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Função estética da paisagem urbana:

o direito fundamental à beleza paisagística

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Agenda 20/05/2014 às 16:25

É impositivo que a paisagem urbana, microbem ambiental, seja reconhecida com a peculiar proteção e robustez jurídica própria dos direitos fundamentais, dotados de posição de supremacia entre as normas constitucionais.

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo precípuo analisar a função estética da paisagem urbana como valor essencial para a qualidade de vida almejada pelo texto constitucional e, por conseguinte, digna de ser reconhecida como verdadeiro direito fundamental, corolário do direito à vida e do princípio da dignidade da pessoa humana. Para tanto, utilizou-se o método dedutivo, uma vez que foram estudadas a doutrina, as leis e a jurisprudência para se chegar à conclusão. Recorreu-se ao pensamento de juristas ambientais, ecologistas, autores da filosofia e da sociologia do direito e do constitucionalismo brasileiro, com o intuito de mostrar a relevância da beleza paisagística para a qualidade de vida da coletividade, considerando os benefícios que o desfrute do belo traz para a saúde mental e espiritual do ser humano. Assim, o trabalho se inicia a partir da contemplação do direito enquanto fenômeno social e da característica da historicidade dos direitos fundamentais, segundo a qual a sociedade elege, em cada contexto histórico, valores considerados indispensáveis à sua existência plena e que se tornam vetores da convivência social e orientadores dos ordenamentos jurídicos. Nessa linha, a paisagem urbana surge como elemento ínsito ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito de terceira geração, e revela a sua importância diante dos impactos negativos causados pela poluição visual nos cenários urbanos. Sua tutela decorre da redescoberta do valor estético e da capacidade da beleza paisagística de resgatar a conexão do homem com a natureza, proporcionando alívio psicológico e elevando o espírito em meio ao caos do dia a dia, de modo que o belo deixa de ser somente uma noção subjetiva e revela que a paisagem urbana não pode mais ser enxergada sob o rótulo de direito supérfluo, uma vez que se trata de um bem essencial à vida sadia e ao bem estar coletivo, alicerçado no princípio da dignidade da pessoa humana e, portanto, verdadeiro direito fundamental.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Paisagem urbana. Microbens ambientais. Função estética. Qualidade de vida. Dignidade humana.


INTRODUÇÃO

Atualmente, um rápido lançar de olhos sobre as médias e grandes cidades brasileiras evidencia os resultados prejudiciais que o intenso processo de urbanização, decorrente do crescimento populacional verificado no país nas últimas décadas, trouxe à paisagem urbana.

O urbanismo moldado à feição da racionalidade econômica promoveu a construção de um modelo de cidade eminentemente funcionalista e subserviente ao discurso desenvolvimentista, desapegado da valorização do aspecto estético e visualmente aprazível e, com isso, infenso à proteção da paisagem como corolário da qualidade de vida contemplada no texto constitucional.

Grandes empreendimentos imobiliários, proliferação de placas de publicidade, poluição luminosa e a verticalização das cidades a partir da construção de edifícios cada vez mais imponentes e destoantes do cenário natural de outrora, que permitia ao ser humano o desfrute dos espaços ainda imunes à sua intervenção potencialmente nociva.

Essas são algumas das consequências da voracidade capitalista que recai sobre o espaço urbano e que acaba por privar o indivíduo da contemplação sensorial e do potencial conectivo da natureza, conferindo uma flagrante primazia aos desideratos da ordem econômica e relegando a segundo plano a proteção da beleza paisagística das cidades, elemento ínsito à noção de paisagem urbana.

Diante desse contexto, torna-se imperativa a melhor proteção da paisagem urbana e sua função estética, uma vez que se trata de um microbem ambiental indispensável à persecução do desenvolvimento sustentável, dada a necessidade de preservação da beleza paisagística para as gerações porvindouras.

Por isso, é de extrema importância abdicarmos do pensamento estritamente econômico e desenvolvimentista para nos aproximarmos de uma visão compatível com a tutela dos direitos transindividuais de natureza indivisível que representam direitos fundamentais da própria humanidade, intitulados como direitos de terceira geração.

Neste tocante, diante da percepção de que a valorização do aspecto estético das cidades é elemento intrínseco da proteção da paisagem urbana e essencial para a qualidade de vida da sociedade, buscamos nesta pesquisa responder a seguinte indagação: quais são os fundamentos jurídicos que permitem atribuir à paisagem urbana e sua função estética a natureza de um direito fundamental?

Metodologicamente, utilizaremos a documentação indireta como técnica de pesquisa, adotando como base bibliográfica autores da filosofia do direito (Norberto Bobbio, Mário Reis Marques, Miguel Reale), do direito do meio ambiente (Ana Maria Marchesan, Michel Prieur, Flávia Marchezini) da sociologia (Eugen Ehrlich) e do direito constitucional (José Afonso da Silva, Luis Roberto Barroso). Ademais, utilizaremos o método de abordagem dedutivo, partindo das características nucleares que revelam a fundamentalidade dos direitos para, então, alcançarmos o cenário que revela premente a consideração da beleza paisagística como direito fundamental; e o método de procedimento estruturalista, indo do aspecto concreto da poluição visual e da negligência da tutela da paisagem a um modelo de cidade funcionalista, distante da valorização do belo e subserviente ao modelo econômico.

Neste sentido, trilharemos um percurso que se inicia com a análise da evolução dos direitos fundamentais, suas características e gerações, com o intuito de tocar a sua essência e entender como determinados valores são alçados a essa nobre categoria protetiva, sob o olhar fenomenológico do direito enquanto expressão social, permeado por valores caros aos indivíduos em determinado contexto histórico.

Em um segundo momento, será abordado o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como os microbens ambientais que o compõem, a partir da ótica dos direitos e deveres fundamentais, revelando-se os impactos deletérios da poluição visual sobre a paisagem urbana (microbem) e consequentemente sobre a qualidade de vida da sociedade.

Por fim, daremos enfoque à essência da paisagem urbana como bem jurídico tutelável e à legislação que a protege, com o posterior destaque da função estética da paisagem e suas implicações psicológicas nos indivíduos, desnudando a fundamentalidade da beleza paisagística para a higidez mental e espiritual de todos os seres humanos.


OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Antes de analisar a premência da inclusão da proteção da paisagem no rol dos direitos fundamentais, é essencial, como primeiro passo desse percurso, que se busque a verdadeira substância do que se entende por um ‘direito fundamental'.

A captação do seu sentido e dos seus motivadores mostra-se indispensável para verificarmos se essa tão nobre categoria será receptiva à beleza paisagística, abraçando-a como um novo direito fundamental ou mesmo declarando-a como um já implicitamente reconhecido e abarcado pela proteção ao meio-ambiente, mas ainda não protegido em suas especificidade e plenitude.

Se conseguirmos identificar a essência dos direitos fundamentais, poderemos nos aproximar da tentativa de elevar a beleza paisagística ao mesmo e efetivo patamar de proteção da saúde, do trabalho, das igualdades, liberdades, dentre tantos outros. Isto porque muito embora o meio ambiente equilibrado figure entre eles, reconhecido como um direito fundamental de terceira geração, falta-lhe alcance para proteger elementos fundamentais à sua higidez, tal qual é o caso da paisagem e das belezas naturais.

Isso ocorre em boa parte pelo fato de que o caráter ainda embrionário da proteção do meio ambiente, somado aos subjetivismos e pluralidade conceitual que ainda o cercam, acabam por tornar a sua abordagem um tanto generalista, de modo que microbens ambientais como a paisagem e seu valor estético acabam analisados sob um olhar muito superficial, quase como se fossem elementos extrínsecos à proteção ambiental, e não parte indissociável dela.

O resultado é um modelo protetivo que propugna a persecução do equilíbrio ecológico - macrobem ambiental1 -, mas que muitas vezes negligencia, de forma contraproducente, aspectos celulares de sua composição e essenciais para a sadia qualidade de vida. A beleza das cidades, cada vez mais sobrepujada pelos imperativos econômicos e desenvolvimentistas, é um desses aspectos subestimados pelo olhar perfunctório lançado aos microbens da questão ambiental.

Assim, elevá-la ao status explícito de direito fundamental parece uma forma de lhe conferir efetiva e inabalável notoriedade, atrelando-a de forma inseparável à já reconhecida promoção do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Tendo em vista, portanto, que o objetivo primordial desse primeiro capítulo é revelar o conteúdo precípuo dos direitos fundamentais, fertilizando o seu terreno para a inclusão da paisagem, far-se-á agora uma breve análise das suas matrizes, funções e características.

A DIALETICIDADE DO FENÔMENO JURÍDICO E O DESPONTAR DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A fim de responder a pergunta principal deste trabalho, é de indispensável importância analisarmos o plano não tão cristalino dos direitos fundamentais. Só assim, poderemos seguir nosso percurso rumo à elucidação da possibilidade de se inserir a beleza paisagística no rol desses direitos tão nobres; baluartes do nosso ordenamento jurídico.

Antes, contudo, de adentrarmos aquilo que se entende por direito fundamental, é interessante perguntarmos o que é o Direito, despido dessa fundamentalidade ou de qualquer outro adjetivo. Cientes de que essa indagação pode levar a divagações e estudos intermináveis, optemos pelo recorte de Miguel Reale, cuja excelência nos brinda com a seguinte conceituação da palavra Direito, pertinente e suficiente às pretensões deste trabalho:

uma análise em profundidade dos diversos sentidos da palavra Direito veio demonstrar que eles correspondem a três aspectos básicos, discerníveis em todo e qualquer momento da vida jurídica: um aspecto normativo (o Direito como ordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (o Direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica) e um axiológico (o Direito como valor de justiça) (REALE, 1995, p.65, grifamos).

Com esteio no ideário do brilhante autor, podemos concluir que o Direito se sustenta sobre o trinômio fato, valor e norma, revelando a sua função em relação à sociedade. "Essa função é a de coordenar os interesses diversos emanados das relações sociais, bem como das relações entre o Estado e a sociedade" (MATTOS JÚNIOR, 2009).

Nesse tocante, Dinamarco (2009, p.25), preleciona:

(...) pelo aspecto sociológico o direito é geralmente apresentado como uma das formas – sem dúvida a mais importante e eficaz dos tempos modernos – do chamado controle social, entendido como o conjunto de instrumentos de que a sociedade dispõe na sua tendência à imposição dos modelos culturais, dos ideais coletivos e dos valores que persegue, para a superação das antinomias, das tensões e dos conflitos que lhe são próprios.

Nota-se, portanto, que nessa perspectiva sociológica (que nos parece a mais satisfatória possível), o Direito é entendido como um conjunto de normas que, orientado por valores, tem por finalidade precípua reger a vida em sociedade.

Essa noção emana da própria natureza humana, mormente se considerarmos o homem como o ser portador da dádiva da razão. O homem raramente procede de forma plenamente instintiva, de modo que, segundo Reis Marques (2007, p.14), essa pobreza instintiva que deixa o ser humano em desvantagem em termos adaptativos lhe confere enorme vantagem em termos de entendimento e consequente possibilidade de alteração do meio circundante.

Dotado, portanto, da capacidade de superar o estado incerto dos seus instintos para ser regido pela razão, o homem se torna livre e apto a criar e recriar o curso dos fatos, tentando moldar o futuro à sua feição. De toda sorte, conforme assevera Reis Marques (2007, p.15) essa capacidade de modificar o curso natural das coisas e de inová-las acaba por gerar um estado de incertezas, ao que se fazem necessárias as regras de conduta e, por conseguinte, o Direito.

O brilhante professor coimbrense, o qual tive a honra de conhecer e cujas aulas tive o prazer de assistir, vai além na sua exposição acerca do direito enquanto produto apto a equilibrar e harmonizar as relações sociais, apresentando duas teses bem antagônicas no que concerne à relação do direito com a sociedade.

Reis Marques (2007, p.18) nos mostra que, para uns, o direito é entidade autônoma, independente de raízes culturais e sociológicas, prendendo-se com um complexo de normas. Deste ponto de vista estritamente legalista, a realidade jurídica tem início e fim no direito positivo. Do lado diametralmente oposto, onde de certa forma incidiu com mais força a luz da sabedoria, o direito é absolutamente dependente da sociedade, exprimindo-a, em vez de dominá-la. Enquanto produto constante dos fatos sociais, seria nada mais do que uma secreção social oriunda de uma coletividade.

O mencionado autor lusitano, contudo, ciente de que tais teses são por demais extremas, defende uma posição intermediária, na qual o direito não é um conjunto de normas isoladas da dimensão social, mas tampouco é simples resultado das condutas sociais. Nos dizeres do autor:

Se o direito é parte da sociedade, não poderá deixar de exprimir o contexto político, económico e cultural de uma determinada época. [...] No entanto, as regras e as instituições jurídicas não deixam, por sua vez, de influenciar a vida política, económica e cultural. De facto, a relação entre o direito e os factores políticos, econômicos e culturais é de interdependência, isto é, de dependência recíproca (MARQUES, 2007, p.20)

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Haveria, pois, em verdade, uma autonomia relativa do direito, reconhecendo-se que “nem sempre uma mudança social implica uma mudança jurídica, nem sempre uma mudança jurídica conduz a uma mudança social” (MARQUES, 2007, p. 21).

Essa noção é indispensável ao nosso trabalho, pois de fato não pretendemos fazer prevalecer nem a tese que confere ao direito uma posição isolacionista, nem aquela que lhe nega qualquer autonomia. É absolutamente imperativo enxergarmos o direito como uma expressão dos anseios sociais, sem, contudo, retirar-lhe por completo o protagonismo na organização e coordenação do corpo social.

Nesse ponto de vista intermédio, habitam justamente as palavras comedidas de Santos (2009):

Impõe-se valorizar o que Celso Bandeira de Mello sugeriu, quando indagado sobre quem muda antes, a lei ou a sociedade. No seu feliz entendimento, ambas se inter-relacionam; quando a sociedade muda, os legisladores tendem a fazer leis em harmonia com essas mudanças. Por outro lado, às vezes, sem quaisquer mudanças, os legisladores agem no sentido de promover a mudança.

Neste sentido, Ehrlich (1986, p.27-29), é preciso quando concebe e reitera o Direito como um produto social espontâneo, mas no sentido de que cada sociedade cria internamente a sua própria norma jurídica em conformidade com os valores e paradigmas dominantes em determinado espaço e tempo. É precisamente esse o "Direito vivo" sugerido pela sociologia jurídica, um Direito proveniente também da vida concreta dos indivíduos e desapegado dos grilhões estritamente dogmáticos e burocráticos das teorias que insistem em sugeri-lo como instrumento estático e indiferente ao infrene dinamismo social.

Sugerir que o direito é nada mais do que um conjunto de normas positivadas é compactuar com a imagem de um direito asséptico e insensível à influência da realidade circundante. Da mesma forma, considerá-lo simples produto dos anseios sociais também nos parece um equívoco, porquanto essa visão nega que as instituições jurídicas podem influenciar a realidade, em todos os seus aspectos.

Fiquemos, pois, com a concepção intermediária que fornece uma visão multiangular e divide o protagonismo entre as instituições jurídicas e a sociedade. Para além de dimensões estanques, estritamente normativistas ou sociológicas, preferimos seguir a seguinte noção, a mais pertinente possível ao presente estudo: “o direito é uma ordem de convivência humana e social, orientada pela realização dos direitos fundamentais do homem, susceptível de ser imposta pela coação” (MARQUES, 2007, p. 243).

De posse dessa concepção sobre o que é o Direito, o próximo passo é apresentar uma apreciação do horizonte da evolução e sedimentação dos direitos ditos fundamentais; vetores da convivência social, pressupostos da proteção da dignidade humana e orientadores dos ordenamentos jurídicos contemporâneos.

Pois bem. Conforme observou Jeaveaux (2008, p. 38) com acerto, em determinado momento do protagonismo humano na Terra a urbanização da sociedade e o recrudescimento populacional fizeram com que as demandas do tecido social se tornassem de massa, revelando um anacronismo e egocentrismo da então vigente titularidade individual dos direitos - também, diga-se, conquistada de forma árdua, edificando a proeminência do indivíduo sobre o Estado absoluto.

Como todas as outras mudanças que flagram o sistema jurídico, o desnudamento do obsoletismo do direito individual corrobora com a eminente dialeticidade do Direito; absolutamente sensível às evoluções e involuções da sociedade. Muito mais do que conformar a realidade circundante, repisa-se, o Direito também é transformado por ela, refletindo os anseios e desideratos dos indivíduos, numa eterna e dinâmica relação dialética.

Evidentemente, os direitos individuais provenientes do iluminismo racionalista adequavam-se ao contexto de uma sociedade urbana ainda incipiente, cujas reivindicações de grupos eram escassas. Tais direitos representaram, pois, a primeira geração de direitos, distantes da terceira geração - que é o nosso principal objeto de enfoque.

Originários do liberalismo clássico, os direitos individuais aproximam-se das chamadas prestações negativas do Estado na esfera da liberdade das pessoas, com vistas a salvaguardar precipuamente a economia e a propriedade privada, valores absolutos no crepúsculo do século XVII e nos alvores do século XVIII. Conforme observado com plena sagacidade por Marques (2007, p.211), “são os diretos de um homem circunscrito num corpo público de inspiração liberal”.

O egocentrismo característico dessa geração de direitos é parcialmente explicado pelo fato de que os direitos individuais seriam reconhecidos como algo anterior ao próprio Estado e dotados, portanto, da capacidade de limitar a sua ação com o prestígio das chamadas prestações negativas. Contudo, o não tão vagaroso caminhar da sociedade revelou que o liberalismo exacerbado, assente no Estado quase invisível, dava sintomas de cansaço.

A robustez dos direitos individuais começou a desfalecer diante do natural processo histórico-dialético da conjuntura econômica, de onde emanaram, no seio do desenvolvimento industrial, novas relações que clamaram pela elevação de direitos fundamentais com outras feições, adequados ao novo contexto social vigente - não mais aquele do combate da burguesia ao absolutismo.

Marques (2007, p. 212) lembra-nos que, neste período,

amplifica-se a luta pelos direitos humanos no espaço econômico e no mundo do trabalho, o que se traduz na reivindicação de direitos sociais. O Estado passa a assumir o compromisso de reparar os excessos do individualismo econômico-liberal, conferindo um conjunto de créditos (direitos créditos) ao homem perante a sociedade.

Ao que Cappelletti (apud JEVEAUX, 2008, p.39) arremata:

As atividades e relações se referem sempre mais frequentemente a categorias inteiras de indivíduos, e não a qualquer indivíduo, sobretudo. Os direitos e os deveres não se apresentam mais, como nos Códigos tradicionais, de inspiração individualística-liberal, como direitos e deveres essencialmente individuais, mas metaindividuais e coletivos.

O individualismo clássico daqueles direitos de orientação liberal passou, então, a conviver com aqueles direitos que não pertencem a ninguém em particular e cujo objeto, diferentemente dos direitos individuais, é indivisível, permitindo o florescer de novos valores que logo a sociedade exigiria que se revestissem com o manto da proteção jurídica.

É o caso do meio ambiente, bem difuso representativo desses direitos que se desprendem do individualismo exacerbado e se voltam para toda a comunidade social, afeitos à noção de coletividade e marcados por caracteres especiais, conforme elenca Jeveaux (2008, p.42): "a) indivisibililidade do objeto de direito; b) ilimitação do número de titulares; c) indisponibilidade do direito; d) co-titularidade exclusivamente para a proteção difusa; e) titulares indeterminados em particular".

Nas preleções de Bulos (2009, p. 428), o desenvolvimento da teoria geral desses direitos não nasceu da noite para o dia, mas, sim, foi “fruto de lenta e gradual maturação histórica, das lutas, dificuldades, alegrias e tristezas que circundam a própria existência terrena”, confirmando que o Direito não paira impávido sobre a sociedade; ele caminha de mãos dadas com ela, seguindo seus passos ora vagarosos e claudicantes, ora céleres e resolutos.

A BUSCA DA ESSÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM MEIO À DIVERSIDADE CONCEITUAL DE SUA TEORIA

Dito isto, é imperioso questionarmos o que são, afinal, os direitos fundamentais da forma como eles são hoje conhecidos e de onde deriva a sua imponência no nosso ordenamento jurídico. Tentaremos responder a essa indagação em breves linhas, para então tentar enquadrar (ou reconhecer) a paisagem nessa que é a mais nobre das categorias do nosso Direito e que abarca justamente os direitos mais caros à existência digna do homem.

Como bem preleciona Jeveaux (2008, p.65), formou-se uma miríade de conceitos a respeito da teoria dos direitos fundamentais, tamanha a complexidade que a permeia.

Para o autor, a expressão "direitos fundamentais" surge na França, em 1770, e coincide historicamente com a ascensão dos direitos individuais liberais clássicos, nos idos do século XVIII. Neste viés, porém, o insigne autor espanhol Perez Luño (apud JEVEAUX, 2009, p.65) defende que a origem filosófica da expressão é ainda mais antiga, remontando às doutrinas

a) estóica (unidade universal dos homens); b) católica (igualdade perante Deus); c) jusnaturalista medieval (postulados suprapositivos como critério de legitimidade); d) tomistas (direito positivo submetido ao direito natural). Essas últimas doutrinas permitiam extrair um direito de resistência contra o arbítrio. Já a expressão "direito natural" se transmuda para "direito humano" na segunda metade do século XVIII [....] e, no mesmo período, para direito fundamental, com o objetivo de constitucionalizar/positivar os direitos naturais (JEVEAUX, 2008, p.65)

Nas anotações precisas de Silva (2010, p.175), “a ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no evolver histórico dificulta definir-lhes um conceito sintético e preciso”, de modo que nos deparamos ainda com uma coleção de expressões para designá-los2.

Na mesma toada, Mendes e Branco (2012, p.158) lembram que o rol dos direitos fundamentais avoluma-se em conformidade com as exigências específicas de cada momento histórico e de cada sociedade e suas idiossincrasias políticas, ideológicas, filosóficas e tantas outras.

Sua imposição, conforme nos lembra Dimoulis e Martins (2011, p.14), deu-se politicamente em meio a ferozes lutas, revoluções, guerras civis e outros acontecimentos de “ruptura”. Compreensível, portanto, que a classe dos direitos fundamentais não tangencie a homogeneidade, dificultando, assim, uma definição ampla o suficiente que percorra toda a sua extensão. De toda sorte, importante anotar que

As diversas acepções relativas à noção de direitos fundamentais não restringem sua dimensão de abrangência. Muito pelo contrário, o que se verifica é que os direitos fundamentais tornaram-se as diretrizes inspiradoras dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, nos quais se reconhecem a supremacia da pessoa humana, como destinatário de todo o poder constituído (MATTOS JUNIOR, 2009).

Certos, destarte, de que a divergência não limita a abrangência, podemos verificar que Jeveaux (2008, p.65) reconhece essa grande diversidade conceitual e apresenta algumas das várias expressões cunhadas para designar o tema, permeado de complexidade:

1) direitos humanos positivados internamente (Blanca Martínez de Vallejo Juster); 2) direitos constitucionais (François Terré); 3) objeto de uma mera descrição, constituindo-se em direitos humanos positivados (Pérez Luño); 4) constitucionalização dos direitos humanos (Hans Peter Schneider); 6) direitos exercidos por meio do Estado, mais do que contra ele (José Carlos Vieira de Andrade) (NOGUEIRA, apud JEVEAUX, 2008, p. 66).

Essa última definição chama especial atenção, pois denota que o exercício dos direitos fundamentais viabiliza-se pela prestação estatal, seja ela negativa ou positiva, conforme a especificidade de cada dimensão (geração) de direitos, permitindo assim que o particular reivindique do Estado tanto o cumprimento de prestações sociais quanto a proteção contra atos de terceiros - onde se inclui a própria abstenção estatal.

Bulos (2009, p.429) opta inclusive pela expressão "liberdades públicas em sentido amplo" para definir os direitos fundamentais, justamente por se tratarem eles de um "conjunto de normas constitucionais que consagram limitações jurídicas aos Poderes Públicos".

Para José Afonso da Silva, entretanto, a expressão mais adequada é mesmo “direitos fundamentais do homem”, visto que

além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados (SILVA, 2010, p.178, grifo nosso).

No mesmo sentido, Dimoulis e Martins (2011, p.48) reconhecem a ausência de uma única terminologia correta e adotam a expressão direitos fundamentais por ser o vocabulário escolhido pela Constituição Federal de 1988, além de ser um termo genérico, podendo abranger os direitos individuais e coletivos, os direitos sociais e políticos, de liberdade e os de igualdade, e, por fim, por indicar os direitos que gozam de proteção constitucional e peculiar força jurídica que lhes garantem a supremacia das normas constitucionais, inexistindo a possibilidade de o legislador ordinário tencionar a sua abolição.

Quanto ao termo “fundamental”, prestigiado por esses autores, Mattos Junior (2009) destaca precisamente que

a expressão – fundamental, traz, em seu bojo, a noção de essencial, básico, indispensável; fundamental é aquilo que se une ao elementar, à necessidade primeira que propiciará a superação e aquisição de necessidades outras, não tão importantes, contudo também indispensáveis à humanidade.

Fiquemos, portanto, com a terminologia “direitos fundamentais”, certos de que a busca pela essência desses direitos é tão mais importante que a escolha de um nome único, lógico e sintético que encerre toda a sua riqueza. É também, por que não, uma forma de privilegiar a expressão adotada por José Afonso da Silva, cuja definição abarca, a nosso ver, tudo aquilo que há de mais “fundamental” nesses direitos - prerrogativas protetoras de todos os indivíduos, indistintamente, naquilo que eles elegeram de maior relevância para o seu convívio social e, mais do que isso, para o exercício da sua própria humanidade.

Dito isto, em meio ao pluralismo conceitual que perpassa a teoria dos direitos fundamentais, de posse das considerações de grandes nomes do nosso constitucionalismo, é possível encontrarmos pontos de convergência que levem a definições precisas sobre a essência desses direitos, tendo em mente que “descobrir características básicas dos direitos fundamentais [...] não constitui tarefa meramente acadêmica e pode revelar-se importante para resolver problemas concretos” (MENDES e BRANCO, 2012, p. 158).

Eis que a busca por essas características, sobre a qual nos debruçaremos logo mais, é absolutamente pertinente para o nosso estudo, já que identificá-las pode levar à consequente identificação de direitos fundamentais que (ainda) não figuram no catálogo expresso da nossa Constituição. Antes disso, vejamos algumas definições adotadas por autores consagrados, já tentando achar similitudes entre os conceitos formulados.

Uadi Lammêgo Bulos (2009, p.428), cujo ideário muito se aproxima dos ensinamentos de José Afonso da Silva, sugere que os direitos fundamentais são

o conjunto de normas, princípios, prerrogativas, deveres e institutos, inerentes à soberania popular, que garantem a convivência pacífica, digna, livre e igualitária, independentemente de credo, raça, origem, cor, condição econômica ou status social. Sem os direitos fundamentais, o homem não vive, não convive, e, em alguns casos, não sobrevive.

Dessa definição, é evidente a correlação entre os direitos fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa humana, local em que, segundo Vieira de Andrade (apud MENDES e BRANCO, 2012, p. 158) residiria a verdadeira fundamentabillidade dos direitos humanos. Para Mendes e Branco, de fato é esse princípio o marco de inspiração dos direitos fundamentais,

[...] atendendo à exigência do respeito à vida, à liberdade, à liberdade, à integridade física e íntima de cada ser humano, ao postulado da igualdade em dignidade de todos os homens e à segurança. É o princípio da dignidade humana que demanda fórmulas de limitação do poder, prevenindo o arbítrio e a injustiça (2012, p. 159, grifamos).

A dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, assinala valores segundo os quais o homem, num sentido kantiano, existe como fim em si mesmo, e não tão só como meio para atender à vontade do Estado ou de outra força arbitrária, de modo que

toda e qualquer ação do ente estatal deve ser avaliada, sob pena de inconstitucional e de violar a dignidade da pessoa humana, considerando se cada pessoa é tomada como fim em si mesmo ou como instrumento, como meio para outros objetivos (SANTOS, 2001).

Dessa forma, a se considerar a pessoa como valor primeiro e supremo da democracia, impondo-se, por conseguinte, a proteção indelével de sua integridade física, psíquica e espiritual no núcleo de toda e qualquer ação estatal, torna-se absolutamente compreensível e lógica a sua associação inexorável aos direitos fundamentais, cuja fundamentabilidade, repisa-se, emana da primazia do valor da pessoa humana.

Neste sentido, conclui-se sem muito esforço que "os direitos fundamentais, ao menos de forma geral, podem ser considerados concretizações das exigências do princípio da dignidade da pessoa humana" (SARLET, 1998, p. 109). Da mesma forma, a dignidade da pessoa humana desnuda-se como "a fonte ética, que confere unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais" (MIRANDA, apud SANTOS, 2001).

Dessa análise, decorre o conceito utilizado por Mendes e Branco (2012, p.159, grifamos), cuja síntese é diretamente proporcional à precisão que encerra:

Os direitos e garantias fundamentais, em sentido material, são, pois, pretensões que, em cada momento histórico, se descobrem a partir da perspectiva do valor da dignidade humana.

Evidentemente, a Constituição é o local mais adequado para positivar pretensões de tão robusta importância, transformando em normas valores tão caros, e, por que não, indispensáveis à existência plena do homem, conferindo-lhes guarida no mais poderoso instrumento normativo de uma nação. Não à toa, o preâmbulo da nossa Carta Maior proclama que a Assembleia Constituinte teve como um de seus sustentáculos a instituição de um "Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança".

Essas linhas, firmemente marcadas na Constituição Federal, revelam os traços fundamentais do novo paradigma estatal que então despontava - o Estado democrático de direito3, assente na ideia de que o Estado deve ser regido pelo Direito e por normas democráticas, conforme proclamado pelo caput do artigo 1º da Lei Suprema: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Neste tocante, Ferreira Filho (1988, p. 16) é preciso quando dispõe que, na visão ocidental de democracia, governo pelo povo e limitação de poder estão indissoluvelmente combinados. O poder delegado pelo povo aos seus representantes conhece uma série de limitações, trazendo em si um gravame irretocável: ‘não sou absoluto; sou limitado por uma vastidão de direitos que o povo entende por fundamentais’.

Assim, para o brilhante mestre lusitano Gomes Canotilho (1995, p.517), os direitos fundamentais representam

A função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).

Nesta mesma trilha, Jeveaux (2008, p. 67) aduz, a respeito do caráter dúplice assumido pelo direito fundamental:

A reunião dessas características dá conta de uma multifuncionalidade do direito fundamental, tanto na dimensão subjetiva quanto objetiva, que assume duas formas: a) direito de defesa, no sentido de evitar ingerências indevidas do Estado na esfera individual e de conferir poderes de exercício concreto ou de suprimir omissões; b) direito a prestações, no sentido de acessar as prestações estatais e de participar dos procedimentos democráticos de sua criação.

Novamente, a vedação ao leviatanismo do Estado é marcante, associado à proteção das liberdades positivas e negativas do indivíduo traduzidas em normas devidamente positivadas, sacramentando-se, com efeito, o primado da lei e a fórmula “deter o poder com o poder”, de Montesquieu, para combater a onipotência do Estado.

Alexandre de Moraes (2002, p.39) aglutina essa premissa de limitação das ingerências estatais com a perspectiva da dignidade da pessoa humana como o nascedouro dos direitos fundamentais, considerando estes como 

o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.

Em outra obra, mais uma vez destacando a essencialidade dos direitos fundamentais, indispensáveis à vivência e à convivência dos seres humanos, o autor assinala que o termo

vem a sinalizar aqueles direitos e garantias, sem os quais, a convivência humana poderia se tornar impossível. Dada a dimensão de essencialidade dos direitos fundamentais, sobretudo em uma sociedade capitalista, esses direitos são imprescritíveis, inalienáveis, irrenunciáveis, invioláveis, universais, efetivos, interdependentes e complementares (MORAES, 2002, p.41)

Revela-se, então, a finalidade de impor limites ao poder político, com a concomitante positivação desses direitos que traduzem verdadeiras exigências da dignidade humana, doravante sustentáculos de determinado ordenamento jurídico concreto.

Dimoulis e Martins (2011, p.49) também perspectivam os direitos fundamentais na ótica da limitação do Estado e da primazia das necessidades básicas dos indivíduos positivadas na Lei Suprema, conceituando-os como

...direitos público-subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual.

Nesta mesma esteira, Mendes e Branco (2012, p.154) mencionam que os direitos fundamentais assumem posição de definitivo destaque na sociedade justamente

quando se inverte a tradicional relação entre Estado e indivíduo e se reconhece que o indivíduo tem, primeiro, direito, e, depois, deveres perante o Estado, e que os direitos que o Estado tem em relação ao indivíduo se ordenam ao objetivo de melhor cuidar das necessidades dos cidadãos.

Mais uma vez, as preleções do constitucionalista colocam em relevo a ruptura da tradicional prevalência do Estado sobre o cidadão, uma vez que as teorias contratualistas dos séculos XVII e XVIII romperam com o paradigma do indivíduo subserviente à figura imponente do Estado e edificaram a submissão das autoridades políticas aos anseios do homem - detentor de direitos preexistentes à figura estatal, cuja atuação deve se voltar precipuamente a garantir-lhe o desfrute dos direitos básicos.

Se outrora esses direitos limitavam-se a aspirações políticas e filosóficas, carecendo de meios para a sua efetiva persecução, a positivação dos direitos tidos como inerentes ao homem (MENDES e BRANCO, 2012, p.154) municiou-os com normas jurídicas enfim obrigatórias, exigíveis judicialmente. São os casos da Petição de Direitos, de 1628; da Declaração de Direitos, de 1688; da Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776; e especialmente da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.

Importante consignar que essas declarações de direitos não tiveram uma única fonte de inspiração, como sugerem algumas doutrinas. Na verdade, conforme anota Silva (2010, p. 173)

houve reivindicações e lutas para conquistar os direitos nelas consubstanciados. E quando as condições materiais da sociedade propiciaram, elas surgiram, conjugando-se, pois, condições objetivas e subjetivas para sua formulação.

Norberto Bobbio (apud MENDES e BRANCO, 2012. p.154), com o brilhantismo e lucidez que lhe são peculiares, corrobora com essa visão e afirma que

a afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical inversão da perspectiva, característica da formação do Estado moderno, na representação da relação política, ou seja, na relação Estado/cidadão ou soberano/súditos: relação que é encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos não mais súditos, e não do ponto de vista dos direitos do soberano, em correspondência com a visão individualista da sociedade (...) no início da idade moderna.

Neste espeque, essa inversão representa, nas palavras de Silva (2010, p.178), mais do que mera contraposição da esfera privada à atividade pública, uma verdadeira “limitação imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dela dependem”, situando a sua fonte e desvelando o entrosamento desses direitos com a conjuntura econômica e social de determinado momento, o que revela a sua historicidade e dinamismo - substantivos que, não é despiciendo dizer, perpassam todo o fenômeno jurídico.

CARACTERÍSTICAS NUCLEARES

Descortinada a busca da essência dos direitos fundamentais, a despeito da divergência de nomenclaturas, é conveniente a abordagem, de forma destacada, das características expressamente adotadas pelos constitucionalistas como essenciais à teoria. Muito embora todas elas já tenham sido direta ou indiretamente tocadas pelas definições apresentadas nas linhas anteriores, a análise dos caracteres identificados como inerentes aos direitos fundamentais nos aproxima ainda mais da sua substância.

Com amparo na doutrina dominante, as características principais dos direitos fundamentais são a historicidade; a inalienabilidade; a imprescritibilidade; e a irrenunciabilidade. Deixaremos a historicidade por último, por entendermos ser a característica mais importante para a abordagem da premência da análise da paisagem enquanto direito fundamental.

Justamente por serem fundamentais à existência humana, esses direitos são também universais, ultrapassando todos os limites territoriais para beneficiar os indivíduos independentemente de raça, credo, cor, sexo ou filiação (BULOS, 2009, p.434).

A inalienabilidade que os perpassa diz respeito ao fato de se tratar de direitos intransferíveis e inegociáveis, uma vez que não são de conteúdo econômico-patrimonial. “Isso significa que um direito inalienável não admite que o seu titular o torne impossível de ser exercitado para si mesmo, física ou juridicamente” (MENDES e BRANCO, 2012, p.165).

Do ponto de vista prático, pode-se dizer que "o caráter inalienável entrevisto em alguns direitos fundamentais conduziria à nulidade absoluta, por ilicitude de objeto, de contratos em que se realize a alienação desses direitos" (MENDES e BRANCO, 2012, p. 166).

De maneira próxima, a irrenunciabilidade estabelece que os direitos fundamentais são irrenunciáveis, de modo que, mesmo não exercidos, não podem jamais ser renunciados. Seu exercício é uma faculdade, mas a sua tutela jurídica se mantém intacta, porquanto não passível de renúncia.

São também direitos imprescritíveis, ou seja, são sempre exercíveis e não perdem a sua eficácia com o decurso do tempo. Não se tratando de direitos de caráter patrimonial, sua exigibilidade não prescreve, de modo que são sempre passíveis de serem exigidos perante o Estado responsável pela sua garantia.

Quanto à historicidade, trata-se da característica mais interessante para o desenvolvimento do presente trabalho. Já mencionamos que esses direitos são tracejados de acordo com o panorama histórico que os circunda - como qualquer direito. Eles nascem, modificam-se e eventualmente desaparecem. Conforme aponta Silva (2010, p. 181), eles surgem com a revolução burguesa e evoluem paralelamente com a recém-adquirida centralidade da pessoa humana, erigindo-se como forma de garantir melhores condições de existência do indivíduo.

Os direitos fundamentais não são, portanto, obra da natureza (embora, ao longo do nosso trabalho, pretendamos mostrar que são, já, uma exigência dela), mas das necessidades humanas num determinado contexto histórico. Mendes e Branco (2012, p. 163) complementam que "o recurso à História mostra-se indispensável para que, à vista da gênese e do desenvolvimento dos direitos fundamentais, cada um deles se torne mais bem compreendido".

Essa índole evolutiva dos direitos fundamentais leva Bobbio (2004, p.6) a concluir que os direitos

nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem cria novas ameaças à liberdade do indivíduo ou permite novos remédios para as suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitação de poder; remédios que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor.

E não poderia ser de outra forma, entendemos. Os direitos não nascem de uma só vez porque proveem de pretensões e feições sociais pontuais, de onde deriva justamente o seu incontornável dinamismo e o seu ritmo evolutivo impulsionado pela sociedade. Isso explica, em boa parte, a razão pela qual a desmesurada proliferação normativa promovida pelos legisladores muitas vezes não leva à mudança na realidade que se pretendia, em virtude da impossibilidade de se introjetarem "a fórceps" aqueles valores no corpo social.

Novamente, reiteramos o caráter dúplice do Direito: ele não é mera secreção do tecido social - visão que lhe despoja de sua autonomia - e tampouco é mero fruto da atividade legislativa. A via de mão dupla estabelece que os direitos conformam a sociedade, mas de igual modo são conformados por ela, o que revela o direito como um instrumento dotado de autonomia e permeado por valores que emanam do cenário em que ele está inserido e que o condicionam profundamente.

É esse caráter-histórico evolutivo que revela o vínculo inquebrantável entre o direito e as demandas criadas pelo homem.

Outra característica de destaque é trazida por Mendes e Branco (2012, p.166) e nos parece indispensável ao estudo do tema, que é a vinculação dos poderes públicos aos direitos fundamentais, de modo que esses direitos não são passíveis de serem alterados ou suprimidos ao livre alvedrio dos Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário. Destarte, “nenhum desses poderes se confunde com o poder que consagra o direito fundamental, que lhes é superior” (MENDES e BRANCO, 2012, p.166).

Essa superioridade implica que os atos dos Poderes Públicos devem estar em plena conformidade com os direitos fundamentais, sob pena de serem expostos à invalidade caso atentem contra qualquer um deles.

No capítulo seguinte, dedicaremos análise particular e pormenorizada à vinculação do Poder Legislativo aos direitos fundamentais, especificamente no que toca ao nobre e ainda menosprezado princípio da vedação ao retrocesso ambiental, originário da chamada proibição de retrocesso legislativo.

Por fim, com especial importância, devemos acrescentar, ainda, uma última característica mencionada por Mendes e Branco (2012, p.166): a constitucionalização. Em que pese já termos abordado de forma ampla a positivação desses direitos, a constitucionalização é responsável por promover a indispensável distinção conceitual entre as expressões “direitos fundamentais” e “direitos humanos”, que esmiuçaremos a seguir.

DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITOS HUMANOS

A diferenciação entre os conceitos “direitos humanos” e “direitos fundamentais” é essencial, sobretudo a se considerar que esses direitos, guardadas certas similitudes, divergem na forma de proteção e no seu grau de efetividade. Isto porque as ordens jurídicas internas dispõem de ferramentas de implementação mais céleres e eficazes do que a ordem internacional, o que explica a conveniência e o particular interesse em reconhecermos a paisagem no rol dos direitos fundamentais brasileiros.

Muito embora as expressões sejam convizinhas e oriundas do mesmo contexto histórico de emergência dos direitos individuais, conforme anota Jeveaux (2008, p. 65), a análise do seu conteúdo e conceitos logo revela diferenças substanciais, conforme se pode aferir da síntese de Alberto Nogueira (apud JEVEAUX, 2008, p. 65, grifamos):

I - os direitos humanos são considerados como: 1) direitos positivados no plano internacional (Blanca Martínez de Vallejo Juster e a tradição anglo-saxã); 2) originados do direito natural (George Vedel, Jean Rivero); 3) direitos subjetivos (François Terré); 4) algo pré-social (Jacques Robert e Jean Duffar); 5) objeto de uma prestação (valor), somente fundamentais quando positivados (Pérez Luño); 6) insertos nos princípios gerais de direito, sendo um direito subjetivo (Ignácio Ara Pinilla); 7) originados do liberalismo, mais especificamente do direito de propriedade (Serge-Christophe Kolm); 8) característicos da “mundialização”, porque espraiados para além dos limites dos Estados (Jacques Robert e Jean Duffar); II - os direitos fundamentais são encontrados como: 1) direitos humanos positivados internamente (Blanca Martínez de Vallejo Juster); 2) direitos constitucionais (François Terré); 3) objeto de uma mera descrição, constituindo-se em direitos humanos positivados (Pérez Luño); 4) constitucionalização dos direitos humanos (Hans Peter Schneider); 6) direitos exercidos por meio do Estado, mais do que contra ele (José Carlos Vieira de Andrade)

Essa vastidão de conceitos, se colocadas num quadro comparativo, evidencia os pontos distintivos principais entre as duas expressões, que acaba por levar à constatação de que as duas categorias guardam relação quase simbiótica: Enquanto os direitos humanos são positivados no plano internacional e são originários do direito natural; os direitos fundamentais são positivados na ordem jurídica interna de cada Estado e são originários do próprio conceito de direito humano, transmutado em direito fundamental a partir da sua constitucionalização.

Reis Marques (2007, p. 227), corroborando com essa noção da fundamentação dos direitos humanos, preleciona que

os direitos do homem, tendo alcançado o estatuto de verdades universais, são hoje uma realidade na maior parte dos países. Como ‘depositários de uma certa ideia de homem’ que é necessário preservar ‘contra os excessos do Estado’, estes direitos são hoje reconhecidos nas constituições como ‘direitos fundamentais’, irradiando das normas constitucionais para todas as restantes áreas do direito.

Enquanto os direitos fundamentais são positivados na Constituição, os direitos humanos designam direitos suprapositivos, cuja nascente remonta às teorias dos direitos naturais e divinos do período medieval.

A expressão direitos humanos, ou direitos do homem, é reservada para aquelas reivindicações de perene respeito a certas posições essenciais ao homem. São direitos postulados em bases jusnaturalistas, contam índole filosófica e não possuem como característica básica a positivação numa ordem jurídica particular (MENDES e BRANCO, 2012, p.166)

Nesta concepção, pois, se os direitos humanos têm esteio em valores universais e atemporais, anteriores ao próprio Estado e ao direito positivo e inseridos em documentos de direito internacional, podemos dizer que os direitos fundamentais são aqueles que vigem numa ordem jurídica concreta, limitados a um determinado Estado e aos seus elementos constitutivos (povo, território, soberania).

Ademais, os “direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (...); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-intencionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente” (CANOTILHO, apud MARQUES, 2007, p. 239).

Dito isto, a conclusão lógica que se afeiçoa à análise das duas expressões é que os direitos fundamentais gozam de instrumentos de proteção mais sólidos e dispõem de maior efetividade em virtude de seu status constitucional na ordem jurídica interna, muito embora o art. 5º, § 2º da Constituição estabeleça que os direitos e garantias expressos em suas páginas não excluem outros que decorrem “os tratados interacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Essa previsão, contudo, baseada no princípio da complementaridade, esbarra em discussões doutrinárias ainda insistentes e em requisitos que fragilizam a efetividade dos direitos humanos na ordem jurídica pátria. Não raro, esses direitos são até mesmo ridicularizados por indivíduos que certamente desconhecem a sua verdadeira robustez e nobreza irrefutáveis.

De toda sorte, em que pese a progressiva positivação interna dos direitos humanos, no plano prático devemos mesmo concluir que, pelo fato de os direitos fundamentais estarem consagrados no plano interno, garantidos e limitados num espaço e num tempo particulares, sua proteção e efetividade é mais imediata, como bem assevera Mendes e Branco (2012, p.167):

No direito brasileiro, como nos sistemas que lhe são próximos, os direitos fundamentais se definem como direitos constitucionais. Essa característica da constitucionalização dos direitos fundamentais traz consequências de evidente relevo. As normas que os obrigam impõem-se a todos os poderes constituídos, até ao poder de reforma da Constituição.

Com efeito, considerando que um dos atributos de maior destaque dos direitos fundamentais consiste na sua posição privilegiada no sistema jurídico, definida pela supremacia constitucional, é indubitável que, por razões instrumentais, os direitos humanos não são acessíveis no mesmo grau dos direitos fundamentais, em que pese a sua correlação íntima, o que leva Sarlet (1998, p.40) a arrematar com precisão que:

Além disso, importa considerar a relevante distinção quanto ao grau de efetiva aplicação e proteção das normas consagradoras dos direitos fundamentais (direito interno) e dos direitos humanos (direito internacional), sendo desnecessário aprofundar, aqui, a idéia de que os primeiros que – ao menos em regra – atingem (ou, pelo menos, estão em melhores condições para isto) o maior grau de efetivação, particularmente em face da existência de instâncias (especialmente as judiciárias) dotadas do poder de fazer respeitar e realizar estes direitos.

Sobre o autor
Felipe Augusto Rocha Santos

Bacharel em Direito pela FDV - Vitória

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Felipe Augusto Rocha. Função estética da paisagem urbana:: o direito fundamental à beleza paisagística. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3975, 20 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28658. Acesso em: 22 nov. 2024.

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