RESUMO
O presente trabalho de pesquisa monográfica se propôs a realizar uma análise a respeito da influência da mídia em relação ao Tribunal do Júri, especialmente, no que toca a formação do juízo de valor do juiz penal e os seus efeitos na prática processual penal. Para tanto, inicialmente, resgatou brevemente o histórico do Tribunal Popular e a entrada dessa instituição no Brasil, mostrando como ela se consolidou até os dias atuais, registrando-se todos os trâmites que envolvem o Tribunal do Júri, bem assim, seus componentes, a função dos jurados, direitos e deveres. Em um segundo momento, são analisados os princípios e garantias constitucionais que regem o processo penal brasileiro, que almejam assegurar um processo e um julgamento justo, fundado na observância do devido processo legal e na dignidade da pessoa humana. Mais adiante, abordou-se sobre a colisão de direitos fundamentais existente entre a liberdade de expressão e de imprensa, em relação ao direito à privacidade (vida privada, honra, imagem e intimidade), assim como os efeitos e limitações dessa interação em face dos direitos fundamentais constitucionais dos envolvidos no processo criminal. Ao final, a pesquisa atentou-se a examinar o enfoque dado pelos meios de comunicação de massa aos casos de grande repercussão midiática, que resultam na elaboração ou alteração de leis, referenciando que o julgamento midiático consegue penetrar facilmente na órbita processual, de forma a influir decisivamente na trajetória final da lide penal e configurando um instrumento que tolhe os direitos e garantias do acusado de praticar um delito. Nesse contexto, para estudar o assunto, o presente trabalho monográfico foi desenvolvido utilizando-se do método dedutivo, com exame de temáticas gerais e por meio de revisão bibliográfica (livros, revistas jurídicas e consulta em sites da internet).
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO. 2. TRIBUNAL DO JÚRI. 2.1 Aspectos históricos do Tribunal do Júri. 2.2 A Criação do Júri no Brasil. 2.3 O Júri e suas linhas estruturais. 2.4 Organização e funcionamento do Júri. 3. PRINCÍPIOS, DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS QUE REGEM O PROCESSO PENAL BRASILEIRO. 3.1 Considerações iniciais. 3.2 Princípio do juiz natural. 3.3 Princípio do direito ao silêncio ou não autoincriminação. 3.4 Princípio do estado ou situação de inocência. 3.5 Princípio da igualdade das partes. 3.6 Princípio do contraditório. 3.7 Princípio da ampla defesa. 3.8 Princípio da dignidade da pessoa humana. 3.9 Princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos. 4. DA COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS. 4.1 Da liberdade de expressão. 4.2 Da liberdade de imprensa. 4.3 Do direito de nformação. 4.4 Do direito à privacidade. 4.5 Da colisão dos direitos fundamentais da liberdade de expressão e de imprensa e do direito à privacidade. 5. A MÍDIA E O TRIBUNAL DO JÚRI. 5.1 A influência da mídia na legislação penal. 5.2 A midiatização do delito verificada em casos concretos. 5.3 A influência da mídia nas decisões dos jurados e seus efeitos. 6. CONCLUSÃO. NOTAS. REFERÊNCIAS.
O Direito tem sido, é agora e continuará
sendo extremamente vago e variável. E como
poderia ser de outra maneira?
O Direito lida com relações humanas em seus
mais complicados aspectos.
Jerome Frank
1. INTRODUÇÃO
A instituição do Júri possui uma extensa história que vem perdurando ao longo dos tempos, com algumas diferenciações, mas mantendo um sistema semelhante onde se unem juízes togados e leigos para decidirem questões de maior gravidade e ou de repercussão social.
A presente monografia tem como objetivo estudar a influência dos meios midiáticos no Tribunal do Júri, no que toca a forma como estes veiculam fatos criminosos, com um sensacionalismo exacerbado, lastreado ao interesse da “audiência”, de forma subjetiva, sem que haja maior preocupação com a realidade, em contrapartida a seu papel de informar objetivamente, imparcialmente, o que afronta as garantias e os princípios consagrados na Constituição Federal do Brasil de 1998.
Tema relevante por chamar a atenção dos veículos de comunicação social, como meio de divulgação de informações e importante formadora de opinião, em uma sociedade que, culturalmente, recebe a versão dos fatos revelada pela mídia como sendo a única e verdadeira.
A escolha do tema se justifica pelo fato de que é notória a influência exercida pela mídia sobre os jurados leigos que integram a instituição do Tribunal Popular. Os meios de comunicação social, além de formadores da opinião pública, constroem uma discursivização do direito, florescida na sede de justiça social, não se colocando apenas como observadora dos fatos, limitando-se a narrá-los, mas se posicionando no centro deles, emitindo pontos de vista, incorrendo em excessos e pregoando a suposta “verdade” a respeito do caso a ser julgado pelo Júri, pondo em risco a imparcialidade dos jurados, indo frontalmente de encontro com o princípio da presunção de inocência e o direito à privacidade.
Dentre outros aspectos, ressaltar-se-á a constatação de uma característica comum a todos os casos em que a mídia expõe de forma ilimitada a vida de pessoas que estejam sendo investigadas pela prática de um crime (o caso do assassinato de Daniela Perez, a morte de Isabela Nardoni, a morte de Eliza Samúdio tendo por acusado Bruno, ex-goleiro do Flamengo, que estamparam os noticiários de todos os canais de televisão aberta), de que a mídia toma para si a prerrogativa de julgar, usurpando da função que é conferida ao Poder Judiciário, tornando inviável qualquer meio de defesa que os acusados tivessem acesso. A mídia condena “os acusados” antes mesmo dos resultados de todo o procedimento criminal.
Foi utilizado para o desenvolvimento do tema o método dedutivo, partindo-se de um estudo abrangente da Instituição do Júri, desde a sua origem histórica até os tempos atuais, com maior ênfase aos princípios, direitos e garantias que regem o processo penal, assim como a colisão de direitos fundamentais e a influência da mídia na produção legislativa. Para tanto, a técnica utilizada foi a de pesquisa bibliográfica, documental, de livros jurídicos de renomados autores da atualidade, revistas jurídicas, consulta em sites da internet e artigos científicos.
O seu objetivo é verificar se o discurso realizado pela mídia, ao divulgar notícias que digam respeito ao julgamento de crimes dolosos contra a vida é capaz de influenciar a decisão a ser tomada pelos jurados do Tribunal do Júri, constituindo um grande violador de direitos, garantias e princípios constitucionais, com base no estudo de casos com repercussão midiática e a relação com a edição de leis reguladoras.
Para tanto, inicialmente, far-se-á o resgate histórico do surgimento do Tribunal do Júri no mundo e no Brasil, detalhando a forma como povo realizara o julgamento de seus pares e como se deu sua evolução até os dias atuais, sua organização e funcionamento.
No próximo capítulo, será elencado um rol de princípios, direitos e garantias constitucionais que regem o processo penal brasileiro, que são intrínsecas a pessoa do acusado perante o Tribunal do Júri, destacando aqueles que possuem uma base ou estrutura principiológica, concernentes ao justo processo, isto é, ao devido processo legal.
A seguir serão feitos comentários sobre a liberdade de expressão e de imprensa, do direito a informação e do direito à privacidade. Propõe-se, neste trabalho, sempre que houver conflitos entre dois direitos fundamentias igualmente tutelados, qual seja a Liberdade de Expressão e Imprensa e o Direito à Privacidade, a adoção do que, com base nas reflexões de Alexy, denomina-se ponderação dos direitos de mesma hierarquia, sem que um se sobreponha ao outro, mas que esta ponderação tenha como fim último a dignidade da pessoa humana.
Um último ponto que será estudado trata-se da influência midiática na produção legislativa penal brasileira, bem como a análise do fenômeno da midiatização do delito verificada em casos verídicos e também sobre a influência exercida pelos meios de comunicação social sobre as decisões dos jurados e seus efeitos, para que então seja feita as considerações finais, apresentando pontos conclusivos e uma reflexão crítica acerca do tema abordado.
2. TRIBUNAL DO JÚRI
Segundo Vera Lúcia Lopes Ferreira (2011, p. 1) a palavra Júri é de origem latina, "jurare" que significa fazer juramento. Refere-se, assim, ao juramento prestado pelos integrantes do Conselho de Sentença. Desde as civilizações antigas, o Júri, já era uma instituição que detinha poder para proceder com a realização de julgamentos dos seus pares.
Na definição de Mário Rocha Lopes Filho:
É o Tribunal do Júri uma forma de exercício popular do poder judicial, daí derivando sua legitimidade, constituindo-se um mecanismo efetivo de participação popular, ou seja, o exercício do poder emana diretamente do povo, que tem como similar os institutos previstos na Constituição Federal. (LOPES FILHO, 2008, p. 15).
Atualmente, a instituição é reconhecida pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5°, XXXVIII, possuindo a função de julgar, originariamente, crimes dolosos, tentados ou consumados contra a vida, definidos nos arts. 121 a 128 do Código Penal, sendo-lhe atribuído também o julgamento dos crimes conexos, conforme disposto no art. 78, inciso I, do mesmo diploma legal. Sua organização é prevista em lei ordinária, assegurados à plenitude de defesa, o sigilo das votações e a soberania dos veredictos. Em casos excepcionais, em função da prerrogativa de foro, alguns crimes dolosos contra a vida não serão julgados pelo Júri.
2.1 Aspectos históricos do Tribunal do Júri
Vários estudiosos afirmam que a origem do Tribunal Popular se deu na Inglaterra. Entretanto, tal discussão prossegue até hoje entre pesquisadores, haja vista que existem estudos hodiernos que dão conta que a instituição teria sido conhecida por outros povos antigos, contudo com outra constituição.
Sabe-se que se trata de uma origem muito antiga e, nos dizeres de Carlos Maximiliano (1948, p. 156 apud TUCCI, 1999, p. 12) “as origens do instituto, vagas e indefinidas, perdem-se na noite dos tempos”, sendo também muito debatida.
Para alguns estudiosos, a instituição tem origem nos povos primitivos, como os chineses, hindus e judeus ou hebreus.
Guilherme de Souza Nucci defende que o Tribunal do Júri tem seu embrião na antiga Palestina, destacando que:
Na Palestina, havia o Tribunal dos vinte e três, nas vilas em que a população fosse superior a 120 famílias. Tais cortes conheciam e julgavam processos criminais relacionados a crimes puníveis com a pena de morte. Os membros escolhidos dentre padres, levitas e principais chefes de Israel. (NUCCI, 2008, p. 41).
Não obstante tal entendimento, o aludido autor não nos informa o momento certo de quando foi que os júris ocorreram, deixando a questão em aberto. Rogério Lauria Tucci, cita Rocha, que disserta que o nascedouro do Júri se deu com os judeus do Egito Antigo, sob a orientação de Moisés, sustentando que:
As leis de Moysés, ainda que subordinando o magistrado ao sacerdote, foram, na antiguidade, as primeiras que interessaram os cidadãos nos julgamentos dos tribunais. Muito, antes, portanto, de, na Grécia antiga, ser chamado o povo para decidir todas as grandes questões judiciárias, em plena praça pública, no exercício da justiça atheniense, antes da constituição desse tribunal, que era composto de cidadãos escolhidos entre os que todos os anos a sorte designava para julgarem coletivamente ou divididos em secções, muitos antes da existência desses juízes populares, aos quais, como requisitos eram apenas exigidas a idade de trinta anos, reputação ilibada e quitação plena do tesouro público – muito antes do aparecimento desse tribunal de pares, já o Deuteronômio, o Êxodo, o Levítico e os Números, na formosa e símplice linguagem do direito mosaico, nos falam do Tribunal Ordinário, do Conselho dos Anciãos e do Grande Conselho. Na velha legislação mosaica encontramos nós o fundamento e a origem da instituição do júri. (ROCHA, 1919, p. 527 apud TUCCI, 1999, p. 14).
Os defensores da tese de que o embrião de tal instituição seja nos tempos de Moisés argumentam que, nos julgamentos, era adotado o princípio da publicidade, assegurada à defesa do acusado, e, como nos dias atuais, o julgamento se dava de acordo com a consciência do jurado (ROCHA, 1919; p. 527 apud TUCCI, 1999, p. 14).
Destaca-se, ainda, que os princípios básicos do Tribunal Popular eram previstos nas leis de Moisés e aplicadas pelo profeta, assim como pelos anciãos que ele escolhia para compor o Conselho dos Anciãos. Tais cidadãos, cuja idade e sabedoria, eram superiores à maioria de seus pares, eram os responsáveis por auxiliarem o profeta no manuseio da administração da justiça, sendo que as decisões emanadas deste conselho eram tomadas em nome de Deus, o que revela o forte aspecto religioso da época. (TUCCI, 1999, p. 14).
Do mesmo modo, há quem afirme que o júri já era conhecido na Grécia Antiga, destacando a origem do Júri no Areópago e na Heliléia gregos, dois órgãos colegiados a quem competia proferir julgamento. Nesse sentido, Araújo e Almeida expõem:
Na Atenas clássica, duas instituições judiciárias velam pela restauração da paz social: o Areópago e a Heliléia. Ambas apresentam pontos em comum com o Júri. O Aerópago, encarregado de julgar os crimes de sangue, era guiado pela prudência de um senso comum jurídico. Seus integrantes, antigos arcontes, seguiam apenas os ditames de sua consciência. A Heliléia, por sua vez, era um tribunal popular, integrado por um número significativo de heliastas (de 201 a 2.501), todos cidadãos optimo jure1, que também julgavam, após ouvir a defesa do réu, segundo sua íntima convicção. Parecem elementos bastantes para identificar aqui os contornos mínimos, o princípio ao qual a ideia de justiça popular historicamente se remeteria. (ARAÚJO E ALMEIDA, 1996, p. 200-201).
O Areópago era o mais célebre tribunal de Atenas. Seus componentes julgavam segundo a consciência, sendo o mesmo competente para julgar os crimes de sangue, como os sacrilégios, os incêndios, as traições e os homicídios premeditados. Os julgamentos eram realizados em praça pública e conduzidos por um arconte, pessoa a quem se incumbia dizer o direito. O Tribunal de Heliléia, por sua vez, era competente para julgar causas privadas e públicas, sendo que seus membros eram sorteados entre cidadãos que tinham boa reputação, que não fossem devedores do Erário e que possuíssem no mínimo 30 anos. (TUCCI, 199, p. 13).
Em ambos os Tribunais era impossível a recusa de jurados, mesmo que se considerasse um dos julgadores suspeitos e o voto não era secreto. Há registros de que no Tribunal de Heliléia foram julgados grandes retóricos da Grécia, oradores e logógrafos e que, sem sombra de dúvida, deixou marcas inapagáveis, foi o palco do julgamento de maior importância da sua história: a condenação de Sócrates, tido por um desrespeitador dos deuses e malfeitor por corromper a mocidade ateniense. (TUCCI, 1999, p. 14).
Há indícios da existência do Júri também em Roma, quando se predominava o sistema acusatório de processo penal, momento em que também surgiram as fases da quaestiones perpetuae e a acusatio. As quaestiones tratava-se se de um órgão colegiado composto por cidadãos, que representavam a população de Roma, sendo presidido por um pretor, cuja constituição, atribuições, os crimes determinantes da sua competência, e respectivas penas, eram definidos em leis prévias e regularmente editadas. (TUCCI, 1999, p. 15-16).
Afirma Rogério Lauria Tucci que a Lex Capurnia (Lei Capúrnia) de 149 a. C, foi quem instituiu a primeira quaestio, e se organizava de um tipo de comissão de inquérito que objetivava investigar e julgar casos em que servidores do Estado estivessem acarretando prejuízo ao provinciano. (1999, p. 15).
Tais quaestiones, inicialmente, foram temporárias, entretanto com o decurso do tempo, adquiriu o caráter de definitiva, o que deu origem a denominação de quaestiones perpetuae. Quanto à estrutura, era composta por um pretor, que tomava o nome de questior e os jurados eram chamados de judices jurati que eram simples cidadãos, inicialmente tirados entre os senadores. Posteriormente, com o passar do tempo foram sendo tirados entre os cavaleiros e os da ordem dos tribunos do tesouro.
A Lei Pompeia, de acordo com Guilherme de Souza Nucci, exigiu que os judice jurati tivessem condições de renda, idade mínima de trinta anos e aptidão legal, substituindo as listas especiais, que cada pretor elaborava, por uma lista geral, anual e pública, redigida pelo pretor da cidade, da qual eram tirados os judices para todas as questiones ou jurisdições. (NUCCI, 1999, p. 32).
No que tange ao procedimento das quaestiones, este se iniciava com uma proposta de acusação, que deveria indicar o crime imputado, bem como a lei transgredida pelo acusado. Com o recebimento da acusação, citava-se o acusado, e caso o mesmo se ausentasse, tinha seus bens inscritos, e após um ano eram confiscados. Se o acusado se apresentasse, era interrogado. Após, dava-se a palavra para ambas as partes para exporem seus discursos. Em continuidade, procedia-se a votação e em seguida o questior proclama o resultado, anunciando a condenação ou absolvição. Em caso de condenação, executava-se o julgado, e sobrevindo absolvição, instaurava-se um processo em face do acusador. (TUCCI, 1999, p. 18-20).
Conclui o processualista TUCCI (1999, p. 25) que a Instituição do Júri tem sua origem no direito romano, assemelhando-se às denominadas quaestiones perpetuae, haja vista os traços comuns ao Júri que se conhece atualmente. No entanto, nem todos os estudiosos são da mesma opinião. Araújo e Almeida, por exemplo, afirmam que a quaestiones perpetuae, era um tribunal criminal aristocrático, criado em Roma em 149 a. C., para substituir aos comícios populares e ao senado no julgamento de crimes, não passando de uma justiça elitista e antipopular, exercida, pelo menos na sua fundação, apenas por senadores (ARAÚJO E ALMEIDA, 1996, p. 207).
Rogerio Lauria Tucci (1999, p. 25), esclarece ainda que se têm notícias de alguns julgamentos realizados durante o período medieval, através de tribunais populares bárbaros e feudais, em especial, os germânicos, que retratavam uma pretensão de se popularizar o juízo, consubstanciado no julgamento pelos pares. Relata ainda que os juízes eram homens muito influentes nas regiões, sendo que estes eram ordenados por um Príncipe, a fim de que administrassem a justiça de uma determinada região, exercendo domínio em todas as classes sociais sem limites. Encerra o doutrinador esclarecendo que tais julgamentos populares não guardam equivalência com o julgamento pelos jurados, tendo em vista que se estabelece um julgamento por categorias, pressupondo desigualdade política como fundamento da organização social, imperando um direito de ordens, isto é, um instrumento posto nas mãos dos reis e senhores feudais. Imperava-se o julgamento de senhores feudais por senhores, e vassalos por vassalos.
Todavia, a doutrina majoritária assevera que o júri, em sua concepção mais aproximada do que se tem atualmente, teve sua origem na Inglaterra por volta de 1215, quando foram abolidas pelo Concílio de Latrão, as Ordálias e os Juízos de Deus, que consistiam em juízos dos mais variados tipos de provas, baseado na concepção de que Deus não deixaria de socorrer os inocentes, o que afastou as torturas dos julgamentos ingleses como as da água fervendo, a do fogo e as das serpentes. (SOIBELMAN, 1996, p. 260).
Válida a transcrição de trecho da obra de Fernando da Costa Tourinho Filho que traça os delineadores históricos de surgimento do Júri:
A doutrina dominante, entretanto, entende que sua origem remonta à época em que o Concílio de Latrão aboliu os ordália ou Juízos de Deus. Àquela época, enquanto surgia na Europa continental o processo inquisitivo, na Inglaterra passou a florescer o júri, instituição que os ingleses adotaram em substituição aos ordalia, e que constituía uma velho costume normando: os homens bons da comunidade se reuniam para, sob juramento, julgar o cidadão acusado de cometer um crime. (TOURINHO FILHO, 1996, p. 406).
Seguindo seu raciocínio, LEÃO enumera que:
As origens do Tribunal do Júri remontam a História da velha Inglaterra, onde, por volta de 1215, foram abolidas pelo Concílio de Latrão, as ordálias e os juízos de Deus. Nascera o Tribunal do Povo, que entre os ingleses deixou reluzentes marcas, não somente pelo misticismo característico, mas principalmente pelos resultados alcançados. Bem diferente do que acontecera em outros países do "Velho Mundo", sobretudo a França, a Itália e a Alemanha, locais onde a Instituição do Júri não logrou o êxito esperado, sendo logo substituído por outros órgãos. (LEÃO, 2001, p.1).
Nesse passo, o júri foi institucionalizado na Inglaterra com conotação de ser um Tribunal do Povo, em que os acusados seriam processados e julgados pelos seus próprios pares, tendo, inicialmente, a finalidade de julgar os crimes praticados por bruxarias ou com caráter místico, consistindo um direito fundamental do cidadão. (PARENTONI, 2007, p.1).
Nos ensinamentos de Fabiano Teixeira de Sousa, a propagação da instituição pelo mundo ocidental teve início e perdurou até os dias atuais, com o seguinte preceito: “Ninguém poderá ser detido, preso ou despojado de seus bens, costumes e liberdades, senão em virtude de julgamento de seus pares, segundo as leis do país”. Era o Tribunal Popular composto por doze homens da sociedade, os quais no entendimento da época teriam uma "consciência pura", e, que sob a invocação divina, encontrariam a verdade e julgariam a conduta humana tida por ilícita, aplicando-se o respectivo castigo. (TEIXEIRA DE SOUSA, 2010, p. 829).
Infere-se daí a forte conotação religiosa imposta ao Júri desde seus primórdios – haja vista que o número de doze jurados faz referência ao mesmo número de apóstolos de Cristo, sobre os quais recaiu o Espírito Santo no dia de Pentecostes – pelo poder conferido aos homens comuns para julgarem uma conduta humana, papel esse que era reservado exclusivamente a Deus.
Nessa linha de raciocínio, Ângelo Ansanelli Júnior aponta que:
(...) quer-nos parecer que, realmente, o Júri nasceu na Inglaterra, berço da democracia mundial. Surgiu, inclusive, para combater os desmandosdespóticos dos absolutistas e firmar uma garantia em prol da própria sociedade. Os demais embriões da instituição citados, na verdade, foram apenas formas de julgamento pelos pares, destituídas de quaisquer critérios que se assemelhassem ao Tribunal do Júri da atualidade, uma vez que os julgadores não atuavam com a devida imparcialidade, e com os contornos democráticos que devem pautar os julgamentos pelos pares. (ANSANELLI JÚNIOR, 2005, p. 19-20).
Durante a pesquisa, verificou-se que a corrente que aponta a gênese do Júri na Inglaterra é a que possui menores questionamentos e maior número de adeptos.
2.2 A criação do Júri no Brasil
Santi Romano (1977, p. 47-48, apud NUCCI, 2012, p. 731), esclarece que o Júri veio para o Brasil, em razão do fenômeno de transmigração do direito, que, do seu país de origem, segue para outros, especialmente por conta da colonização, que impõe ao colonizado ideias e leis, bem como pela própria e inata contagiosidade do direito.
Entre nós, a instituição do Tribunal do Júri, ao longo dos anos, passou por uma série de modificações em razão do contexto histórico e jurídico brasileiro.
Nos ensinamentos de Guilherme de Sousa Nucci, temos que o Júri foi instituído no Brasil, por iniciativa do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, em 18 de Junho de 1822, através do Decreto Imperial do então Príncipe Regente, D. Pedro de Alcântara, em observância ao fenômeno de difusão da sua instituição corrente no continente europeu. Tratava-se de criar “juízes de fato” para julgamento de abuso de liberdade de imprensa, assim tipificados pela legislação vigente, sendo composto por 24 cidadãos, tidos por homens bons, honrados, inteligentes e patriotas, os quais deveriam ser nomeados pelo Corregedor e Ouvidores do crime, e a requerimento do Procurador da Coroa e Fazenda, que atuava como o Promotor e o Fiscal dos delitos. A decisão dos jurados era passível de revisão pelo Regente. Desta forma, o decreto que criou o Júri, possui nítido caráter antidemocrático e ditatorial. (NUCCI, 2012, p. 731).
Na Constituição Imperial, de 25 de março de 1824, veio o reconhecimento constitucional da instituição, elevada a um ramo do Poder Judiciário, assim como se ampliou a sua competência para julgar questões criminais e cíveis, a ser delimitada por lei infraconstitucional. Frisa-se que tal competência abrangia tanto delitos penais quanto cíveis, conforme o art. 151 daquela Constituição, que asseverava que “O Poder Judicial é independente, e será composto de Juízes, e Jurados, os quais terão lugar assim no Cível, como no Crime, nos casos, e pelo modo, que os Códigos determinarem". Prescrevia o art. 152 da Constituição Imperial, que aos juízes incumbia a aplicação da lei e aos jurados, tão-somente se pronunciarem sobre os fatos. (NUCCI, 2012, p. 732).
Após alguns anos, foi o Júri orientado pelo Código de Processo Criminal, especificamente na data de 29 de novembro de 1832, outorgando-lhe atribuições de ampla competência, com forte influência do Código de Processo Penal vigente. O júri deste período era semelhante ao Grand Júri dos Estados Unidos, tendo em vista era composto de dois conselhos de jurados: o Júri de Acusação, com vinte e três membros e responsável pelo iudicium acusaciones (juízo de admissibilidade da acusação) e o Júri de Sentença, composto por doze membros, responsáveis pelo iudicium causae (juízo de mérito), como ensina Tourinho Filho (2002, p. 81).
Neste ínterim, verificamos que conquanto não subsista, atualmente, a formação de dois júris, o sistema dual ainda persiste, uma vez que se tem o juízo de formação da culpa perante o juiz de direito (togado) que decide pela pronúncia ou não seguindo da fase de julgamento em plenário pelos jurados que decidem o mérito da causa.
Tourinho Filho afirma que em razão de sua enorme complexidade e inconvenientes, o Júri de Acusação foi declarado extinto através da Lei 261, de 03 de dezembro de 1841, integrando à competência dos juízes municipais, ou das autoridades policiais. (TOURINHO FILHO, 2002, p. 81).
Para ser jurado, era indispensável que o cidadão fosse eleitor, de reconhecido bom senso e probidade. Paulo Rangel (2007, p. 27) enfatiza que “(...) integrar o júri era algo possível apenas para determinada classe social, fazendo falecer de legitimidade a formação do conselho de sentença”.
Nos dizeres de Fabiano Teixeira de Sousa, com o advento da República, o Júri fora mantido no Brasil, sendo criado, também, o Júri Federal, em 1890, por meio do Decreto 848. Por forte influência da Constituição norte-americana, por ocasião da inclusão do Tribunal Popular na Constituição Republicana, em 1891, a instituição fora transferida para o Título dos Direitos e das Garantias Individuais, conforme previsão no art. 72, §31º, da Seção II, do Título IV, sendo esta resultado da defesa que Rui Barbosa fez da instituição. (TEIXEIRA DE SOUSA, 2010, p. 830).
A Constituição de 1934 tornou a inserir o Tribunal do Júri no capítulo que disciplina a respeito do Poder Judiciário, em seu art. 72, sendo que o texto da Constituição em 1937 não tratou do Júri. Iniciaram-se calorosas discussões acerca da manutenção ou não do júri no Brasil, até que o Decreto-lei 167, de 1938, ratificou a existência da instituição, esclarecendo que o júri fora mantido pelas disposições do art. 183 da Constituição vigente à época, que asseverava estarem em vigor, enquanto não revogadas, as leis que, explicita ou implicitamente, não contrariassem as suas disposições. (TOURINHO FILHO, 2002, p. 81).
Conta o autor ainda que o citado Decreto alterou significativamente a instituição do Júri, retirando-lhe a chamada soberania dos veredictos, uma vez que instituiu a apelação sobre o mérito, desde que houvesse injustiça da decisão, por sua completa divergência, com as provas existentes nos autos ou produzidas no plenário. Disciplinou ainda a competência e formação do Tribunal do Júri, hipóteses de continência ou conexão de delitos, escolha dos jurados, serviço do Júri, organização do Júri, da pronúncia e dos atos preparatórios para o julgamento pelo Júri, atribuições do presidente do Júri, apelações e protestos por novo Júri e nulidades. (TOURINHO FILHO, 2002, p. 82).
Integrou competência do júri, os crimes de infanticídio, homicídio, o induzimento ao suicídio, latrocínio com ou sem a retirada da coisa alheia, elencados no Código Penal de 1890 que recebeu o nome de Consolidação das Leis Penais. A Carta Magna de 1946, por sua vez, restabeleceu a soberania do Júri por seus ideais democráticos, em seu capítulo que trata dos Direitos e Garantias Individuais, assim fazendo também, a Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº. 01 de 17 de outubro de 1969, sendo que nesta última redação, restringiu à instituição ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida. (CAPEZ, 2011, p. 631-632).
No art. 144, §28º, da Carta de 1946, foram disciplinadas regras ao legislador ordinário a fim de que se proibisse o número par de membros, de forma a si evitar empates, bem assim, o cerceamento do direito de defesa e os chamados julgamentos descobertos. Instituiu-se também, a competência para os crimes dolosos contra a vida. Com vistas à manutenção da integridade do corpo de jurados, estabeleceu que a votação fosse secreta. Estatuiu-se a imperatividade da soberania dos veredictos, de tal forma que é vedado ao Tribunal em grau de recurso reformar a decisão dos jurados, ressalvado a decretação de novo Júri. (TEIXEIRA DE SOUSA, 2010, p. 831).
Na atual Constituição da República de 1988, com a retomada da democracia, o Júri novamente foi previsto no capítulo que trata dos Direitos e Garantias Individuais e Coletivos, com a organização que lhe der a lei, assegurados os princípios previstos na Carta de 1946, quais sejam, a plenitude da defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência mínima para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. (NUCCI, 2012, p. 732).
O Tribunal do Júri atualmente encontra-se delineado no art. 5º, inciso XXXVIII, inserido no Capítulo dos Direitos e Garantias Individuais e Coletivos, atribuindo-lhe a função de julgar, originariamente, crimes dolosos, tentados ou consumados contra a vida, definidos nos arts. 121 a 128 do Código Penal Brasileiro, assim como o julgamento dos crimes conexos, conforme dispõe o art. 78, inciso I, do Código Penal Brasileiro. Deste modo, na hipótese de haver conexão entre um crime doloso contra a vida e outro de competência originária de Juiz singular, prevalecerá o primeiro. Portanto, o Júri poderá apreciar outras infrações penais, dependendo de uma previsão legal expressa.
2.3 O Júri e suas linhas estruturais
Trata-se o Tribunal do Júri de um órgão especial do Poder Judiciário de primeira instância, integrado à Justiça Comum, colegiado e homogêneo, tendo em vista que se compõem por um juiz togado, que é o Presidente, bem como por vinte e cinco cidadãos, sorteados dentre os alistados, dos quais sete, também escolhidos por sorteio, constituirão o Conselho de Sentença em cada sessão de julgamento, a quem compete o julgamento dos crimes dolosos perpetrados contra a vida, sendo estes consumados ou tentados. É um órgão temporário, vez que se reúne em sessões periódicas, e após estas é dissolvido. Impera-se a soberania de suas decisões, as quais são tomadas em caráter sigiloso, não necessitando de fundamentação, posto que baseadas na íntima convicção dos jurados leigos. (TÁVORA E ALENCAR, 2009, p. 837-838).
Embora o Júri seja um órgão do Poder Judiciário, como já dito, é disciplinado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no capítulo Dos Direitos e Garantias Individuais e Coletivos, em seu artigo 5º, inciso XXXVIII, a fim de reforçar sua essência histórica, de se assegurar ao acusado o direito de ser julgado pelos seus semelhantes, seus pares, o que não afasta sua natureza jurídica de ser um órgão especial da Justiça Comum, seja ela Estadual ou Federal.
José Afonso da Silva (2003, p. 365) assevera que se deve entender que o Júri traduz a garantia, ou o direito-instrumental, destinada a tutelar um direito principal, que é o direito a liberdade, assim como o direito coletivo, social, pertencente à própria sociedade, de poder realizar o julgamento de seus infratores. Destaca-se, assim, uma natureza dúplice da instituição, sendo que tais direitos possuem a mesma importância, estando ambos em plano horizontal, isto é, num mesmo patamar de equivalência.
Extrai-se das lições de Guilherme de Souza Nucci que:
Se é uma garantia, há um direito que tem por fim assegurar. Esse direito é, indiretamente, o da liberdade. Da mesma forma que somente se pode prender alguém em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária e que somente se pode impor uma pena privativa de liberdade respeitando-se o devido processo legal, o Estado só pode restringir a liberdade do individuo que cometa um crime doloso contra a vida, aplicando-lhe uma sanção restritiva de liberdade, se houver um julgamento pelo Tribunal do Júri. O Júri é o devido processo legal do agente do delito doloso contra a vida, não havendo outro modo de formar sua culpa. E sem formação de culpa, ninguém será privado de liberdade (art. 5º, LIV). Logicamente, é também um direito. Em segundo plano, mas não menos importante, o júri pode ser visto como um direito do cidadão de participação na administração de justiça do país. (NUCCI, 1999, p. 55).
Perfilha-se o mesmo entendimento dos mencionados autores, haja vista que estando situado no contexto das garantias e direitos fundamentais, é o Júri uma garantia individual do acusado pela prática de crime doloso contra a vida que permite a realização do julgamento pelos pares, de forma a garantir o devido processo legal, bem assim, constitui-se um direito do cidadão de participar, ativamente, dos julgamentos feitos pelo Poder Judiciário.
Nesta senda, revela-se o Tribunal do Povo como um instrumento de participação direta dos cidadãos nas decisões políticas do país, tal qual o referendo e o plebiscito. (CAMPOS, 2008, p. 31). Assim sendo, entrega-se ao povo, parte da responsabilidade decisória da política criminal do Brasil, ao conclamá-lo a refletir, analisar e decidir em relação aos problemas (como por exemplo, a criminalidade) que os afligem. Retrata-se, pois, uma forma de distribuição de justiça a ser realizada pelos componentes do seio popular, revelando o caráter fundamental do instituto ao modelo democrático vigente e a evolução dos julgamentos do homem, pelo homem, ao longo do tempo.
Procurando esclarecer as características essenciais à existência de um Tribunal do Júri, José Frederico Marques faz referência a um acórdão do Supremo Tribunal Federal, de 07 de outubro de 1899, dissertando que:
I – quanto à composição dos jurados: a) composta de cidadãos qualificados periodicamente por autoridades designadas por lei, tirados de todas as classes sociais, tendo as qualidades previamente estabelecida para as funções de juiz de fato, com recurso de admissão e inadmissão na respectiva lista. b) o conselho de julgamento, composto de certo número de juízes, escolhidos à sorte, de entre o corpo de jurados , (...) com antecedência sorteados para servirem em certa sessão, previamente marcada por quem a tiver de presidir, e depurados pela citação ou recusação das partes, limitadas as recusações a um número tal que por elas não seja esgotada a urna dos jurados convocados para a sessão; II – quanto ao funcionamento, a) incomunicabilidade dos jurados com pessoas estranhas ao Conselho, para evitar sugestões alheias, b) alegações e provas de acusação e defesa produzidas publicamente perante ele, c) atribuição de julgarem estes jurados segundo sua consciência, e d) irresponsabilidade do voto emitido contra ou a favor do réu. (MARQUES, 1997, p. 48-49).
Pode-se observar ainda, segundo as observações de Campos (2008, p. 34), que a inserção do Júri, no rol dos Direitos e Garantias Individuais e Coletivos, ocorrera na finalidade de preservá-lo como cláusula pétrea e não excluí-lo do Poder Judiciário, eis que esse núcleo da Carta Magna, nos termos de seu art. 60, §4º, inciso IV, é considerado como intangível, imodificável em seu conteúdo, o que impossibilita que o Poder Constituinte Derivado proponha emendas constitucionais tendentes a abolir o Tribunal do Júri. O texto constitucional, não quer dizer que a competência do júri não possa ser ampliada, haja vista que o mesmo menciona somente ser assegurada a competência para os delitos dolosos contra a vida, justamente para evitar seu esvaziamento.
Na prática, em outras épocas houve discussões a respeito dos limites da competência do Júri em se tratando de crimes dolosos contra a vida, tendo em vista a existência de vários crimes que atentam contra a vida humana.
Contudo, o entendimento prevalente fora o que asseverou ser taxativo o rol dos delitos competência originária do Tribunal Popular, quais sejam os previstos no Capítulo I, do Título I, da Parte Especial do Código Penal. São delitos contra a vida o homicídio simples, o privilegiado e o qualificado; o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio; o infanticídio e as várias formas de aborto, sejam consumados ou tentados. Além destes, são também de competência do júri os delitos que tenham conexão, por efeito da via atrativa, com os delitos afetos ao Tribunal do Júri.
Na linha do mandamento constitucional, a competência do júri, também é delineada no artigo 74, §1º, do Código de Processo Penal.
O Código de Processo Penal, ao dar amplitude à competência do júri para julgar as infrações conexas e originárias da continência, não fere o dispositivo constitucional, que dispõe sobre a competência mínima do tribunal popular. Tendo em vista tratar-se de mínima a competência estabelecida na Carta Maior, não há impedimento que outros crimes sejam a ela acrescidos, acrescendo o rol por lei ordinária. O que não é aceitável é a retirada do tribunal popular de qualquer dos crimes de sua competência originária pela legislação infraconstitucional.
Deve-se atentar que a própria Carta Magna prevê exceções à competência do Tribunal Popular, quando o acusado goze de foro privilegiado. Tal exceção versa sobre uma norma especial que coexiste pacificamente com a norma que prevê a competência quanto aos crimes dolosos contra a vida.
Não obstante, tal regramento não é aplicável quando o foro privilegiado é conferido por Constituição Estadual, pois, somente disposição expressamente prevista na Constituição, elencando foro especial por prerrogativa de função para autoridade estadual, nos crimes comuns e de responsabilidade, é que pode afastar a incidência do art. 5º, inciso XXXVIII, alínea „d’, da Constituição Federal. (CAMPOS, 2008, p. 41-42).
Ademais, a Súmula 721 do Supremo Tribunal Federal, esclarece que norma constitucional estadual não pode imperar sobre regra constitucional federal, ainda que possua caráter genérico.
Frise-se que, a prerrogativa de função, inserida na Constituição, em casos em que houver envolvimento de corréus em crime doloso contra a vida, não afasta aqueles que não tenham o foro privilegiado do julgamento pelo Tribunal do Júri.
Podemos salientar ainda que, caso haja conexão entre crime eleitoral e outro delito doloso contra a vida, deverá haver separação no julgamento. O delito eleitoral será julgado perante a Justiça Eleitoral e o delito afeto ao Júri perante o Tribunal do Popular. O legislador constitucional de 1988 elencou quatro inderrogáveis princípios, intrínsecos ao Tribunal do Júri, com vistas a estruturá-lo, e conferindo-lhe um perfil constitucional apropriado ao seu caráter de órgão popular. São eles: a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a competência para julgar os crimes dolosos a vida e a soberania dos veredictos.
No Tribunal Popular, não é necessário simplesmente a ampla defesa, é indispensável que a defesa seja plena. Defesa plena, nos dizeres de Fernando Capez (2011, p. 632-633), compreende em primeiro plano, o pleno exercício de defesa técnica, por parte do defensor habilitado, o qual não se restringirá a uma defesa exclusivamente técnica, podendo fazer uso de argumentações que envolvam razões de ordem social, emocional, de política criminal. Em segundo, o exercício de autodefesa pelo próprio acusado, que relatará ao juiz a sua versão, apresentando as declarações que entender mais benéfica para sua defesa.
Para tanto, de acordo com Walfredo Cunha Campos, deverão o Juiz Presidente e o Promotor, como fiscais da lei, atentar-se com precisão ao desempenho exercido pelo defensor do réu, uma vez que se ineficiente a atuação deste, caberá ao promotor requerer ou o juiz de ofício determinar a dissolução do Conselho de Sentença, por se considerar o réu indefeso, consoante à previsão do art. 497, inciso IV, do Código de Processo Penal. (CAMPOS, 2008, p. 35).
É o que se extrai das lições de Guilherme de Souza Nucci:
(...) um defensor pode ser menos preparado para conduzir a defesa de um réu durante a instrução criminal que se desenvolve diante do juiz togado, mesmo porque este profissional pode suprir suas falhas, até mesmo para acolher teses que defluem das provas dos autos, mas que as partes não sustentaram em suas alegações, o que não ocorre no júri, cujos magistrados de fato são leigos e impossibilitados de agir da mesma forma. O juiz presidente não pode invadir a sede dos debates, pois estaria corrompendo sua imparcialidade perante o Conselho de Sentença, mesmo que fosse para beneficiar o réu, rompendo a igualdade entre as partes e afetando o contraditório, bem como o devido processo legal (...). A plenitude de defesa, como característica básica da instituição do júri, clama por uma defesa irretocável, seja porque o defensor tem preparo suficiente para estar na tribuna do júri, seja porque o réu pode utilizar o seu direito à autodefesa, ouvido em interrogatório e tendo sua tese devidamente levada em conta pelo juiz presidente, por ocasião da elaboração do questionário. (NUCCI, 1999, p. 140-141).
Desta forma, essa garantia plena é justificada pelo fato de que o jurado não possui o dever de ter que fundamentar sua decisão. Portanto, faz-se necessário que a defesa seja exercida de forma plena, isto é, que seja irretocável, sem nenhum arranhão.
Temos que considerar ainda, que existe uma diferença substancial entre a chamada “ampla defesa”, que alude à garantia aos réus de um modo geral, e a “plenitude de defesa”, característica peculiar ao Júri. Isto porque, o Conselho de Sentença, profere sua decisão, sem ter que fundamentar seu veredicto, decidem por íntima convicção, havendo, assim, a necessidade de se proporcionar ao acusado uma defesa acima dos padrões medianos, sendo que esta foi a intenção do legislador constitucional, quando da criação de tal princípio inerente ao Júri. Sobreleva-se anotar, que quando da realização da instrução criminal, no momento em que se contempla a admissibilidade da acusação, vige a “ampla defesa”. Já em plenário, seguramente, se fará presente a ampla defesa, mas com um incremento potencializado, qual seja, que a defesa, além de ampla, seja “plena”.
Conclui-se, portanto que tanto a ampla defesa quanto o princípio inerente ao julgamento pelo tribunal do júri, consagram o direito à liberdade, afirmado através do devido processo legal que, em hipótese alguma poderá ser subtraído ou limitado, tendo em vista que o processo que tenha uma insatisfatória e deficiente defesa, jamais alcançará a verdadeira justiça, tampouco expressar uma garantia fundamental.
No concernente ao sigilo das votações, tem este princípio constitucional, o objetivo de proteger a livre manifestação do pensamento, ficando os integrantes do Conselho de Sentença isentos às influências externas, assim como depois do julgamento, de eventuais represálias pela sua opção ao responder o questionário. O que se constata é que se trata de uma exceção à regra constitucional do art. 5º, inciso LX, e art. 93, inciso IX, de que todos os julgamentos dos órgãos do poder judiciário serão públicos. É de se destacar ainda que a própria lei determina que “só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. (TEIXEIRA DE SOUSA, 2010, p. 837).
No caso específico, a pretensão de tal regra, é, como já fora dito, preservar a independência dos jurados, que deverá permanecer livre de interferências externas, a fim de que possam decidir com imparcialidade, livres de qualquer pressão, ante a presença muitas vezes ostensiva de familiares do acusado ou da vítima, assim como, da mídia nos casos de grande repercussão social.
Sobre o tema, Eugênio Pacelli de Oliveira disserta que:
No Brasil, os jurados integrantes do Conselho de Sentença deverão responder aos quesitos a eles apresentados, de cuja resposta o Juiz-Presidente (juiz togado) explicitará o conteúdo da decisão e formará o convencimento judicial final. Se condenatória a decisão, passará à aplicação da pena cabível. O sigilo das votações impõe o dever de silêncio (a regra da incomunicabilidade) entre os jurados, de modo a impedir que qualquer um deles possa influir no ânimo e no espírito dos demais, para fins de formação do convencimento acerca das questões de fato e de direito em julgamento. Dessa maneira, aos olhos da lei, estaria melhor preservada a pluralidade da decisão. (OLIVEIRA, 2011, p. 642).
Seguindo a mesma linha de raciocínio alguns autores alegam que o problema seria quanto à modificação de ânimo dos jurados, quando houvesse as exortações do público pró ou contra as decisões lidas a cada quesito formulado, sob pena de haver constrangimentos no juízo de convicção de cada julgador.
Cumpre ponderar também que a reforma introduzida pela Lei 11.689/2008, buscando aplicar, cada vez mais, o sigilo das votações, fixou a apuração dos votos por maioria, sem a divulgação do quórum total.
A Carta Magna também atribui ao Tribunal Popular um terceiro princípio que é a soberania de seus veredictos. A palavra soberania tem origem latina superanus, isto é, soberana, que possui origem nas palavras super (sobre, em cima), ou de supernus (superior), que tem autoridade suprema. (ALBUQUERQUE MELLO, 1999, p. 10). Tal princípio encerra que a decisão coletiva dos jurados, chamada de veredicto, é, portanto, soberana. Isso significa que o Conselho de Sentença toma sua decisão por íntima convicção acerca da existência do crime e da responsabilidade do acusado, no pertinente aos fatos, sem o dever de motivar suas ponderações, assim como que a magistratura togada de instâncias superiores, não poderá alterá-la a qualquer pretexto. Porém, isso não quer dizer que a decisão não possa ser objeto de anulação em grau de recurso, como, por exemplo, em casos que tenha sido proferida contrariamente a prova dos autos e seja remetida a um novo julgamento pelo mesmo Tribunal do Júri.
Nesse sentido Ednéia Freitas Gomes (2011, p. 2) ressalta que a soberania dos veredictos encontra-se, atualmente, entre as cláusulas pétreas da Constituição de 1988, devendo-se entender que a decisão dos jurados, feita pela votação dos quesitos pertinentes, é suprema, não podendo ser modificada pelos magistrados togados, pois a estes, cabe apenas a anulação, por vício processual, ou, apenas por uma vez, determinar novo julgamento, no caso de decisão manifestamente contrária à prova dos autos.
Subsiste, assim, a possibilidade de interposição de recurso de apelação das decisões emanadas do Tribunal Popular ao arrepio das provas, nos termos do art. 593, inciso III, alínea „c?, do Código de Processo Penal, bem assim como quando se pretenda desconstituir a sentença condenatória transitada em julgado, proferida pelo Júri, por meio de revisão criminal, conforme arts. 621 a 631 do CPP, onde a mitigação de tal princípio se faz ainda maior, pois o réu condenado pode até ser absolvido pelo Tribunal revisor, caso a decisão seja arbitrária. Neste último caso, teremos uma absolvição, e não uma anulação, posto que haverá uma alteração direta no mérito da decisão dos jurados. (CAPEZ, 2011, p. 633)
José Frederico Marques a respeito da questão ensina que:
Se o Júri, em crime doloso contra a vida, decide contra prova dos autos de modo manifesto, absolvendo o réu, o direito à vida, um dos direitos fundamentais da pessoa humana, não estará sendo assegurado, mas, ao contrário rudemente atingido, com o perigo evidente de tornar a proteção à vida um puro mito ou autêntica ficção. (...) quem vai examinar se a sentença do Júri esta manifestamente contra a prova dos autos é órgão do Poder Judiciário, a quem a própria Constituição conferiu a guarda e a tutela suprema dos direitos individuais (...). Muito natural, portanto, que esse órgão examine se o direito individual ao julgamento pelo júri, por ter sido abusivamente exercido, não atenta contra a segurança do direito à vida, que a Constituição também garante (...). (MARQUES, 1997, p. 79).
No que toca ao princípio da competência para os crimes dolosos contra a vida, deixamos de apreciá-lo, detalhadamente, nesse momento, haja vista que fora objeto de análise em linhas pretéritas, ressaltando que a competência atribuída ao Tribunal do Júri não pode ser examinada de forma absoluta, tendo em vista que a própria Constituição preceitua hipóteses excepcionais em que os crimes dolosos contra a vida não serão julgados por este Tribunal, assim como esta competência é ampliada pelo Código de Processo Penal ao estabelecer o julgamento pelo Tribunal Popular dos crimes conexos aos delitos contra a vida.
2.4 Organização e funcionamento do Júri
É o procedimento do Júri, nos dizeres de Walfredo Cunha Campos, uma relação jurídica processual penal que tem como finalidade última a resolução de uma questão de natureza penal, que envolve o jus puniendi (poder/direito de punir do Estado) e o direito a liberdade. (CAMPOS, 2008, p. 44)
O Tribunal Popular compõem-se de um Juiz togado a quem cabe presidi-lo, e de vinte e cinco cidadãos escolhidos por sorteio. Em consonância com o que estabelece o art. 425 do CPP, o Juiz Presidente deverá, anualmente, preparar uma lista geral dos jurados que irão funcionar no próximo ano, devendo operar criteriosamente na escolha dos cidadãos, buscando, nos vários segmentos sociais, aqueles que melhor os representem.
No entanto, não se pretende que o Juiz distinga os cidadãos pela posição social, mas, por sua idoneidade. O que se aconselha é uma maior diversificação, quando possível, de funções sociais, de forma a permitir que a sociedade se faça presente por todas as suas camadas. (TEIXEIRA DE SOUSA, 2010, p. 833).
Com relação à convocação dos jurados leigos, Guilherme de Souza Nucci esclarece que:
O ideal, certamente, seria a formação do corpo de jurados com pessoas de todas as classes sociais, mas, conforme a cristalina recomendação de Pontes de Miranda, que possuíssem bons antecedentes criminais, boa conduta social e cultura. O júri é, por natureza, um corpo julgador que decide por íntima convicção, mas baseado num sistema normativo codificado, ou seja, as partes – Promotor e Defesa – buscam esclarecer aos jurados as teses que possuem para a condenação e para a absolvição. Os argumentos envolvem questões acerca da culpabilidade, bem como avaliação de provas, matérias complexas que exigem no mínimo, cultura para a devida compreensão. (...) Pessoas incultas podem ter muito bom senso, mas certamente têm imensa dificuldade de compreender teses jurídicas e análises de fatos extraídas da prova dos autos. Poderá haver o julgamento pela aparência, ou seja, conforme se apresentar o réu, de acordo com a melhor retórica, e, fundamentalmente, seguindo instintos e impulsos emocionais, o Conselho de Sentença terminaria condenando ou absolvendo. (...) Somente numa comunidade homogênea, com população instruída – ao menos alfabetizada – pode-se reclamar um Júri formado de jurados extraídos de várias classes. Não é porque um miserável analfabeto será julgado pelo Tribunal Popular que o Conselho de Sentença deva ser formado por pessoas de igual posição. Terá ele melhores chances perante o corpo de juízes cultos, que analisem a prova com isenção, até mesmo compreendendo os problemas sociais que afligem a comunidade, do que diante de um conselho leigo e igualmente inculto, o qual irá julgar por impulsos emocionais. Poderá, nesse caso, o réu ter sorte e conseguir a simpatia dos jurados, mas se o contrário ocorrer, certamente ele não terá chances e será condenado. (...) Parece mais indicado continuar formando o corpo de jurados nas bases atuais, mesmo que pareçam conselhos elitistas e distanciados da realidade social, para a segurança do próprio acusado. A plenitude de sua defesa somente será efetivamente assegurada caso as teses expostas em plenário sejam compreendidas e analisadas por jurados imparciais e da forma menos emocional possível. (...) Se o magistrado togado exige-se o máximo de conhecimento possível, o correto é buscar o mesmo dos jurados. (NUCCI, 1999, p. 146-149).
A cada ano, serão alistados pelo Juiz Presidente de 800 (oitocentos) a 1.500 (mil e quinhentos) jurados para as comarcas que possuam mais de 1.000.000 (um milhão) de habitantes, de 300 (trezentos) a 700 (setecentos) nas comarcas de mais de 100.000 (cem mil) habitantes e de 80 (oitenta) a 400 (quatrocentos) nas comarcas de menor população, em observância ao previsto no art. 425 do Código de Processo Penal.
José Frederico Marques (1997, p. 163-164), referenciando ao número de jurados que integrarão a lista anual, ensina que o número mínimo deve ser respeitado, mas poderá a legislação local de organização judiciária, de cada ente da federação estipular um número máximo maior, a depender da intensidade e volume de serviços do Tribunal do Júri da comarca. No que tange à possibilidade de o Juiz Presidente elaborar uma lista com um número acima do que é previsto na lei, o art. 425, §1º, do CPP, expressamente autoriza tal desdobramento, não restando qualquer discussão a respeito do assunto.
Salienta-se ainda que é possível a elaboração de uma lista suplentes, sendo que as suas respectivas cédulas serão depositadas em uma urna especial (art. 425, §1º, do CPP). O Juiz Presidente requisitará às autoridades locais, associações de classes e de bairro, repartições públicas, sindicatos profissionais, instituições de ensino em geral, entidades associativas e culturais, sindicatos, universidades, entre outros mencionados no parágrafo segundo do art. 425, do CPP, a indicação de pessoas que reúnam as condições legais necessárias para o desempenho da função de jurado, quais sejam, cidadão capaz (maiores de 18 anos), brasileiro nato ou naturalizado, alfabetizado e no gozo dos direitos políticos, com sentidos atuantes e com notória idoneidade. (CAPEZ, 2011, p. 635)
Após a confecção da lista geral dos jurados, com as indicações dos nomes completos destes e suas respectivas profissões, será a mesma publicada pela imprensa até o dia 10 de outubro de cada ano e divulgada em editais afixados à porta do Tribunal do Júri, nos termos do art. 426 do CPP. A fim de atestar a comprovação de tais providências o escrivão poderá usar-se de um recorte de jornal onde foi publicado o edital, além de anexar certidão que diga respeito da afixação do edital no átrio do Fórum.
A referida lista poderá ser modificada, de ofício ou através de reclamação de qualquer do povo ao Juiz Presidente, até a data de 10 de novembro, ocasião em que se dará sua publicação definitiva, consoante à previsão do art. 426, §1º, do CPP. Juntamente com a lista são transcritos os arts. 436 e 446 do CPP (art. 426, §2º, do CPP), que tratam da função de jurado, bem como para que a sociedade como um todo e o Juiz leigo tenham ciência das particularidades afetas ao serviço do Júri. (CAMPOS, 2008, p. 304)
A lista que será publicada em outubro recebe o nome de provisória, haja vista que poderá sofrer alterações mais amiúde que a definitiva que será publicada em novembro (art. 426, caput e §1º, do CPP). Os nomes e endereços dos alistados serão escritos em cartões iguais, os quais, após serem verificados na presença do Ministério Público, de advogado indicado pela Seção local da Ordem dos Advogados do Brasil e de defensor indicado pela Defensoria Pública, ficarão guardados em urna fechada a chave, sob a responsabilidade do Juiz Presidente, conforme o estabelecido pelo art. 426, §3º, CPP.
Anualmente, a lista geral dos jurados será completada, nos termos do art. 426, §3º, do CPP. Walfredo Cunha Campos (2008, p. 313) comentando a respeito do sorteio dos jurados, explica que se trata a reunião periódica ou sessão periódica o mês em que será realizado um ou mais julgamentos pelo Júri, e a sessão o próprio julgamento pelo Tribunal Popular. Uma reunião pode ter uma ou mais sessões de julgamentos em dias diversos ou num só, assim como que a lei permite a realização de reuniões extraordinárias, a critério do juízo de necessidade e conveniência do Juiz Presidente.
Continua o citado autor, esclarecendo que o sorteio dos jurados que trabalharão na próxima reunião periódica, far-se-á a portas abertas, competindo ao Juiz Presidente retirar as cédulas da urna geral (que contém o nome de todos os jurados alistados do ano), até que se atinja o número de 25 (vinte e cinco) jurados, dissertando que as cédulas sorteadas serão colocadas em outra urna (a urna da reunião periódica), ficando a chave em poder do Juiz Presidente, conforme previsão do art. 433, caput, do CPP. (CAMPOS, 2008, p. 314).
Para acompanharem a realização do sorteio dos jurados que atuarão na reunião periódica, serão intimados o representante da Ordem dos Advogados do Brasil e da Defensoria Pública e o Ministério Público, em dia e hora designados, salientando que a ausência das partes não acarretará o adiamento da audiência (art. 432, §2º, do CPP).
É de se esclarecer ainda, que o jurado que tiver sido sorteado para participar de uma reunião periódica, mas que não seja sorteado para compor o Conselho de Sentença, poderá ter seu nome novamente incluído para as futuras reuniões; porém, se for escolhido para compor o Conselho de Sentença terá seu nome excluído das reuniões futuras, e, consequentemente, terá seu nome retirado da lista geral dos jurados, nos termos do art. 426, §4º, do CPP. (CAMPOS, 2008, p. 313-314).
Concluído o sorteio, serão eles convocados pelo correio ou por outro meio hábil para comparecerem no dia e hora designados para a reunião, sob as penas da lei, consoante prevê o art. 434 do CPP. Importante mencionar que o sorteio deverá ocorrer entre 10 (dez) a 15 (quinze) dias úteis antecedentes à instalação da reunião, com vistas a possibilitar as partes a realização de uma pesquisa quanto a eventual impedimento, suspeição ou qualquer empecilho em relação aos jurados, e, consequentemente, a prática de atividade prejudicial tanto a defesa quanto a acusação. (CAMPOS, 2008, p. 315)
Deverá ser afixada, a relação dos jurados convocados, os nomes dos acusado e dos procuradores das partes, além do dia, hora e local das sessões de instrução e julgamento, na porta do edifício do Tribunal do Júri (art. 435 do CPP).
Segundo Fernando Capez, é o serviço do júri obrigatório, constituindo um serviço público relevante, sendo que a recusa injustificada importa em crime de desobediência. A escusa de consciência, motivada por convicção religiosa, filosófica ou política, sujeita ao dever de prestar serviço alternativo, previsto em lei, tais como o exercício de atividades de administrativas, assistenciais ou mesmo produtiva, no Poder Judiciário, na Defensoria Pública, no Ministério Público ou em uma entidade conveniada para esses fins, a ser fixado pelo juiz, atendendo aos princípios da proporcionalidade de razoabilidade, nos moldes do art. 438, §1º e §2º, do CPP. Acaso houver recusa ao cumprimento da prestação alternativa, haverá a perda dos direitos políticos, de acordo com o disposto nos arts. 5º, inciso VIII, e 15, inciso IV, da Carta Política. (CAPEZ, 2011, p. 635).
Estão isentos de servir ao júri as pessoas elencadas no art. 437 do CPP, quais sejam, o Presidente da República e os Ministros de Estado; os Governadores e seus respectivos Secretários; os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras Distrital e Municipais; os Prefeitos Municipais; os Magistrados e membros do Ministério Público e da Defensoria Pública; os servidores do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública; as autoridades e os servidores da polícia e da segurança pública; os militares em serviço ativo; os cidadãos maiores de 70 anos de idade; aqueles que o requererem, demonstrando justo impedimento.
Fernando Capez afirma que o exercício da função de jurado tem como privilégios, a presunção de idoneidade, prisão especial por crime comum, até o julgamento definitivo. Além disso, assegura a preferência, em igualdade de condições, nas licitações públicas e no provimento, assim como nos casos de promoção funcional ou remoção voluntária, devendo-se entender por exercício efetivo aquele jurado que comparece ao dia sessão, ainda que não seja escolhido para compor o Conselho de Sentença, na forma que dispõem os arts. 439 e 440 do Código de Processo Penal. Quando do exercício da função ou no pretexto de exercê-la, será o jurado, responsabilizado criminalmente, conforme o são os juízes togados, como dita o art. 445 do CPP. (CAPEZ, 2011, p. 635-636)
Quanto ao funcionamento do procedimento do Júri, o mesmo é escalonado, isto é dividido em duas fases, o judicium accusationes (juízo ou formação da acusação ou sumário de culpa) e o judicium causae (juízo da causa ou mérito). A primeira fase objetiva verificar a existência de provas robustas e coerentes, produzidas em juízo, de ter o acusado praticado um crime, a fim de autorizar seu julgamento perante o Tribunal do Júri, observando-se o rito estabelecido nos arts. 406 a 421 do CPP.
A respeito de tal fase procedimental, citamos as lições de José Frederico Marques:
Formação de culpa, um procedimento preliminar da instância penal em que se examina da admissibilidade da acusação. Desde que o crime fique provado, e que se conheça o provável autor da infração penal, prossegue a relação processual para que se instaure a fase procedimental em que vai realizar-se o judicium causae. Objetivo, portanto, da formação de culpa, como se observa e ensina Eberhard Schmidt, é o de esclarecer se existe contra o acusado uma suspeita de fato que seja suficiente para coloca-lo perante o tribunal de julgamento. (MARQUES, 1997, p. 348).
O procedimento desenvolve-se a partir do oferecimento da denúncia ou eventual queixa-crime (em caso da ação penal privada subsidiária da pública), na qual o subscritor da peça dirigir-se-á ao Estado, qualificando o indiciado de forma a identificá-lo, expondo o fato criminoso, as circunstâncias em que se deram, as motivações que o cercam, o modo de agir e todos os detalhes que entender necessários. Na oportunidade, ainda, deverão ser apontados os dispositivos do Código Penal Brasileiro infringidos, e o requerimento de citação do indiciado para apresentar resposta, devendo-se arrolar as testemunhas, no máximo de 08 (oito), a serem ouvidas no momento oportuno. (TEIXEIRA DE SOUSA, 2010, p. 835)
Em seguida, ao receber a denúncia ou queixa-crime, o Juiz determinará a citação do acusado para responder à acusação, de forma escrita, no prazo de 10 (dez) dias. Acaso o acusado, citado pessoalmente, não apresente resposta no prazo legal, o Juiz nomeará defensor para fazê-lo, reabrindo-se o mesmo prazo e concedendo-lhe vista dos autos. Tratando-se de defensor constituído, o Juiz considerará o réu indefeso e encaminhará o caso à Defensoria Pública ou nomeará advogado dativo para apresentar a aludida resposta. Em caso de citação por edital (quando o réu não for encontrado), o prosseguimento da ação dar-se-á na forma do art. 366 do CPP.
Apresentada a defesa, ouve-se o Ministério Público ou o querelante, acaso houver preliminares ou a juntada de documentos, no prazo de 05 (cinco) dias. Após, o Juiz examinará os requerimentos apresentados e os possíveis documentos juntados no prazo de 10 (dez) dias, designando audiência de instrução e julgamento, bem assim as diligências que entender necessárias, como prevê o art. 410 do CPP.
Na audiência de instrução, conforme delineado no art. 411 do CPP, tomam-se as declarações do ofendido, se possível, bem como serão inquiridas as testemunhas da acusação e na sequência as de defesa. Proceder-se-á também os esclarecimentos dos peritos, as acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se ao final o acusado. Finda à instrução, pode dar-se a hipótese da mutatio libelli2, prevista no art. 384 do CPP, que assevera que após o encerramento da instrução, acaso entender cabível nova definição jurídica do fato, em virtude de provas existentes nos autos ou circunstâncias da infração penal não contida na acusação, deverá o Ministério Público proceder ao aditamento da denúncia, no prazo de 05 (cinco) dias, se em razão desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando realizado oralmente. Não sendo o caso, realizam-se os debates entres as partes.
Ao término desta fase, serão feitas as alegações finais pelas partes, e, de acordo com o que se concluir e tiver se provado, o Juiz proferirá no termo de audiência ou no prazo de 10 (dez) dias, uma decisão de absolvição sumária (em caso de haver provas da inexistência do fato, se for provado que o acusado não foi o autor ou participe do crime, se o fato não constituir-se infração penal ou se tiver sido demonstradas causas de isenção de pena ou de exclusão de crime), de impronúncia (quando inexistentes provas suficientes de autoria e materialidade3), de desclassificação (na hipótese de alteração da competência, do Júri para o Juiz singular), e, finalmente de pronúncia (quando remete o acusado ao julgamento perante o Tribunal Popular). (CAMPOS, 2008, p. 45).
Preceitua o art. 412 do CPP, que o prazo para a conclusão da primeira fase do Tribunal do Júri será de 90 (noventa) dias. Após a preclusão da pronúncia, os autos serão encaminhados ao Juiz Presidente do Tribunal do Júri, que dará início a segunda fase do Tribunal Popular, concedendo o prazo de 05 (cinco) dias à acusação ou ao querelante, conforme o caso, e à defesa, respectivamente, para apresentarem o rol de testemunhas que irão ser inquiridas em plenário, no máximo de 05 (cinco), momento em que poderão juntar documentos e requerer diligências (arts. 421 e 422 do CPP).
Na sequência, conforme expõe Guilherme de Souza Nucci, o Juiz decide sobre as provas que serão produzidas de imediato e quais serão realizadas em plenário, promovendo as diligências cabíveis. Posteriormente, será realizado um saneamento do processo, oportunidade em que o Juiz Presidente eliminará qualquer nulidade, vício ou falha, e sendo este considerado preparado, será incluído na pauta dos julgamentos. Caberá ao Juiz também elaborar, por escrito, um relatório do processo, que será entregue aos jurados componentes do Conselho de Sentença. (NUCCI, 2012, p. 756)
Regularizado o feito, ingressando no plenário, juntamente com o Ministério Público e o assistente, se houver, onde já se encontrarão o réu e seu defensor, o Juiz Presidente conferirá as 25 (vinte e cinco) cédulas da urna e determinará que o escrivão faça a chamada dos jurados. Deverá haver o comparecimento de no mínimo 15 (quinze) jurados. Acaso não houver o número suficiente de jurados, o juiz sorteará os suplentes e redesignará a sessão. (TEIXEIRA DE SOUSA, 2010, p. 835)
Estando tudo em ordem, o Juiz declarará aberta a sessão, anunciando o processo que será submetido a julgamento. Logo após, o Juiz Presidente, realiza os esclarecimentos indispensáveis e as advertências pertinentes, conforme prevê os arts. 465 e 466 do CPP, procedendo com o sorteio dos sete jurados que formarão o Conselho de Sentença, destacando que cada parte poderá recusar até o número de 03 (três) jurados sem a necessidade de relatar seus motivos (art. 468 do CPP). Iniciam-se os trabalhos com a tomada das declarações do ofendido, acaso possível. Em seguida, são ouvidas as testemunhas de acusação e defesa, para depois, se proceder com o interrogatório do acusado (art. 473 e 474 do CPP).
Finda a instrução, proceder-se-á com os debates, concedendo a palavra inicialmente ao órgão acusatório, por uma hora e meia. Após, terá a palavra à defesa pelo mesmo tempo. Haverá direito à réplica e tréplica por uma hora. Se houver mais de um acusado, o tempo destinado à acusação e à defesa será adicionado de uma hora, sendo elevado ao dobro o da réplica e o da tréplica (art. 476 e 477 do CPP).
A seguir, o Juiz Presidente indaga aos jurados se estão prontos para realizarem o julgamento ou se carecem de outras explicações, sanando as possíveis dúvidas sobre questões de fato.
Estando os jurados aptos a julgar, após a leitura e explicação dos quesitos em plenário, serão convidados a acompanhar o juiz e as partes (com exceção do réu) à Sala Especial, distante do público, para que, em observância ao sigilo das votações, possam decidir tranquilamente sobre a imputação. (NUCCI, 2012, p. 795).
Os jurados receberão pequenas cédulas, feitas de material opaco e dobráveis, contendo uma palavra sim e outra a palavra não, para que sigilosamente, sejam colhidos seus votos (art. 486, do CPP). Se, porventura, houver contradição nas respostas, o Juiz Presidente, esclarecendo a contradição aos jurados, realizará nova votação (art. 490, do CPP). Por fim, será divulgado na sala especial o resultado majoritário, como preceitua o art. 489 do CPP. Encerrada a votação, passará o magistrado a lavratura da sentença, para depois proceder com a leitura da mesma em plenário (art. 493, do CPP).
Por fim, o escrivão lavrará a ata de julgamento, que será assinada pelo juiz Presidente e pelas partes, relatando todas as ocorrências e incidentes (art. 494, do CPP).
Feitas as considerações a respeito do Tribunal do Júri, no próximo capítulo, serão apresentados os princípios, os direitos e as garantias fundamentais e constitucionais que integram o ordenamento jurídico pátrio. Foram selecionados os princípios que asseguram o julgamento justo dos acusados de praticar um delito contra a vida, para demonstrar, posteriormente, que a influência exercida pela mídia acaba por tolher os direitos dos acusados, que são consagrados na Carta Política vigente.
3. PRINCÍPIOS, DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS QUE REGEM O PROCESSO PENAL BRASILEIRO
3.1 Considerações iniciais
A expressão Estado Democrático de Direito foi inserida na Constituição Federal de 1988, em seu preâmbulo, adotando esse modelo jurídico como princípio fundamental em seu art. 1º, que assim dispõe: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...)”.
A concepção moderna de Estado Democrático de Direito, carrega consigo o postulado de um sistema jurídico contrário a qualquer forma de opressão do indivíduo.
Neste contexto, o professor Marcelo Cattoni (2002, p. 63) nos ensina que a recepção pelo Constituinte deste paradigma implica na sua intenção de possibilitar a superação de desigualdades sociais e regionais, por meio do progresso da democracia participativa, social, econômica e cultural, com vistas a realizar um ideal de justiça social e processual, consensualmente construído, que será possibilitado somente com o fortalecimento do domínio público político, de uma opinião pública livre e de uma sociedade civil organizada e atuante.
É ainda pertinente ao tema, o pronunciamento explicitado por José Afonso da Silva ao afirmar que o Estado Democrático de Direito se funda na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democrática, na observância e na garantia da concretização dos direitos e liberdades fundamentais, que almejam a realização da democracia econômica, social e o aprofundamento da democracia participativa. (SILVA, 2003, p. 119).
Dalmo Dallari (1998, p. 151), por sua vez, conceitua o Estado Democrático de Direito como governo do povo, sendo que este deriva da etimologia da palavra democracia, cuja origem vem do grego, e quer dizer governo do povo, considerando implicitamente que o povo, expressando livremente sua vontade soberana, saberá resguardar a liberdade e a igualdade.
Assim, há que se entender que o Estado Democrático de Direito propõe a igualdade, onde a lei se apresenta como meio de reestruturação social, havendo uma conexão do direito e da democracia, onde o Direito é parte de um sistema positivado e obrigatório, atrelado à legitimidade desta positividade, sendo que tais proposições só se efetivarão através dos ditames constitucionais.
Têm-se, pois, que sendo o Estado Democrático de Direito, um Estado dotado de direitos e garantias fundamentais assegurados pela Carta Magna, há que se vislumbrar um processo constitucionalizado, cujos princípios e garantias estão assegurados no texto constitucional.
Nas palavras de Guilherme de Souza Nucci, o ordenamento jurídico é norteado por uma série de princípios e regras que, por sua vez, são postulados fundamentais da política processual penal de um Estado. Objetivam tais princípios, garantir a coerência na aplicação das normas. Continua o mencionado autor, ressaltando que dentre os vários significados do termo princípio, não se pode deixar de considerá-lo a causa primária de algo ou o elemento que predomina na composição de um corpo, sendo que juridicamente, o princípio é sem dúvida, uma norma, todavia de conteúdo abrangente, servindo de instrumento para a integração, interpretação, conhecimento e aplicação do direito positivo. (NUCCI, 2010, p. 35).
Neste quadrante, Clèmerson Merlin Clève disserta a respeito da função dos princípios constitucionais:
Eles cimentam a unidade da Constituição, indicam o conteúdo do direito de dado tempo e lugar e, por isso, fixam standards de justiça, prestando-se como mecanismos auxiliares no processo de interpretação e integração da Constituição e do direito infraconstitucional. Mais do que isso, experimentam uma eficácia mínima, ou seja, se não podem sofrer aplicação direta e imediata, exigindo no mais das vezes (não é o caso dos princípios-garantia) integração normativa decorrente da atuação do Legislador, pelo menos cumprem eficácia derrogatória da legislação anterior e impeditiva da legislação posterior, desde que incompatíveis com seus postulados. (CLÈVE, 1995, p. 35).
Nesse trilho, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que sob o enfoque jurídico do termo princípio:
Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. (MELLO, 2008, p. 96).
Nota-se, então, que os princípios constitucionais devem orientar todo o ordenamento jurídico, que tenham a Constituição Federal como pilar do sistema, seja no momento de criação, na interpretação ou na aplicação das regras infraconstitucionais, consubstanciando-se em parâmetros a serem seguidos.
Atualmente, verificamos que os princípios ganharam elevado grau de juridicidade, deixando de desempenhar uma função subsidiária para mostrar-se na função principal do ordenamento jurídico como uma norma predominante a ser aplicada no caso concreto.
De outra forma não poderia ser, pois acaso se depare com uma lacuna do ordenamento jurídico, ou seja, na carência de norma que regule determinado caso, ou ainda, em caso de haver dúvida quanto ao método de interpretação a ser utilizado, deverão ser observados os princípios mais semelhantes com aquela situação.
Não se pode esquecer, que princípios não são simplesmente vagas intenções. É característico dos princípios, seu emprego imperativo em presença de um sistema constitucional de um Estado Democrático de Direito, que no caso brasileiro são fixados como fundamentos deste Estado, estando delineados no artigo 1º da Constituição Federal de 1988.
Nesse ponto, digno de se destacar os ensinamentos de Carlos Eduardo de Freitas Fazoli com relação à identificação das funções dos princípios:
Em primeiro lugar, os princípios têm função normativa. Sendo normas jurídicas, podem ser concretizados e geram direitos subjetivos. Têm, ao lado das regras, função normativa. Em segundo lugar, havendo uma lacuna jurídica, esta pode ser suprida com a utilização dos princípios. Encontramos aqui uma clara função integrativa em face das omissões legislativas. Finalmente, em terceiro lugar, têm função interpretativa, ou seja, condicionam a atividade do intérprete. Nenhuma interpretação pode ser efetivada sem que se leve em conta os princípios jurídicos. (FAZOLI, 2007, p. 18).
Desse modo, os princípios exercem função de grande relevância dentro de nosso ordenamento jurídico, já que orientam, condicionam e iluminam a interpretação das normas jurídicas em geral, incluindo, ainda, os próprios preceitos constitucionais.
Nos dizeres do constitucionalista Alexandre de Moraes, os Direitos e as Garantias Constitucionais, além de significarem a positivação de Princípios Jurídicos, também formalizam uma variada gama de elementos que ficam disponibilizados a qualquer cidadão, para que este busque a tutela que se faz necessária. Completa o citado autor que Direitos e Garantias constitucionais, são chamados de fundamentais uma vez que são próprios ao ser humano e compõem premissas mínimas de existência, que se consubstanciam na dignidade da pessoa humana, princípio regente de todo o ordenamento jurídico, e, na proteção do indivíduo frente ao Poder Estatal. (MORAES, 2003, p. 167).
Os Direitos e as Garantias revestem-se de características que lhe são atribuídas de forma mais ou menos consensual na doutrina, tais como a universalidade, a historicidade, o caráter absoluto, a não prescrição, à inalienabilidade ou indisponibilidade, a constitucionalização e aplicação imediata. Importante anotar ainda, que são autônomos, entretanto interdependentes e necessitam ser aplicados de forma complementar e harmônica, compondo um arcabouço de proteção a todo e qualquer cidadão que possua residência no território nacional, acolhendo brasileiros e estrangeiros. Desta forma, cabe ao Estado – através de seus poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário – agirem para que os tornem efetivos, posto que estejam previstos na Constituição Federal, de forma a concretizar a vontade popular, ou melhor, dos titulares do Poder Constituinte. (MATOS, 2012, p. 67).
Ademais, pode-se asseverar que pelo simples fato de sua existência, o homem apreende os direitos constitucionais, os quais lhe outorgam a prática de determinados atos, desde que seja respeitada à soberania do Estado, porém impõe ao Estado certas limitações a sua atuação.
Grande parte da doutrina possui o hábito de realizar a diferenciação entre Direitos e Garantias, tratando-os como institutos que possuem características diversas.
Rogério Lauria Tucci, por exemplo, disserta que os Direitos são prerrogativas do homem frente ao Estado, considerado como tal e membro da sociedade, sendo que os mesmos fazem parte de sua natureza e identidade. São alusivos à pessoa, inerentes ao homem e qualificam a sua natureza, enquanto coexistem socialmente dentro do Estado. (TUCCI, 1993, p. 50).
A respeito das Garantias, Celso Bastos (2002, p. 274) enfatiza que são elas como instrumentos jurídicos, ações judiciais, colocados à disposição de cada cidadão, a fim de que se concretize a eficácia dos Direitos constitucionais, de tal forma que, sem as Garantias os Direitos não teriam legitimidade prática. São assim, determinações que proíbem determinadas ações do poder Público que infrinjam Direitos reconhecidos e já constitucionalmente consagrados, distinguindo-se de outras medidas assecuratórias uma vez que tendem a precaver eventuais transgressões.
Em resumo, Princípios, Direitos e Garantias, integram um conjunto de ferramentas, tão entrelaçadas umas as outras, que comumente se chega a confundi-las, destacando que, tendo em vista que ambos são instituídos na Carta Maior, hão de ser respeitados em sua integralidade, uma vez que a eventual inobservância pode ser reparada judicialmente se necessário.
O estudo em análise tem por escopo a busca de tais ferramentas que são intrínsecas a pessoa do acusado perante o Tribunal do Júri. Dos diversos princípios, direitos e garantias constitucionais que regem o processo penal brasileiro nos limitaremos a destacar aqueles que possuem uma base ou estrutura principiológica, concernentes ao justo processo, isto é, ao devido processo legal. Para tanto, dissertaremos a respeito do juiz natural, do direito ao silêncio e não autoincriminação, do estado ou situação de inocência, da igualdade das partes, do contraditório; da ampla defesa, da dignidade da pessoa humana, da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente, conforme se passa a demonstrar.
3.2 Princípio do juiz natural
Eugênio Pacelli de Oliveira bem explicita que o princípio do juiz natural tem seu embrião no Direito anglo-saxão, arquitetado em seus primórdios, com embasamento na ideia de proibição do tribunal de exceção, ou melhor, na vedação de se estabelecer um órgão do Judiciário exclusivamente ou casuisticamente para processar e julgar determinado delito. Este princípio teria uma ligação íntima com o princípio da legalidade (nulla crime sine lege – não há crime sem lei anterior que o defina), eis que o princípio do juiz natural exigia que apenas um órgão previamente instituído para o processo de crimes, igualmente anteriormente definidos, isto é, antes de seu cometimento, seria competente para o relativo julgamento. Após, nos Estados Unidos, fora acrescentado na elaboração do princípio, a exigência da regra de competência estabelecida anteriormente ao fato. (OLIVEIRA, 2011, p. 34-35).
O Brasil adota o juiz natural em suas duas vertentes fundamentais, consagrando o direito de ser processado pelo magistrado competente, bem como a vedação de serem criados juízos ou tribunais de exceção, considerado o órgão judiciário especialmente criado para contemplar fato já consumado, mas ainda não apreciado, cuja autoria já é conhecida, atuando enquanto for necessário a esta demanda, desfazendo-se no seu término, na forma do art. 5º, incisos LIII e XXXVIII da Constituição Federal, respectivamente. É de se tratar, então, da proibição de criação casuística de tribunais pós-fato, a fim de apreciar determinado caso.
Em outras palavras, quer dizer que todos têm a garantia constitucional de ser submetido a julgamento unicamente por órgão do Poder Judiciário, dotado de todas as garantias institucionais e pessoais elencadas na Magna Carta. (CAPEZ, 2011, p. 71).
Nota-se através do texto constitucional, algumas garantias, como vitaliciedade, a inamovibilidade, a irredutibilidade de subsídio, bem assim, algumas vedações que são estipuladas aos juízes, tais como o exercício, ainda que em disponibilidade, de outro cargo ou função, salvo uma de magistério, o recebimento, a qualquer título ou pretexto, de custas ou participação em processo, à dedicação à atividade político-partidária, o recebimento, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei, e por fim, o exercício da advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração, para exercerem seu mister com total imparcialidade.
Oportuno também os ensinamentos de Oliveira (2011, p. 35-36) ao anotar que a Constituição de 1988 entendeu por bem fixar a competência ora em razão da matéria (ratione materiae), ora em razão da pessoa (ratione personae), ou melhor, em razão das prerrogativas de funções, delegando a competência em razão do lugar (ratione loci) para a legislação ordinária, a qual não se impõe a exigência do juiz natural, de tal modo que não ofende o juiz natural, uma vez que, tais regras estão previstas em lei, não tendo por finalidade privilegiar certo réu ou prejudicar um determinado acusado.
Salienta-se que acaso leis de organização judiciária alterem a competência, com a criação de Varas e Câmaras especializadas, não se amolda ao termo “exceção”, posto que as mesmas passem a constituir regra, desde a sua implantação, a abrangência de todas as demandas em andamento e as futuras causas. Assim, a redistribuição de processos não afronta ao juiz natural, tampouco o proibido juízo de exceção.
Nucci nos ensina que a abrangência do juiz natural, envolve o juiz imparcial, que é aquele que possui condições, objetivas e subjetivas, de prolatar uma decisão sem inclinação por qualquer dos sujeitos envolvidos, fazendo seu labor com discernimento, lucidez e razão, objetivando a aplicação da lei ao caso em análise, de forma a evidenciar que se trata de um Judiciário integrante do Estado Democrático de Direito (NUCCI, 2010, p. 303).
Logo, o princípio da imparcialidade deve ser entendido que o magistrado não poderá ter vínculos subjetivos com o processo de tal forma que lhe retire o distanciamento imprescindível para a condução do mesmo com isenção. Analisando a práxis, percebemos que, em determinadas situações, o juiz ex officio (de ofício), reconhecerá tanto o impedimento como a suspeição, afastando-se de forma voluntária de oficiar no processo, remetendo-o ao seu substituto legal. De tal sorte, acaso o magistrado não reconheça a situação de imparcialidade, caberá as partes interessadas, fazerem uso dos permissivos legais para tanto que se encontram no art. 254 do CPP (hipóteses de suspeição) e no art. 252 (hipóteses de impedimento). (TÁVORA E ALENCAR, 2009, p. 57).
Por fim, o ideal é que o magistrado faça cumprir o previsto na Constituição e nas demais leis infraconstitucionais, de forma honesta, isto é, levando em consideração os valores de sua formação, fornecendo motivos e fundamentando suficientemente suas decisões, demonstrando como formou seu convencimento, de maneira a produzir nas partes o efeito assimilador e legitimador da decisão, o que caracterizará à efetiva imparcialidade e o exercício independente da função judiciária.
3.3 Princípio do direito ao silêncio e não autoincriminação
Este princípio que atinge frontalmente o dogma da verdade real ao permitir que o acusado ou aprisionado mantenha-se em silêncio durante toda a investigação e mesmo em juízo, e em segundo plano, não menos importante, impede que ele seja compelido – obrigatoriamente – a produzir ou colaborar com a formação de prova diversa de seu interesse. Salienta-se que nesta última hipótese, a participação do acusado apenas poderá ocorrer em situações excepcionais, nas quais deverá haver disposição legal expressa, bem como não haja risco de afetação aos direitos fundamentais da pessoa (dignidade da pessoa humana, integridade física e mental).
Partindo destas concepções podemos verificar através da dicção dos arts. 5º, inciso LXIII da Constituição Federal e 186 do CPP, que ao acusado é autorizado por ocasião de seu interrogatório, permanecer calado com relação aos fatos criminosos que lhe são imputados e não responder as perguntas que lhe são endereçadas, assim como negar a autoria do crime, sem que isso possa lhe acarretar apenação criminal, tampouco valoração negativa dessas declarações pelo juiz, que poderá, desconsiderá-las quando da análise dos demais elementos probatórios juntados aos autos, posto que não está obrigado o réu no momento de seu depoimento, dizer a verdade. (NUCCI, 2010, p. 259).
Segundo Oliveira (2011, p. 39) a garantia do silêncio e da não incriminação (nemo tenetur se detegere), assim como aquelas instituídas para tutelar a intimidade, privacidade e dignidade humana, além do estado de inocência, permitem o acusado a recusar-se, também a participar de reconstituição dos fatos ou reprodução simulada, especialmente pelo constrangimento a que é submetido o investigado, que em sua maioria é exposto à execração pública, sendo julgado culpado antecipadamente.
Não obstante o citado autor ainda explica, que em caso de recusa do indiciado à submissão de determinada intervenção, como a reconstituição do crime, deverá o juiz valorar esta recusa quando da formação de seu convencimento. Não quer dizer que será dispensando do ônus probatório de demonstrar o fato imputado, pela simples e solitária rejeição do acusado, por meio de uma presunção acerca da existência de um fato. O que caberá ao magistrado criminal é poder-se valer, diante de um quadro probatório existente, mais insuficiente, da presunção (legal) para, diante da ausência de explicações minimamente razoáveis para a mencionada recusa (ao meio de prova válido), convencendo-se em um ou outro sentido, podendo utilizar-se do critério da proporcionalidade, em casos apuração complexa ou e difícil acesso, bem como os de natureza grave. (OLIVEIRA, 2011, p. 386-387).
Ainda cabe frisar que Távora e Alencar (2009, p. 79) asseveram que a jurisprudência nacional, notadamente os Tribunais Superiores, em reiteradas decisões rechaçam a possibilidade de coagir o acusado, ou até mesmo testemunha que corra o risco de admitir fato que pode lhe gerar consequência em processo criminal, a perpetrar ato propenso a produzir prova contra si mesmo, haja vista que, tais direitos que se buscam assegurar, são prerrogativas que não podem ser desconsideradas por qualquer dos Poderes da República.
3.4 Princípio do estado ou situação de inocência
Nos dias atuais, o princípio do estado ou situação de inocência está insculpido no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Brasileira de 1988, ocupando uma posição de destaque, já que, trata-se de uma garantia constitucional, fruto de anseios e reivindicações sociais, sendo consagrado como cláusula pétrea.
Vale consignar que as aspirações para positivar o princípio em comento como direito individual deram-se há muito tempo, mais precisamente no ano de 1789, com a notável Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão que estabeleceu uma nova concepção de Estado, reconhecendo, em resumo, os direitos individuais como limites para a sua atuação.
Igualmente conhecido como princípio de presunção de inocência, este princípio significa que todo acusado é presumido inocente, até que seja declarado culpado, através de uma sentença condenatória transitada em julgado.
Note-se que o legislador elencou dois objetivos a fim de assegurar o cumprimento de tal princípio. Primeiramente, fora o de garantir que o ônus da prova se dirige à acusação e não à defesa. É certo que as pessoas nascem inocentes, sendo este seu consectário natural, decorrendo, assim, que para que se quebre tal regra, que o Estado-acusação comprove, através de provas robustas, ao Estado-Juiz, a culpabilidade do réu. Em segundo lugar, confirmar a excepcionalidade e a necessidade das medidas cautelares de prisão, porquanto os indivíduos inocentes somente podem ser recolhidos ao cárcere quando satisfeitos os requisitos legais como, por exemplo, os previstos no art. 312 do Código de Processo Penal (garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria), em posse de decisão devidamente fundamentada. (NUCCI, 2012, p. 91).
Portanto, a regra é a liberdade e o encarceramento (aprisionamento), antes de transitar em julgado a sentença condenatória, deve figurar como medida de estrita exceção. Nessa linha de raciocínio o legislador ordinário, por meio da Lei 11.719/2008, revogou o art. 594 do CPP, que estabelecia que se o réu desejasse apelar da decisão condenatória, deveria recolher-se à prisão, o que configura nítida afronta ao supracitado princípio. (TÁVORA E ALENCAR, 2012, p. 55). Pode-se dizer ainda que a presunção de inocência se trata de uma limitação ao jus puniendi do Estado. É, ainda, uma prerrogativa que o acusado possui de receber o devido tratamento, já que obriga que o réu seja tratado como se inocente fosse.
Fernando Capez ensina que o princípio da presunção de inocência se desdobra em três aspectos:
a) no momento da instrução processual, como presunção legal relativa de não-culpabilidade, invertendo-se o ônus da prova; b) no momento da avaliação prova, valorando-a em favor do acusado quando houver dúvida; c) no curso do processo penal, com paradigma de tratamento do imputado, especialmente no que concerne à análise da prisão processual. Convém lembrar a Súmula 09 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual a prisão processual não viola o princípio do estado de inocência. (CAPEZ, 2011, p. 81).
Como se observa, reforça ainda o princípio do estado ou situação de inocência, que tal situação não deve ser tomada unicamente na ocasião em que o magistrado analisa o mérito do processo, mas também durante todo o curso do mesmo.
Nesse aspecto as medidas cautelares realizadas durante a persecução merecem atenção redobrada. Isso porque, a quebra de sigilo fiscal, bancário, telefônico, busca e apreensão domiciliar, a exposição da figura do indiciado ou réu na mídia, através de apresentação da imagem ou de informações conseguidas por meio da investigação podem acarretar consequências desastrosas em relação à figura do acusado/indiciado. (TÁVORA E ALENCAR, 2012, p. 55).
Consequentemente, tal princípio confere ao indivíduo a prerrogativa de invocar sua aplicação imediata sempre que o Estado ultrapasse os limites dos direitos individuais, bem assim, assegura a todo e qualquer cidadão que em caso de dúvida quanto à autoria de determinada infração penal, deve-se prevalecer o estado de inocência, absolvendo-se o acusado.
3.5 Princípio da igualdade das partes
O princípio da igualdade, isonomia ou ainda da paridade de armas, vem insculpido na Constituição Federal em seu artigo 5º, que dispõe que todos são iguais perante a lei. Neste contexto, infere-se que a lei não poderá e nem deverá servir como fonte de regalias e perseguições, mas sim, como instrumento regulador da vida em sociedade que precisa tratar isonomicamente todos os cidadãos. (MELLO, 2002, p. 10).
Salienta-se que a igualdade, na atual sistemática constitucional, consiste na chamada igualdade material, em que se deve tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, na medida em que se desigualam. É certo que não se pode atribuir tratamento idêntico a todas as pessoas, uma vez que se necessita ter em vista as particularidades e diferenças existentes entre cada um.
Alexandre de Moraes salienta que o que se veda são as distinções arbitrativas, as discriminações absurdas, posto que o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é reivindicação do próprio conceito de Justiça, porque o que realmente se protege são certos objetivos, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito. (MORAES, 2011, p. 40).
Nesse aspecto, Roberto Oliveira Araújo Silva afirma que o princípio da isonomia não deve ser encarado somente sob a ótica formal, estabelecendo de forma abstrata a igualdade pura e simplesmente. Para o autor, a fim de que se dê o cumprimento à norma constitucional, o legislador deve ponderar o teor das normas para tratar desigualmente os desiguais, tratando igualmente apenas os iguais, pois somente desta forma, poderá ser alcançado o objetivo da Carta Magna. (SILVA, 2011, p. 170).
Neste diapasão, durante toda a fase processual, a igualdade ou isonomia vinculará a forma da variação das demais características do processo. Não basta que durante o procedimento dê-se possibilidade de realizar uma audiência de forma alternada entre os sujeitos do processo para apresentarem suas provas e suas alegações. É indispensável que esta dinâmica, em que se fazem presentes o contraditório e a ampla defesa, ocorra de forma isonômica4.
Por fim, deve-se consignar que acaso haja qualquer desequilíbrio processual em relação a uma das partes, estaremos prejudicando a efetividade processual, que enquanto instrumento de realização do direito material, é indispensável à tutela de direitos fundamentais, especialmente no processo penal, quando tratamos, por exemplo, com direito à liberdade e direito à vida.
3.6 Princípio do contraditório
Cuida-se de um dos princípios aplicáveis tanto ao órgão ministerial quanto à defesa, ainda que possua algumas variantes, que merecem ser limitadas.
Nas lições de Rosemiro Pereira Leal:
“O princípio do contraditório é referente lógico-juídico do processo constitucionalizado, traduzindo, em seus conteúdos, pela dialeticidade necessária entre interlocutores que se postam em defesa ou disputa de direitos alegados, podendo, até mesmo, exercer a liberdade de nada dizer (silêncio), embora tendo direito-garantia de se manifestar”. (LEAL, 1999, p. 88).
Significa, assim que o contraditório é a oportunidade concedida a ambas as partes para que possam impugnar, constestar, contrariar ou fornecer uma versão própria com relação a alguma alegação ou algo que contrarie seus interesses. (NUCCI, 2010, p. 286). Consiste ainda, em uma abertura de se poder analisar e, querendo, contradizer o que fora manifestado pela parte contrária. Portanto, a oportunização de manifestação, já é suficiente para o exercício do contraditório, não sendo prescindível a efetiva manifestação para que se faça valer o contraditório, ressaltando que a comunicação deverá ser feita a tempo e a modo de possibilitar a contrariedade, sob pena de se operar a nulidade do ato.
Nesse norte, há que se frisar que o provimento jurisdicional só será legítimo acaso o jurisdicionado participe ativamente na construção do mesmo na fase inicial e em todas as demais fases do procedimento.
Logo, iniciada a ação penal, recebida a denúncia/queixa-crime, onde constará a imputação, há de ser citado o acusado para apresentar sua defesa, por escrito, obrigatoriamente. Poderá o réu refutar a inicial ou poderá calar-se, manifestando-se posteriomente a respeito da imputação. Também, poderá o réu afirmar algo inédito, passível de acarretar a extinção da punibilidade, o que deverá ocasionar a oportunidade de manifestação da parte contrária. Em seguida, decidirá o magistrado em face dos argumentos expendidos pelas partes. Na finalização da fase instrutória, ambas as partes deverão apresentar suas alegações finais, e sendo apresentado pela acusação ou defesa, deve-se conceder a palavra a parte contrária. Após o conhecimento pelas partes de todo o teor dos autos, passa-se a decisão do juiz. (NUCCI, 2010, p. 287).
Consistirá, então o contraditório na possibilidade de oposição aos fatos, concernente na manifestação contrária ao que for alegado por uma parte; também acerca da interpretação do direito, quando contrariar alguma norma; ainda em relação a contrariedade das provas produzidas, tendo em vista que as provas são os meios hábeis a convencer o julgador; por fim, nas alegações e requerimentos das partes, pois estes podem ter como consequência a procrastinação do andamento processual.
É de se ressaltar que o juiz situa-se à parte ao contraditório, em razão de sua função, com vistas a realizar o direito-garantia através do poder jurisdicional. Em relação ao assunto, Aroldo Plínio Gonçalves, assevera que:
(...) O contraditório realizado entre as partes não exclui que o juiz participe atentamente do processo, mas ao contrário, o exige, porquanto, sendo o contraditório um princípio jurídico, é necessário que o juiz a ele se atenha, adote as providências necessárias para garantí-lo, determine as medidas necessárias para assegurá-lo, para fazê-lo observar, para observá-lo, ele mesmo. (GONÇALVES, 2001, p. 122-123).
Assim, a fim de que o magistrado faça incidir efetivamente os direitos fundamentais no processo penal, faz-se imprescindível que sua postura, enquanto representante do Estado, seja pautada com a hermenêutica constitucional vigente.
Para que seja concretamente realizado o contraditório, será indispensável para tanto, que o jurisdicionado tenha ciência prévia de todos os atos processuais, em observância ao determinado no art. 792, caput do CPP, que prescreve a publicidade de todos os atos do procedimento, assim como ao estabelecido no artigo 5º, §1º da Constituição Federal, sob pena de a decisão do julgador ser considerada ilegítima e ilegal, posto que, se o próprio Estado não respeita e não efetiva os direitos fundamentais, seus atos, através dos provimentos judiciais, tornam-se ilegítimos, e, consequentemente, ilegais. Em primeiro lugar, diz-se ilegítimo, pois o juiz não possui legitimidade para solitariamente decidir, tendo em vista que o provimento jurisdicional é composto pela dialeticidade realizada entre o defensor e o Parquet; em segundo lugar, diz-se ilegal, uma vez que a decisão não se atentou ao estabelecido na Carta Magna, notadamente, seus princípios. (CAPEZ, 2011, p. 62-63).
Para Nery Júnior, o princípio, no ramo do processo penal, significa contraditório substancial, real, efetivo, tanto é que se exige defesa técnica substancial ao réu, ainda que revel (NERY JÚNIOR, 2000, p. 130-133). Vê-se, assim, que no processo penal é indispensável a ciência dos atos, a possibilidade de reação e o direito de ver seus argumentos considerados, a fim de permitir um contraditório efetivo e pleno, isto é, de ter garantido o contraditório durante todo o desenrolar da causa, bem como que sejam proporcionados os meios para que se possa se pronunciar sobre os atos da parte contrária .
Portanto, competirá ao magistrado, ao decidir no caso concreto a respeito, por exemplo, do pronunciamento, do impronunciamento, da desclassificação ou da absolvição, observar, obrigatoriamente as normas em análise, conjugando-a com os princípios constitucionais do processo, princípios orientadores do Estado Democrático de Direito e da hermenêutica constitucional democrática para balizar o provimento decisional, a ser construído com os sujeitos participantes no processo para que tal decisão seja considerada legítima e legal.
Sobreleva anotar ainda, que em alguns casos, terá lugar o que se denomina contraditório diferido ou postergado, nas hipóteses de urgência, havendo perigo de perecimento do objeto em face da demora na prestação jurisdicional. (TÁVORA E ALENCAR, 2012, p. 59). Será admitido a concessão de medidas judiciais inaudita altera parte, como por exemplo, nas interceptações telefônicas (Lei 9.296/96) e no sequestro de bens imóveis, previsto no art. 125, do CPP, não configurando exceção ao princípio, tendo em vista que, anteriormente a prolação da decisão final, caberá ao Juiz, obrigatoriamente, conceder a palavra à outra parte, a fim de que se manifeste a respeito da medida, sob pena de nulidade.
Por fim, importante frisar que o entedimento prevalente de que seja inexigível o direito ao contraditório durante a realização do inquérito policial, por ser o mesmo um procedimento administrativo de caráter informativo, inquisitivo, e que em sentido estrito, não se trata de “instrução”, mas sim de uma colheita de elementos que possibilitem a instrução do processo criminal. Não obstante, não apresenta óbice ao direito de publicidade, concernente no acesso amplo aos elementos de prova que sejam colhidos durante o iter investigatório-administrativo, consoante previsto na Súmula vinculante nº. 14 do Supremo Tribunal Federal, bem assim a previsão no Estatuto da Advocacia que confere ao advogado o direito de analisar, mesmo sem procuração, autos de flagrante ou de inquérito, terminados ou em andamento, mesmo que em poder da Autoridade Policial, podendo copiar peças e assim tomar apontamentos. (TÁVORA E ALENCAR, 2012, p. 59).
Também de se atentar ao fato que o julgador ao apreciar as provas, está vedado de fundamentar sua decisão, exclusivamente, com base nos elementos de informação colhidos durante o inquérito policial, o que faz exigir que o mesmo produza provas sobre o crivo do contraditório judicial, salvo quando se tratar de provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, conforme previsão no art. 155, do CPP, com redação dada pela Lei nº. 11.690/2008.
3.7 Princípio da ampla defesa
Segundo Nucci a defesa constitui um direito intrínseco à pessoa humana, representando uma proteção, uma oposição ou uma justificação voltada à acusação da prática de um crime, quando se encontra no âmbito penal, concernente na possibilidade do réu de defender-se de modo irrestrito, sem que possa sofrer qualque forma de limitação indevida pela parte contrária ou pelo Estado-Juiz. (NUCCI, 2010, p. 263).
A ampla defesa pode ser subdividida em autodefesa e defesa técnica, ambas possuindo grande relevância. (TÁVORA E ALENCAR, 2012, p. 60). A primeira é realizada pelo próprio acusado, que possui o direito de ser ouvido pelo juiz da causa, encontrando-se no cenário de juízo de oportunidade e conveniência do réu, que poderá exercer este direito ao permancer em silêncio. A segunda, por sua vez, possui caráter obrigatório, sendo promovida pelo advogado, cuja habilitação é supervisionada pelo Estado (Juiz e orgão de acusação), dependente de elevado conhecimento teórico e prático do mundo jurídico.
É em homenagem ao princípio em análise, que o Supremo Tribunal Federal consagrou a Súmula nº. 523, segundo a qual no processo penal, será tratado como nulidade absoluta a falta de defesa, desde que comprovado que a deficiência causou prejuízo ao réu. No mesmo sentido, prevê a Súmula nº. 708 que será nulo o julgamento da apelação caso, logo após a renúncia manifesta nos autos, pelo único procurador do acusado, e este último não tiver sido intimado para constituir novo patrono. Nos mesmos trilhos, caminhou o CPP ao estabelecer a indispensabilidade de nomeação de advogado para oferecimento de resposta à acusação, em seu art. 396, §2º, assim como o art. 55, §3º da Lei de Drogas, ressaltando que a Constituição Federal imputa ao Estado o dever de prestar assistência jurídica integral e gratuita quando ao acusado faltar recursos para contratar um defensor, nos termos do art. 5º, inciso LV. (TÁVORA E ALENCAR, 2012, p. 60).
A respeito das características essenciais deste princípio fundamental, Lorentz assim se manifesta:
(...) A ampla defesa deve ser compreendida, não no sentido de possibilidades de apresentação de infinitas defesas, mas sim em apresentação de todas as defesas de conteúdo tanto de alegações, quanto de provas, em limites espaço-temporais (ou seja, tanto de conteúdo, quanto de tempo de alegação) iguais para as partes, redundando em sistemas de preclusão. (LORENTZ, 2001, p. 30).
Ao que se infere, a ampla defesa significa a possibilidade de participação processual, segundo os limites legais, de forma que estes, não possam impedir a realização de manifestações, bem como a produção de provas, sob pena de se operar violações do espaço processual dos sujeitos da relação jurídica. Ainda, para que a amplitude da defesa seja concretizada, deve-se organizar o ordenamento jurídico com instrumentos recursais que fomentem o pleno acesso do jurisdicionado aos Tribunais em toda a sua magnitude, obervando-se o juízo natural.
De se registrar que a ampla defesa, não se preconiza a dilação nos prazos para a promoção da defesa, mas sim que a mesma seja oportunizada de forma suficiente para que as partes possam produzir defesa completa e exauriente. (DUTRA, 2011, p. 38).
Nessa mesma linha de raciocínio manifesta-se Bonfim:
O princípio da ampla defesa consubstancia-se no direito das partes de oferecer argumentos em seu favor e de demonstrá-los, nos limites em que isso seja possível. Conecta-se, portanto, aos princípios da igualdade e do contraditório. Não supõe o princípio da ampla defesa uma infinitude de produção defensiva a qualquer tempo, mas, ao contrário, que esta se produza pelos meios e elementos totais de alegações e provas no tempo processual oportunizado por lei. (BONFIM, 2009, p. 43).
Assim, a ampla defesa deverá ser respeitada, para que se tenha a efetividade do processo, por mais célere que este seja, a fim de que o acusado, no cenário penal, possa utilizar-se de toda e qualquer modalidade de prova ou alegação hábil a refutar o que contra ele é imputado.
3.8 Princípio da dignidade da pessoa humana
Das licões de Nucci, extrai-se que se trata de um princípio regente de todo o ordenamento jurídico, que no cenário processual penal, abrange os diversos ângulos, como o acusado, a vítima do crime, cujo objetivo é a preservação do ser humano, desde o seu nascimento até sua morte, conferindo-lhe autoestima e garantilndo-lhe o mínimo existencial. (NUCCI, 2010, p. 39).
Continua o mencionado autor, citando Lima e Marques (NUCCI, 2009, p. 443), esclarecendo que a dignidade da pessoa humana é uma qualidade inerente e indissociável de todo e qualquer ser humano, constituindo elemento que o qualifica e como tal e dele não pode ser separado.
Note-se que o princípio da dignidade da pessoa humana, portanto, não é algo que será concebido ao ser humano, haja vista que lhe é pertencente de forma inata. Ele envolve a garantia de um mínimo existencial ao ser humano, de maneira a atender suas necessidades básicas de vivência, assim como o sentimento de autoestima e respeitabilidade.
Assim, para que a dignidade humana seja resguardada, torna-se indispensável a observância aos direitos e garantias individuais por parte de cada indivíduo da sociedade e também pelo Estado, especialmente no contexto penal e processual penal, uma vez que envolve direitos e garantias fundamentais, tais como a vida, a honra, a intimidade, a liberdade, a integridade física, o patrimônio, dentre outros. (ZISMAN, 2005, p. 39).
Portanto, nesse prisma, as pessoas que compõem o corpo social, não podem execrar seus próprios semelhantes, autores de delitos gravíssimos, porém que merecem reprimenda adequada e proporcional ao erro/infração cometida. Na sociedade, convivem entre si, agressores e vítimas, os bons e os maus, uma vez que o ser humano não é perfeito. Desta feita não se pode esquecer que qualquer pessoa que esteja no seio social não está isenta de cometer uma infração penal. Consequentemente, com base no valor da dignidade humana, deverá ser assegurado ao acusado/investigado/condenado todos os mecanismos para se defender contra atos tendentes a violarem esta sua dignidade humana, seja no momento da investigação, na fase processual ou ainda quando encontrar-se aprisionado.
3.9 Princípio da inadmissibilidade de provas ilícitas
Com o advento da Constituição Federal de 1988, são inadmissíveis no processo, as provas obtidas por meios ilícitos, conforme estabelecido em seu artigo 5º inciso LVI. Essas provas constituídas por meios ilícitos constituem espécie das chamadas provas vedadas ou imprestáveis.
Capez leciona que prova vedada ou imprestável é aquela produzida em contrariedade a uma norma legal especifica, e essa vedação pode ser imposta por norma de direito material ou processual. Assim conforme a natureza desta, a prova poderá ser elencada como ilícita ou ilegítima, respectivamente. (CAPEZ, 2011, p. 80).
Deve-se entender como provas ilícitas àquelas produzidas com violação a regras de direito material, isto é, mediante a prática de um ato ilícito penal, civil ou administrativo, como nos casos de se realizar a diligência de busca e apreensão sem prévia autorização judicial ou durante a noite. Já as provas ilegítimas são aquelas produzidas com a violação a regras de natureza meramente processual, como por exemplo, o depoimento prestado com violação à regra proibitiva do sigilo profissional, prevista no art. 207 do CPP.
Há que se considerar que conforme o entendimento majoritário da doutrina e jurisprudência, que quando a Constituição fala que são inadmissíveis todas as provas obtidas por meios ilícitos, está vedando tanto a prova ilícita como a prova ilegítima. (CAPEZ, 2011, p. 81).
Questão muito debatida é a relativa a interceptação telefônica. A Carta Política vigente proclamou, que as conversas telefônicas, não podem ser interceptadas, salvo, como previsto o art. 5º, inciso XII, ou seja, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a Lei 9.296/1996 estabelecer, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. Portanto, se trata de um preceito que está subordinado ao que prevê a referida lei, vinculada às hipóteses e a forma em que será licito ao magistrado conceder a interceptação.
Têm-se também as chamadas provas ilícitas por derivação, que são aquelas em si mesmo lícitas, porém que foram produzidas de outra ilegalmente ou ilegitimamente obtida, tais como, a confissão extorquida mediante a tortura, de modo que venha a obter informações corretas sobre o lugar onde se encontra o produto do crime, de forma que se consiga a regular apreensão. A vedação não alcança somente as provas ilícitas propriamente ditas, como também, as ilícitas por derivação. Nos Estados Unidos é conhecida como teoria dos frutos da árvore envenenada. (ANTÔNIO, 2010, p. 258).
Não obstante, os Tribunais Superiores (STF e STJ) ainda não pacificaram a respeito da matéria, tendo entendido que a prova proibida não gera nulidade no processo, se o valor da mesma não influenciar decisivamente na fundamentação do magistrado, como sendo o único a embasar o decreto final, o que afastaria a nulidade.
Finalmente, cumpre consignar que enquanto não forem tipificadas de forma expressa, no ordenamento jurídico, as provas que podem ou não serem produzidas, bem como a forma e a partir de qual momento, restará ao Juiz analisar o cabimento ou não destas, atentando-se aos princípios constitucionais, mormente, ao da razoabilidade e ao da proporcionalidade.
Analisados os princípios previstos no texto constitucional e que devem ser assegurados ao acusado de um crime doloso contra a vida, no capítulo seguinte será examinada a colisão de direitos fundamentais existente entre a liberdade de expressão e imprensa e o direito à privacidade, quando os meios de comunicação de massa, divulgam exarcebadamente notícias sobre os casos criminais e as pessoas envolvidas nestes.
4. DA COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Pretende-se neste capítulo, realizar um breve exame em relação ao estudo do fenômeno da colisão de direitos fundamentais e também da técnica da ponderação de interesses, a fim de se verificar as condições formais e materiais em que os direitos fundamentais podem ser restringidos ou limitados. Como já explanado no capítulo anterior, os direitos fundamentais, são direitos intrínsecos à natureza humana e aos seus valores mais caros, visando, em geral, a consagração, a proteção e a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, de forma a constituir o núcleo essencial de todo o ordenamento jurídico.
Para que haja melhor entendimento a respeito do tema proposto neste trabalho, isto é, a influência exercida pela Mídia no Tribunal do Júri, este capítulo, versará a respeito da colisão de direitos fundamentais existente entre a liberdade de expressão, de imprensa e de opinião e o direito à privacidade (intimidade, vida privada, honra e imagem).
4.1 Da liberdade de expressão
O texto constitucional elenca liberdades variadas e procura assegurá-las através de várias normas. As liberdades são proclamadas, partindo-se do panaroma de pessoa humana, tida como um ser que almeja a auto-realização, sendo responsável pelas escolhas dos meios aptos para realizar suas potencialidades. (BRANCO, 2011, p. 296). Dentre as liberdades catalogadas na Constituição analisar-se-á a liberdade de expressão.
A liberdade de expressão está insculpida no art. 5º, inciso IV, que estabelece ser livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato, assim como no inciso XIV do citado artigo, que prevê que é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando fizer-se imprescindível ao exercício da profissão, e também no art. 220 ao dizer que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado as prescrições da própria Carta Magna. No mesmo artigo 220, precisamente, em seus §§1º e 2º, a Constituição Federal dispõe que nenhuma lei conterá dispositivos que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, incisos IV, V, X, XIII, e XIV, sendo vedada também toda e qualquer censura de natureza artística, política e ideológica. Constitui-se um dos mais importantes e valiosos direitos fundamentais, uma vez que se trata de uma das reivindicações mais antigas dos homens de todos os tempos. Segundo Pena (2005, p. 29), a liberdade de expressão surgiu na Grécia Antiga, quando cidadãos se encontravam na Ágora, a praça pública, para deliberarem sobre vários temas ligados a cidadania e com o fim da Cidade-Estado, evidenciando a democracia participativa.
De acordo com os ensinamentos de Branco:
A garantia da liberdade de expressão tutela, ao menos enquanto não houver colisão de direitos fundamentais e com outros valores constitucionalmente estabelecidos, toda opinião, convicção, comentário, avaliação ou julgamento sobre qualquer assunto ou sobre qualquer pessoa, envolvendo tema de interesse público, ou não, de importância e de valor, ou não – até porque diferenciar entre opiniões valiosas ou sem valor é uma contradição num Estado baseado na concepção de uma democracia livre e pluralista. (BRANCO, 2011, p. 297).
Neste aspecto, observa-se então, que a liberdade de expressão é muito abrangente, incluindo o direito de todo cidadão ter opiniões e de adquirir informações, trocar ideias e transmitir pensamentos, em qualquer tempo e em todo lugar ou abster-se destas faculdades. Há que se considerar ainda que a exteriorização da liberdade pode dar-se entre interlocutores presentes ou ausentes. Entre presentes, verificar-se-á de pessoa a pessoa, em forma de conversação ou diálogo, ou de uma pessoa para outras, na forma de conferência, palestras e exposição. Já no caso dos ausentes, ocorrerá entre certas pessoas, através de correpondências pessoais ou particulares, como cartas, telegrama, telefone, ligados ao direito à privacidade, ou dar-se-á por meio de pessoas indeterminadas, sob a forma de livros, periódicos, revistas, internet, rádio, televisão. (SILVA, 2003, p. 243).
Ademais, tendo o Direito Brasileiro reconhecido a liberdade de expressão como a atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença como previsto no art. 5º, inciso IX, da Carta Maior, pode-se, afirmar que manifestações não verbais, como as expressões corporais, também encontram-se inseridas no cenário da liberdade constitucionalmente consagrada. Disto resulta que a liberdade de expressão, tida como um direito fundamental, possui um caráter de que não poderá ser limitada, sobre o pretexto de que o Estado exerça censura, o que não impede de que o indivíduo que se expresse sobre algum fato/acontecimento, sofra retaliações na área cível ou criminal. Apesar de que a Carta Brasileira de 1988, assevere não ser possível a restrição ao direito de manifestação de pensamento, criação, expressão e informação, dizendo ainda que nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer meio de comunicação social, proclama que assim o será, observado o estabelecido no art. 5º, incisos IV, V, X, XIII e XIV. (Branco, 2011, p. 304). Desta feita, admite-se a limitação de tal direito em razão da colisão desse direito com outros do mesmo status, tais como o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas. Infere-se ainda que qualquer outro valor que esteja amparado no texto constitucional, poderá vir a entrar em conflito com essa liberdade, demandando sopesamento, a fim de que, vislumbra-se, sob o crivo da proporcionalidade, no caso concreto, qual princípio deverá prevalecer.
4.2 Da liberdade de imprensa
Por sua vez, a liberdade de imprensa prevista no artigo 5º da Carta Política vigente, possui relação ampla com outras liberdades, como por exemplo, a liberdade de informação, a liberdade de pensamento e a liberdade de expressão. Assim, pode-se admitir a inclusão a atividade jornalística, no rol dos direitos e garantias fundamentais, consistente na livre expressão de atividade de comunicação.
Desta maneira, ao utilizar-se da liberdade de imprensa, usa-se das prerrogativas e garantias conferidas à liberdade de pensamento e concomitantemente ao direito à informação. Segundo as lições de José Afonso da Silva, a liberdade de informação jornalística não se resume simplesmente na liberdade de imprensa, haja vista que está ligada à publicação de veículo impresso de comunicação. Desta forma, alcança qualquer meio de difusão de opiniões, comentários e notícias por qualquer forma de veiculação de comunicação social, tais como os impressos de comunicação (revistas e livros) e os de difusão sonora, de sons e imagens (rádio e televisão). (SILVA, 2003, p. 246).
Nos dias atuais, a imprensa desempenha um relevante papel de agente comunicador de informações e dados, que são capazes de estabelecer a realidade circundante das esferas públicas, das instituições sociais e exercendo um controle do Estado e da sociedade. Sendo a liberdade de imprensa disciplinada no ordenamento jurídico pátrio, com o objetivo de proibir que o Estado cerceie ou dificulte a circulação e o acesso às informações, assim como para que este não venha a intervir na liberdade destas informações, constitui uma ferramenta importante ao Estado Democrático de Direito .
Flávio Prates e Neusa Felipim, pontificam que em relação a finalidade da liberdade de imprensa:
Cumpre observar que o direito de informar, ou ainda, a liberdade de imprensa leva à possibilidade de noticiar fatos, que devem ser narrados de maneira imparcial. A notícia deve corresponder aos fatos, de forma exata e factível para que seja verdadeira, sem a intenção de formar nesse receptor uma opinião errônea de determinado fato. O compromisso com a verdade dos fatos que a mídia deve ter vincula-se com a exigência de uma informação completa, para que se evitem conclusões precipitadas e distorcidas acerca de determinado acontecimento. (PRATES e FELIPIM, 2008, p. 34).
No mesmo sentido disserta o constitucionalista José Afonso da Silva ao enfatizar que a liberdade do dono da empresa jornalística ou o jornalista é reflexa no sentido de que ela só existe e se justifica na proporção do direito dos indivíduos a uma informação imparcial e correta. O proprietário da empresa e o jornalista possuem o direito fundamental de exercer a atividade, ao se reconhecer o direito de informar as ideias e acontecimentos. Contudo, têm o ônus de informar o meio social que os permeia de forma objetiva, sem faltar-lhes com a verdade ou retirarar-lhes o espírito original. (SILVA, 2003, p. 246).
Tendo em vista a inserção da liberdade de imprensa no texto constitucional de 1988, têm-se impossibilidade da censura, o livre exercício da profissão, a liberdade de pensamento e liberdade de informação. (BRANCO, 2011, p. 298). Não obstante, tal direito não assegurado de forma absoluta, como todo e qualquer direito fundamental, tem sua aplicabilidade de forma relativa, quando colidido com outros direitos fundamentais, sofrendo, assim, algumas limitações, consoante o §1º do art. 220 da Carta Magna.
Desta forma, as restrições à liberdade de imprensa, concentram-se ao respeito à imagem, à intimidade, à honra, à reputação, à vida privada, e, de maneira singular, aos princípios da presunção da inocência e da dignidade da pessoa humana. Buscando outros limites intrínsecos à liberdade de expressão, Paulo Gustavo Gonet Branco, especialmente no caso da liberdade de imprensa, o referido autor conclui que o conteúdo da notícia a ser veiculada, está obrigado a não distorcer a verdade, constituindo a publicação da verdade, a conduta que a liberdade proclamada constitucionalmente protege. (BRANCO, 2011, p. 308-309).
Portanto, é inadmissível que os veículos de comunicação utilizem-se da prerrogativa da liberdade de informação jornalística, que lhe é conferida pela Carta Maior de 1988, a fim de divulgar fatos e acontecimentos especulativos, de maneira leviana, sensacionalista e não condizente com a verdade, que violem outras liberdades igualmente garantidas.
4.3 Do direito de informação
A palavra informação refere-se ao conjunto de condições e modalidades de propagação para o meio social (ou colocada à sua disposição), sob as diversas formas, de acontecimentos, ideias e opiniões. O direito de informação abrange o direito de informar, de se informar e, ainda, o direito de ser informado. Tal direito é uma garantia constitucional, prevista no art. 5º, inciso XIV da CF/88, que visa assegurar a todo ser humano e não apenas para os profissionais jornalistas, sem dependência de censura, conforme art. 220 da CF/88, respondendo cada qual pelos abusos que cometer, compreendendo a procura, o acesso, o recebimento e a difusão de fatos, notícias ou ideias, através de qualquer meio. (SILVA, 2003, p. 244-245).
Assim, o citado diploma legal assegura o direito de auferir, transmitir e buscar informações, não admitindo-se restrições ou embaraços por parte do Estado, preconizando um regime de total liberdade, ressalvados as matérias de cunho sigilosos, conforme o art. 5º, inciso XXXIII, in fine, da Constituição Federal.
Como já explanado acima, o direito de informação desdobra-se sobre três acepções. Primeiramente, o direito de informar ou de informar sem limitações, que consiste em um eficaz meio para o desenvolvimento de debates públicos, permitindo que toda a sociedade pronuncie-se claramente acerca de fatos e informações livremente. Em segundo lugar, o direito de acesso a informação, que por sua vez, visa assegurar a busca ou a prospecção das informações imprescindíveis para fazer uma notícia ou elaborar uma crítica, consistindo ainda, no não obstáculo de um direito de colher dados de caráter público e pessoal, excetuando-se o sigilo de fonte quando este for necessário para o exercício profissional.
Por fim, o direito de ser informado ou receber informações, que consiste na aptidão do ser humano em ter conhecimento de modo absoluto e invariável das informações por meio dos veículos de comunicação, ressaltando que ao se realizar uma análise conjunta do art. 5º, inciso XXXIII, com o previsto no art. 37, ambos da Carta Magna, verifica-se que toda a população possui o direito de ter ciência dos atos Poder Público. (GUERRA e AMARAL, 2010, p. 1-6).
4.4 Direito à privacidade (intimidade, vida privada, honra e imagem)
A Constituição da República em seu art. 5º, inciso X, declara que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, instituindo esses valores, de forma expressa, à condição de direito individual, elevando assim, os chamados direitos da personalidade à categoria de cláusulas pétreas, conforme o art. 60, § 4º, inciso IV. Adotar-se-á neste trabalho, a terminologia utilizada por José A. da Silva, segundo a qual a expressão direito à privacidade, em um sentido mais amplo e genérico, engloba todas as manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade, que o texto da Carta Magna em comento consagrou.
Esclarece o autor que se deve examinar a privacidade como:
O conjunto de informação acerca do indvíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito. A esfera da inviolabilidade, assim, é ampla, abrange o modo de vida doméstico, nas relações familiares e aftivas em geral, fatos, hábitos, local, nome, imagem, pensamentos, segredos, e, bem assim, as origens e planos futuros do indivíduo. (SILVA, 2003, p. 205).
Nesse sentido, o direito a privacidade teria por objeto os comportamentos e acontecimentos relativos aos relacionamentos de cada pessoa, às suas relações no comércio e no trabalho, as quais o indivíduo não almeja que se espalhem a esfera pública, sendo proclamado como o direito produto da exigência do indivíduo de ser deixado sozinho, tranquilo, de estar só. (BRANCO, 2011, p. 315).
Consiste, portanto, o direito à privacidade, na condição de direito negativo, manifestado pela não exposição ao conhecimento de terceiros de elementos particulares da esfera reservada ao titular, caracterizado como a esfera secreta da vida do indíduo. Abrange ainda, a inviolabilidade do domicílio, o sigilo de correspondência, o segredo profissional, o que não será objeto do presente estudo.
O direito em comento, em sua acepção abrangente, projeta-se em dois planos distintos. Um referente ao obstáculo dirigido para restringir a interferência estatal, e, outro concernente ao obstáculo encaminhado aos demais indivíduos, no sentido de determinar uma obrigação de abstenção, de não intervir na vida alheia. (SILVA, 2003, p. 207).
Atualmente, com o grande avanço tecnológico, alguns contornos vêm sendo acrescidos ao direito à privacidade, principalmente na comunicação de dados por meio da internet, a exemplo da Lei 12.737/2012, também conhecida como "Lei Carolina Dieckmann", que entrou em vigor no início do mês de abril do corrente ano, sendo criada para proteger os usuários de crimes cometidos no ambiente virtual, como no caso da atriz que deu nome a lei, que teve invadido seu notebook por cibercriminosos, que na maior parte das vezes roubam imagens íntimas de suas vítimas, para tirarem alguma vantagem ou simplesmente espalhar essas fotos na rede. No tocante ao direito à honra, cabe assinalar que cada indivíduo possui um valor moral próprio e estando inserido em uma sociedade, por meio de suas ações e atitudes, projeta esses valores, emanando daí a reputação e a boa fama.
Assim, tal reputação, passa a integrar o patrimônio moral de cada indivíduo, advindo dele o respeito e a consideração no meio social. Disso decorre que deve-se respeitar esse direito da pessoa, a fim de resguardar as qualidades inerentes a cada um.
A inviolabilidade da imagem, por sua vez, consiste na tutela do aspecto físico, como é perceptível visivelmente. O direito à imagem não é absoluto, sofrendo, diversas restrições que são encontradas nos acontecimentos da atualidade, nas pessoas públicas, na cultura e nas obras didáticas ou científicas, no interesse público, na caricatura ou no humorismo. (BRANCO, 2011, p. 321).
Por fim, é importante frisar que em algumas hipóteses em que se violar à privacidade, constituirá ilícito penal, bem como foi previsto expressamente na Constituição Federal, ao lesado será assegurado o direito de indenização por dano material e moral, decorrente da violação da honra, da intimidade, da vida privada e da imagem, em resumo, do direito à privacidade.
4.5 Da colisão dos direitos fundamentais da liberdade de expressão e de imprensa e do direito à privacidade
O Estado Democrático de Direito, na sua atual conjuntura, possui como um de seus principais pilares, senão o principal, lograr o desenvolvimento integral da pessoa humana.
Para tanto, além das normas estabelecidas no âmbito jurídico, lança mão, através do legislador constituinte, de princípios gerais a serem por todos respeitados e elevados à categoria de direitos fundamentais, tendo em vista estarem instituídos na Carta Maior de 1988, mormente no artigo 5º, tidos como cláusula pétrea, nos termos do artigo 60, §4º, inciso IV.
Estes princípios são considerados norteadores de todo ordenamento jurídico, como também, das relações entre os indivíduos e gestores do planejamento futuro da nação em todos seus aspectos. Eles, se diferem das normas, posto que estas, apesar de serem regras gerais, objetivam enfrentar determinadas situações da vida, as quais irão incindir a aplicação de determinada norma. Por outro lado, os princípios, dada sua abertura e generalidade, visam uma infinitude de situações e formas jurídicas, previstas ou imprevistas, presentes ou futuras, sendo, assim, normas generalíssimas. (LOURENÇO, 2011, p. 5).
Como dito alhures, no ordenamento jurídico brasileiro, nenhum direito ou garantia possui o caráter de ser absoluto. Isso ocorre, pois a restrição no âmbito de proteção desses direitos pode dar-se por outro direito, ou por valores coletivos da sociedade.
Fala-se em colisão de direitos individuais quando se identifica conflito decorrente do exercício de direitos individuais por diferentes titulares, sendo que a colisão poderá dar-se igualmente, de conflito entre direitos individuais do titular e bens jurídicos da comunidade. Um exemplo de colisão de direitos fundamentais consiste no tema que será abordado adiante, quando a liberdade de expressão e de imprensa, entrar em conflito com a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem das pessoas. (MENDES, 2011, p. 265-267).
Segundo ainda Gilmar Mendes a doutrina distingue o conceito de colisão de direitos fundamentais em sentido estrito e em sentido amplo. Acaso se conceber em sentido estrito, então devem ser consideradas apenas aquelas situações que envolvam colisões de direitos fundamentais. Noutro giro, se utilizar de uma concepção mais ampla, considera-se as colisões de direitos fundamentais e outros princípios ou valores que tenham por objeto a proteção de interesse comum. (MENDES, 2011, p. 267). No presente trabalho cuidar-se-á somente da colisão em sentido estrito, preocupando-se com possíveis conflitos entre direitos fundamentais individuais.
Verifica-se, através de um simples olhar no texto constitucional, que há entre esses dois direitos, uma relação intimamente conflitual, posto que, de um lado, depara-se num cenário em que é possível que uma pessoa realize as mais diversas ações, apresentando-se em plena autonomia, sem qualquer intervenção; de outra sorte, existe, um outro âmbito, o social, inerente do homem, ante a sua vivência em uma sociedade e não ser considerado um ser solitário.
Muito se tem discutido nos bancos acadêmicos, a respeito dos limites da liberdade de expressão e de imprensa em relação aos direitos de personalidade, enfocando-se em especial, o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem.
Num primeiro momento, ao examinarmos que a liberdade de expressão e imprensa é assegurada no texto da Constituição, sem nenhuma forma de censura prévia, seria inconcebível a intervenção da autoridade pública ou do Poder Judiciário, a fim de evitar a veiculação de uma imagem que violasse os direitos à personalidade de alguma pessoa, restando somente a esta a reparação pelo dano sofrido.
Contudo, ao se analisar a sistemática em que se encontra inserida o art. 5º, inciso X, é notório que o constituinte não almejou simplesmente assegurar uma indenização ao possível atingido. Em verdade o que se vê, é que se a própria Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 5º, inciso XXXV, reforça o princípio da inafastabilidade da jurisdição, ao garantir a proteção judiciária contra lesão ou ameaça de lesão a direito, assegura inexoravelmente à inviolabilidade do direito à privacidade, anteriomente a sua deturpação.
Ademais, verifica-se que no próprio corpo da Constituição encontra-se algumas limitações ao direito de liberdade de expressão e imprensa, tidos como absolutos e insuscetíveis de restrição, como por exemplo a cláusula prevista no art. 220, §1º, que autoriza ao legislador disciplinar o exercício de tal direito, quando veda o anonimato, conferindo o direito de resposta, a indenização por danos materiais e morais, bem como o direito à privacidade (a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem), consubstanciando numa expressa reserva legal, que outorga uma limitação à liberdade de expressão e de imprensa, com vistas a preservação de outros valores igualmente relevantes.
Quando dois ou mais direitos fundamentais forem aplicáveis a um caso concreto, um deles deverá ceder em face do outro. Contudo, ambos permanecerão válidos e vigentes.
Nesse passo Alexy sintetiza:
Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido e, de acordo com o outro, permitido –, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. (ALEXY, 2008, p. 93).
O conflito, no plano fático, entre o direito à privacidade e o direito à liberdade de expressão e de imprensa é o pressuposto necessário para que se possa suscitar a possibilidade de intervenção do Estado, através da função jurisdicional, no sentido de resguardar um dos interesses contrapostos. Para a superação dessas colisões, utiliza-se o método da ponderação de interesses, que respeita a natureza principiológica das normas de direitos fundamentais.
Para tanto, caberá ao intérprete analisar o caso concreto, conforme suas variáveis fáticas, norteando a resolução da colisão com base na hamonização de direitos e na prevalência de um bem em relação a outro. Decorre daí, que no caso concreto, observar-se-á que o direito fudamental que possui maior peso terá precedência em relação ao de menor peso, levando-se em consideração todas as circunstâncias do caso em apreço. (MENDES, 2011, p. 271).
Segundo as lições de Luís Roberto Barroso:
A colisão de direitos fundamentais é um fenômeno contemporâneo e, salvo indicação expressa da própria Constituição, não é possível arbitrar esse conflito de forma abstrata, permanente e inteiramente dissociada das características do caso concreto. O legislador não está impedido de tentar proceder a esse arbitramento, mas suas decisões estarão sujeitas a um duplo controle de constitucionalidade: o que se processa em tese, tendo em conta apenas os enunciados normativos envolvidos, e, em seguida, a um outro, desenvolvido diante do caso concreto e do resultado que a incidência da norma produz na hipótese. De toda sorte, a ponderação será a técnica empregada pelo aplicador tanto na ausência de parâmetros legislativos de solução como diante deles, para a verificação de sua adequação ao caso. (BARROSO, 2004, p. 109).
Portanto, a solução para o conflito de direitos fundamentais deve almejar a preservação ao máximo de cada um dos bens em colisão, através do sopesamento tópico das circunstâncias fáticas presentes, de tal maneira que a própria resposta a ser resolvida concederá meios para a sua solução, por meio da técnica de raciocínio e decisão conhecida como ponderação. Assumirá o intérprete, um papel de criador do direito no caso concreto, fazendo uso de elementos da teoria da argumentação para legitimar sua escolha, aferindo o peso que cada princípio deverá desempenhar
na hipótese fática.
De acordo com Bonavides (2003, p. 393), a realização dessa ponderação dos direitos contrapostos implica no emprego do princípio da proporcionalidade, segundo o qual, busca-se estabelecer a relação ideal entre o fim almejado e o meio a ser empregado.
Para Alexy, a ponderação é composta por três máximas parciais: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. As duas primeiras máximas levam em consideração as possibilidades fáticas do caso concreto, e a última máxima, considera as possibilidades jurídicas. (ALEXY, 2008, p. 98).
Gilmar Mendes, cita que segundo Alexy, essa ponderação deverá ser feita em três planos. Primeiramente, há de se definir a intensidade da intervenção. No segundo plano, há de saber a importância dos fundamentos justificadores da intervenção. Já no terceiro plano, se realiza a ponderação em sentido estrito. Ele enfatiza que o postulado da proporcionalidade em sentido estrito pode ser formulado como uma lei de ponderação, segundo a qual, quanto mais intensa se revelar a intervenção em um dado direito fundamental, maiores hão de se revelar os fundamentos justificadores dessa intervenção. (MENDES, 2011, p. 271).
Nessa esteira, afirma Alexy que duas normas quando consideradas isoladamente podem levar a conclusões contraditórias, contudo não se pode concluir, por isso, que uma invalidará a outra, haja vista que não há precedência absoluta de nenhuma delas. Para o autor, essa precedência somente pode ser avaliada à luz das circunstâncias fáticas, sendo as condições sob as quais um princípio tem preferência em face de outro constituem o suporte fático de uma regra que expressa a consequência jurídica do princípio que tem precedência. (ALEXY, 2008, p. 99-101).
Desta forma, não se pode olvidar o afastamento do direito à liberdade de expressão e de imprensa, em todos os casos, ao argumento de que houve uma violação ao direito à privacidade em sua forma genérica. Pelo contrário, o esvaziamento de um deles só é autorizado quando isto for necessário à justa resolução do conflito.
Assim, deverá a liberdade de expressão e de imprensa, ser exercida com base na verdade, na boa-fé, com a divulgação de fatos de interesse público, conforme os limites legais, de modo que, uma vez transpostos, abre-se ensejo tanto à postulação do impedimento do exercício abusivo, quanto ao pedido de indenização em virtude dos danos eventualmente causados.
Podem, portanto, limitar a transmissão ao vivo, pela televisão, de audiências e outros atos processuais, para proteção do direito à privacidade, bem como para resguardar a integridade e imparcialidade do Poder Judiciário, como nos casos de julgamento que ocorrem no Tribunal Popular.
Consequentemente, entende-se que um direito fundamental, como o da liberdade de expressão e o de imprensa, deve ser exercido em função da realização do ser humano, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, que é consagrado como postulado essencial de todo o ordenamento jurídico, ressaltando que a técnica da ponderação deve se dirigir à afirmação e à concretização dos valores nucleares dos direitos fundamentais. Uma vez restringido, suprimido ou interpretado em mau sentido, no caso concreto, o direito à privacidade, competirá ao julgador, por exemplo, adotar uma ordem com conteúdo negativo, impedindo a continuação, a repetição ou a divulgação, de uma notícia. Nada impede, porém, que se ordene uma conduta positiva, tal como a alteração do conteúdo da notícia durante as próximas transmissões.
Feitas as ponderações referentes ao conflito do direito à privacidade e a liberdade de expressão e imprensa, no capítulo seguinte, será examinada a influência exercida pelos meios de comunicação social na produção legislativa penal e processual penal, bem assim verificar a influência midiática nos casos concretos no que concerne a decisão dos jurados que compõe o Conselho de Sentença.
5. A MÍDIA E O TRIBUNAL DO JÚRI
A questão da popularização de diversos programas com tendência criminológica pelos órgãos da mídia acarreta efeitos nefastos frente à concretização de um julgamento “imparcial/justo” aos supostos acusados pela prática de um crime doloso contra a vida, uma vez que tais crimes são de competência do Tribunal do Júri.
A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, inciso LIII assevera que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Ocorre que, com a divulgação de prejulgamentos feitos pelos meios de comunicação, não vinculados aos autos do processo, verifica-se através do texto constitucional, um conflito entre a liberdade de expressão, de um lado, e o devido processo legal, de outro.
Neste contexto, evidencia-se que a mídia e o Poder Judiciário realizam seus trabalhos com atitudes bem distintas. Àquela busca sempre propagar a notícia o mais ligeiramente possível, sem se ater a um debate mais amadurecido sobre os temas tratados, haja vista que, para a mesma, o fundamental é a repercussão dos fatos no momento em que estes estão acontecendo. Este por sua vez, necessita de um lapso maior para apurar a notícia, de forma que objetiva confrontar os fatos, argumentos e reflexões sobre tais notícias, sendo que o decurso do tempo é essencial para a construção da verdade.
De conseguinte, verifica-se que a mídia possui um grande papel de influência frente aos cidadãos. Atualmente, com a consolidação da indústria da cultura e comunicação, a mídia deixa ser coadjuvante para se tornar protagonista, entendida como potencial responsável pela formação de opinião pública, tendo em vista que grande parcela da sociedade dela depende para tomar suas decisões diárias.
Diante desta constatação, este capítulo delineará a respeito da forma como os meios de comunicação veiculam fatos criminosos, com um sensacionalismo exacerbado, objetivando somente chocar e influenciar a opinião pública, lastreada ao interesse da “audiência”, de forma subjetiva, sem que haja maior preocupação com a realidade, em contrapartida a seu papel de informar objetivamente, imparcialmente, o que afronta os princípios consagrados na Constituição Federal.
5.1 A influência da mídia na legislação penal
A mídia no ápice de sua propagação de notícias de conteúdo criminal, sob o viés sensacionalista, cada vez mais vem galgando seu espaço como uma nova espécie de legisladora penal. Nesta esteira, a mídia ao desempenhar seu papel de formar opinião e proporcionar o acesso a informação, divulgando de forma excessiva, diuturnamente, os casos criminais célebres, de forma espetacularizada através de seus meios de comunicação (emissoras de rádio, jornais, revistas, os veículos televisivos e a internet), acaba por provocar, muitas vezes, imediatas modificações na produção legislativa penal brasileira.
É certo que a mídia desempenha uma função curial na sociedade, quando torna acessível as mais diversas informações através dos diversos veículos de comunicação de massa existentes, dando ciência a toda população, a respeito das notícias quase em tempo real.
Há que se ponderar ainda, que tal influência midiática na elaboração de leis deve ser examinada com o devido cuidado, vez que há casos em que ela é quem revela nos noticiários, situações não lembradas pelo legislador, e sendo assim, desempenha um papel relevante, concernente na fiscalização e como porta voz da sociedade, que sem a sua ajuda, não teria meios para cobrar providências.
O problema ocorre quando a mídia, difunde suas informações à sociedade com adaptações, seleções, acréscimos ou supressões, de forma a prevalecer, não somente a finalidade de informar a realidade dos fatos, acima de qualquer interesse.
Neste sentido, é possível constatar que o chamado “realismo” na transmissão das informações pela mídia, é uma utopia, revelando-se na prática, um jogo de interesses. O caso do Poder Legislativo pode servir como exemplo, pois este, é constantemente influenciado a criar ou modificar leis, tendo em vista que a mídia propaga informações tendenciosas para a sociedade que, comovida com o sensacionalismo divulgado, cobra atitudes, como se a criação de leis mais severas, solucionassem o problema da violência e da criminalidade que envolve toda a sociedade brasileira.
A respeito do assunto Zaffaroni destaca que:
Isso está acontecendo em todo o mundo. Essa prática destruiu os Códigos Penais. Nesta política de espetáculo, o político precisa se projetar na televisão. A ideia é: “se sair na televisão, não tem problema, pode matar mais”. Vai conseguir cinco minutos na televisão, porque quanto mais absurdo é um projeto ou uma lei penal, mais espaço na mídia ele tem. No dia seguinte, o espetáculo acabou. Mas a lei fica. O Código Penal é um instrumento para fazer sentenças. O político pode achar que o Código Penal é um instrumento para enviar mensagens e propaganda política, mas quando isso acontece fazemos sentenças com um monte de telegramas velhos, usados e motivados por fatos que estão totalmente esquecidos, originários deste mundo midiático. Ao mesmo tempo, a construção da realidade paranóica não é ingênua, inocente ou inofensiva. É uma construção que sempre oculta outra realidade. (ZAFFARONI, 2009, p. 3).
Seguindo o mesmo trilho, Luiz Flávio Gomes destaca que:
Em inúmeros casos, o legislador, levado pela urgência e pelo ineditismo das novas situações, não encontra outra resposta que não a conjuntural reacão emocional legislativa, que tende a ser de natureza penal. Invoca-se o direito penal como instrumento para soluções de problemas, mas se sabe que seu uso recorrente não soluciona coisa alguma. Nisso reside o simbolismo penal. (GOMES, 2009, p. 2).
Assim, a produção legislativa, acaba por se transformar em símbolos de um fim ilustrativamente desenvolvido e apresentado, que servirão para a preservação de interesses políticos e econômicos, dentro de um mecanismo circular de fomentação de poder. Em epítome, aquilo que parece ser, na maioria das vezes em nada é. Diante dessa considerações, vislumbra-se que o Direito Penal na atualidade, vive sobre a penumbra de uma ilustrativa emergência, excelente para os representantes do povo no Poder Legislativo, no sentido de se promoverem a reeleição, até que não se encontrem no seio do seleto grupo das vítimas da violência que assola o país, angariada pela globalização sob a ótica do crime organizado, bem como pela crise de desconfiança, com relação a legitimidade moral de nossos governantes.
Por tais razões, é que a mídia já fora chamada de “QUARTO PODER5”, uma vez que se investe das funções atribuídas pelo constituinte originário aos demais poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário), de tal forma que, no caso do direito penal e processual penal, realiza investigações, denúncias, acusações, profere condenações e impõe execuções antecipadamente à realização de todo o iter processual, transformando-se em uma espécie de condutora das massas e ditadora de normas, em virtude da sua notável influência no tecido social.
Com efeito, pode-se afirmar categoricamente, que a influência midiática no processo de elaboração legislativa, especialmente no âmbito criminal, é escancaradamente visível em nosso país.
Durante vários momentos históricos, nota-se que uma determinada lei despontou-se sob o viés de solucionar um certo conflito social, no entanto, sua aplicação acabava por resultar no fracasso em seus resultados ou desvirtuava a sua finalidade originária, sendo, em todos os casos, propositadamente elaborada com esse objetivo.
No afã de dar uma resposta rápida a sociedade, várias leis foram criadas, com base no apelo referenciado pela mídia, sendo algumas destas leis mal elaboradas e com pouca empregabilidade. A este respeito pontifica Oacir Mascarenhas:
A título exemplificativo, na história mais recente, os casos Doka Street e Ângela Diniz, Daniela Perez, Roberto Medina, Abílio Diniz, a Chacina de Diadema, o assassinato dos jovens Liana Friendbach e Felipe Caffé, a morte da missionária norte-americana Dorothy Stang, além das incursões criminosas dos presos midiáticos Beira-Mar e Marcola, comprovam como a pressão da mídia fez com que os legisladores modificassem velozmente a lei penal. (MASCERENHAS, 2010, p. 3).
Neste aspecto é imperioso uma maior atenção à divulgação sensacionalista de alguns crimes nos nos meios de comunicação, uma vez, que essa exploração demasiada pela mídia poderá ocasionar a criação de novas leis ou alterar as já existentes.
Note-se que a produção legislativa penal brasileira caminha concomitantemente às pressões exercidas pelos meios de comunicação em massa.
Contudo, toda essa produção não vem sendo seguida de avanços positivos, posto que o legislador adota uma postura imediatista, tentando ceder aos apelos da mídia. Nesse norte, emerge uma guerra comunicacional que causa vários prejuízos aos profissionais do direito que se deparam com leis espalhafatosas, produzidas diante do clamor popular ensejado por casos criminais célebres. (MASCARENHAS, 2010, p. 15).
Vários são os exemplos de crimes divulgados pela mídia do fenômeno acima narrado, mas alguns, pela singularidade em que foram praticados, ou pela proporção que geraram, ficam marcados na história da população. No presente trabalho, separa-se três destes para que se possa analisar tal fenômeno. Em primeiro lugar, destaca-se a Lei nº. 8.072/90, que foi produto de uma constante pressão midiática diante da criminalidade nos meios urbanos, sendo aprovada no Senado após 34 dias da data de apresentação do projeto, e após 02 dias a Câmara aprovou um substitutivo a respeito. O ilustre episódio criminal que deu causa à promulgação desta lei foi o sequestro do empresário Abílio Diniz, ocorrido em 1989, bem como o sequestro do também empresário Roberto Medina. Já havia uma movimentação na casa legislativa a fim promulgar uma lei que regulasse o dispositivo da Constituição referente à hediondez dos crimes. Entretanto, após a ocorrência dos aludidos crimes, os trabalhos foram ligeiramente acelerados. Há que se esclarecer que até o momento o delito de extorsão mediante sequestro não estava inserido no rol dos crimes que seriam considerados hediondos. Ocorre que, por uma arquitetada atuação dos veículos de comunicação antes e depois de o empresário Abílio Diniz ser libertado, bem assim a ânsia de atender aos reclamos da camada mais rica da população, associada com as ondas de criminalidade urbana, que gerava um sentimento de pânico e insegurança, culminaram na promulgação da Lei nº. 8.072/90. (MASCARENHAS, 2010, p. 16-17).
Um outro caso que foi veiculado em todos os meios de comunicação, e que chocou a sociedade da época e que até os tempos atuais é recordado, refere-se ao assassinato da atriz Daniela Perez, no dia 28/12/1992, por seu colega de trabalho, o também ator Guilherme de Pádua e sua mulher, Paula Thomaz, com dezoito golpes de tesoura e o uso de uma chave de fenda. No dia 29/01/1997, depois de ocorrido o julgamento do acusado, os noticiários já informavam que o acusado já era um condenado antes de sentar no banco dos réus. A jovem atriz faleceu com 22 anos de idade, no auge de sua carreira, sendo que sua mãe era conhecida no meio artístico, por tratar-se de uma escritora de novela, gerando um intenso furor e comoção popular, ocupando por anos, um longo espaço de tempo das manchetes jornalísticas em relação ao caso. Foi nesse contexto, que a genitora da vítima colheu 1,3 milhões de assinaturas para a aprovação de um projeto de lei com o objetivo de incluir o homicídio qualificado no rol dos crimes hediondos, o que foi positivado através da Lei 8.930/94. (SOUZA E FERREIRA, 2012, p. 371).
Por último, examina-se o caso ocorrido em meados do ano de 1998, novamente no azo dos meios de comunicação de massa e do legislador em “hediondizar” os crimes, diante de um famoso caso de falsificação de remédios, a “pílula falsa” (ganhou notoriedade o caso do anticoncepcional Microvlar, que continha farinha, o que não evitou a gravidez de incontáveis mulheres); sendo promulgada a Lei nº. 9695, de 20 de Agosto de 1998, acrescendo o inciso VII-B ao artigo 1º da Lei 8.072/90. Esse constitui um exemplo marcante não só de direito penal midiático como, sobretudo, eleitoreiro. O legislador pátrio, sob a influência do “escândalo dos remédios falsos”, não pensou duas vezes em reagir energicamente à conduta, elaborando, inicialmente a Lei nº. 9.677/98, para alterar o marco penal de diversas condutas relacionadas com ao tema da falsificação de remédio, que agora é sancionada, no mínimo, com dez anos de reclusão. Através do mesmo diploma legal, outras condutas não tão graves, como a falsificação de creme para alisar o cabelo, passaram a receber a mesma punição. Depois, publicou-se a Lei nº. 9.695/98, que fora aprovada em 48 horas, para transformar diversos desses delitos em “hediondos”. (LUIZ FLÁVIO GOMES, 2007, p. 2).
Não obstante a criação de tais diplomas legislativos, o que se verifica atualmente é que, na ânsia da mídia e do legislador em “hediondizar” os crimes, algumas consequências desatrosas foram ocasionadas. A uma, que os índices criminais não reduziram e nem se desestabilizaram. A duas, que tais leis acarretaram a superpopulação carcerária. Enfim, o que se percebe é uma perfeita precipitação do legislador na criação/alteração de leis, a fim de entregar uma resposta instantânea ao discurso dos meios de comunicação e da sociedade brasileira, tendo como resultado a ineficácia, eis que não produz as consequências pretendidas pela população.
Com relação a movimentação realizada pela mídia em face de casos criminais célebres Yabiku salienta:
Esses anseios – muitas vezes, não pautados pela racionalidade, mas pelas paixões do momento – têm poder de mobilização fortíssimo. A violência e a ameaça de ser vítima dela são motivos muito fortes, ainda mais com a dramatização proposta pelos meios de comunicação social. O medo da morte violenta e da ação dos delinquentes, que não respeitam as Leis e as convenções sociais, exige uma resposta, mesmo que seja simbólica e ilusória para subsidiar os populares de alguma sensação de segurança. Ainda que esse anseio por uma sensação de segurança tenha como resposta uma legislação rígida e mal-formulada, passível de manipulação político-eleitoral. O resultado é a fomentação de uma política criminal de recrudescimento do Direito Penal e do Direito Processual Penal, como se pode observar. (YABIKU, 2006, p. 4).
Do exposto, nota-se que na contemporaneidade, o medo da violência e dos “riscos” representados pelas novas formas assumidas pela criminalidade no contexto da globalização, concebidos em “mercadoria” pelos veículos de comunicação, provocam um sentimento geral e cotidiano de insegurança, que acaba por exercer forte influência no processo de criação ou alteração das regras penais, tranquilizando a sociedade em face dos perigos, por um lado, e restabelecendo a confiança no papel das instituições e na capacidade do Estado em combatê-los, por outro. Em resumo, não se almejam medidas eficientes no controle da criminalidade, mas sim medidas que “pareçam” eficientes e que, por isso, tranquilizam. (CALLEGARI E WERMUTH, 2009, p. 74). De outro lado, não se pode esquecer que a quantificação das penas destinadas a determinados delitos, não guarda a devida proporção com a lesão do bem jurídico tutelado pelo Direito, sendo certo que em alguns casos, o legislador quantifica com penas desproporcionais condutas que não atingem bens jurídicos importantes.
Assim, o que se nota é um típico modelo de Direito Penal simbólico. O legislador, na busca incessante de alcançar seus interesses eleitorais a curto prazo, deixa de olhar atentamente aos dois principais pilares de racionalidade que devem orientar o processo de elaboração de uma lei penal, quais sejam, os princípios e a efetividade. No que pertine aos princípios, cada vez mais se verifica a violação à proporcionalidade, que implica na obrigação de se ponderar a gravidade da conduta, o bem jurídico protegido e a conseqüência jurídica gerada pela transgressão da lei.
No que diz respeito à questão da efetividade, constata-se que essa noção vem sendo suplantada pela noção de eficiência, de tal forma que deixa-se de contrastar os fins perseguidos com os objetivos cumpridos, para que se busque do fim por qualquer meio, valendo-se da construção de imagens e ideologias, por exemplo. Este modelo de intervenção punitiva do Estado vai frontalmente de encontro ao estabelecido pela Carta Política vigente, o qual se exprime através de um Direito Penal mínimo balizado em um modelo integral de Política Criminal que preserve os direitos e garantias fundamentais, preocupada também com a vigência de uma política de desenvolvimento social e proteção integral dos direitos humanos, de forma a conter a violência estrutural e a desigualdade, de forma a permitir o desenvolvimento humano.
5. 2 A midiatização do delito verificada em casos concretos
Além do efeito nefasto da propagação massiva de informações relacionadas ao crime e ao criminoso, pelos órgãos da mídia, que culminam com alguma produção ou alteração legislativa penal, caracterizada por um modelo de Direito Penal simbólico, os meios de comunicação de massa, também, de maneira direta têm se apossado das atribuições do Poder Judiciário. É certo que incumbe a este julgar e condenar o eventual acusado, haja vista ser o dententor legítimo da função, de tal maneira que não é possível que qualquer outra função do Estado ou entidade empreender na atividade judicante.
Luciano Feldens com a sapiência que lhe é peculiar afirma que:
O poder punitivo está dentre os deveres estatais sobre os quais recei o monopólio da jurisdição. No exercício desse monopólio, a União estruturou competências orgânicas constitucionais para a solução dos casos penais é do Poder Judiciário, considerando, ainda como função essencial à Justiça, o Ministério Público da União e dos Estados (art. 127 da CF/88) e a Advocacia/Defensoria Pública (art. 133 e 134 da CF/88). (FELDENS, 2007, p. 71).
Inobstante tais ponderações, estas funções vem sendo intentadas pelos veículos de comunicação. Em termos gerais, o repórter toma para si a função própria de um Promotor, e sem a presença da defesa, passa a expor o suspeito de um delito em rede nacional, investigando (e porque não dizer, denunciando, condenando e executando a sentença) minunciosamente o caso da forma como queira, o que acaba por ferir frontalmente o direito de defesa e contraditório do acusado.
Sem embargos, pode-se afirmar que tal postura já fez diversas vítimas no país, as quais arcarão com os efeitos e máculas de suas honras em razão da postura verdadeiramente irresponsável da mídia. No ano de 1994, mais precisamente no mês de março, na cidade de São Paulo, grande parte da imprensa divulgou, ostensivamente, várias reportagens a respeito de seis pessoas proprietários de uma escola, acusadas de abuso sexual de crianças da instituição.
De acordo com os responsáveis das supostas vítimas, os abusos eram praticados e filmados. Na época, o delegado responsável pelo caso, baseado em laudos preliminares, decretou a prisão preventiva dos suspeitos e forneceu informações à imprensa que as publicou amplamente. O estabelecimento de ensino foi saqueado e depredado por populares. (ALVES FERREIRA E SOUZA, 2012, p. 372).
Segundo ainda os citados autores, posteriomente, o inquérito foi arquivado por falta de provas, e até os dias atuais os acusados travam uma batalha no Poder Judiciário por indenizações. A Rede Globo, por exemplo, fora condenada ao pagamento de indenização a alguns dos proprietários da escola, porém, recorreu da decisão. O referente episódio ficara conhecido, nacionalmente, como o famoso Caso Escola de Base. (ALVES FERREIRA E SOUZA, 2012, p. 373).
Deste modo, basta que se verifique a força exercida pela mídia para divulgar imagens e expor apenas umas das versões sobre o fato, para se notar as severas e permanentes consequências advindas aos suspeitos de uma prática delitiva, que têm suas vidas destruídas. O que se percebe é que em razão de uma política informativa de forma descompromissada e extravagante, acaba por aniquilar carreiras e instituições que dificilmente recuperarão sua integridade perante à sociedade.
É oportuno dizer ainda que se constata uma total violação do princípio da presunção de inocência, que ocorre simplesmente, quando o sujeito, inocente ou não, já é presumido culpado por força de mera especulação midiática. Joga-se “para o ar” o postulado segundo o qual, “um homem não pode ser chamado de culpado antes da sentença do juiz...” (BECCARIA, 2009, p. 66). Neste diapasão, despreza-se que a competência para decidir acerca da culpabilidade ou não de algum ser humano cabe ao Poder Judiciário.
Não existem, assim, no espetáculo midiático, dúvidas acerca do delito, circunstâncias e autoria, vez que estas são transformadas em certeza. O possível autor do fato se coloca na condição de culpado e julgado pela opinião pública que impõe sobre o mesmo a devida condenação. Vê-se, deste modo, que a imprensa condena o suposto autor do delito antes mesmo que este tenha direito à defesa, constituindo-se o princípio da presunção de inocência, assim, possivelmente, o princípio mais violado nesse cenário pela mídia.
No mesmo sentido, denotando certo caráter monotemático dos veículos informativos e uma certa neurose, o assunto em voga por vários semanas na imprensa em março de 2008, assim como, no início de 2010, no período da plenária do júri, fora o conhecido caso Isabella Nardoni, em que esta, com apenas 05 anos de idade, fora morta, após ser jogada do sexto andar do prédio de seu genitor.
Durante os períodos referidos, a população brasileira esqueceu-se de uma infinidade de problemas que arruínam o país e dedicaram-se a viver o lamentável episódio, através de reportagens sensacionalistas, de exploração da miséria a que o ser humano é capaz e que sem sombras de dúvidas afrontaram diretamente à privacidade de dois indivíduos, Alexandre Nardoni (pai de Isabella) e Ana Carolina Jatobá (madrasta de Isabella), os quais inicialmente sequer haviam sido formalmente acusados. (ALVES FERREIRA E SOUZA, 2012, p. 377).
O que se observou fora um sensacionalismo extremado, em razão da comoção popular em torno de uma criança, que se articulou com diversos fatores existentes ao longo do trâmite do processo penal. Dentre estes fatores, cita Fábio Martins de Andrade (2009, p. 2), a separação maniqueísta das pessoas envolvidas, o estereótipo da categoria “bandida”, as distorções da realidade, a penetração da ideologia do medo na sociedade, o uso da palavra (des)necessária e o silêncio da palavra necessária, dentre outros.
Diversos são outros casos criminais, como o acima noticiado, tais como o de Suzane Von Richthofen (que juntamente com os irmãos Daniel e Cristian Cravinhos de Paula e Silva fora condenada a 39 anos de reclusão em regime fechado e seis meses de detenção no semiaberto, além de multa, em 2006, pelas mortes ocorridas em 2002 de seus pais, o engenheiro Manfred e a psiquiatra Marísia), o de Gil Rugai (recentemente condenado pelo Tribunal do Júri a 33 anos e 9 meses em regime fechado pelo assassinato de seu pai, Luis Rugai, e de sua madrasta, Alessandra Troitino, ocorrido em março de 2004), como também o de Mizael Bispo (recentemente condenado a 20 anos de prisão pelo assassinato da ex-namorada, a advogada Mércia Nakashima, ocorrido em 23 de maio de 2010), o do empresário Marcos Kitano Matsunaga (diretor executivo da Yoki, uma gigante do setor de alimentos, que foi morto e esquartejado pela própria mulher, a bacharel em direto Elize Kitano Matsunaga em maio de 2012), e o Caso do goleiro Bruno, condenado pela morte da sua ex-amante, a modelo e atriz pornô Eliza Samúdio, que será objeto de análise no capítulo seguinte.
Em razão da força incitada pelos veículos informativos, gerou-se uma intolerância social a nível nacional, com direito a pessoas nas ruas protestando, e até mesmo agressão, por populares, ao advogado de defesa, quando da realização da segunda fase do procedimento do júri. Assinala-se ainda que, logo após a prolatação da sentença de condenação dos réus, seguiram-se fogos de artifício em frente ao Fórum de Santana, em São Paulo e subsequentemente, helicópteros das grandes redes televisivas, seguiram ao vivo o trajeto dos veículos que transportavam os detentos às respectivas unidades prisionais. (ALVES FERREIRA E SOUZA, 2012, p. 377).
Verifica-se, então, por meio dos casos acima relembrados, que há um processo paralelo ao trâmite legal do Poder Judiciário, que não permite o contraditório e a ampla defesa, sendo parcial, presumindo a culpa de eventual acusado, que ao final, no caso dos crimes dolosos conta a vida, se ocorrer a pronúncia do acusado, este vê-se antecipadamente condenado pela opinião pública. E, mais, sob a ótica puramente empresarial dos órgãos da mídia, tais casos são excelentes, dado que lucrativos (como empresas privadas que são, submetidas ao regime de concessão), posto que as notícias se retroalimentam e se reinventam a cada novidade.
Ademais, este prejulgamento desenvolvido pela mídia em cada caso, pode levar a erros judiciários em que a busca pela verdade foi soterrada quando da exposição demasiada dos operadores jurídicos ao fascinante poder exercido pela mídia.
Sobre o tema, adverte Evaristo de Morais que:
Repórteres e redatores de jornais, iludidos pelas primeiras aparências, no atabalhoamento da vida jornalística, cometem gravíssimas injustiças, lavram a priori sentenças de condenação ou absolvição, pesam na opinião pública e têm grande responsabilidade pelos veredictos (MORAIS, 2005, p. 19).
Este tipo de exploração da mídia demonstra o quão pode ser nociva a liberdade de expressão e de imprensa dos veículos de comunicação, haja vista que condiciona a condenação do acusado frente a um possível júri, tendendo a injetar o convencimento do magistrado na sentença.
Faz-se necessário que a sociedade em geral repudie toda forma de manifestação dos meios de comunicação que tendem a usurpar a função do Poder Judiciário e que transgridam os direitos fundamentais, como forma de antecipar a aplicação de pena que se quer sabe ser devida, para que se possa por fim a esta prática.
Em outas palavras: imprescindível é que o cidadão conserve senso crítico e reflexivo no momento em que a mídia explore os fatos violentos como produto, pois, desta forma, não havendo reciprocidade entre o consumidor e o fornecedor do espetáculo (mídia), caberá a este último criar um novo produto.
5. 3 A influência da mídia nas decisões dos jurados e seus efeitos
Na atualidade, vivenciamos em uma sociedade em que diversas situações fáticas são passíveis de sofrerem influência midiática, principalmente, quando se refere a julgamento pelo Tribunal do Júri. Podemos afirmar que os órgãos midiáticos exercem, constatemente, influência nas decisões proferidas pelos Conselho de Sentença, uma vez que, com a consolidação da indústria da cultura e comunicação, a mídia deixa ser coadjuvante para se tornar protagonista, entendida como potencial responsável pela informação e pela formação de opinião pública, tendo em vista que grande parcela da sociedade dela depende para ter conhecimento dos fatos e também para tomar suas decisões diárias. (CUNHA, 2012, p. 203).
Nesse sentido, é elevado o risco de um veredicto sustentado pela mídia, levando-se em conta, que o juiz leigo irá decidir por íntima convicção, não lhe sendo exigida a fundamentação, agindo o mesmo de acordo com sua liberdade de consciência, logo não se obrigam às provas do processo, à verdade obtida na instrução contraditória da sessão plenária.
A instituição do Júri é composta por julgadores do povo, em grande parte, não possuem conhecimento técnico, sendo pessoas comuns que sensibilizadas com fatos que ocorrem cotidianamente, mormente com o aumento da criminalidade e falta de segurança pública, possuem opiniões pré-definidas, muitas vezes incutidas pela mídia, e inúmeros preconceitos.
Corroborando a respeito do tema, Ana Lúcia Menezes Vieira assim manifesta:
(...) o jurado é mais permeável à opinião pública, à comoção, que se criou em torno do caso em julgamento, do que os juízes togados e, por sentirem-se pressionados pela campanha criada na imprensa, correm o risco de se afastarem do dever de imparcialidade e acabam julgando de acordo com o que foi difundido na mídia.(VIEIRA, 2003, p. 246).
Nesses casos, em que o julgamento é realizado pelo Tribunal Popular, a divulgação de pré-concepções, não vinculadas aos autos do processo, fortemente são possíveis de serem impregnadas no entendimento dos jurados que integram o corpo de jurados, de forma a manipular o julgamento a partir de critérios midiáticos e não jurídicos.
Infelizmente, a publicidade dos atos processuais pelos veículos de comunicação de massa, nem sempre se limita à transmissão de forma objetiva, uma vez que a mídia consegue “traduzir” a linguagem da Justiça, de tal forma que permite que a mesma transforme os acontecimentos rotulados de criminosos em grandes espetáculos públicos, deixando-os mais atrativos e sensacionalistas, que acabam fazendo com que a opinião pública os acolham, seja para absolver ou condenar. (CUNHA, 2012, p. 204).
Diante de tal situação, torna-se impraticável, nesses casos de publicidade massiva do fato típico pela mídia, um pedido de deslocamento do julgamento de uma comarca para outra a fim de assegurar a imparcialidade dos jurados, o que na linguagem jurídica, se conhece por desaforamento, haja vista que inexiste localidade onde a mídia não exerça influência.
Como visto, a imprensa pode formar o convencimento daquele expectador que será mais tarde será membro do conselho de sentença. Ao fazer afirmações categóricas sobre a existência do crime, sua autoria, perversidade e necessidade de imposição de duras penas, a impressão trazida pela mídia, produz mais efeito do que as provas produzidas e levadas pelas partes ao plenário. (CUNHA, 2012, p. 220).
Para que se confirme o que fora exposto acima, basta que se verifique a força exercida pela mídia no conhecido caso “Bruno e Eliza Samúdio”. No dia 08/03/2013, o ex-jogador do Flamengo, que desde junho de 2010 passou a ser acusado de comandar o sequestro e a morte da jovem Eliza Samúdio, com quem teve um filho, foi condenado a 22 anos e três meses de prisão por quatro crimes, a saber, homicídio triplamente qualificado, ocultação de cadáver, sequestro e cárcere de Eliza e sequestro e cárcere de seu filho Bruninho. O corpo de Eliza até hoje não fora encontrado e o processo segue seu curso regular, uma vez que a defesa e a acusação interporam recurso em face da decisão da juíza de primeira instância. Os meios de comunicação divulgaram abundantemente os fatos que se desenrolaram no decorrer do inquérito policial e do processo. Além do mais, registre-se que entre o fato e o julgamento, a mídia constantemente divulgava notícias sobre o aludido fato, isto com o auxílio de pessoas que atuaram nas investigações. Tamanha foi a publicação deste episódio, que em pesquisa simples na qual se digitou as palavras “Caso goleiro Bruno” no sítio do Google, obteve-se em 10 de maio de 2013 nada menos que 1.600.000 resultados, dentre os quais constam vídeos, postagens em blogs, opiniões de especialistas, de leigos,e principalmente, notícias.
Os veículos da imprensa qualificaram Bruno como “um monstro” por ter cometido a infração penal. O jogador de futebol, deixou de ser lembrando pela mesma mídia que o vangloriava, como o ídolo e capitão do time do Flamengo, em curto prazo de dias, que passou a escrachá-lo de assassino.
Neste contexto, pergunta-se se haveria quaisquer chance ou já sentaria, o Goleiro Brubo, no banco dos réus aguardando tão-somente a realização dos procedimentos processuais penais, para que se conhecesse a quantidade da pena a ser imposta? Rogério Lauria Tucci citando o jurista Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça, em uma outra oportunidade, já realizara tal indagação, quando asseverou que:
(...) suponhamos que no júri dos supostos assassinos de Daniela Perez um ou dois mais réus fossem inocentes. Ele, ela, ou eles teriam alguma chance de absolvição, depois da operação de 'linchamento' montada pela mãe da vítima com o apoio da Rede Globo e de toda a mídia nacional? Claro que a resposta é negativa. (TUCCI, 1999, p. 42).
Pode-se afirmar, nesse quadrante, que a demasiada pressão da opinião pública e dos meios de comunicação, muitas vezes, com todo o aparato jornalístico (câmeras, filmadoras, repórteres e helicópteros), bem assim, as faixas, apitos e instrumentos na frente da porta do Fórum, seguramente contribuem para a quebra da idoneidade do julgamento. Com antecedência, jurados possuem sobre si todo a carga que comoveu à massa, durante a tramitação do processo, porém mais acirrada nos dias que antecedem o julgamento.
Sobre tal aspecto, essa influência da mídia em cima dos jurados que compõe o Conselho de Sentença, pode-se destacar o rompimento do direito ao devido processo legal e ao direito do contraditório e da ampla defesa, que são asegurados ao acusado em seu julgamento, o que na mídia, em sua grande maioria, não se vislumbra. Também, destaca-se o princípio da presunção de inocência, que é conferido até momento em que o acusado é tido como culpado antes do seu julgamento.
Há que se lembrar ainda que o art. 5º, inciso X, da CF/88, prevê que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. São características de um direito singular, ou seja, cada pessoa tem a sua intimidade, sua vida privada, sua honra e sua imagem a ser preservada. Tais direitos também devem ser observados quando o cidadão pratica um crime doloso contra a vida, ainda que esse crime atinja a sociedade de uma forma subjetiva. É nesse contexto, que a liberdade de imprensa mais uma vez encontra restrições, haja vista que a consequência de dano à pessoa que ainda está para ser julgada é, muitas vezes, inevitável.
A privacidade, por sua vez, não pode ser transgredida, baseada no direito à informação, quando esta não compõe o objetivo da conclusão de uma informação em busca de interesse econômico (o lucro), haja vista que a notícia, para a imprensa, é seu objeto de maior valia, tratado, verdadeiramente como negócio, absorvida em grande parte por vários interesses que escapam do fundamental, direito de informar.
Consequentemente, forçoso é se admitir que todo este excesso de emotividade e comoção social, alavancado pela mídia, os fatos narrados de forma teatral e espectularizada, às vezes ao arrepio das provas jungidas aos autos, a pressão da opinião pública, tudo isso influi decisivamente na atuação do jurado na sessão de julgamento, a tal ponto que, especialmente em casos de grande repercussão, seu veredicto já se encontra desenvolvido antes mesmo do sorteio de seu nome para compor o Conselho de Sentença, em detrimento do que ele possa ouvir ou ver durante a sessão.
É imprescindível, assim, que em havendo a colisão de direitos fundamentais, que se adote critérios de valoração, a fim de avaliar, no caso concreto os bens colidentes, para que se verifique qual bem deverá prevalecer. Logo, quando um bem individual sofrer uma lesão, um prejuízo que possa justificar a restrição de outro bem individual, este deverá prevalecer. Assim, em um caso concreto, deverá o magistrado, obstar o exercício do direito de liberdade de expressão, de forma a preservação do bem jurídico de maior relevo, para que as pessoas não tenham violados o direito à intimidade, à honra, à vida privada e a imagem, em face do princípio da presunção de inocência e do devido processo legal, tendo como norte a dignidade humana e como instrumento os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
6. CONCLUSÃO
Ao que se pôde verificar desde o início do nosso estudo, o julgamento por seus semelhantes, isto é, que o acusado seja julgado por pessoas de seu meio, já encontrava precedentes desde a remota época de Moisés, perpassando pela Grécia, Roma, Inglaterra e outros países, até chegar as feições que constituem o Tribunal do Júri na atualidade.
Diante das considerações até o momento expostas, frisamos que não houve intenção em desmerecer ou desprestigiar a instituição do Júri no Brasil, tendo em vista que um de nossos objetivos neste trabalho foi o de declarar a importância da instituição como garantia fundamental que se perfaz e o contexto pelo qual se desenvolveu.
A pesquisa demonstrou que fortes indícios manifestos por casos criminais verídicos designam a mídia como decisiva influenciadora da convicção dos julgadores leigos e reveladora sensacionalista da “barbárie” dos fatos e das condições do suposto autor do crime, desde a fase investigatória, até o momento do julgamento em plenário.
Seguindo estas considerações buscou-se revelar que a imprensa tomou para si o tema da criminalidade, como produto que se expõe nas prateleiras de um supermercado, a fim de “informar” subjetivamente a sociedade a realidade dos acontecimentos fáticos de uma ação delitiva, acabando por destruir reputações, pessoas, famílias ou grupos de pessoas que podem, na verdade, nada ter a ver com o fato.
Como instrumento garantista que visa impedir que pessoas fossem julgadas de qualquer forma sem o devido direito a defesa, sem direito a uma acusação desimpedida e razoável e a um julgamento justo, atento ao devido processo legal, foi que princípios, como o da legalidade, da presunção de inocência, o da ampla defesa, do contraditório e da dignidade da pessoa humana, foram consagrados no cenário jurídico-constitucional.
Podemos entender o júri, na sua atual configuração, como uma instituição de caráter educativo onde a participação popular, auxilia os trabalhos do Poder Judiciário, consubstanciando numa democracia em que o povo exerce diretamente o poder conferido pelo Estado ao juiz togado. Retrata o Júri, assim, uma das formas pelas quais as pessoas que integram a sociedade tem acesso a informações sobre a legalidade e diminui a distância entre o poder do Estado, exercido através do Juiz togado e as pessoas do povo.
Constata-se ainda que a mídia vem cooperando para a legitimação do sistema penal ao veicular valores que almejam apartar certos fragmentos populacionais, bem assim incutir no pensamento das pessoas o aumento da repressão penal. Aliado a tudo isso, os veículos de comunicação social também possuem a função de enaltecer os sentimentos de medo e insegurança que relegitimam o sistema penal, haja vista que propagam discursos que incitam à punição, que faz com que se aniquile os direitos e garantias fundamentais de suspeitos, acusados e condenados.
Como pôde ser observado, o legislador pressionado não resiste e acaba por criar novas e, na maioria das vezes, desnecessárias leis. Invoca-se o direito penal como instrumento para soluções de problemas, mas sabe-se que seu uso recorrente não soluciona coisa alguma.
Verificou-se ainda que no ordenamento jurídico brasileiro não há direito absoluto que se sobreponha aos demais de maneira incondicionada, tendo em vista que os direitos constitucionalmente reconhecidos, como à liberdade de expressão e de imprensa e o direito à privacidade, não possuem seus limites delineados de forma precisa, logo entram constantemente em colisão.
A fim de dar resolução ao conflito entre os direitos, serão usados critérios de valoração de forma cuidadosa, para avaliar, no caso concreto, os bens em colisão, de tal forma que não deixe espaços ao puro arbítrio do aplicador.
Assim, quando um direito individual puder sofrer prejuízo que justifique a limitação da liberdade de imprensa, este direito deve prevalecer. Logo, a tutela do direito de informar pelos meios de comunicação social e das pesssoas de serem informadas, deverá ceder espaço, tendo como norte a dignidade da pessoa humana.
Consequentemente, a trajetória da justiça é a observância da equidade. Esta por sua vez, quando respeitada assegura à dignidade da pessoa humana. Quando o ser humano é respeitado em sua essência, respeitada está a sociedade e todos os demais valores a ela intrínsecos instituídos como direitos fundamentais no art. 1.º da Carta Política 1988, vez que todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido. Havendo respeito ao indivíduo, respeita-se a sociedade.
Para que se quebre o paradigma das manifestações midiáticas que explorem os fatos violentos como produto, é imprescindível que não mais exista reciprocidade entre o consumidor (sociedade em geral) e toda a espectularização (o circo) armada pela mídia. Do contrário, perdurará o “endeusamento” dos meios de comunicação social que apregoam a todos que o veneram, a forma de pensar os males que acometem a sociedade.
NOTAS
[1]Cidadãos que detinham direitos civis, jurídicos e políticos.
[2] A respeito do tema OLIVEIRA: “Enquanto na emendatio a definição jurídica refere-se unicamente à classificação dada ao fato, aqui, na mutatio libelli, a nova definição será do próprio fato. Não se altera simplesmente a capitulação feita na inicial, mas a própria imputação do fato”. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal: Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011. p. 578.
[3]Vale a transcrição de valiosa lição de NUCCI: “Havendo impronúncia, é possível a instauração de novo processo, desde que a punibilidade do réu não esteja extinta (se houver, por exemplo, prescrição) e surgindo provas substancialmente novas, isto é, provas não conhecidas anteriormente, nem passíveis de descobrimento pelo Estado-investigação, porque ocultas ou ainda inexistentes. Ex.: surge a arma do crime, até então desaparecida, contendo a impressão digital do acusado”. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. São Paulo: RT, 2012. p. 748.
[4]Interessante os ensinamentos de Ada Pellegrini Grinover: “Assim sendo, o contraditório não se identifica com a igualdade estática, puramente formal, das partes no processo; não exprime a simples exigência de que os sujeitos possam agir em plano de paridade; nem determina ao juiz o mero dever de levar em conta a atividade de ambos, permitindo que façam ou deixem de fazer alguma coisa. O contraditório, com contraposição dialética paritária e forma organizada de cooperação no processo, constitui o resultado da moderna concepção da relação jurídica processual, da qual emerge o conceito de par condicio, ou da igualdade de armas (princípio equilíbrio de situações)”. GRINOVER, Ada Pellegrini. As Garantias Constitucionais do Processo. In: Novas Tendências do Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 6-7.
[5] Não há um consenso entre os estudiosos da comunicação acerca da primeira vez em que foi atribuída a denominação “Quarto Poder” aos veículos de comunicação. Fábio Martins de Andrade, citando Daniel Cornu relata que “foi sob a influência do pensamento liberal e da reflexão sobre a separação dos poderes que nasceu, para qualificar o papel da imprensa, a expressão hoje aviltada de ‘quarto poder’. A sua atribuição é incerta. Thomas Carlyle atribuiu a sua paternidade a Edmund Burke, mas ninguém encontrou vestígios da mesma na sua obra impressa. Seja como for, a propagação das idéias liberais abre uma era de tensão intensa entre a esfera do poder e a esfera pública, doravante ocupada por uma imprensa com meios mais poderosos e uma audiência mais vasta” (Jornalismo e Verdade, pp. 176-177).” ANDRADE, Fábio Martins de. Mídia e poder judiciário: a influência dos órgãos da mídia no processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 78.
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