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O super Poder Judiciário.

Legítimo ativismo judicial ou volta ao decisionismo?

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Agenda 27/05/2014 às 09:54

o presente estudo tem por objetivo abordar a atuação do Poder Judiciário, realizando uma análise crítica das decisões judiciais que trazem consigo uma aplicação equivocada de princípios contra regras expressas e adequadas ao caso concreto.

O SUPER PODER JUDICIÁRIO:

LEGÍTIMO ATIVISMO JUDICIAL OU VOLTA AO DECISIONISMO?

Bruno César Maciel Braga*

Sumário: Introdução; 1. A unicidade do poder estatal, o princípio da separação dos poderes e o papel constitucional do Poder Judiciário; 2. O chamado ativismo judicial. Atividade jurisdicional que assegura a proteção de direitos fundamentais ou que serve para a função judiciária se sobrepor à função legislativa? A análise exemplificativa de precedentes judiciais; 3. O ativismo que permite a função judiciária se sobrepor à função legislativa, sob o argumento de se aplicar princípios: a posição da doutrina sobre o tema. Estaríamos voltando ao “decisionismo” das teorias positivistas do século XX?; 4. Considerações finais; Referências bibliográficas.

Resumo: o presente estudo tem por objetivo abordar a atuação do Poder Judiciário, realizando uma análise crítica das decisões judiciais que trazem consigo uma aplicação equivocada de princípios contra regras expressas e adequadas ao caso concreto. Para tanto, o texto tratará de temas como ativismo judicial e princípio da separação dos poderes, buscando servir de reflexão para uma postura mais prudente do Judiciário. O objetivo é evitar um retorno, indesejado e que representaria verdadeiro retrocesso, ao decisionismo das teorias positivistas do século XX, que traziam uma grande margem de insegurança jurídica, ao deixar à total discricionariedade do Magistrado a aplicação da norma à hipótese concreta posta sob sua apreciação.

Palavras-chaves: Poder Judiciário. Princípios. Ativismo Judicial. Separação de Poderes. Teorias Positivistas.

Summary: This study aims to address the judicial power, performing a critical analysis of judicial decisions that carry with them a misapplication of principles against explicit rules and appropriate to the case. Therefore, the text will address such topics as judicial activism and the principle of separation of powers, seeking to serve as a reflection to a more conservative judiciary. The goal is to avoid a return, unwanted and that could represent a real setback, to decisionism of positivist theories of the twentieth century, which brought a large margin of legal uncertainty, leaving the full discretion of Magistrate application of the rule to the concrete hypothesis put under your appreciation.


Keywords: Judiciary. Principles. Judicial Activism. Separation of Powers. Positivist theories.

Introdução

Como procurador federal, atuante no núcleo previdenciário, tenho percebido como os juízes têm agido em descompasso com a lei, usando da retórica principiológica para justificar quase tudo e, em larga medida, no processo previdenciário em desfavor do INSS.

Nesse contexto, para o desenvolvimento do presente artigo, analisaremos o papel constitucional do Poder Judiciário, frente ao princípio da separação dos poderes, apresentando, em seguida, algumas notas sobre o ativismo judicial e suas facetas.

Em seguida, abordaremos questionamento atinente à utilização do ativismo de cunho principiológico pelo poder judiciário, não raras vezes, como instrumento de sobreposição à atividade legislativa, num retorno ao decisionismo das teorias positivas do século XX.

Ato contínuo, lançaremos algumas reflexões sobre o tema, a partir de críticas que vêm sendo feitas à atuação do judiciário, com base principalmente na doutrina, a fim de, por derradeiro, apresentarmos nossas conclusões.

          

1. A unicidade do poder estatal, o princípio da separação dos poderes e o papel constitucional do Poder Judiciário.

Consoante o Art. 2º, da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88): “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

O termo “poder” na CRFB é polissêmico, ou seja, é empregado em sentidos diversos, sendo certo que no referido dispositivo constitucional, poder tem o sentido de “órgão”, cada um exercendo as funções que lhe foram atribuídas pelo texto constitucional. E quando o órgão fala, é o próprio Estado que fala.

Assim, não é correto dizer que a CRFB/88 adotou a separação tripartite de poderes. Isto porque tecnicamente o poder é uno, indivisível. O que existe são órgãos que exercem parcela do poder (função executiva, legislativa e jurisdicional).

Pois bem. Entendida a unicidade do poder estatal, é preciso compreender que o princípio da separação dos poderes apenas representa uma divisão de funções. E esta divisão se dá de modo preponderante. Assim, cada órgão exerce atividades principais (“típicas”) e secundárias (“atípicas”). Abaixo, breve exemplificação, com menção a dispositivos constitucionais:

FUNÇÕES:

TÍPICAS

ATÍPICAS

PODER LEGISLATIVO

a) inovar a ordem jurídica (art. 59);

b) fiscalizar (Arts. 58 e 70/75).

a) realizar função administrativa

(Arts. 51 e 52);

b) julgar (art. 52, P.U e Art. 86, parte final).

PODER EXECUTIVO

Aplicar a lei ao caso concreto, administrando a coisa pública.

a) Legislar (ex. MP – Art. 62 e Decreto –

Art. 64);

b) julgar (ex. processo administrativo-tributário).

PODER JUDICIÁRIO

Aplicar o direito ao caso concerto, substituindo a vontade das partes e resolvendo o conflito com força

definitiva.

a) Administrar (“auto-governo” dos

 tribunais – Art. 96, I);

b) Legislar (ex. regimento interno dos tribunais – Art. 96).

Tal estruturação funcional tem a função primordial de permitir o controle recíproco entre os poderes, a fim de evitar a hipertrofia de qualquer um deles. Trata-se do chamado sistema de freios e contrapesos (check and balances).

Portanto, o princípio da separação de poderes não deve ser visto como algo estanque, rígido, mas como algo dinâmico, flexível, na exata medida necessária para dar máxima efetividade ao texto constitucional, sem que se permita, entretanto, desvios desnecessários ou desproporcionais, que comprometam a necessária harmonia entre os Poderes, nos termos previstos na CRFB.

Nesse sentido, Coelho preleciona que:

 

Inicialmente formulado em sentido forte – até porque assim o exigiam as circunstâncias históricas – o princípio da separação dos poderes, nos dias atuais, para ser compreendido de modo constitucionalmente adequado, exige temperamentos e ajustes à luz das diferentes realidades constitucionais, num círculo hermenêutico em que a teoria da constituição e a experiência constitucional mutuamente se completam, se esclareçam e se fecundam. Nesse contexto de modernização, esse velho dogma da sabedoria política teve de flexibilizar-se diante da necessidade imperiosa de ceder espaço para a legislação emanada do Poder Executivo [...] bem assim para a legislação judicial, fruto da inevitável atuação de juízes e tribunais [...][1].

No mesmo sentido, André Ramos Tavares afirma que: “a tese da absoluta separação entre os poderes os tornaria perniciosos e arbitrários”.[2]

Portanto, nesse cenário, cabe ao Poder Judiciário aplicar o direito ao caso concreto, substituindo a vontade das partes, resolvendo o conflito com força definitiva. E nessa atividade de julgar, tem-se percebido que os juízes têm desbordado da tradicional postura de aplicar o direito, por mera subsunção da lei ao caso concreto, aplicando também princípios jurídicos para a solução do direito em litígio.

Ocorre que, conquanto o Poder Judiciário tenha atuado positivamente (na lacuna do ordenamento jurídico) em vários casos para assegurar direitos (o denominado “ativismo judicial”), com larga frequência tem se utilizado mal desse poder, apenas para fazer valer a vontade individual do julgador, inclusive em situações nas quais há direito posto expresso aplicável ao caso.

Esta última atuação não guarda respaldo constitucional e não pode ser considerada verdadeiro ativismo judicial ou, caso o fosse, teria necessariamente um sentido (um sinal) negativo.

A seguir será analisado o termo ativismo judicial de modo mais detido.

2. O chamado ativismo judicial. Atividade jurisdicional que assegura a proteção de direitos fundamentais ou que serve para a função judiciária se sobrepor à função legislativa? A análise exemplificativa de precedentes judiciais.

A origem do termo e a noção jurídica de ativismo está associada ao sistema common law, especialmente ao ordenamento jurídico inglês e norte-americano, conforme preceitua Arcênio Brauner, para quem: “As origens do ativismo judicial remontam à jurisprudência norte-americana[3].

Sobre o ativismo judicial, assim nos ensina Elival da Silva Ramos:

 

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Por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva[4].

 

Essa atuação do Judiciário que, de modo excepcional, preenche um espaço aberto no ordenamento jurídico para garantir direitos, chamada de ativismo judicial, analisada de modo apriorístico, é boa. Dito de outro modo, no contexto em que legitimamente utilizado, o posicionamento proativo do Judiciário é bem vindo.

Luis Roberto Barroso esclarece que:

 

(…) a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. Em muitas situações, sequer há confronto, mas mera ocupação de espaços vazios. (…) o ativismo é uma atitude, a escolha de modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. (…) o ativismo judicial legitimamente exercido procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, inclusive e especialmente construindo regras específicas de conduta a partir de enunciados vagos (…) (2011, p. 365)[5]. (destaque nosso)

 

Em outras palavras, é a partir da inviabilidade de se ter regras expressas para toda uma pluralidade de situações decorrentes da vida moderna, que se extrai a legitimidade da atuação supletiva/criativa do Poder Judiciário, dentro da ideia da mínima inovação necessária à proteção do direito discutido.

Exemplo dessa atuação positiva foi o novo posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação ao direito de greve dos servidores públicos. Antes, o Supremo, em apreciação de Mandados de Injunção, a exemplo do MI 20, apenas declarava a existência de “lacuna” (omissão) legislativa e permanecia inerte quanto à efetiva solução da questão, apontando a mora do Legislativo.

Agora, paralelamente à identificação da mora legislativa, o STF, em postura concretista geral, busca dar uma solução que, pelo menos de modo provisório, permita ao cidadão usufruir, de imediato, de um direito previsto no texto constitucional, ainda que implicitamente, enquanto não há a atuação positiva do Poder Legislativo, como fez no julgamento do MI 708.

Desse modo, não há usurpação da competência legislativa, a qual permanece hígida, mas o STF apenas procura resolver, dentro do arcabouço jurídico que lhe está disponível, o caso concreto que demanda apreciação jurisdicional, da qual não pode se omitir, nos termos do art. 5º, XXXV, da CRFB.

Essa atuação do Poder Judiciário está alinhada com a ideia da integridade do direito, na visão de Dworkin[6], a qual passa pela ideia de que há no direito uma solução adequada para todo conflito judicial, cabendo apenas ao intérprete identificar tal solução. Assim, não haveriam verdadeiramente “lacunas”, pois estas seriam apenas aparentes, não impedindo, portanto, o exercício de direitos, notadamente face ao disposto no §1º, do Art. 5º, o qual prescreve que os direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Entretanto, esse mesmo ativismo judicial, quando mal utilizado, não serve ao direito e à justiça, mas apenas para satisfazer a posição intelectual do julgador, em total descompasso com a segurança jurídica que se espera do Judiciário.

Exemplo disso ocorreu no julgamento da

Isso porque, com base em argumentos meramente econômicos e valorativos, entendeu inconstitucional a referida Lei, considerando onerosa, aos estabelecimentos que comercializam Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), a imposição legislativa de se pesar, à vista do consumidor, os botijões ou cilindros entregues ou recebidos para substituição, com abatimento proporcional do preço do produto ante a eventual verificação de diferença a menor entre o conteúdo e a quantidade líquida especificada no recipiente.

Pois bem. A relação entre Direito e Política é de complementariedade, de interdependência. O direito depende da política para ser cogente, característica que lhe é intrínseca e indispensável, sendo certo que a política também é dependente do direito para se legitimar.

Na atuação de inovar o ordenamento jurídico, o Poder Legislativo faz uso do argumento de política, por meio do qual se busca a implementação de atuações governamentais em prol da coletividade. Já o argumento de princípio pressupõe uma colisão real de princípios, a ser analisada pelo Poder Judiciário, em que o ordenamento jurídico apontará qual deve prevalecer, a fim de melhor garantir direitos e garantias fundamentais.

No entanto, extrai-se do julgamento em discussão que o STF utilizou argumento de política para subsidiar sua decisão, quando deveria ter se restringido a aplicar argumentos de princípios, já que a atuação política do Poder Legislativo Estadual do Estado do Paraná, com vistas a promover a defesa dos consumidores, não deveria ter sido superada por tribunal desprovido de legitimidade popular[7].

E aqui, a diferenciação entre discursos de justificação e de aplicação do direito (de Habermas e Günther) permite compreender ainda mais o equívoco da atuação do STF, na medida em que o discurso de justificação (pautado em argumentos éticos/políticos) utilizado para criação da referida norma pelo Poder Legislativo (como deve ser mesmo), não deveria sucumbir frente ao discurso de aplicação do direito (sem essas valorações extrajurídicas que permitem uma indevida e indesejada liberdade para se decidir de acordo com a valoração individual de cada julgador, em descompasso com a segurança jurídica que se espera), sob pena de usurpação de competência legislativa pelo Judiciário.

Portanto, percebe-se que o Poder Judiciário, no julgamento da ADI 855, agiu de modo equivocado, na medida em que fez uma leitura axiológica da Constituição, notadamente sob o viés valorativo político/econômico (típica da atividade legislativa), quando deveria ter feito uma leitura deontológica da Constituição, a partir da contextualização principiológica e normativa da CRFB/88.

Agindo assim, o Poder Judiciário (STF) substituiu o Poder Legislativo (do Estado do PR), afrontando o princípio da separação de poderes – ainda que guardada a noção moderna do princípio da separação de poderes, isto é, não de uma divisão absoluta, mas de uma divisão preponderante de funções estatais –, de importância basilar para a consolidação de um Estado Democrático de Direito.

É exatamente essa segunda forma de atuação do Judiciário que prejudica a segurança jurídica, atenta contra o princípio da separação de poderes, desintegra o ordenamento jurídico e afasta o direito de sua finalidade principal: pacificar o corpo social.

3. O ativismo que permite a função judiciária se sobrepor à função legislativa, sob o argumento de se aplicar princípios: a posição da doutrina sobre o tema. Estaríamos voltando ao “decisionismo” das teorias positivistas do século XX?

Esta atuação do Judiciário, sobrepondo-se à atividade legislativa peca por gerar insegurança jurídica, retirando qualquer parâmetro de controle sobre a atuação da magistratura, transformando o Judiciário no “superego” da sociedade, assumindo a posição de ditar os valores morais que devem preponderar em cada caso.

A doutrina é extremamente crítica dessa subversão da atuação do Judiciário. Nesse sentido, a lição do Professor Damião Azevedo acerca da Teoria de Robert Alexy – autor que tem servido de base teórica para a massiva aceitação e aplicação de princípios na atualidade:

Entretanto, esta conclusão aparentemente coerente e satisfatória não revela todas as implicações do caso. Alexy consegue elaborar seu método de ponderação proporcional porque compreende o direito como julgamento moral. O conteúdo jurídico dos princípios é substituído por um conteúdo moral. A juridicidade dos princípios decorre unicamente do momento de sua aplicação. Se a tarefa de ponderação de valores é a mesma, seja no plano da decisão subjetiva da conduta moral, seja no plano da decisão pública voltada para se dizer o direito, no fim das contas o discurso de aplicação de princípios jurídicos não é mais que um discurso moral que se dá num litígio de interesses jurídicos. Uma vez que trata com valores morais, a atividade judicial perde seu conteúdo jurídico, só se definindo como jurídica em função do procedimento especial adotado. O conteúdo de sua tarefa será sempre moral, pois o que se está a ponderar é o que é melhor (valores) e não o que é devido (direitos)[8]. (destaque nosso).

No ponto, oportuno trazer à tona trecho de entrevista do Procurador de Justiça Lênio Luiz Streck à CONJUR, a qual demonstra sua preocupação quanto à correta interpretação da chamada era dos princípios:

“CONJUR: Os princípios estão substituindo as leis? Lênio Luiz Streck: A era dos princípios não veio para transformar o Direito em um império de decisões baseadas na consciência individual de cada julgador. Princípios têm a função de resgatar o mundo prático no Direito. Por outro lado, decisionismos e/ou ativismos não são bons para a democracia. Se cada um decide como quer, os tribunais — mormente o STJ e o STF — acabam entulhados de processos. No fundo, a repercussão geral e as súmulas são uma resposta darwiniana a uma espécie de estado de natureza hermenêutico que criamos. Veja só: se fundamentarmos cada decisão até o limite, teremos uma maior accountabillity [prestação de contas em cada decisão]. Mais: se anulássemos decisões mal fundamentadas, não teríamos essa proliferação de embargos declaratórios. Sugiro, portanto, que cumpramos o artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal [estabelece que os julgamentos têm que ser públicos e as decisões, fundamentadas] que, antes de ser um direito, é um dever fundamental do juiz.” (destaques nossos)[9].

 

Em outro texto, o referido Jurista evidencia a nocividade do uso indevido de uma retórica principiológica para afastar o texto de lei, legítima e democraticamente produzido:

 

(...) em nome de que e com base em que é possível ignorar ou “passar por cima” de uma inovação legislativa aprovada democraticamente? É possível fazer isso sem lançar mão da jurisdição constitucional?

Parece que, no Brasil, compreendemos de forma inadequada o sentido da produção democrática do direito e o papel da jurisdição constitucional. Tenho ouvido em palestras e seminários que “hoje possuímos dois tipos de juízes”: aquele que se “apega” à letra fria (sic) da lei (e esse deve “desaparecer”, segundo alguns juristas) e aquele que julga conforme os “princípios” (esse é o juiz que traduziria os “valores” – sic – da sociedade, que estariam “por baixo” da “letra fria da lei”). Pergunto: cumprir princípios significa descumprir a lei? Cumprir a lei significa descumprir princípios? Existem regras (leis ou dispositivos legais) desindexados de princípios? Cumprir a “letra da lei” é dar mostras de positivismo? Mas, o que é ser um positivista?

Examinando o (novo) artigo 212 do CPP, chega-se a conclusão de que se está diante simplesmente do dever – inerente ao Estado Democrático de Direito – de cumprir a lei (constitucional), pois este, como se sabe, é um dos preços impostos pelo direito e, sobretudo, pela democracia! E, permito-me insistir: por vezes, cumprir a “letra da lei” é um avanço considerável. Lutamos tanto pela democracia e por leis mais democráticas...! Quando elas são aprovadas, segui-las à risca é nosso dever. Levemos o texto jurídico a sério, pois!

(...) Por vezes, “trabalhar” com princípios (e aqui vai a denúncia do panprincipiologismo que tomou conta do “campo” jurídico de terrae brasilis) pode representar uma atitude (deveras) positivista. Utilizar os princípios para contornar a Constituição ou ignorar dispositivos legais – sem lançar mão da jurisdição constitucional (difusa ou concentrada) – é uma forma de prestigiar tanto a irracionalidade constante no oitavo capítulo da TPD de Kelsen, quanto homenagear, tardiamente, o positivismo discricionarista de Herbert Hart. Não é desse modo, pois, que escapamos do positivismo."

(...)

A aplicação da insignificância – como de qualquer outro princípio jurídico – deve vir acompanhado de uma detalhada justificação, ligando-a a uma cadeia significativa, de onde se possa retirar a generalização principiológica minimamente necessária para a continuidade decisória, sob pena de se cair em decisionismo, em que cada juiz tem o seu próprio conceito de insignificância (que é, aliás, o que ocorre no cotidiano das práticas judiciais)”.[10] (destaques nossos).

            Interessante constatar, portanto, que essa atual postura do Judiciário rememora o decisionismo das teorias positivistas do século XX, as quais, centradas na legitimação do direito baseada na simples legalidade, entendiam o sistema jurídico como um complexo de regras fechadas, já existentes, que regulariam a vida em sociedade. Na ausência de regra pré-estabelecida para a solução de determinada situação concreta, isto é, em caso de lacuna, caberia ao juiz “decidir”, no uso da discricionariedade, criar uma nova regra, que seria aplicada retroativamente para solucionar o litígio.

Aquela atuação, fundada na teoria positivista da interpretação, já era questionada por igualar a atividade do juiz àquela típica do Poder Legislativo[11], considerando-o um “legislador delegado”[12], o qual poderia decidir um caso concreto com bases em critérios não jurídicos, meramente econômicos ou políticos, quando o mais adequado seria embasar as decisões em princípios jurídicos.

Guilherme Scotti igualmente critica o pensamento e a técnica de aplicação de princípios de Robert Alexy. Entre outros aspectos, considera que Alexy dá continuidade à teoria positivista, ao retomar a ideia de que as regras seriam capazes, por si sós, de reger sua aplicação cogente ao caso concreto, obedecendo à lógica do “tudo ou nada”, vislumbrando a aplicação de princípios apenas de modo suplementar e sob o argumento da política (e não do argumento jurídico). Citação extraída do referido texto deixa isso claro:

 

“Segundo Menelick de Carvalho Netto, Robert Alexy (...) afirma apoiar?se em Dworkin para, no entanto, retornar a uma concepção de fórmulas metodológicas heurísticas, reduzindo os princípios a políticas, ou seja, a normas de aplicação gradual, retomando as regras como normas capazes de, por si sós, regularem a sua situação de aplicação, já que seriam aplicáveis na base do tudo ou nada, como se a distinção entre princípios e regras em Dworkin fosse simplesmente morfológica.[13]”.

No mesmo sentido, Damião Alves de Azevedo indica que o método da proporcionalidade, utilizado por Robert Alexy para viabilizar a ponderação entre princípios, possui traços que o assemelham à tradição do positivismo:

 

A tradição do positivismo jurídico brasileiro é fértil em tentativas de reduzir a interpretação jurídica a fórmulas matematizantes e a modelos prévios de compreensão que comprometem o propósito interpretativo que desejam implementar. Entendemos que o método da proporcionalidade tem por substrato último essa mesma característica[14].

Nesse contexto, a teoria principiológica de Alexy volta a permitir que, na ausência de regra expressa, o caso concreto seja decidido com base na discricionariedade (técnica decisionista mais uma vez), que permite ao juiz julgar de acordo com suas convicções axiológicas, na medida em que há várias soluções viáveis do ponto de vista jurídico.

Damião Alves de Azevedo, citando o próprio Alexy, exemplifica essa carga decisionista intrínseca à regra de ponderação teorizada pelo referido doutrinador:

 

“Mas é claro que a regra só nos diz a direção do argumento. Não prescreve nenhum resultado. Alguém que não considere os direitos individuais como algo com grande valor pode aplicar a regra para favorecer o bem coletivo (...) Alguém para quem os direitos individuais são muito valiosos chegaria ao resultado contrário aplicando a mesma regra de ponderação. ALEXY, 1993, p. 33.[15]” (g.n.)

Esse pensamento traz à tona a indesejada insegurança jurídica de se deixar a aplicação da norma refém da discricionariedade do juiz. Isso porque, segundo os autores em relevo, a indeterminação das regras, tomando a perspectiva de Dworkin, não se resolveria com base na discricionariedade do juiz, mas segundo uma aplicação principiológica que dê especial atenção à história institucional e à sistematicidade do conjunto de princípios reciprocamente vinculados do Direito.

Nesse sentido:

"(...) no Brasil, cada vez mais prolifera a infeliz ideia de que interpretar a lei é um ato de vontade (de poder). Nesse sentido, mostram-se muito próximas as diversas posições axiologistas-voluntaristas que conformam o imaginário dos juristas (fruto da jurisprudência dos interesses, da jurisprudência dos valores, da ponderação de valores, do realismo norte-americano ou escandinavo, ou, ainda, produto de um voluntarismo ad hoc mesmo, sem “filiação” teorética). Tudo pode. Tudo é permitido. Algo do tipo “não há verdades”. “Tudo é relativo” (como se a frase também não fosse relativa!). As decisões acabam sendo fruto de meras subjetividades, sem compromisso com a história institucional do Direito e do instituto em questão. É o extremo pragmaticismo em vigor. Como se existisse um “grau zero” e que a decisão pode ser do jeito que o decisor quiser (...)[16]. (g.n.)

4. Conclusões

De fato, a importância dos princípios jurídicos no constitucionalismo moderno é inquestionável. Entretanto, não são poucos os casos em que as decisões judiciais fazem mal uso dos princípios, aplicando-os ainda que contra regras expressas.

Este é o ponto preocupante: até que ponto o juiz pode afastar as regras jurídicas em favor dos princípios?

Excepcionalmente, é concebível ao magistrado afastar uma norma legal expressa, a fim de aplicar princípios jurídicos que consagrem uma melhor solução para um determinado caso concreto, considerando a história institucional e à sistematicidade do conjunto de princípios reciprocamente vinculados do Direito.

O problema surge quando se torna comum e frequente o afastamento de regras jurídicas, sob o argumento de que se está aplicando princípios, mesmo quando há regras expressas (que, em regra, subsidiariam uma solução adequada ao caso concreto).

E é isso o que se tem visto atualmente, principalmente nos processos que tramitam nos Juizados Especiais Federais e, em especial, no que se refere a processos em que o INSS é parte, quando se tem aplicado uma lógica desfavorável à defesa da aludida Autarquia Pública Federal.

Exemplo: a Lei especial (10.910/04) determina intimação pessoal do procurador federal. Mas, os magistrados têm afastado a aplicação da referida lei, aplicando regra geral do CPC com suporte no princípio da informalidade/celeridade dos Juizados Especiais, afastando prerrogativa, expressamente prevista em lei e de suma importância para a efetiva defesa dos entes públicos.

Outro exemplo: com suporte do princípio da irrepetibilidade das verbas recebidas de “boa-fé”, nos casos de recebimento de benefícios previdenciários concedidos em antecipação de tutela ou sentença reformada no Tribunal, os juízes afastam o dever de devolver tais valores ao erário, muito embora haja norma legal expressa determinando tal devolução (Art. 115, II, Lei 8.213/91)[17].

São apenas alguns entre tantos outros exemplos.

Ora, é preciso ter um mínimo de respeito às funções de Estado, sendo uma delas a legislativa. Se há uma lei, regularmente votada e aprovada, pelos ditos representantes do povo, o que pressuporia a concordância da sociedade, não deve um juiz singular afastar aquela regra sem substrato fático/jurídico excepcional para tanto.

Com o perdão do trocadilho, a regra tem sido cada vez mais afastar as regras em favor dos princípios. E isso tem acontecido com frequência no processo previdenciário, notadamente em Juizados Especiais Federais.

E assim, parece que caminhamos de volta para o “decisionismo” típico das teorias positivas do século XX, construindo um contexto de insegurança jurídica, em que o poder judiciário muitas vezes se perde na ausência de limites.

Aqui cumpre trazer à tona trecho da entrevista de Nelson Nery, para o site Consultor Jurídico, no qual critica a criação de súmulas vinculantes e o desrespeito, pelo poder judiciário, das normas legais:

 

“(...) Aí eu pergunto: “Súmula vinculante vincula, jurisprudência vincula, e a lei, não vincula?” O juiz tem que, antes de tudo, aplicar a lei. A lei está escrita. Já a jurisprudência muda a toda hora. Não pode servir de lei. Eu já vi um ministro do STJ votar um caso, sair para tomar um cafezinho, voltar para a sessão e votar exatamente o contrário, em outro caso.

(...)

Achar que a lei não dá margem a nenhuma dúvida é ser positivista, é ficar jungido à estrita literalidade da lei. Isso é um sofisma. Mas existem verdades, como quando a lei diz que fazer alguma coisa é proibido. É simples. Os deputados e senadores, e o presidente quando sancionou a lei, quiseram que fosse proibida determinada coisa. Se os legisladores acham que pode casar homem com homem, mudem a Constituição. Isso não pode ficar a cargo do Judiciário porque os deputados não querem desgaste com a bancada evangélica. São os ônus do Estado de Direito. Quem faz lei é o Congresso, não é o presidente, nem o Supremo. O ativismo [judicial] é outra imbecilidade que inventaram e que estão apoiando. Essa história de ‘Supremo protagonista’ é contra o Estado de Direito, isso é autoritário, o Supremo não pode mudar a Constituição. Ele não foi eleito pelo povo para mudar a constituição, só pode decidir o caso concreto. Se o Joaquim quer casar com Manuel e o caso chega até o Supremo, ele pode admitir aquele casamento. Acabou. Isso não pode virar jurisprudência válida para tudo e para permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil.[18]” (g.n.)

 

O grande problema, em verdade, não é o instrumento em si – seja o ativismo ou os princípios jurídicos –, mas o uso que se faz deles.

Isso porque o problema está na forma equivocada pela qual os juízes têm aplicado os princípios, utilizando-os como válvula de escape à solução que querem dar ao caso concreto, muito embora haja norma legal expressa em sentido contrário e não haja situação excepcional que a elida/afaste.

Enfim, é preciso conceber um ordenamento jurídico com regras e princípios, em relação de complementaridade e não de prevalência de um ou de outro[19], sem que se faça uso de princípios para se “rasgar” regras jurídicas legítima e democraticamente editadas, sendo certo que: “o caráter normativo dos princípios – que é reivindicado no horizonte das teorias pós-positivistas – não pode ser encarado como um álibi para a discricionariedade, pois, desse modo, estaríamos voltando para o grande problema não resolvido pelo positivismo.”.[20]

Referências bibliográficas.

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AZEVEDO, Damião Alves. Ao encontro dos princípios: crítica à proporcionalidade como solução aos casos de conflitos aparente de normas. Brasília – DF: CEAD/UnB, 2013. P. 5. (Pós-graduação lato sensu em Direito Público). Disponível em: <http://moodle.cead.unb.br/agu/ >. Acesso em: 15 mai. 2013

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________. Supremo Tribunal Federal. Distrito Federal. MI 708, Tribunal Pleno, Min. Octávio Gallotti. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?>. Acesso em 11/05/2013.

_________. Supremo Tribunal Federal. Distrito Federal. ADI 855, Tribunal Pleno, Min. Octávio Gallotti. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?>. Acesso em 11/05/2013.

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Sobre o autor
Bruno César Maciel Braga

Procurador Federal e Professor da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS). Pós-graduado em Direito Público (UnB/AGU), em Direito da Economia e da Empresa (Fundação Getúlio Vargas - FGV) e em Relações Internacionais (Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP).

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