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Função estética da paisagem urbana:

o direito fundamental à beleza paisagística

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Agenda 20/05/2014 às 16:25

A PAISAGEM URBANA

A ESSÊNCIA DA PAISAGEM URBANA - A PAISAGEM COMO BEM JURÍDICO TUTELÁVEL

Podemos, então, enfrentar as definições e buscar a essência da paisagem, este microbem ambiental tão amplo e que cada vez mais clama pela atuação infatigável do Direito Ambiental. A tarefa da sua conceituação, contudo, requer a mesma serenidade e paciência com que se lança um olhar sobre um bosque verde e florido, quando a pressa pode distrair os olhos e privá-los de detalhes que só a contemplação atenta permite enxergar.

Os ordenamentos e a doutrina divergem no tratamento conceitual dado à paisagem. Para Ramón Martin Mateo, a paisagem nos “remete a conjuntos visualmente percebidos e culturalmente apreciados, integrados exclusiva, ou predominantemente, por elementos naturais”. Outros preferem vê-la como sinônimo de beleza natural, o “belo da natureza”, com a característica de “beleza incomum”. Mesmo na Itália, onde a Constituição nacional protege, expressa e diretamente, a paisagem, as interpretações do seu sentido variam. (BENJAMIN, 2005)

Sobre essa multiplicidade de impressões e conceitos, Maximiano (2004, p.84) anota que

em cada época, a compreensão deste tema foi influenciada pela filosofia, busca da estética, política, religião, ciência, dentre outros aspectos. Além destes fatores, é bem provável que as características naturais, dominantes em cada paisagem, tenham estimulado, ou desencorajado, a relação dos diferentes grupos humanos sobre a face da terra com o seu entorno. Assim, sociedades como a oriental e a ocidental, bastante distintas em termos geográficos e culturais, desenvolveram suas noções de paisagem sobre fundamentos também diferentes.

Ao que complementa Benjamin (2005), de forma similar:

Poucas áreas da regulação jurídico-ambiental conseguem superar o perfil rebelde da paisagem, avessa aos esforços de delimitação, que recusa as fronteiras do teoricamente objetivo e do juridicamente palpável.

O autor nos lembra de que a noção do belo, onde subjaz a essência da paisagem, vem já há milênios despertando o interesse de filósofos, religiosos e, claro, artistas, porém numa percepção essencialmente subjetiva.

Conforme ensina Neto (2010):

Etimologicamente, paisagem vem dos artistas, decorre da percepção individual e subjetiva. Apenas nos séculos XIX e XX a paisagem tornou-se objeto científico. A imagem passou, então, para uma percepção objetiva da análise dos seus elementos. 

De fato, Benjamin (2005) confirma que foi somente nos últimos séculos que a paisagem saiu do plano meramente subjetivo para ser analisada objetivamente, a partir do momento em que a estética despontou para chamar a atenção de cientistas políticos, sociólogos e, em tempos mais recentes, do jurista ambiental na proteção da beleza paisagística.

Uma das justificativas iniciais para a proteção da natureza foi o reconhecimento de que ela, em si mesma, na sua complexidade e diversidade de formas e cores, poderia ser bela, extraordinariamente bela. Eis o berço da paisagem, como noção cultural, mas também jurídica. Ao contrário da acirrada disputa sobre o significado da Natureza, em relação à paisagem, mesmo na sua acepção de beleza natural, ninguém põe em dúvida o seu matiz de construção social, conquanto dependente da apreciação humana (BENJAMIN, 2005).

No alvorecer do Direito Ambiental, convencionou-se que o foco da proteção do meio ambiente deveria ser os processos ecológicos necessários à manutenção da vida, o que razoavelmente afastava um pouco a veneração da beleza natural, enxergada como uma percepção extrínseca não absolutamente essencial à qualidade de vida (BENJAMIN, 2005).

Pouco a pouco, porém, o redescobrimento da beleza natural ao redor do mundo propiciou um alargamento e amadurecimento da tutela do meio ambiente a partir do diálogo do Direito Ambiental com outras áreas do conhecimento, tais quais a filosofia e a psicologia, o que fez com que ele despertasse para a proteção da paisagem e para a consagração da essencialidade do belo12.

Nesta esteira, Benjamin (2005) preleciona com sensibilidade ímpar:

No presente, já não adoramos, no sentido religioso, a Terra, embora não consigamos ficar insensíveis às suas belezas visíveis, enquanto outros começam a apreciar os segredos íntimos de sua organização e estrutura, de inigualável complexidade. Numa palavra, pouco importa a fé ou religiosidade, todos hoje se sentem, de uma forma ou de outra, em maior ou menor grau, vinculados aos destinos da Terra e, a partir dela, às belezas que ela oferece. Eis a importância da paisagem, no discurso político, cultural, ético e jurídico da proteção do meio ambiente.

E não poderia mesmo ser de outra forma, já que, com o crescimento irrefreável das cidades, associado à explosão demográfica e a demanda crescente por alimentos e matérias primas, houve um forte choque entre a natureza e o processo de urbanização assente no modelo de desenvolvimento essencialmente econômico e de satisfação das necessidades do capitalismo.

Marchezini (2009) ilustra bem esse cenário de gigantesco movimento de construção urbana:

O Brasil, como os demais países da América Latina, apresentou intenso processo de urbanização, especialmente na segunda metade do século XX. Em 1940, a população urbana era de 26,3% do total. Em 2000, passou para 81,2%. Esse crescimento se mostra mais impressionante ainda se lembrarmos os números absolutos: em 1940, a população que residia nas cidades era de 18,8 milhões de habitantes, e em 2000, ela era de aproximadamente 138 milhões [02]. Constatamos, portanto, que em 60 anos os assentamentos urbanos foram ampliados de forma a abrigar mais de 125 milhões de pessoas.

Neste cenário, segundo Odum (1988, p.47), embora as cidades ocupem apenas de 1 a 5% da superfície terrestre, elas alteram “a natureza dos rios, florestas e campos, naturais e cultivados, para não falar na atmosfera e nos oceanos, por causa do seu impacto, sobre os extensos ambientes de entrada e saída”, o que escancara o potencial destruidor de uma ocupação urbana em pleno descompasso com a proteção ambiental.

Por esta razão, Marchezini (2009) assinala, a respeito do conveniente exacerbamento da proteção paisagística na seara ambiental:

A preocupação com a paisagem, em especial com a paisagem urbana emerge da necessidade de se ajustar o território e as ocupações urbanas de modo que propiciem qualidade de vida aos seus habitantes, e de preservar os espaços verdes e demais áreas de interesse ambiental que sobreviveram ao processo de ocupação.

Felizmente o Direito Ambiental trouxe a paisagem de volta para a agenda política de diversos países ao redor do mundo, resgatando a valorização do belo e alçando a beleza das cidades a um patamar protetivo de destaque, enquanto microbem ambiental essencial à manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

É o que leva Antônio Herman Benjamim a refletir:

Realmente, quando imaginávamos que o Direito ambiental já havia se consolidado em um espaço mais ou menos definido, eis que, recentemente (re)surge a paisagem como um dos seus temas centrais, tanto no Direito Internacional (e aí está a convenção européia da Paisagem), como no Direito Interno. Apropriadas aqui as palavras de Lewis Mumford, em sua obra clássica, quando lembra que "felizmente a vida tem um atributo previsível: é cheia de surpresas. A paisagem é uma delas” (BENJAMIN, 2005).

Assim, a paisagem passa a ser contemplada como um elemento essencial à sadia qualidade de vida da sociedade (tal qual preconiza o art. 225 da CF/88), muito por conta de suas funções estéticas e implicações psicológicas (o que veremos adiante), reconhecida, destarte, como componente indissociável da concepção holística do meio ambiente e do bem-estar coletivo e individual.

Não é outro o entendimento de Benjamin (2005), com a precisão e senso crítico habituais:

A paisagem é sempre uma experiência humana, na medida em que o belo, pelo menos como o compreendo, é uma realidade apenas aos olhos de quem vê. Não deixa de ser uma noção de caráter antropocêntrico, mas que nem por isso perde seu valor, pois não rejeita influências biocêntricas e até ecocêntricas. É nessa ultima acepção que se pode falar em beleza do “meio ambiente ecologicamente equilibrado”, para usar a expressão da Constituição Federal de 1988. Consciente ou inconscientemente, para muitos a paisagem deixa de ser a relevância da beleza de um fragmento natural e ressurge como um atributo holístico da própria natureza, de toda a natureza.

Essa percepção desfragmentada e holística explica o fato de a paisagem ter ingressado, nos últimos anos, na agenda da proteção ambiental de vários ordenamentos, o que se deve, “entre outras causas, às mudanças significativas da percepção que o público tem do nosso meio ambiente natural. Sentimento esse que acaba por refletir-se no trabalho legislativo e no funcionamento dos tribunais” (BENJAMIN, 2005).

Marchezini (2009) corrobora com esse entendimento ao dispor que essa crescente proteção “decorre da necessidade humana de conviver com elementos sensoriais que lhes proporcionem bem estar físico e psíquico, intimamente relacionados com a proteção à qualidade de vida a que alude o texto constitucional”.

Contudo, se o redespertar do interesse em relação à paisagem e à valorização do belo é uma grata surpresa para aqueles que pensavam que o Direito Ambiental já havia definido todos os seus limites de atuação, este é só o início de uma longa caminhada, uma vez que o inegável valor das belezas naturais enfrenta ainda uma série de desconfianças e desperta o antagonismo de tantos outros que consideram a sua proteção dispensável.

A paisagem da cidade, então, passa a ser percebida como um bem ambiental de extrema importância e que já conta com algum regramento jurídico no plano internacional, nacional e local, mas que ainda padece com pré-conceitos relacionados à concepção de beleza e com a ausência de ações mais efetivas de prevenção e reparação (MARCHEZINI, 2009, grifamos).

Dessarte, trilhado esse breve percurso sobre a ascensão da paisagem no ideário coletivo e no cenário jurídico, podemos dizer, num primeiro e mais simples conceito extraído do léxico da língua portuguesa, que ela é “a extensão de território que se abrange com o lance de uma vista”.

Já para o reconhecido geógrafo brasileiro, Milton Santos, a paisagem é “um conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza”. De maneira bem próxima, Maximiano (2004, p.90) diz que a “paisagem pode ser entendida como o produto das interações entre elementos de origem natural e humana, em um determinado espaço”.

Marchezini (2009) complementa ao afirmar que ela abrange, portanto, na grande maioria dos casos, “elementos naturais e culturais, sendo cada vez mais rara, em nosso planeta, a existência de paisagens absolutamente livres de quaisquer interferências humanas”.

De forma bastante similar, Fiorillo (2006) apresenta sua definição da paisagem como sendo

o conjunto de componentes de determinado espaço  que pode ser apreendido pelo OLHAR DA PESSOA HUMANA. A função do olhar, para a pessoa humana, é exercer o sentido da VISÃO, a saber, perceber o mundo exterior pelos órgãos da vista.

Para Brasil Pinto (2003, p.90), a expressão surgiu no Renascimento para indicar “uma nova relação entre os seres humanos e seu ambiente, representando a continuidade entre a natureza e os olhos do espírito, como comovente articulação entre imagem e pensamento, capaz de provocar sedução ou repulsa”.

No que toca à paisagem urbana, Ernest Burden (2006), assinala que ela é "representada pela silhueta de grupos de estruturas urbanas que formam um perfil, incluindo marcos e elementos naturais, como colinas, montanhas ou grandes corpos de água".

De maneira análoga, mas dando ênfase particular aos elementos artificiais, o renomado arquiteto Gordon Cullen (1971, p.1) dispõe que a paisagem urbana “é um conceito que exprime a arte de tornar coerente e organizado, visualmente, o emaranhado de edifícios, ruas e espaços que constituem o ambiente urbano”.

Na legislação infraconstitucional, a Lei 14.223/06 do Município de São Paulo também apresenta a sua definição da paisagem urbana, para fins de aplicação da lei:

Art. 2º. [...] considera-se paisagem urbana o espaço aéreo e a superfície externa de qualquer elemento natural ou construído, tais como água, fauna, flora, construções, edifícios, anteparos, superfícies aparentes de equipamentos de infra-estrutura, de segurança e de veículos automotores, anúncios de qualquer natureza, elementos de sinalização urbana, equipamentos de informação e comodidade pública e logradouros públicos, visíveis por qualquer observador situado em áreas de uso comum do povo.

Já para o nosso insigne constitucionalista José Afonso da Silva (2008, p.307), a paisagem urbana representa “a roupagem com que as cidades se apresentam a seus habitantes e visitantes”; roupagem esta que influi decisivamente para a qualidade de vida nas cidades, razão pela qual se torna imperativa a proteção de seu aspecto estético e, sem dúvida, dos cenários naturais remanescentes ainda intocados pelo ser humano.

Não é outra a posição de Marchezini (2009, grifamos), ao definir que

A paisagem é o conjunto de elementos visuais que dão testemunho das relações entre o homem e a natureza. A sua proteção, embora possa se identificar de modo individual diante de algum caso concreto em especial, encerra inegável interesse difuso por relacionar-se diretamente com a qualidade de vida e com o bem-estar da população. [...] É de toda a população, portanto, o interesse de morar em uma cidade ornamentada, plasticamente agradável e, por que não dizer, bela.

Maximiano (2004, p. 90), ao confirmar a relação simbiótica entre o homem e a paisagem, dirime qualquer dúvida subsistente a respeito da inquestionável necessidade de abraçarmos e protegermos esse bem jurídico que, de tão coincidente que é com a manifestação da vida em todas as suas formas, revela-se tão imprescindível à vida da espécie humana.

Como ambiente vivido e/ou captado pela consciência humana, a paisagem, de alguma maneira,sempre existiu junto com os seres humanos, levando ora à utilização prática de seus recursos, ora à contemplação e encantamento.

A sua proteção, pois, é tarefa do cidadão e do operador do Direito, protagonistas e maiores interessados na elevação da qualidade de vida proporcionada pela salvaguarda da paisagem. Conforme bem preleciona Minami e Júnior (2001), “a manutenção dos padrões estéticos no cenário urbano encerra inegável interesse difuso por relacionar-se diretamente com o bem-estar da população”, revelando o direito coletivo, de natureza indivisível, à preservação da estética urbana.

A PROTEÇÃO JURÍDICA DA PAISAGEM URBANA

Ao contrário de outros países, em que a tutela da paisagem alcançou um nível tal que já se fala até mesmo em um "Direito de Paisagem"13 (BENJAMIN, 2005), veremos que infelizmente no Brasil a legislação atinente ao tema ainda é insuficiente e esparsa, muito embora sinalize uma mudança alentadora no pensamento coletivo pouco a pouco refletida na estrutura jurídica.

No plano internacional, a Convenção Europeia da Paisagem, cujo início da vigência na ordem internacional data de 01/03/2004, tornou-se a principal referência em matéria de proteção à paisagem, inclusive no tocante à profícua apresentação de conceitos, tarefa delicada, mas sem dúvida necessária para uma abordagem precisa da tutela paisagística, dada a multiplicidade conceitual que, como vimos, permeia o tema:

Art. 1º - Para os efeitos da presente Convenção:

a) Paisagem designa uma parte do território, tal como é apreendida pelas populações, cujo carácter resulta da acção e da interacção de factores naturais e ou humanos;

b) Política da paisagem designa a formulação pelas autoridades públicas competentes de princípios gerais, estratégias e linhas orientadoras que permitam a adopção de medidas específicas tendo em vista a protecção, a gestão e o ordenamento da paisagem;

c) Objectivo de qualidade paisagística designa a formulação pelas autoridades públicas competentes, para uma paisagem específica, das aspirações das populações relativamente às características paisagísticas do seu quadro de vida;

d) Protecção da paisagem designa as acções de conservação ou manutenção dos traços significativos ou característicos de uma paisagem, justificadas pelo seu valor patrimonial resultante da sua configuração natural e ou da intervenção humana;

e) Gestão da paisagem designa a acção visando assegurar a manutenção de uma paisagem, numa perspectiva de desenvolvimento sustentável, no sentido de orientar e harmonizar as alterações resultantes dos processos sociais, económicos e ambientais;

f) Ordenamento da paisagem designa as acções com forte carácter prospectivo visando a valorização, a recuperação ou a criação de paisagens.

A Convenção, que também apresenta um importante catálogo referente à Educação Ambiental, contribuiu para a busca do desenvolvimento sustentável, visando estabelecer uma relação harmoniosa entre as necessidades da espécie humana - sobretudo no que toca ao desenvolvimento econômico - e a proteção do meio ambiente. Com efeito, o encontro privilegiou a valorização da paisagem enquanto elemento de substancial relevância para a qualidade de vida da sociedade.

No que diz respeito à sua eficácia, Marchezini (2009) destaca que

embora a Convenção Européia da paisagem tenha eficácia apenas no continente europeu, produzindo efeitos entre seus signatários, ela vem se transformando em referência mundial no campo das legislações de proteção, tanto que é referida pela grande maioria dos doutrinadores que abordam o tema, tendo influenciado até mesmo alguns julgados no Brasil.

Pois bem. No ordenamento jurídico pátrio, primeiramente no âmbito do que estabelece a Constituição Federal de 1988, Fiorillo (2006) destaca com clareza que "a paisagem (conjunto paisagístico) é um bem ambiental incluído explicitamente no art. 216, V, merecendo proteção em face de quaisquer danos ou ameaças, na forma do que estabelece o art. 216, § 4º, da Magna Carta".

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Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

[...]

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Enquanto o art. 225 assim dispõe:

Art. 216. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Dessarte, com base nos conceitos já apresentados neste trabalho e nas preleções da melhor doutrina, podemos dizer que a Constituição prevê a proteção à paisagem como elemento indissociável da garantia da qualidade de vida mencionada no caput do art. 225. Vejamos:

O art. 182, caput, observa que a garantia do bem-estar dos indivíduos é um dos objetivos da política de desenvolvimento urbano das cidades:

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei,tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes

Com base nesse dispositivo, Fiorillo (2002, p. 130-131) doutrina:

As cidades devem cumprir sua função social, propiciando a seus habitantes bem-estar. As metrópoles, em que pesem ser grandes focos comerciais, não podem ser entendidas como um espaço destinado somente à vida econômica, de modo que se faz imprescindível privilegiar outros aspectos, a fim de permitir a coexistência de atividades econômicas e o desfrute do bem-estar dos habitantes daquela localidade.

Nota-se, pois, que o entendimento do autor é consentâneo com a noção de que as metrópoles não podem ser condicionadas exclusivamente pelo aspecto econômico, cujo pragmatismo e ímpeto desenvolvimentista atentam de formal frontal contra a garantia do bem-estar insculpida no art. 182, caput, e contra a sadia qualidade de vida consagrada no art. 225, além, de claro, entrar em rota de colisão com o princípio da dignidade da pessoa humana que fundamenta a proteção ambiental.

Uma cidade não é um ambiente de negócios, um simples mercado onde até a paisagem é objeto de interesses econômicos lucrativos, mas é, sobretudo, um ambiente de vida humana, no qual se projetam valores espirituais perenes, que revelam às gerações porvindouras a sua memória. (SILVA, 2008. p.307)

É o entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal Federal:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ 164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral. Doutrina. A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA EM DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. [Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 3540 / DF. Pleno do Supremo Tribunal Federal. Relator(a): Min. Celso de Mello]

Não é divagação dizer que esse entendimento esposado pelo Excelso Pretório14 coaduna-se com a certeza de que é preciso combater a qualquer custo a tendência de se impor a subserviência do meio ambiente aos desideratos econômicos. Afinal de contas, com amparo no que pontuou (com brilhantismo) o professor Reis Marques (2007, p.78), "se o Direito é condicionado pelas estruturas económicas (estas são as que existem na realidade dos factos), a vida económica é também determinada pelo direito", numa relação de entrelaçamento e complementariedade a que o autor alude como uma “dependência recíproca”.

Neste espeque, Marina Silva (2003) assevera que "é chegada a hora de tomar consciência da realidade, sair da esquizofrenia que opõe o romantismo naturalista ao pragmatismo economicista", sendo certo que a importância da paisagem vai muito além de devaneios românticos que por vezes habitam o ideário dos ambientalistas, porquanto não restam dúvidas de que a sua tutela é inseparável da persecução da melhor qualidade de vida assegurada pela Constituição da República.

O uso dos bens ambientais está condicionado a uma perfeita integração dos fundamentos constitucionais indicados no art. 1º da Carta Magna, no sentido de compatibilizar a ordem econômica do capitalismo aos interesses de brasileiros e estrangeiros residentes no País portadores do direito ao piso vital mínimo (arts. 1º, III, e 6º da Constituição Federal) considerando claramente as especificidades da República Federativa do Brasil (art. 3º da Carta da República) [...] Assim, é a tutela jurídica da paisagem urbana que deverá regrar a atividade econômica de publicidade externa, por exemplo, e o "direito de informar" será necessariamente limitado pelas normas de ordenação do território. (MARCHEZINI, 2009, grifamos)

A proteção da paisagem se revela inquestionável por força do comprometimento do nosso ordenamento jurídico com a qualidade de vida expressa no art. 225 e em virtude da inserção da dignidade da pessoa humana entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, no art. 1º, III da Carta Republicana. A exegese combinada dos arts. 182, caput, do art. 216 e do art. 225 evidencia o vigor desse bem jurídico cuja salvaguarda se encontra em diversos dispositivos infraconstitucionais15.

Conforme preconiza Marchezini (2009), na visão dos antropocentristas, toda essa “proteção tem por princípio basilar a dignidade da pessoa Humana, e eventual lesão à paisagem urbana se insere na gama de proteções desse supra princípio constitucional" - que, como vimos, é um dos fundamentos primeiros da teoria dos direitos fundamentais.

Se passarmos à análise do regramento infraconstitucional brasileiro sobre a proteção da paisagem, destaca-se inicialmente a lei 6.938/1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente e apresenta, em seu artigo 3º, III, a definição da poluição (grifamos):

III - poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:

a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;

b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;

c) afetem desfavoravelmente a biota;

d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;

e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos;

Percebe-se no conceito trazido pela Lei a abrangência das degradações que afetam as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente, o que revela a preocupação com o aspecto estético e o associa diretamente com a qualidade ambiental.

Oportunamente, Benjamin (2005, p.12, grifamos) pontua que

Coube à Lei da Política Nacional do Meio Ambiente - Lei n° 6.938/81 - ecologizar a noção de paisagem, isto é, enxertá-la como um dos atributos do “meio ambiente ecologicamente equilibrado”. A rigor, não se tratou propriamente de um reconhecimento direto da paisagem, mas de incorporação, no conceito de poluição, de degradação da condições estéticas do meio ambiente37. Ou seja, as condições estéticas (= o belo, a paisagem) integram a estrutura da “qualidade ambiental”, referida pela lei.

No que tange à propaganda eleitoral e seu contumaz potencial poluidor, tanto a Lei 4.737 de 1965 (Código Eleitoral), quanto a Lei 9.504 de 1997, que versa sobre a propaganda eleitoral, vedam a propaganda que prejudique a estética urbana nos períodos eleitorais.

Art. 243. Não será tolerada propaganda:

VIII - que prejudique a higiene e a estética urbana ou contravenha a posturas municipais ou a qualquer restrição de direito.

Diante do intenso movimento de propaganda eleitoral que agride a estética das cidades, Fiorillo (2002, p.136) pondera com acerto que

sendo os candidatos alheios ao dispositivo legal, em busca de votos, penduram faixas, picham muros, fixam cartazes, tomando para si um espaço de uso comum do povo com o propósito de divulgar suas candidaturas.

Esquecem-se os candidatos, pois, de seu compromisso com a estética urbana e com a qualidade de vida do eleitorado, furtando-se de um compromisso ético com a sociedade e com o postulado da dignidade da pessoa humana ínsito à proteção paisagística.

Enquanto isso, a Lei 9.605/98, que trata dos crimes ambientais, define como criminosas as condutas que atentem contra o valor paisagístico:

Art. 63. Alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida:

Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.

Art. 64. Promover construção em solo não edificável, ou no seu entorno, assim considerado em razão de seu valor paisagístico, ecológico, artístico, turístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida:

Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa.

O Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97) veda, ainda, a utilização de publicidade e iluminação que possam comprometer a segurança do trânsito, conforme se extrai do teor dos artigos 81 e 82 do referido diploma legal.

Art. 81. Nas vias públicas e nos imóveis é proibido colocar luzes, publicidade, inscrições, vegetação e mobiliário que possam gerar confusão, interferir na visibilidade da sinalização e comprometer a segurança do trânsito.

Art. 82. É proibido afixar sobre a sinalização de trânsito e respectivos suportes, ou junto a ambos, qualquer tipo de publicidade, inscrições, legendas e símbolos que não se relacionem com a mensagem da sinalização.

Também na Legislação Federal, é digna de nota a proteção paisagística que o Decreto-lei 25/37 confere aos imóveis tombados contra anúncios ou cartazes que lhe impeçam ou reduzam a visibilidade. Mais do que isso, o instrumento normativo explicita a tutela aos elementos naturais dotados de feição notável e aprazível para o espírito humano.

Art. 1º [...]

§ 2º Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pelo natureza ou agenciados pelo indústria humana.

Art. 18. Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibílidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objeto, impondo-se nêste caso a multa de cincoenta por cento do valor do mesmo objéto.

Temos também a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, de número 9.985/00, que insere em seu art. 4°, inc. VI o objetivo de “proteger paisagens naturais e pouco alteradas de notável beleza cênica”.

Outrossim, a Função Social da Cidade cravada no art. 182 da Constituição Federal deu azo à criação da Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), que, nos dizeres de Marchezini (2009), inaugurou

uma proteção adicional à paisagem urbana, vez que determina, em seu art. 2º, que a política urbana tenha por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, tendo como uma das diretrizes gerais a "proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico", de acordo com o inciso XII do art. 2º.

No plano da legislação municipal, há também uma série de diplomas que merecem ser destacados. Em concordância com Marchezini (2009), embora os os PDU's (Planos Diretores Urbanos), Códigos de Posturas e Legislação Ambiental Local sempre tenham sido a referência na tutela do meio ambiente no âmbito dos municípios, recentemente muitos deles editaram leis específicas, a exemplo da Lei nº 14.223/2006 de São Paulo, conhecida como "Lei Cidade Limpa".

O Poder Executivo Municipal de São Paulo exerceu sua competência legislativa concorrente (CF, art. 30, II e II) ao promulgar a Lei 14.223/06 e está legitimado ao exercício do poder de polícia (Lei 5.172/66, art. 78) para ordenar os elementos que compõem a paisagem urbana, preservando, melhorando e recuperando as paisagens dos espaços para contribuir à sadia qualidade de vida. (NETO, 2010)

Criada contra a poluição visual que assola e já há tempos estigmatiza a capital paulistana, a Lei tem por escopo preservar e recuperar as paisagens da cidade como uma forma de contribuição à sadia qualidade de vida dos cidadãos. Desta forma, ao proibir a propaganda em outdoors e regular o tamanho de letreiros e placas de estabelecimentos comerciais, A Lei n. 14.223/2006, em concordância com Fiorillo (2006)

indica como objetivos de ordenação da paisagem do Município de São Paulo o atendimento ao interesse público em consonância com os direitos fundamentais da pessoa humana E AS NECESSIDADES DE CONFORTO AMBIENTAL, COM A MELHORIA DA QUALIDADE DE VIDA URBANA, assegurando, dentre outros os seguintes:

1) o bem-estar estético, cultural e ambiental da população;

2) a segurança das edificações e da população;

3) a valorização do ambiente natural e construído;

4) a segurança, a fluidez e o conforto nos deslocamentos de veículos e pedestres;

5) a percepção e a compreensão dos elementos referenciais da paisagem;

6) a preservação da memória cultural;

7) a preservação e a visualização das características peculiares dos logradouros e das fachadas;

8) a preservação e a visualização dos elementos naturais tomados em seu conjunto e em suas peculiaridades nativas;

Eis que, com o advento da Lei n. 14.233/2006 em São Paulo, foram edificadas diretrizes a serem observadas na colocação dos elementos que integram a paisagem urbana, dentre as quais o combate à poluição visual e à degradação ambiental e "a proteção, preservação e recuperação do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico, de consagração popular, bem como do meio ambiente natural ou construído da cidade” (Fiorillo, 2006).

No município de Vitória, Espírito Santo, Marchezini (2009) lembra que a Lei 5.954/2003, responsável por regular a instalação de elementos de publicidade externa na cidade, foi drasticamente alterada pela Lei 7.095/2007, com a ampliação de prazos e com a flexibilização de normas relevantes para a tutela paisagística, em razão de determinação judicial que acabou por ‘revogar liminarmente (sic)’16 alguns dispositivos da norma, de modo que o efeito repristinatório trouxe novamente à vigência o antigo Código de Posturas que não regulava a matéria, deixando o Município de Vitória carente de proteção normativa nesse sentido e refém das conveniências dos empresários-especuladores.

No campo das garantias, temos como instrumentos profícuos para a tutela jurídica do meio ambiente visualmente sadio a ação popular e a ação civil pública, disciplinadas respectivamente pela Lei 4.717/65 e pela Lei 7.347/85. Marchezini (2009) defende, ainda, a possibilidade de utilização do Mandado de Segurança, individual ou coletivo, “quando o ato lesivo se caracterizar como ato de autoridade e não houver necessidade de dilação probatória, vez que o direito à paisagem urbana configura-se como direito líquido e certo".

A Lei da ação popular (4.717/65) consagra expressamente em seu art 1º “os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico", da mesma forma que a Lei da ação civil pública (7.347/85) dispõe sobre os "bens e direitos do valor estético".

Nesse mesmo sentido, a Lei Orgânica do Ministério Público (8.625/93), em seu art. 25, IV, "a", prevê a legitimidade do parque para promover a ação civil pública para a

proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos.

Destarte, podemos perceber um recrudescimento significativo de diplomas legais de proteção à paisagem, o que decerto denota o amadurecimento jurídico do Brasil na seara da tutela paisagística e na valorização da estética urbana. Contudo, conforme alerta Marchezini (2009), o problema maior reside no plano da efetivação desses direitos, talvez pela ausência de um projeto sólido de educação ambiental17, dando maior aplicabilidade à Lei 9.795 de 1999, e pela postura ainda vacilante dos nossos tribunais no momento de solidificar o direito à paisagem frente aos argumentos economicistas.

A FUNÇÃO ESTÉTICA DA PAISAGEM URBANA E SUAS IMPLICAÇÕES PSICOLÓGICAS NO INDIVÍDUO

Trilhado o percurso da proteção da paisagem urbana no ordenamento jurídico brasileiro, é chegado o momento de analisar o seu aspecto estético e demonstrar os efeitos perniciosos que o menosprezo da beleza paisagística traz para a incolumidade psicológica dos indivíduos. Mais do que atributo, a estética é um dos valores nucleares da paisagem e, por tal, desejado pelo ser humano. “O valor é da essência humana. Assim como o conhecer e o querer. Todo o querer pressupõe um valor. Só queremos aquilo que no parece valioso e digno de ser desejado” (HESSEN, 1980, p.40).

Etimologicamente, a palavra estética provém do grego aisthetiké (perceber, sentir) e, no dicionário, é definida como a "ciência que trata do belo em geral e do sentimento que ele desperta em nós; beleza", semelhante ao campo da filosofia, onde, conforme aduz ARANHA (apud MARCHESAN, 2006), "a estética é o estudo racional do belo em relação ao sentimento que suscita nos homens".

Percebe-se que todos esses conceitos tem como essência a constatação de que o belo efetivamente desperta sentimentos nos indivíduos. De posse dessa premissa e sendo a estética um valor intrínseco à paisagem, revela-se a influência direta desse microbem ambiental no sentir de cada ser humano, que, "ainda que de forma involuntária, é cotidianamente impactado pelas paisagens urbanas, sofrendo as influências dessa percepção e ajuizando sobre o que vê" (MARCHESAN, 2006).

Reis (2011) preleciona que “a experiência estética nasce desse encontro sensível entre sujeito e objeto, em que o sentido não está em nenhum dos polos isoladamente, mas na interação estabelecida entre eles via percepção”. E neste plano sensorial, Benjamin (2005) destaca que a nossa visão prepondera sobre todos os outros sentidos, de modo que “nós somos profundamente marcados pelas associações visuais e sensoriais. Seres visuais, muito mais informação nos alcança pelos olhos do que pelos outros sentidos".

O homem do século XX e, consequentemente, o deste século, elabora 85% das informações do meio ambiente através do sistema visual. Esse hiper-desenvolvimento do sistema visual provocou uma certa atrofia no funcionamento dos outros órgãos dos sentidas, ou seja, do paladar, da audição, do olfato e, sobretudo, do tato. Ver é fundamental. Ver para crer parece ter se tornado o mote de vida do homem do século da comunicação. E exatamente por ser essa via de entrada na integridade interior de nosso organismo, uma das mais importantes para o ser humano moderno, convém que se exerça aqui redobrados cuidados, visto que tudo que penetrar à membrana do receptor visual traz em si e consigo determinado potencial para desencadear um processo de stress lá dentro do corpo. (BENJAMIN, 2005, grifamos)

Destarte, são inegáveis os efeitos que o belo exerce sobre os indivíduos, o que leva Minami e Júnior (2001) a concluir que o culto ao belo faz parte da cultura humana: “Não é por outra razão que cerca-se de ornamentos, valoriza a harmonia da forma e da cor dos objetos e suas qualidades plásticas e decorativas”. Por esta razão é que a proteção da beleza paisagística é decorrente justamente da necessidade humana de conviver com elementos sensoriais capazes de proporcionar bem-estar físico e psíquico, intimamente relacionados com a proteção à qualidade de vida a que alude o texto constitucional (MARCHEZINI, 2009). O belo alenta a visão, apazigua a mente e nutre o espírito, elevando, assim, a plenitude física, mental e espiritual do ser humano.

Quando Silva (2008, p.208) destaca a função estética da paisagem urbana, enxergada a partir da variedade de formas, do desenho urbano e da relação contrastante das construções com os elementos naturais, ele imediatamente menciona uma função psicológica que lhe é conexa, uma vez que esta remete aos efeitos da harmonia ou desarmonia desse cenário paisagístico sobre o equilíbrio psíquico dos cidadãos ali inseridos.

Nesse viés, Marchezini (2009) pontua:

Por ser dinâmica, não-estagnada, a paisagem teria por função a renovação e, com isso, a quebra na monotonia visual. Carregada de valor estético, a paisagem urbana exterioriza ambiências que permitem ao ser humano um conforto emocional, o apreço pelo belo, harmonia, paz de espírito. A beleza das paisagens é, nessa linha, fonte de inspiração para o indivíduo e interfere positivamente em seu processo produtivo e nas relações interpessoais, com reflexos sociais imediatos.

Percebe-se, com isso, que a beleza paisagística é capaz de atenuar as tensões cotidianas e devolver um pouco da paz e serenidade perdidas para os compromissos e frustrações diárias. Afora isso, o reconhecimento da importância da paisagem na higidez mental do indivíduo é pertinente até mesmo aos desideratos econômicos da sociedade capitalista moderna, pois, ao dar certo conforto emocional para o indivíduo, reoxigena-lhe os ânimos e lhe dá novo fôlego para produzir com mais qualidade.

A boa aparência das cidades surge efeitos psicologicos importantes sobre a população, equilibrando, pela visão agradável e sugestiva de conjuntos e de elementos harmoniosos, a carga neurótica que a vida citadina despeja sobre as pessoas que nela hão de viver, conviver e sobreviver. (SILVA, 2008, p.273)

Além de evocar atividades turísticas e equilibrar o incontornável processo de industrialização e crescimento econômico, "a beleza, associada aos valores estéticos, compõe a paisagem e atende a um anseio natural do ser humano pelo belo. Ajuda a reduzir o estresse e conforta emocionalmente os indivíduos" (MARCHEZAN, 2006).

A paisagem acaba por reduzir o caos da vida moderna que afasta os indivíduos de sua conexão intrínseca com a natureza, devolvendo-lhe a interação do "eu" com o todo, numa perspectiva holística, e permitindo a superação, ainda que momentânea, do egocentrismo. "Ela tem como nenhum outro ente a aptidão para relacionar o homem à natureza" (MARCHESAN, 2006) e para lhe resgatar a sensação de pertença e vinculação com elementos construídos por mãos que não as suas, sentimento abafado pelo advento da modernidade, conforme ilustra Limonad18 (2001, p.101):

As imagens da natureza, onde o homem e suas cidades se perdem em vastidões infinitas, onde o horizonte é vislumbrado e os ritmos da vida cotidiana são regulados pelo ritmo natural entre o nascer e o pôr do sol são substituídos, com o advento da modernidade, pelas frias formas da paisagem urbana moderna, uma paisagem não natural, um espaço que perdeu a profundidade, frio, limpo, estéril e pasteurizado que em suas formas arquitetônicas procura recriar a natureza e capturar o seu vigor. Na paisagem “moderna” constituída de espaços-formas restritos por outdoors, paredes de aço, vidro e concreto, por túneis, iluminada perenemente, dia e noite, o cotidiano se alarga além do nascer e do pôr do sol. Esta é uma paisagem onde as distâncias são suprimidas pelos transportes, alta velocidade e redes de comunicações, onde a profundidade perde-se nas fachadas espelhadas dos arranha-ceús.

Na mesma toada, Santos (2005, p.479), em artigo sobre o “direito de ver estrelas”, constata que a inigualável beleza proporcionada por uma noite estrelada tem se perdido em meio à poluição que obstrui a visão humana e acaba por privar o indivíduo da contemplação e do desfrute do céu, bem como dos efeitos positivos que eles trazem à sua esfera psíquica:

Não existe beleza comparada à uma noite estrelada. Anos, séculos, milênios, gerações de homens olhando as estrelas, investigando seus segredos. A contemplação do céu foi um dos motores da história da humanidade tal como a conhecemos. Fica uma pergunta que não quer calar: Será que nossos filhos, netos e a geração que está por vir terá o mesmo direito de contemplar o céu noturno, com sua infinita beleza? Infelizmente não. Com a modernidade essa beleza tem desparecido. (SANTOS, 2005, p.679)

Percebe-se que o crescimento acelerado das cidades, com o incremento da industrialização nas áreas urbanas, leva à inexorável destruição das áreas verdes no perímetro urbano, além de edificar um cenário frio, estéril, marcado por uma forte verticalização das cidades (RAMIRES, 1998, p.97), que promove a obstrução da paisagem e da contemplação e promove aquilo que o autor chama de "estandardização da fisionomia urbana". Conforme atesta Andreotti (2012, p.13), essa é a mesma modernidade que desfigura o perfil da paisagem urbana e dissemina “intervenções banais, incoerentes e desordenadas, que criam condições paisagísticas inaceitáveis19”.

Essa situação por muito tempo se escorou no fato de que a noção de belo era usualmente tratada com certa vagueza, com a adoção de um valor relativo da estética que descambava para o argumento de que a análise do belo figura no plano da subjetividade e seria, portanto, sempre variável. Contudo, Minami e Júnior (2001) prelecionam com acerto que, a despeito de percepções subjetivas, pode haver um mínimo de consenso em relação à beleza de elementos naturais em geral, tais quais a vegetação, o céu, lagos, rios e praias, e até mesmo de elementos artificiais, como monumentos, prédios históricos dotados de características marcantes de determinado estilo e fachadas visualmente desobstruídas, desnudando o valor absoluto da estética, a despeito de critérios de gosto.

No Direito Comparado, os juízes, por muitos anos, fraquejaram, quando chamados a decidir conflitos atinentes a valores estritamente estéticos. Nos Estados Unidos, p. ex., antes de 1950, os tribunais freqüentemente viam os valores estéticos como um luxo, em vez de uma necessidade, negando-lhes proteção legal. Ou, então, os consideravam subjetivos em demasia, recusando-se a virar “árbitros de gosto”, já que o prazer de um bem poderia ser a perturbação do outro, e vice-versa. (BENJAMIN, 2005)

Em via oposta, Benjamin (2005) menciona que felizmente é possível verificar, em tempos mais recentes, que vários países vem redescobrindo a essencialidade da paisagem, atentando para o belo em seu valor absoluto, como atributo da própria natureza, de modo que o autor indaga:

Uma das dificuldades que o legislador e o aplicador freqüentemente encontrarão é que os valores estéticos, mesmo quando juridicizados, são baseados na beleza, uma noção que desafia qualquer definição rígida em si mesma. Os valores estéticos são inevitavelmente subjetivos. Mas também o são outros atributos da vida humana, levados amiúde aos tribunais, como vergonha, dor e risco." Como, então, negar proteção ao belo?

E acresce, de maneira elucidativa:

O belo deixa de ser somente uma percepção extrínseca (= cultural e visualmente perceptiva), em proveito de uma percepção intrínseca, que valoriza os “segredos” da natureza: a apreciação estética vai do que vemos, sem grande esforço (as montanhas, o verde exuberante das florestas, a vitalidade dos rios), ao que não vemos, só sentimos intuitivamente, ou só notamos com o auxílio dos especialistas (os serviços ecológicos, a qualidade da água, a diversidade das florestas). É a posição do observador mais sensível, que compreende e aceita que ‘somos da natureza e estamos na natureza (BENJAMIN, 2005, grifamos).

A partir da superação da ideia de estética como algo passível de simples apreciação subjetiva, resgata-se, portanto, o referido sentimento de pertença, de conexão e unidade com a natureza. “A natureza não nos traz somente sua presença, ela nos ensina que estamos presentes nessa presença. A experiência estética que ela suscita nos dá uma lição de estar no mundo” (DUFRENNE, 2008, p. 76)

Mais do que isso, o equilíbrio do cenário urbano atrelado à harmonia estética viabiliza o equilíbrio psíquico e é, desta forma, essencial para a qualidade de vida dos cidadãos. Segundo aduz Benjamin (2005), "povos primitivos já enalteciam aspectos ou componentes da paisagem, por razões espirituais principalmente, a eles atribuindo características ou representações divinas", sensíveis que eram à capacidade que a apreciação da paisagem tem de reconectar o homem com aspectos transcendentais e sutis da existência.

Hoje, embora o ser humano não reverencie a Terra da mesma forma que outrora, ele se sente, a despeito da sua orientação ideológica ou religiosa, vinculado às belezas oferecidas pelo planeta (BENJAMIN, 2005), o que evidencia a proeminência da paisagem no discurso da tutela do meio ambiente20. “A experiência estética se situa na origem, naquele ponto em que o homem, confundido inteiramente com as coisas, experimenta sua familiaridade com o mundo” (DUFRENNE, 2008, p. 30-31).

Maximiano (2004, p.84) ilustrou, sobre essa experiência de familiaridade:

durante a dinastia I’ang, o paisagista Wang Wei descreve o jardim como uma miniatura do Universo, com elementos chave que são os montes e a água. Esta forma de paisagem também aparece nos jardins japoneses, que acompanham as residências. São concebidos para proporcionarem contato com a natureza, paz e conforto espiritual.

O potencial conectivo da paisagem é novamente colocado em destaque, pois é por intermédio dela que o ser humano consegue abstrair dos aspectos desgastantes da vida moderna e do stress cotidiano para buscar a serenidade que o seu valor estético proporciona. Afinal, conforme pontua Delfino (2002, p.82), “um ambiente rico em valor estético aumenta o sentimento de bem-estar, reduz a incidência de doenças mentais e físicas e males sociais”.

Ainda mais além, Marchesan (2006) lembra que é paisagem quem propicia,

uma nova relação entre os seres humanos e seu ambiente, representando a continuidade entre a natureza e os olhos do espírito, como comovente articulação entre imagem e pensamento, capaz de provocar sedução ou repulsa.

Neste passo, Minami e Júnior (2001) concluem com precisão irretocável que “é de toda a população, portanto, o interesse de morar em uma cidade ornamentada, plasticamente agradável e, por que não dizer, bela”, ao que Silva (2008, p.273, grifamos) reitera que

a boa aparência das cidades surte efeitos psicológicos importantes sobre a população, equilibrando, pela visão agradável e sugestiva de conjuntos e elementos harmoniosos, a carga neurótica que a vida citadina despeja sobre as pessoas que nela hão de viver, conviver e sobreviver.

Naquilo que importa ao Direito, Benjamin (2005) destaca que a beleza que lhe interessa pode ser tanto natural quanto artificial, o que reflete na organização do ordenamento. O autor destaca que já há algum tempo os urbanistas dão atenção à estética das cidades, onde se integra a paisagem artificial, isto é, uma criação estritamente humana, ao passo que "tendência bem mais recente é juridicamente valorizar a beleza natural, no seu complexo mosaico de integração do espaço físico, da flora e da fauna".

É mister destacar que o redescobrimento da beleza natural ao redor do mundo propiciou um alargamento e amadurecimento da tutela do meio ambiente a partir do diálogo do Direito Ambiental com outras áreas do conhecimento, tais quais a filosofia e a psicologia, o que fez com que ele despertasse para a proteção da paisagem e para a consagração da essencialidade do belo21, certo de que “a natureza por vezes nos brinda com seu espetáculo natural, podendo ser convertida em objeto estético pelo olhar humano” (DUFRENNE, 2008).

A partir do reconhecimento das funções estéticas da paisagem e das suas implicações psicológicas, ela pôde enfim ser reconhecida como componente indissociável da concepção holística do meio ambiente e do bem-estar coletivo e individual, sentimento que acabou refletido na produção legislativa e na orientação dos tribunais. Avanços não suficientes, mas que contribuem para que se supere, pouco a pouco, o famigerado rótulo de direito supérfluo que ainda ronda o direito à paisagem.

Observa-se um surpreendente crescimento de casos nessa área, na medida em que os planejadores empregam ferramentas criativas e complexas para identificar e proteger recursos estéticos. Há apenas alguns anos, seria difícil encontrar-se leis de proteção da paisagem, principalmente no plano nacional, muito menos a salvaguarda da paisagem como componente de uma mais ampla tutela do meio ambiente. (BENJAMIN, 2005)

Hoje, há um rol significativo de diplomas legais que tratam da paisagem e refletem a preocupação crescente da sociedade com a beleza estética das suas cidades, o que mostra que o direito, enquanto fenômeno social, vem gradativamente se afeiçoando ao valor estético e reconhecendo os efeitos nocivos que a degradação visual tem sobre a psiquê humana e, por conseguinte, sobre a qualidade de vida protegida pela Constituição.

A paisagem que interessa ao direito é sensitivo-espiritual. Carregada de valor estético, exterioriza ambiências que permitem ao homem um conforto emocional, apreço pelo belo, pela harmonia, paz de espírito. Uma paisagem bem estruturada contribui indubitavelmente para a elevação espiritual do ser humano, em oposição ao caos, cenário que conduz à opressão, ao estresse, à total ausência de qualidade de vida. (MARCHESAN, 2006, grifamos)

Na mesma toada, Marchezini (2009) propõe, como critério de responsabilização dos sujeitos violadores da paisagem, a análise da função estética, cuja agressão trará como consequência jurídica a reparação dos danos materiais e morais decorrentes “da perda ou deterioração do elemento visual de conexão entre o homem, suas criações e a natureza, bem como de seus reflexos sobre o macrobem ambiental”.

a Administração Pública e os tribunais não podem deixar de ter uma função de prevenção, vigilância e interdição de efeitos anti-estéticos, sendo-lhes interdito que se refugiem em razões de subjectividade laxistas, dado que há critérios normativos suficientemente expressivos, mesmo que assentes em conceitos indeterminados, que lhes cumpre densificar casuisticamente a exigência de respeito pela estética urbanística. (CONDESSO, 2010, p.55, grifamos)

Diante desse cenário, diversos instrumentos jurídicos têm se mostrado fundamentais na elevação da função estética ou da proteção das paisagens naturais, segundo bem lembra Delfino (2002, p.71). No plano internacional, a Convenção para a Proteção da Herança Mundial Cultural e Natural, de 16 de novembro de 1972, menciona o ponto de vista estético como critério para se considerar elementos naturais como herança natural; a Convenção para a Conservação dos Habitats Naturais e da Vida Selvagem Europeia, de 1979, reconhece que "a flora e a fauna selvagens constituem um patrimônio natural que reveste valor estético"; o Protocolo ao Tratado da Antártida sobre Proteção Ambiental, de 1991, se refere expressamente aos valores estéticos como vetor de proteção do ambiente da Antártida. Vários instrumentos que sinalizam a imensa importância da proteção dos valores estéticos.

É importante destacar que, conforme visto em linhas anteriores, a estética é um dos valores ínsitos à paisagem e é, por isso, desejada pelo ser humano, mas ao seu lado reside um outro valor, conforme Marchesan (2006), que é a funcionalidade, elemento intimamente relacionado com o valor estético. Afinal, não se pode perder de vista que a paisagem deve propiciar que a cidade viabilize as suas funções sociais de forma satisfatória. Para que isso seja alcançado, o equilíbrio urbano-ambiental precisa ser resguardado, “sob pena de afetar a saúde psíquica e física dos indivíduos, fenômeno cada vez mais crescente nos dias de hoje, especialmente concentrado nos grandes centros urbanos” (MARCHESAN, 2006).

Feita essa ressalva, resta claro que a função estética da paisagem urbana deve ser preservada em virtude da sua vinculação com a incolumidade psíquica do ser humano e, portanto, da sua essencialidade para a manutenção da qualidade de vida da sociedade. Nesse prisma, a beleza paisagística não pode ser tratada como mero valor efêmero e de trato subjetivo, mas sim como valor absoluto e atributo indissociável da paisagem - que se pretende revelar como direito fundamental e corolário da própria dignidade da pessoa humana.

A PAISAGEM URBANA E SUA FUNÇÃO ESTÉTICA COMO DIREITO FUNDAMENTAL

Muito embora o meio ambiente ecologicamente equilibrado, macrobem ambiental, figure no rol dos direitos fundamentais, sendo a doutrina uníssona nesse sentido, a paisagem urbana, enquanto microbem ambiental essencial à higidez do equilíbrio ecológico, padece diante de uma abordagem generalista, talvez vitimada pela ausência de um consenso acerca do seu núcleo conceitual, mormente no que tange ao seu valor estético.

Como resultado, a paisagem e sua função estética acabam analisadas sob um olhar superficial, quase como se fossem elementos extrínsecos à tutela ambiental, e não parte indissociável dela e, por conseguinte, da qualidade de vida da espécie humana.

À colação, nesse sentido, as ideias de Teixeira (2006, p. 67):

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no Brasil, a exemplo de outros países, é apresentado e estruturado como direito fundamental por ser essencial à sadia qualidade de vida; e tem como meta, entre outras, a defesa dos recursos ambientais de uso comum, ou seja, o patrimônio da humanidade, necessários para uma vida digna. Este direito é portador de uma mensagem de interação entre o ser humano e a natureza para que se estabeleça um pacto de harmonia e de equilíbrio. Ou seja, um novo pacto: homem e natureza. Fixada sua importância, passa a ser reconhecido como direito fundamental, embora não conste como tal no catálogo destes direitos.

Mazzuoli (2004, p. 109), na mesma esteira, examinando o art. 225 da Constituição Federal de 1988, sustenta:

Este dispositivo do texto constitucional consagra também o princípio segundo o qual o meio ambiente é um direito humano fundamental, na medida em que visa a proteger o direito à vida com todos os seus desdobramentos, incluindo a sadia qualidade de seu gozo. Trata-se de um direito fundamental no sentido de que, sem ele, a pessoa humana não se realiza plenamente, ou seja, não consegue desfrutá-lo sadiamente, para se utilizar a terminologia empregada pela letra da Constituição.

Verifica-se, pois, que a fundamentalidade do macrobem ambiental mencionado reside no fato de ele ser essencial à sadia qualidade de vida, com todos os seus desdobramentos. Já restou claro que a paisagem urbana, com sua função estética, é essencial à vida sadia e tem como sustentáculo a dignidade da pessoa humana, princípio que sustenta e orienta a teoria dos direitos fundamentais.

Conforme destacado no capítulo inicial do presente trabalho, os direitos fundamentais possuem como um de seus caracteres especiais a historicidade, pois surgem dentro de um determinado contexto histórico-social, quando certas necessidades humanas se revelam prementes e passam a clamar por juridicidade. Essa característica reflete a concepção do direito enquanto fenômeno social, reflexo dos interesses que emanam a todo momento da sociedade22.

Bobbio (2008, p. 05) confirma essa assertiva, reconhecendo os direitos fundamentais como direitos históricos, isto é, surgidos em determinadas circunstâncias, "caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas", ao que arremata: "O mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído".

Eis que a paisagem urbana, microbem ambiental, desponta como elemento também essencial à sadia qualidade de vida e ao bem-estar da população, com efeito, digna de ser reconhecida como verdadeiro direito fundamental, uma vez que são notórios os efeitos perniciosos que a poluição visual traz para a incolumidade psíquica dos seres humanos.

A importância cada vez mais evidente de se proteger a paisagem urbana se coaduna com a referida noção de entrelaçamento entre valores imperativos que nascem do tecido social e a sua respectiva positivação como direitos fundamentais, a partir do momento em que esses valores se revelam indispensáveis e essenciais para a vida digna dos indivíduos.

Em que pese o sistema protetivo do ordenamento jurídico pátrio seja referência planetária no que toca à persecução do equilíbrio ecológico consagrada na Constituição, a beleza das cidades, no embate constante com os desideratos economicistas, carece de uma proteção mais sólida, condizente com o crescente reconhecimento da sua proeminência na proteção da qualidade de vida humana.

Nessa direção, como bem lembra Mendes e Branco (2012, p.307), fundamental destacar que

A sedimentação dos direitos fundamentais como normas obrigatórias é resultado de maturação histórica, o que também permite compreender que os direitos fundamentais não sejam sempre os mesmos em todas as épocas, não compreendendo, além disso, invariavelmente, na sua formulação, a imperativos de coerência lógica.

A essencialidade da paisagem desponta da redescoberta da sua vinculação direta com a higidez mental de todos os seres humanos e do seu papel indispensável na persecução da qualidade de vida estampada na Constituição, tratando-se de um bem ambiental de rara importância, decorrente da necessidade humana de convivência com elementos sensoriais que propiciam o bem estar físico, psicológico e espiritual.

Nessa toada, Silva (2010, p.70) rememora que o direito à vida, enquanto matriz de todos os demais direitos fundamentais do ser humano, é que deve orientar todas as formas de atuação no plano da tutela ambiental, razão pela qual ele paira sobre qualquer objetivo de desenvolvimento. A paisagem urbana, com seu valor estético, é elemento essencial à ampla proteção do meio ambiente e, por isso, esse microbem ambiental deve ser reconhecido como verdadeiro direito fundamental.

As palavras de Marchezini (2009) dão força a tais assertivas:

Todos sabem que a paisagem urbana é um microbem ambiental essencial para a qualidade de vida. A beleza das cidades deve ser considerada como um direito fundamental, corolário do direito à vida, sendo que função social da cidade está estritamente vinculada à harmonia dos cenários urbanos.

A capacidade que a paisagem tem de atenuar os efeitos psicológicos desgastantes provocados pelo cotidiano dos indivíduos revela o seu caráter indispensável à qualidade de vida dos cidadãos, que necessitam desfrutar do potencial conectivo proporcionado pela contemplação da beleza paisagística, capaz de confortar a mente e elevar o espírito, atenuando os dissabores da vida cotidiana.

O crescimento desordenado dos centros urbanos incrementa cada vez mais o cenário de caos paisagístico, de modo que estamos no momento mais oportuno possível para a elevação da paisagem urbana ao nobre status de direito fundamental, sendo ela atributo do direito à vida e cada vez mais ameaçada pela poluição visual desmedida que assola as nossas cidades.

O ordenamento jurídico brasileiro revela em diversos dispositivos sua preocupação com a tutela da estética da paisagem. Não se pode, todavia, afirmar que o combate à poluição visual no Brasil ganhou o status merecido. As empresas de comunicação externa avançam sobre nossas cidades instalando painéis de grandes dimensões. A consciência sobre a importância de deter esse avanço ainda é fraca e a reação da sociedade é tímida. Talvez seja necessário chegar a um grau insuportável de poluição visual para que se desencadeie uma reação (MINAMI, 2001).

Neste contexto, deve-se ter em mente que não se trata de mera questão legislativa, uma vez que, consoante Ramos (2004), a paisagem urbana só terá a importância devida quando deixar de ser tratada como paciente que não inspira cuidados, isto é, quando for superada a noção de direito supérfluo, orientado tão somente por critérios subjetivos. Já foi demonstrado que a estética urbana tem seu valor absoluto, objetivo, para além de uma apreciação meramente subjetiva.

O alento maior é que, se outrora a paisagem urbana sequer era considerada um bem jurídico tutelável, a sociedade já há algum tempo despertou para a essencialidade do belo, reconhecendo-o como um valor indispensável à vida em sua plenitude, afinal, "todos hoje se sentem, de uma forma ou de outra, em maior ou menor grau, vinculados aos destinos da Terra e, a partir dela, às belezas que ela oferece" (BENJAMIN, 2005).

Esse microbem ambiental influencia diretamente o sentir de cada ser humano, que todos os dias é impactado pelas paisagens urbanas que testemunha e sofre as influências dessa percepção. O potencial conectivo da beleza paisagística afasta, ainda que momentaneamente, o indivíduo das agruras do dia a dia e lhe propicia uma interação reconfortante com o meio ambiente, resgatando a serenidade perdida a todo tempo para os cenários urbanos feios e desarmonizados.

Se destacamos no início deste trabalho que o direito é um conjunto de normas que, orientado por valores, tem por função precípua reger a vida em sociedade, a estética paisagística é sem dúvida um desses valores, sobretudo pelas suas reconhecidas implicações psicológicas e por ser um dos elementos integrantes da percepção holística do meio ambiente e do bem-estar coletivo.

O mencionado "Direito vivo" proveniente da sociologica jurídica e presente nos estudos de Ehrlich (1986, p.27) concebe o direito como produto social espontâneo, proveniente dos valores e paradigmas que emergem da sociedade em determinado contexto espaço-temporal. Nesse cenário, os direitos fundamentais, enquanto vetores da convivência social e sustentados pela proteção da dignidade humana, orientam os ordenamentos jurídicos contemporâneos e traduzem os valores mais caros à sociedade, pois, no qualitativo fundamentais, conforme leciona Silva (2010, p.178), "acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive".

Em meio à necessidade de se adequar o cenário das ocupações urbanas e do desenvolvimento econômico à preservação dos espaços verdes e da harmonia visual das cidades, a paisagem passa a ocupar posição de extremo destaque na abordagem ambientalista, considerada um bem ambiental essencial à sadia qualidade de vida, diante da sua cada vez mais valorizada função estética.

Os entraves conceituais que permeavam o tema foram reduzidos pelos estudos doutrinários e pelo rol de diplomas legais que passaram a cuidar da paisagem. Ademais, a sociedade e a comunidade científica já reconheceram os efeitos que a interação sensorial com a paisagem provoca nos indivíduos, além de a proliferação legislativa e o tratamento dos tribunais já terem sinalizado a essencialidade da paisagem para o bem-estar coletivo.

Essa convergência de fatores demonstra que a paisagem é um verdadeiro direito fundamental de terceira geração, reflexo de uma exigência específica da sociedade moderna, atenta ao potencial conectivo e revigorante da paisagem.

Seria mais producente buscar, em cada caso concreto, as várias razões elementares possíveis para a elevação de um direito à categoria de fundamental, sempre tendo presentes as condições, os meios e as situações nas quais este ou aquele direito haverá de atuar. Não basta, assim, que um direito encontre bons motivos filosóficos, aceitos no momento, para ser positivado; é indispensável, ainda, o concurso de condições sociais e históricas favoráveis para que se incorpore aos estatutos vinculantes. (MENDES e BRANCO, 2012, p.321)

A função estética da paisagem já demonstrou ser portadora de valor absoluto, de modo que a beleza da paisagem urbana se revela como um verdadeiro direito fundamental, vinculado à sadia qualidade de vida das gerações presentes e também das porvindouras, numa perspectiva de solidariedade intergeracional que é indispensável ao direito ambiental. A beleza paisagística é interesse de todos os que habitam o planeta nos dias de hoje e de todos os que ainda virão, pois a vida não alcança a plenitude quando privada da essencialidade do valor estético.

Conforme destaca Delfino (2002, p.84)

Apesar das dificuldades de conceptualização, o tema deverá ser objecto de tratamento sistemático e integrado (recorrendo à colaboração de todos os sectores da população) para que a estética e a paisagem se tornem numa preocupação política principal, pelo seu papel no bem estar dos cidadãos, que já não pretendem tolerar a alteração do espaço que os rodeia, por desenvolvimentos técnicos e económicos, sem que a sua opinião seja ouvida. A estética e a paisagem enquanto preocupações generalizadas são propícias ao tratamento democrático, particularmente ao nível local e regional.

Dito isto, como verdadeiro direito fundamental, está-se diante de um direito de aplicação direta, em

sentido preceptivo e não apenas programático; vale por si mesmo, sem dependência da lei. A ulterior regulamentação ou desenvolvimento pelo legislador ordinário ajudará somente a densificar a sua exeqüibilidade. E vincula, desde logo, todas as entidades públicas e privadas (RAPOSO, Mário, 1994, p.115).

Nesse tocante, Benjamin (2008, p. 60) lembra que a Constituição, no seu art. 5º, § 1º, é clarividente ao dispor: "As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata". Debruçado sobre esse dispositivo, lembra Eros Roberto Grau (2004, p.287):

Isso significa que tais normas devem ser imediatamente cumpridas pelos particulares, independentemente da produção de qualquer ato legislativo ou administrativo. Significa, ainda, que o Estado também deve prontamente aplicá-las, decidindo pela imposição do seu cumprimento, independentemente da produção) de qualquer ato legislativo ou administrativo, e as tomando jurídica ou formalmente efetivas.

Destarte, a fundamentalidade da paisagem urbana e seu valor estético é inquestionável, dotada, assim, de aplicabilidade direta e revestida com a mesma robustez jurídica dos demais direitos fundamentais, detentores da supremacia na ordem constitucional e blindados contra a possibilidade de o legislador ordinário tentar aboli-los, seja qual for o motivo. A paisagem já demonstrou o seu caráter elementar, de necessidade primeira, tratando-se de um direito de relevância maior para a consagração da dignidade da pessoa humana.

A se considerar a pessoa como valor nuclear da democracia, impondo-se, por conseguinte, a proteção absoluta de sua integridade física, psíquica e espiritual no núcleo de toda e qualquer ação estatal, torna-se absolutamente compreensível e lógica a sua associação inexorável aos direitos fundamentais, cuja fundamentalidade, repisa-se, emana da primazia do valor da pessoa humana. A beleza paisagística tem relevância irrefutável na existência plena dos indivíduos e no bem viver da coletividade, não restando dúvidas, sem qualquer subjetividade, que o desfrute do belo é fundamental, tamanhos os benefícios que traz à saúde psicológica e espiritual de todos os seres humanos.

Sobre o autor
Felipe Augusto Rocha Santos

Bacharel em Direito pela FDV - Vitória

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Felipe Augusto Rocha. Função estética da paisagem urbana:: o direito fundamental à beleza paisagística. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3975, 20 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28658. Acesso em: 23 dez. 2024.

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