de Direito Penal. Isso ocorre porque a teoria em questão tem o seu campo de atuação mais voltado para essa seara, fato este que não impede o seu aproveitamento também no Direito Civil. Corroborando essa afirmação, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 146) dispõem que:
Muitos desconhecem, mas KARL LARENZ, partindo do pensamento de HEGEL, já havia desenvolvido a teoria da imputação objetiva para o direito civil, visando estabelecer limites entre os fatos próprios e os acontecimentos acidentais.
Uma das justificativas para a maior adoção da teoria no Direito Penal é o fato de que lá o nexo de causalidade é abordado pela teoria da equivalência das condições, a qual necessita de mais mecanismos para limitar que a cadeia causal se estenda ad infinitum (GRECO, 2012, p. 241). Considerando que a teoria mais aceita pelo Direito Civil pátrio tem sido a causalidade direta e imediata (ou necessária), algumas premissas trazidas pela imputação objetiva tornam-se desnecessárias, posto já serem inerentes à vertente adotada.
No entanto, a fim de contemplar as mais diversas circunstâncias que se apresentem, assim como de facilitar o deslinde de algumas controvérsias que porventura surjam no tratamento da problemática proposta, mostra-se pertinente elencar sinteticamente as principais diretrizes que compõem a teoria da imputação objetiva.
Esta teoria impõe que, diante de um fato tido como antijurídico, a conduta do agente deve ser objetivamente examinada à luz de diversos princípios e circunstâncias trazidos por ela (pela teoria). Como citado anteriormente, há uma tentativa de sequer imputar o fato ao agente, considerando que a sua conduta fora natural para o Direito (GRECO, 2012, p. 251-262).
Citado por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 146-147), Luiz Flávio Gomes traz o seguinte entendimento sobre o assunto:
[...] A teoria da imputação objetiva consiste basicamente no seguinte: só pode ser responsabilizado penalmente por um fato (leia-se: a um sujeito só pode ser imputado o fato), se ele criou ou incrementou um risco proibido relevante e, ademais, se o resultado jurídico decorreu desse risco. [...] Se pudéssemos nos valer de uma imagem, diríamos que o nexo de causalidade é uma peneira de espaços grandes enquanto a imputação objetiva conta com orifícios menores. Muitos fatos passam pelo filtro do nexo de causalidade, não porém pelo da imputação objetiva.
Como se vê, o autor leciona que o fundamento da teoria é basicamente a ideia de riscos criados. Estes, no entanto, poderão se apresentar sob várias formas. É nesse sentido que se passa à exposição de algumas das circunstâncias e também princípios que irão regulamentar o campo de atuação da teoria. Algumas dessas diretrizes são de maior relevo para o Direito Civil e outras menos. Mas, de algum modo, todas contribuem ao estudo da matéria, tendo em vista as mais diversas situações passíveis de ocorrência no Direito atual.
Rogério Greco (2012, p. 251-262) expõe esse princípio do risco em dois grupos. O primeiro deles traz o posicionamento de Claus Roxin, pelo qual um fato não será imputado objetivamente a uma pessoa em quatro situações.
Primeiramente será observada a diminuição do risco. Se a conduta do agente diminuiu o risco ao qual a vítima estava sujeito, mesmo que isso enseje outra lesão (de menor porte) não será ela imputada a ele. No contexto de uma lesão corporal, Rogério Greco (2012, p. 236) afirma que “A conduta que reduz a probabilidade de uma lesão não se pode conceber como orientada de acordo com a finalidade de lesão da integridade corporal [...]”.
Em segundo lugar deve ser ponderado sobre a criação de um risco juridicamente relevante. O que está em questão é a capacidade da conduta do agente causar esse risco. Nas palavras do referido autor:
Se a conduta do agente não é capaz de criar um risco juridicamente relevante, ou seja, se o resultado por ele pretendido não depender exclusivamente de sua vontade, caso este aconteça deverá ser atribuído ao acaso [...] (GRECO, 2012, p. 236).
Ilustrando os seus esclarecimentos, o citado autor aponta para o caso do filho que compra uma passagem aérea na expectativa de o seu pai morrer na queda do avião, ficando ele com a herança. Mesmo que isso ocorra, o fato não é imputável ao sujeito, uma vez que “[...] em casos como tais, não há domínio do resultado através da vontade humana” (GRECO, 2012, p. 236).
Terceira hipótese diz respeito ao aumento do risco permitido. Segundo Rogério Greco (2012, p. 237), trata-se de uma “versão simplificada do princípio do incremento do risco”. Para esse princípio, “[...] se a conduta do agente não houver, de alguma forma, aumentado o risco de ocorrência do resultado, este não lhe poderá ser imputado”. Em termos práticos, pode ser citado o caso, divulgado pela mídia, de um médico brasileiro que, tentando conter um sangramento incessante no coração de um paciente, fez o uso de cola comum, como última alternativa para salvá-lo. Se a morte do paciente já era certa, essa postura do médico, apesar de criar um risco, não aumentaria o que já estava instaurado. Portanto, seria impositiva a sua não-imputação pelo eventual dano. No citado caso o paciente sobreviveu.
A quarta e última situação colocada por Roxin consiste na esfera de proteção da norma como critério de imputação (GRECO, 2012, p. 236). Segundo esse critério, um fato somente poderá ser imputado ao agente acaso agrida a esfera de proteção da norma que tutele o bem violado – sobejando-a não haverá imputação. Exemplo citado por Rogério Greco (2012, p. 237) é o caso do da mãe de uma vítima de atropelamento que sofre um infarto ao tomar ciência da perda. Para os penalistas, ao motorista do carro esse segundo fato não poderia ser imputado.
Ocorre, no entanto, que esse requisito para a imputação conflita diretamente com os danos por ricochete, estudados no capítulo anterior (2.2.4.1), os quais impõem responsabilidade civil às situações dessa natureza. Por esse motivo é importante ter certo receio em seu exame concreto. Ao que tudo indica, o dano por ricochete prevalecerá nesses casos, ficando restrita a aplicação deste requisito ao juízo criminal. No entanto, diante da diversidade de demandas possíveis, fica este registro para eventual circunstância extraordinária que o aproveite.
O segundo grupo destacado por Rogério Greco (2012, p. 251-262) também demonstra a imputação objetiva através de quatro instituições, as quais têm em sua essência que o homem segue determinados papéis na sociedade. Discorrendo sobre o posicionamento de Günther Jakobs, o citado autor apresenta as situações que se seguem.
Para este autor, o primeiro caso de não imputação tem seu fundamento no risco permitido, o qual faz referência “[...] aos contratos sociais que, embora perigosos sob um certo aspecto, são necessários e mesmo assimilados pela sociedade” (GRECO, 2012, p. 239). Trata-se de uma espécie de tolerância devida por cada pessoa, em função da atual conjuntura do mundo moderno. Assim, muito embora não se possa definir de forma genérica quais casos se incluirão nesta classe, certo é que uma parcela deles não será imputado ao agente por essa razão. Conforme citado pelo próprio Rogério Greco (2012, p. 239), mesmo em casos aparentemente idênticos o exame dependerá do caso concreto, motivo pelo qual um exemplo se mostraria leviano neste momento.
A segunda situação tem como base o princípio da confiança, segundo o qual a vida em sociedade precede de uma margem razoável de confiança que cada um cumprirá o seu papel. Assim, toda vez que alguém proceder dentro dessa margem limite, um dano daí decorrente não lhe poderá ser imputado objetivamente. Exemplo dessa fronteira limítrofe da confiança é a que o médico preceptor possui no membro da equipe hospitalar que esteriliza o bisturi utilizado na cirurgia (GRECO, 2012, p. 240)106.
Em terceiro lugar tem-se a proibição de regresso. Para este fundamento, quando o papel social de determinado agente não for excedido, os resultados dele decorrentes, ou para o qual ele tenha apenas contribuído, não lhe serão imputados. Trata-se do exemplo do vendedor de bebidas que, sabendo das más intenções de seu cliente embebedar alguém, ainda vende a ele o produto, ou mesmo do taxista que leva o homicida ao local da execução. Por tratar-se dos seus respectivos ofícios, os quais compõem o papel em que estão inseridos na sociedade, imputação não lhes haverá (GRECO, 2012, p. 240-241).
Por derradeiro, a quarta situação consiste na competência ou capacidade da vítima. Essa hipótese de não imputação objetiva se refere a casos em que a vítima consente com a ofensa ou pratica ações a próprio risco. Quanto ao consentimento à ofensa, o próprio termo remete à ideia do instituto: não haverá imputação do fato ao suposto ofensor nas situações em que a vítima consentir com o dano e isso não ferir outra premissa jurídica. Já as ações a próprio risco fazem menção a um dever de autoproteção violado pela própria vítima. Exemplo dessa ocorrência pode ser encontrado na prática de esportes radicais: se algum mal acometer o praticante, não será o seu instrutor quem suportará esses ônus – não haverá imputação objetiva do fato a ele (GRECO, 2012, p. 242).
Como se observou, esses últimos quatro fundamentos não possuem grande pertinência ao Direito Civil, tendo em vista que as excludentes do nexo de causalidade já comportam a maioria dessas situações – sobretudo a culpa exclusiva da vítima e o fato de terceiro, que serão estudados no próximo título. No entanto, para que sejam sanadas as mais diversas dúvidas no estudo da responsabilidade civil, mostra-se pertinente ter o conhecimento dessas questões.
Conclui-se, portanto, que diversas situações observadas no Direito Civil estão regulamentadas pela teoria da imputação objetiva, mas, na maioria das vezes, não havendo essa correlação, ou mesmo possuindo denominação diversa. Assim, o que se pode extrair é que a aplicação deste instituto tem lugar na esfera cível, desde que não concorra com algum instituto já estabelecido em sentido contrário.
3.4 Causas excludentes do nexo de causalidade
No estudo anterior foi visto que estando presentes uma conduta humana, um dano e o nexo de causalidade unindo esses dois componentes a responsabilidade civil é imperativa. Tal premissa, no entanto, nem sempre será absoluta, tendo em vista que algumas circunstâncias são capazes de romper essa relação causal e desincumbir o suposto ofensor das consequências jurídicas de sua conduta. Serão elas o objeto de estudo deste título, que, seguindo a ordem estabelecida por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 149) tratará do estado de necessidade, da legítima defesa, do exercício regular de direito e estrito cumprimento do dever legal, do caso fortuito e força maior, da culpa exclusiva da vítima, assim como do fato de terceiro. Por fim, ainda serão feitas algumas observações sobre a cláusula de não indenizar.
3.4.1 Estado de necessidade
O estado de necessidade, conforme já foi observado no estudo da conduta humana (2.1.4), é uma das únicas hipóteses em que o ordenamento jurídico permite que o agente cause dano a outrem, sem que isso implique na ilicitude da conduta. O artigo 188 do vigente Código Civil (mais especificamente em seu inciso II) regulamenta a matéria nos seguintes termos:
Não constituem atos ilícitos:
I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;
II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente.
Parágrafo único: No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessários, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo (BRASIL, Vade Mecum, 2012, p. 164).
Trazendo uma definição mais detalhada do instituto, Caio Mário da Silva Pereira (2009, p. 573-574) afirma que ele consiste:
[...] na deterioração ou destruição de coisa alheia, para remover perigo iminente, desde que seja absolutamente necessária. Na “iminência de perigo” à pessoa ou aos bens, o agente defronta a alternativa de deixá-las perecer ou levar dano à coisa de outrem. Optando por este, não procede ilicitamente, desde que não exceda os limites do indispensável à remoção do perigo. Mas, não sendo embora ilícito o procedimento, haverá dever de reparação ao dono da coisa, se este não for culpado do perigo [...].
Complementando esse conceito, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 150) ainda ressaltam que não somente a coisa será objeto dessa tutela, mas todo e qualquer direito alheio. Afirmam também que o bem jurídico agredido deve ser igual ou inferior àquele protegido. Ou seja, deve ser feito um sopesamento entre os bens jurídicos sobre os quais a ofensa pode recair e, aí sim, optar por qual deles merece a proteção naquele momento, muito embora isso implique na destruição do outro.
Duas outras questões devem ser destacadas no citado trecho. Em primeiro lugar, é importante saber que qualquer excesso nesse exercício não será suportado pela excludente, o que dará ensejo ao dever de indenizar, na medida em que o dano sobejar o permitido (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 150).
O outro ponto a ser mencionado se refere à possibilidade de uma conduta dessa natureza originar o dever de reparação, muito embora seja ela lícita (VENOSA, 2012, p. 64). Nesse sentido, o artigo 929 do vigente Código Civil traz a seguinte redação:
Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram (BRASIL, Vade Mecum, 2012, p. 203).
Pode se observar que, mesmo havendo a excludente do nexo de causalidade, os atos praticados em estado de necessidade ainda podem obrigar o agente à reparação dos danos deles resultantes, o que, aparentemente, torna inócuo o instituto. A verdade, no entanto, não é essa, tendo em vista que tal dever remanescerá somente quando o dono do bem violado não for o causador da situação periclitante. E, mesmo nesse caso, o legislador não deixou desamparada a pessoa que agiu de boa fé e sanou a necessidade presente em determinado caso. Para evitar qualquer incoerência do instituto, foi confeccionado o artigo 930 do mencionado diploma, possuindo o seguinte teor:
No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado (BRASIL, Vade Mecum, 2012, p. 203).
Observa-se, assim, que a ação praticada em estado de necessidade transferirá para outrem a responsabilidade pelo evento danoso, seja diretamente (quando o lesado der causa à necessidade) ou, nesse último caso examinado, indiretamente (pela via da ação de regresso).
Exemplo dessa primeira situação é o caso do agente que, tentando não atropelar uma criança que atravessa a rua, acaba por abalroar o carro de seu pai, que estava na porta da residência – o ônus aqui será totalmente do genitor que faltou com o dever de cuidado. Na segunda hipótese (dano a terceiro) pode ser citado o mesmo caso, mas, porém, sendo abalroando o veículo de uma terceira pessoa – ele deverá ser reparado pelo condutor, que poderá pleitear do genitor descuidado o ressarcimento do montante gasto em proveito da vítima (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 150-151).
Por fim, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 151), em alusão às ponderações de Wilson Melo da Silva, suscitam a controvérsia existente acerca da possibilidade de a vítima, sendo um terceiro estranho ao fato, pleitear indenização diretamente ao responsável pelo perigo – supondo que o causador direto do dano esteja em situação de insolvência. Em resposta a esse questionamento, os autores afirmam que, de acordo com a legislação competente, o regresso é facultado somente ao causador material do dano, sendo impossível essa inversão da ordem. Na sequência, demonstram total discordância com esse entendimento, mencionando ser uma contradição ao objeto do instituto107.
3.4.2 Legítima defesa
Prevista no mesmo dispositivo legal citado acima (artigo 188, inciso I, do CC/02), a legítima defesa tem características semelhantes ao estado de necessidade, no entanto, a situação em que ela atua é marcada pela necessidade em se repelir uma agressão injusta. Nas palavras de Silvio de Salvo Venosa (2012, p. 61-62):
A legítima defesa constitui justificativa para a conduta. O conceito é o mesmo do Direito Penal. A sociedade organizada não admite a justiça de mão própria, mas reconhece situações nas quais o indivíduo pode usar dos meios necessários para repelir agressão injusta, atual ou iminente, contra si ou contra as pessoas caras ou contra seus bens [...] Nesse conceito de legítima defesa, não estão abrangidos unicamente os bens materiais, mas também valores da personalidade como a honra e boa fama.
Como se pode notar, a legítima defesa não tem como fundamento principal simplesmente sanar a necessidade, mas destina-se a exercer a “auto-tutela” contra alguém que estiver causando mal a si ou a outrem.
Como ocorre com o estado de necessidade, essa situação também tem como limite a medida necessária para repelir o injusto, estando sujeito a sanções quem o exceder. Igualmente, havendo ofensa a terceiros será impositivo o dever de indenizá-los, prevalecendo, contudo, o direito de regresso contra o verdadeiro agente responsável pelo episódio danoso (VENOSA, 2012, p. 62).
Uma situação que merece destaque neste contexto é a legítima defesa putativa. Mais vista no Direito Penal, ela ocorrerá “[...] quando a situação de agressão é imaginária, ou seja, só existe na mente do agente. Só o agente acredita, por erro, que está sendo ou virá a ser agredido injustamente” (GRECO, 2006, p. 365). É o caso, por exemplo, do agente que, ameaçado anteriormente por um indivíduo, o vê caminhando rapidamente em sua direção, enquanto retira um instrumento de seu bolso. Imaginando que ele irá matá-lo, o primeiro rapaz se antecipa e o alveja no peito com um disparo certeiro de arma de fogo. Ao apurar os fatos, constata-se que aquele instrumento era um simples lenço. A legitimidade da defesa, então, estava somente no íntimo do ofensor, que incorrerá na sua modalidade putativa (GAGLIANO, PAMPLONA FILHO, 2012, p. 153).
Nesse caso a situação do agente não é acobertada por este instituto. Apesar de sua conduta receber uma tutela mais branda (ou nenhuma) no Direito Penal, para o cível não há qualquer proteção relacionada. O dano injusto deverá ser reparado. Como ensina Sílvio de Salvo Venosa (2012, p. 62), essa circunstância exclui (ou pode excluir) a culpabilidade da conduta, mas não a antijuridicidade.
3.4.3 Exercício regular de direito e estrito cumprimento do dever legal
Apesar de se estar diante de dois institutos autônomos, o seu tratamento neste único tópico se justifica pela proximidade existente entre eles.
Sobre o exercício regular de direito, a sua previsão legal também está contida no artigo 188 do vigente diploma civil, em seu inciso I, segunda parte, que afirma não serem ilícitos aqueles atos praticados “[...] no exercício regular de um direito reconhecido” (BRASIL, Vade Mecum, 2012, p. 164). Elucidando o que se entende por esse exercício, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 154) discorrem nos seguintes termos:
Se alguém atua escusado pelo Direito, não poderá estar atuando contra esse mesmo Direito. Tal ocorre quando recebemos autorização do Poder Público para o desmatamento controlado de determinada área rural para o plantio de cereais. Atua-se, no caso, no exercício regular de um direito. Da mesma forma, quando empreendemos algumas atividades desportivas, como o futebol e o boxe, podem surgir violações à integridade física de terceiros, que são admitidas, se não houver excesso.
O conceito básico, portanto, é que uma ação amparada pelo Direito não será antijurídica. O que torna o tema mais conturbado, entretanto, são as ações que excedem esse direito, o chamado “abuso de direito”.
Em sintética definição, pode se dizer que ele se consubstancia em condutas que ultrapassam o dispositivo autorizador, ferindo um bem jurídico alheio. Um exemplo mencionado pelos referidos autores está na conduta de um proprietário de certo imóvel, que, a fim de prejudicar o tráfego aéreo no terreno vizinho, ergueu altas hastes pontiagudas em sua propriedade. Em julgamento feito por um tribunal francês, foi reconhecido o abuso de direito de propriedade (GAGLIANO, PAMPLONA FILHO, 2012, p. 155).
Versando sobre o assunto, o artigo 187 do vigente Código Civil apresenta o seguinte teor:
Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes (BRASIL, Vade Mecum, 2012, p. 164).
Portanto, diante do rompimento da fronteira estabelecida pelo competente direito, o ato se torna ilícito, nos moldes dos demais estudados até aqui.
Pela narrativa contida no dispositivo em questão, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 156-157) afirmam que a identificação do abuso de direito é realizada por um critério finalístico. Ou seja, diante do expresso texto legal, é desnecessário perquirir culpa na conduta do ofensor. Basta que ele incorra dentre as situações dispostas na lei, para que seja reconhecido o abuso de direito.
Reforçando esses argumentos, os autores ainda citam o Enunciado nº. 37, da I Jornada de Direito Civil da Justiça Federal, o qual preconiza que “[...] a responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico” (GAGLIANO, PAMPLONA FILHO, 2012, p. 157).
Enfim, para que seja configurado o exercício regular do direito propriamente dito deve ser observada a premissa feci sed iure feci, ou seja, “Fiz, mas fiz de acordo com a lei” (PEREIRA, 2009, p. 573).
No que concerne ao estrito cumprimento do dever legal, ele mais consiste numa situação específica em que o exercício regular do direito pode ocorrer. Melhor dizendo, aquele que agir no estrito cumprimento do dever legal estará exercendo regularmente o seu direito. Quanto aos abusos ou atuação fora do objetivo daquele permissivo, aplicam-se as regras do instituto anterior (GAGLIANO, PAMPLONA FILHO, 2012, p. 157).
Em ilustração, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 157) indicam que “[...] não há falar-se em responsabilidade civil no caso do agente de polícia que arromba uma residência para o cumprimento de uma ordem jurídica, por exemplo”.
O que deve ser alertado, por oportuno, é que a ordem manifestamente ilegal do chefe de polícia, por exemplo, não encontra guarida nesta causa de exclusão do nexo de causalidade – o policial não poderá matar uma pessoa por ordem de seu superior, sem que haja motivos para tanto (GRECO, 2006, p. 438-447). Apesar de ser premissa mais específica do Direito Penal, o jurista cível também deve se atentar para esse fato no exame dessas circunstâncias.
3.4.4 Caso fortuito e força maior
Cada vez mais pacífico na doutrina tem sido o entendimento de que a diferenciação entre o caso fortuito e a força maior é algo desnecessário. Conforme menciona Fernando Noronha (2010, p. 659), essa “[...] distinção não tem interesse prático, uma vez que o tratamento jurídico é um só e único”.
Partindo dessa ótica monista, o mesmo autor formula o seguinte conceito sobre os institutos:
Quando a expressão caso fortuito ou de força maior é usada em sentido restrito (e sem distinguir entre fortuito e força maior), ela engloba os acontecimentos naturais, como tempestades, enchentes e doenças (que poderiam ser designados de acts of God), e as ações humanas não individualizadas, como guerras, assaltos, depredações e até imposições da autoridade, sempre que tais fatos tenham sido determinantes do dano (NORONHA, p. 650, grifos do autor).
Corroborando essa definição e regulamentando os institutos, assim dispõe o artigo 393 do vigente Código Civil:
O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir (BRASIL, Vade Mecum, 2012, p. 175).
Como se nota do parágrafo único, a noção basilar do instituto está na ideia de incapacidade humana frente ao fato que dá ensejo ao dano, ou mesmo diante da forma em que ele se apresentar.
O que se percebe, igualmente, é que esse exercício de diferenciação mais se afigura como um preciosismo jurídico, uma vez que o próprio dispositivo regulamentador da matéria a trata de forma unificada
Ocorre, no entanto, que alguns autores insistem em estabelecer critérios de diferenciação entre esses conceitos, o que torna prudente expor sinteticamente alguns deles.
Segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 159), os principais critérios para diferenciação dos conceitos de caso fortuito e força maior são a imprevisibilidade e a inevitabilidade. Sobre estes, lecionam da seguinte forma:
Sem pretender pôr fim à controvérsia, pois seria inadmissível a pretensão, entendemos, como já dissemos alhures, que “a característica básica da força maior é a sua inevitabilidade, mesmo sendo a sua causa conhecida (um terremoto, por exemplo, que pode ser previsto pelos cientistas); ao passo que o caso fortuito, por sua vez, tem a sua nota distintiva na sua imprevisibilidade, segundo os parâmetros do homem médio. Nessa última hipótese, portanto, a ocorrência repentina e até então desconhecida do evento atinge a parte incauta, impossibilitando o cumprimento de uma obrigação (um atropelamento, um roubo)” (grifos do autor).
Muito embora não concorde com a dicotomia suscitada, Fernando Noronha (2010, p. 659) também aponta serem esses os critérios que mais se aproximam dos termos em questão. Contudo, prefere utilizar a palavra “irresistível” no tratamento da força maior, em substituição à “inevitável” (que para ele faz menção aos dois casos).
Mas, enfim, consoante se observa, essa distinção é inócua, uma vez que a aplicação do instituto ao caso concreto não impõe esse ônus ao demandante.
Parte dos juristas, no entanto, inconformada com essa igualdade, deu tratamento diverso ao caso fortuito e ao de força maior, no campo da responsabilidade objetiva (e somente nesse caso). Além de defini-los de forma diferente, pelos critérios acima, desmembrou o caso fortuito entre interno e externo (VENOSA, 2012, p. 60).
Segundo essa vertente, muito embora tais casos ensejem (em tese) a exclusão do nexo de causalidade, a responsabilidade da pessoa (natural ou jurídica) remanescerá quando houver caso fortuito ligado à organização interna de seus negócios. O fundamento é a ideia de risco criado (NORONHA, 2010, p. 662). Como se percebe, não entram nessa exceção os casos de força maior ou fortuitos externos.
Ou seja, naturalmente a objetividade retira somente a necessidade de comprovação da culpa na responsabilidade, persistindo o ônus de comprovar os seus demais elementos. Mas, nesses casos em que há um risco interno inerente ao negócio, ela impedirá até mesmo a atuação da excludente prevista pelo caso fortuito – passando a ser este considerado caso fortuito interno. Persistirá o dever de reparar.
Em citação a Saulo José Casali Bahia, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 162) trazem o seguinte exemplo:
O caso fortuito interno ocorreria a partir da atividade da própria administração. Seria um fato imprevisível, mas atrairia responsabilidade civil ao Estado. Isto porque deve-se entender que a atividade estatal criou um risco. Se a administração se coloca no mundo físico, guiando um carro, construindo um edifício, fez surgir, pelo só fato da sua atividade, um risco para os demais. Reparará, portanto, por este risco que criou. Pouco importa que a barra de direção do veículo oficial houvesse partido pelo acaso ou o edifício público desabado pela ação das chuvas. Como se vê, não se exige a presença de culpa. A teoria é objetiva (risco administrativo). Por outro lado, haveria casos fortuitos (denominados casos fortuitos externos) que não adviriam da atividade da administração, mas de terceiros ou da natureza. Neste caso, a administração não deveria reparar ao lesado (só a teoria do risco social fará com que o caso fortuito externo não sirva como excludente). Num exemplo: ninguém poderá reclamar responsabilidade civil do Estado se um raio caiu sobre sua residência e danificou o telhado.
Criticando essa inovação realizada, Fernando Noronha (2010, p. 661-662), manifesta-se nos seguintes termos:
Mas se está certa a ideia de distinguir entre acontecimentos internos e externos, para excluir a responsabilidade pelos segundos, que são forças estranhas às coisas, ela não implica a necessidade de distinção entre caso fortuito e caso de força maior. Existem outras vias que permitem alcançar o mesmo resultado, sem necessidade de introduzir distinções estranhas ao ordenamento. Assim, basta que aos tradicionais requisitos da imprevisibilidade e da irresistibilidade se adite o da externidade, para que se consiga o efeito pretendido por Alvim (e Josserand). Quando faltar esse terceiro requisito, não haverá caso fortuito ou de força maior e, por isso, o agente terá de responder pela indenização (se, é claro, o caso for daqueles de responsabilidade objetiva) (grifos do autor).
Conclui-se, dessas divergências, que atualmente não há um consenso nesse sentido, mas, como se percebe, os autores mais tradicionais discordam da variação. Silvio de Salvo Venosa (2012, p. 61) argumenta, inclusive, que essa distinção é tormentosa, uma vez que somente um juízo discricionário de equidade poderá fazê-la e, ainda assim, o êxito não será garantido. Pode ocasionar, portanto, insegurança jurídica.
Superado o debate dessa questão, outro ponto que merece destaque é a possibilidade de as partes contratantes se responsabilizarem voluntariamente por eventuais casos fortuitos ou de força maior que se apresentem na avença. Conforme se infere da parte final do supracitado dispositivo (artigo 393 do Código Civil de 2002), se escusará do dever de reparar os danos o devedor que “[...] expressamente não se houver por eles responsabilizado” (BRASIL. Vade Mecum, 2012, p. 175). Portanto, de uma leitura inversa do texto legal, fica evidenciado que o princípio da autonomia da vontade faculta a assunção do respectivo ônus contratual (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 161).
Por fim, o que também requer atenção, apesar de já ter sido constantemente observado acima, é o fato de que o caso fortuito e o de força maior excluem o nexo de causalidade, e não a culpabilidade.
3.4.5 Culpa exclusiva da vítima
Outra situação de rompimento do nexo de causalidade consiste na culpa exclusiva da vítima, que, segundo Sergio Cavalieri Filho (2006, p. 90), mais se adéqua à denominação de “fato exclusivo da vítima”, tendo em vista que o elemento fundamental a se observar não é a culpa, mas o nexo de causalidade que liga o fato danoso à conduta que o ocasionou.
Como se extrai do próprio nome, esta causa excludente do nexo de causalidade se apresenta em situações que a própria vítima é responsável pelo dano experimentado. Conforme ensina o citado autor:
A culpa exclusiva da vítima – pondera Silvio Rodrigues – é causa de exclusão do próprio nexo causal, porque o agente, aparente causador direto do dano, é mero instrumento do acidente (ob. Cit., p. 179). Assim, se “A”, num gesto tresloucado, atira-se sob as rodas do veículo dirigido por “B”, não se poderá falar em liame de causalidade entre o ato deste e o prejuízo por aquele experimentado. O veículo atropelador, a toda evidência, foi simples instrumento do acidente, erigindo-se a conduta da vítima em causa única e adequada do evento, afastando o próprio nexo causal em relação ao motorista, e não apenas a sua culpa, como querem alguns. [...] Para os fins de interrupção do nexo causal basta que o comportamento da vítima represente o fato decisivo do evento (CAVALIERI FILHO, 2006, p. 89).
Diante do exposto, percebe-se, então, que o suposto autor do fato realmente promove o desfecho danoso, entretanto a causa deste é consequência direta do comportamento da própria vítima. Sendo assim, não haverá a quem impor o dever de indenizar, devendo ela suportar integralmente os ônus de sua ação.
Algumas menções expressas a esse instituto podem ser encontradas, por exemplo, no artigo 12, §3º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor108, e na Súmula 28 do Supremo Tribunal Federal109.
Uma questão que deve ser esclarecida é a diferença existente entre o fato exclusivo da vítima e a sua culpa concorrente. Diferente do que foi verificado acima, esta última espécie se apresenta no artigo 945 do vigente Código Civil, nos seguintes termos:
Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano (BRASIL, Vade Mecum, 2012, p. 204).
Observa-se desse dispositivo legal que, neste caso, a responsabilidade do autor do fato não é somente aparente, ela existe. Contudo, como a vítima também contribuiu para o dano, a sua parcela de culpa será computada no resultado da ofensa, respondendo o agente apenas pelo montante remanescente. Nas palavras de Sílvio de Salvo Venosa (2012, p. 55), “Quando há culpa concorrente da vítima e do agente causador do dano, a responsabilidade e, consequentemente, a indenização, serão repartidas, como já apontado, podendo as frações de responsabilidades ser desiguais, de acordo com a intensidade da culpa”.
Traçando um paralelo entre as duas situações expostas acima, Caio Mário da Silva Pereira (2009, p. 574) traz a seguinte lição:
[...] a contribuição do lesado, na construção dos elementos do dano que sofreu, pode graduar em escala diferente a sua concorrência culposa no evento prejudicial, e, conseqüentemente, graduar-lhe também os efeitos. Assim é que, se a causa do prejuízo está toda inteira no fato da vítima, ocorre a escusativa da responsabilidade. Se a vítima apenas concorreu para o acontecimento, em cuja elaboração fática se adicionaram a falta da vítima e a falta do acusado, reduz-se a indenização, na proporção em que o lesado concorreu para o dano sofrido.
Conclui-se, portanto, que o rompimento do nexo de causalidade ocorrerá apenas no fato exclusivo da vítima, sendo que na sua culpa concorrente haverá apenas a repartição dos ônus provenientes da situação danosa. Permanece o vínculo causal que une a conduta ao dano.
3.4.6 Fato de terceiro
Situação que enfrenta maior resistência na aplicação prática é o fato de terceiro. Muito embora a doutrina mantenha a tendência em admitir esta hipótese dentre as demais excludentes, a jurisprudência não tem refletido de forma pacífica esse entendimento (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 165-167).
O seu conceito não demanda maiores percalços. O fato de terceiro será encontrado nas hipóteses em que o dano for proveniente da ação de “[...] qualquer pessoa além da vítima e o responsável, alguém que não tem nenhuma ligação com o causador aparente do dano e o lesado” (CAVALIERI FILHO, 2006, p. 90).
Percebe-se desse conceito que, como ocorre na culpa exclusiva da vítima, há um aparente autor que deflagra o dispositivo causador do dano, mas que, no entanto, não é quem realmente deu causa a ele.
Exemplificando o instituto em comento, Sergio Cavalieri Filho (2006, p. 90) destaca uma ação judicial em que um ciclista foi atropelado por um ônibus que lhe ultrapassava. Após a apuração dos fatos, verificou-se que o motivo do atropelamento não fora a conduta do motorista, mas ocorreu em virtude de um buraco existente às margens da rodovia, do qual o ciclista não conseguiu desviar e, por isso, acabou caindo dentre as rodas do coletivo. A culpa em exame, então, foi atribuída à empresa concessionária de serviços públicos, que não cuidou de tapar o buraco. Ou seja, um terceiro, estranho aos envolvidos no acidente, era o responsável pelo dano ocasionado.
Verifica-se, portanto, que não é a consistência do instituto que prejudica a sua aplicabilidade – as suas premissas já são bem difundidas. O que impõe os maiores obstáculos é a preocupação primordial em reparar a vítima (incluindo no polo passivo da demanda todos aqueles envolvidos na cadeia de eventos que antecederam o dano), para, somente depois, apurar se essa responsabilidade seria do aparente autor ou do terceiro.
Estabelecendo alguns critérios para evitar essa situação e tecendo algumas ponderações a respeito, Sílvio de Salvo Venosa (2012, p. 65) manifesta-se da seguinte forma:
No caso concreto, importa verificar se o terceiro foi o causador exclusivo do prejuízo ou se o agente indigitado também concorreu para o dano. Quando a culpa é exclusiva de terceiro, em princípio não haverá nexo causal. O fato de terceiro somente exclui a indenização quando realmente se constituir em causa estranha à conduta, que elimina o nexo causal. Cabe ao agente defender-se, provando que o fato era inevitável e imprevisível. Na questão do motorista a que nos referimos, o agente apenas se livrará da indenização de provar que dirigia com todas as cautelas possíveis e que a manobra do terceiro era totalmente imprevisível. O fato de terceiro deve equivaler à força maior. A tendência da jurisprudência é admitir apenas excepcionalmente o fato de terceiro como excludente de culpa. A esse propósito, lembre-se da Súmula 187 do Supremo Tribunal Federal: “A responsabilidade contratual do transportador, pelo acidente com passageiro, não é ilidida por culpa de terceiro, contra o qual tenha ação regressiva.” Essa posição jurisprudencial denota a tendência marcante de alargar a possibilidade de indenização sempre que possível (grifos do autor).
Como se vê, a jurisprudência tende a não reconhecer essa causa de exclusão do nexo de causalidade, somente a aplicando nas hipóteses em que ficar evidente a culpa exclusiva do terceiro. Havendo uma ínfima participação do próprio agente no fato, que foi potencializado pelo terceiro, a sua responsabilidade integral será mantida (VENOSA, 2012, p. 65-68).
Deve ser destacado, entretanto, que o indeferimento dessas escusas não impõe ao aparente autor o ônus definitivo de arcar com o resultado danoso. Da leitura dos já mencionados artigo 929 e artigo 930 do vigente Código Civil110 (aplicados de forma indireta ao caso), observa-se que é facultado a ele o ajuizamento de ação regressiva contra o terceiro para perseguir os prejuízos experimentados (VENOSA, 2012, p. 65-68).
O que se extrai, portanto, é que o fato de terceiro somente será considerado excludente do nexo de causalidade quando o agente conseguir comprovar que a situação que o levou a ocasionar o dano era totalmente imprevisível e/ou inevitável, de modo que se equiparava a um caso fortuito ou força maior. Concluindo, nesse sentido, imperioso ressaltar o seguinte posicionamento e ilustração de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 166-167):
Se, por exemplo, o sujeito estiver ultrapassando, com o seu fusca, pelo lado esquerdo da pista, um caminhão, e o motorista deste, imprudentemente, arremessá-lo para fora da estrada, será obrigado (o agente que guiava o carro) a indenizar o pedestre que atropelou? Ou poderia alegar o fortuito, para o efeito de se eximir da obrigação de ressarcir? Em muitos julgados, tende-se a reconhecer a responsabilidade do causador do dano, a quem caberia ação regressiva contra o terceiro, mesmo em caso de abalroamento (JTACSP. 109/226, RT, 646/89, RT, 437/127). Não entendemos assim, pois, em tal situação, diferentemente do que ocorre no estado de necessidade, em que o sujeito causador do dano atua para livrar-se do perigo, no abalroamento do fusca, este veículo fora apenas um mero instrumento na cadeia causal dos acontecimentos (grifos do autor).
Percebe-se, então, que a jurisprudência ainda discrepa nesse sentido, mas, ao contrário, a doutrina já está bem assentada no posicionamento mencionado, dando maior efetividade ao fato de terceiro como causa competente para interromper a relação de causalidade.
3.4.7 Cláusula de não indenizar
Em situações também excepcionais, pode o dever de indenizar ser afastado em função das partes contratantes convencionarem uma cláusula com esse propósito. Sobre o tema, Sergio Cavalieri Filho (2006, p. 528) traz os seguintes esclarecimentos:
Praticado o ato ilícito, em qualquer de suas modalidades, segue-se como conseqüência o dever de reparar o dano dele decorrente. A pessoa chamada a fazer essa reparação, todavia, pode, eventualmente, eximir-se do efetivo ressarcimento invocando a cláusula de não indenizar. De todas as definições encontradas na doutrina, a que melhor coloca a questão é aquela que diz ser a cláusula de não indenizar o ajuste que visa afastar as conseqüências normais da inexecução de uma obrigação; a estipulação através da qual o devedor se libera da reparação do dano, ou seja, da indenização propriamente dita (grifos do autor).
Percebe-se, desse trecho, que o instituto em exame tem a sua atuação admitida pelo Direito pátrio. Ocorre, no entanto, que ele não é bem visto no paradigma atual – onde a reparação dos danos tende a abranger as situações mais diversificadas possíveis. Sendo assim, o seu campo de atuação encontra-se bastante restrito (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 168-169).
Apontando algumas das vedações impostas à cláusula em questão, Sílvio de Salvo Venosa (2012, p. 68-69) apresenta o seguinte rol:
O Decreto nº 2.681, de 1912, que regula a responsabilidade das estradas de ferro, considera nula qualquer cláusula que tenha por objetivo diminuir a responsabilidade das ferrovias. Em matéria de transportes, é conhecida a Súmula 161 do Supremo Tribunal Federal: “Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de não indenizar”. Com sua proibição nos contratos por adesão, protege-se a parte mais vulnerável na relação negocial. Também não se admite a cláusula quando se trata de crime ou ato lesivo doloso, pois, além de constituir condição meramente potestativa (art. 122), nesse caso haveria um salvo-conduto para o agente praticar ato contra o Direito ou contra o dever estabelecido. Também não pode ser admitida a cláusula de não indenizar em conflito com a ordem pública, matéria que não pode ser objeto de transação pela vontade individual. Em tese, pode essa cláusula ser admitida quando a tutela do interesse for meramente individual, desde que não esbarre em direitos do consumidor, como vimos (grifos do autor).
Dentre as situações elencadas, merecem destaque as relações de consumo. O artigo 25, do competente diploma legal (Lei 8.078 de 1990), disciplina que “É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas Seções anteriores” (BRASIL, Vade Mecum, 2012, p. 694). Ou seja, diante da vulnerabilidade do consumidor, há expresso impedimento da existência dessa cláusula, principalmente em se tratando de contratos de adesão (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 168-169).
Como se pode perceber, não bastassem as restrições genéricas às hipóteses de incidência da referida cláusula, existem, também, previsões expressas limitando a sua atuação. Assim, como afirmam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 168), a aplicabilidade do instituto em questão somente é viável quando houver “[...] igualdade dos estipulantes e a não infringência de superiores preceitos de ordem pública” (grifos do autor). Em conclusão, afirmam que:
[...] poderíamos fixar a premissa de que essa cláusula só deve ser admitida quando as partes envolvidas guardarem entre si uma relação de igualdade, de forma que a exclusão do direito à reparação não traduza renúncia da parte economicamente mais fraca.
Portanto, apesar de cabível, o uso deste mecanismo limita-se a situações bem específicas, motivo pelo qual não é vista com a mesma frequência dos demais institutos estudados neste título.
Finalizando este capítulo, é importante salientar que a diferença existente entre a supracitada teoria da imputação objetiva e as causas excludentes ora analisadas está no elemento que cada uma delas ataca: a imputação relaciona-se com a culpabilidade, enquanto as presentes excludentes visam interromper a relação de causalidade. Nas palavras de Fernando Noronha (2010, p. 663):
Não é correta a afirmação, muito corrente, de que a ocorrência de caso fortuito ou de força maior exclui a culpa. A existência ou ausência de culpa diz respeito a um requisito da responsabilidade civil, o nexo de imputação (que aponta a pessoa a quem pode ser ligado um determinado fato gerador de danos, seja a título de culpa ou de risco), ao passo que a ocorrência ou não de caso fortuito ou de força maior, fato de terceiro ou fato do próprio lesado, diz respeito a outro requisito, o nexo de causalidade (que indica quais são os danos que podem ser considerados consequência do fato que esteja em questão). Aliás, em termos lógicos, a apuração do nexo de causalidade precede o juízo de imputação. Verificado um determinado dano, primeiro é preciso apurar qual foi a sua causa. Só depois de determinado o fato causador, levanta-se a questão de saber se este pode ser imputado a alguém (grifos do autor).
Corroborando esse entendimento, destaque-se o já mencionado exemplo de Luiz Flávio Gomes, citado por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 147), que afirma:
[...] Se pudéssemos nos valer de uma imagem, diríamos que o nexo de causalidade é uma peneira de espaços grandes enquanto a imputação objetiva conta com orifícios menores. Muitos fatos passam pelo filtro do nexo de causalidade, não porém pelo da imputação objetiva.
Como se observa, o fato danoso percorre um extenso caminho até que possa alcançar o seu real causador e responsável, servindo essas diversas barreiras para filtrar as situações que apresentam verdadeira pertinência ao Direito.
Termina, portanto, o estudo dos elementos genéricos à responsabilidade civil. No próximo capítulo eles serão aplicados (ou afastados), direta ou indiretamente, ao objeto da pesquisa, a fim de que a verdadeira essência da responsabilidade civil pela perda de uma chance seja alcançada, à luz dos institutos mais sólidos e aplicáveis desta esfera do Direito.