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O agente infiltrado na investigação das associações criminosas

Agenda 01/04/2002 às 00:00

1. O maior entrave que a investigação policial enfrenta no fenômeno do narcotráfico, situa-se na zona da criminalidade especializada dominada por associações de criminosos. Estas associações dispõem de aparatosos arsenais de armas, veículos aéreos e embarcações, farto contingente de criminosos que formam uma rede, às vezes com informações valiosas obtidas até mesmo de certos segmentos da polícia. Não faz muito tempo, o Brasil assistiu estupefato ao desvendamento de apenas uma pequena parte da alta criminalidade, através da intervenção (pouco apropriada) de uma CPI, cujos resultados, apesar do muito espalhafato, foram pífios. Mais recentemente, a prisão de um certo traficante revelou como os métodos de investigação tradicional perdem para esta modalidade criminosa que, inclusive, consegue burlar o sistema de controle de uma prisão de segurança máxima.

O problema, como se sabe, não é novo, suscitando da criminologia a arquitetura de conceitos criminais e políticas de criminalização e, principalmente nos países de cultura jurídica anglo-amricana, a adoção de ampla oportunidade de negociação entre o Ministério Público e o criminoso.

A partir de meados da década passada, tivemos um grande avanço nesta matéria. A Lei n.º 9.034/95, de 3 de maio, que dispôs sobre os meios de prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, prevendo a redução da pena de um a dois terços para os que, espontaneamente, colaborarem no esclarecimento de infrações penais e sua autoria (art. 6º). Posteriormente, a Lei n.º 9.807/99, de 13 de julho, permitiu a concessão de perdão judicial, ex officio ou a pedido das partes, ao acusado primário que colaborar com as investigações policiais ou com o processo. Bem como, a redução da pena de um a dois terços para o indiciado ou acusado que voluntariamente colaborar [1]. E agora, a Lei n.º 10.409/2002, de 11 de janeiro, que estabeleceu a nova política de prevenção e repressão dos crimes de tóxicos e ainda o procedimento criminal destes crimes, concedeu uma maior margem de oportunidade ao Ministério Público para que, através da negociação direta com criminosos, possa investigar as organizações criminosas [2], estando claro, no entanto, que esta fase incipiente de novo modelo de persecução criminal esbarra na tradicional postura do Ministério Público que, inegavelmente, terá de ser remodelado para melhor conduzir as atividades policiais, requerendo um órgão específico que presida às investigações.

Mas a nova Lei de Tóxicos, apesar das inúmeras e fundadas críticas sofridas ainda durante o processo legislativo [3], ultrapassou os estritos limites da colaboração estimulada, trazendo um importante avanço em matéria de investigação policial: a introdução da figura do agente infiltrado [4].

2. Via de regra a polícia vem se servindo de uma praxe muito simples para o desbaratamento do narcotráfico, que culmina precipuamente com a prisão dos agentes criminosos. O procedimento policial, de todo em todo não previsto no ordenamento processual penal, consiste em colocar um agente da polícia com a identidade encoberta no meio criminoso. Em contato com o possível traficante, o policial instiga-o a praticar algum dos atos típicos do narcotráfico, v.g., a venda de determinada quantidade de entorpecente. A pessoa instigada, levada a agir daquela forma por supor estar negociando com um usuário, é então presa incontinenti. É o que a doutrina chama de flagrante provocado.

Em seu favor, está uma orientação doutrinal e jursiprudencial que tende a funcionalizar o processo penal, tornando-o antes meio principal de descoberta de uma verdade pretendida pelos meios oficiais de controle da criminalidade e de persecução criminal, na mesma medida em que deixa ao olvido o seu caráter de garantia de certos princípios inerentes ao sistema jurídico-penal de um Estado de direito democrático, que se deve pautar por noções irrenunciáveis de ética [5]. Damásio de Jesus, ao tratar do flagrante provocado no seu festejado trabalho Novas questões criminais, recorre a um complicado raciocínio para sustentar a validade do flagrante em relação à conduta do traficante anterior à instigação, tendo como suposto tratar-se de crime categorizado como permanente. Assim, refere:

"Como acontece na maioria das vezes, o induzimento policial à venda da droga pelo traficante é feito para deslindar a guarda ou depósito criminoso. De maneira que o estímulo policial provocante é posterior ou concomitante a um crime já consumado ou em fase de consumação permanente. Os comportamentos do traficante, nas hipóteses de guarda, depósito etc., não são induzidos pelo agente policial. Em conseqüência, há delito e pode ser lavrado o auto de prisão em flagrante, mas somente em relação à guarda ou depósito da droga, isto é, no tocante às condições não provocadas pelo simulador (REsp 277, STJ, 5ª Turma, rel. Min. Costa Lima, RT, 652:358)" [6].

A jurisprudência segue a mesma solução:

"TRÁFICO DE ENTORPECENTES – CRIME DE EFEITO PERMANENTE – FLAGRANTE PREPARADO – IRRELEVÂNCIA PARA A CARACTERIZAÇÃO DO DELITO – SÚMULA 145/STF – I – Não há falar em nulidade do flagrante, sob a alegação de ter sido preparado ou provocado, pois o crime de tráfico de entorpecentes, de efeito permanente, gera situação ilícita que se prolonga com o tempo, consumando-se com a mera guarda ou depósito para fins de comércio, restando inaplicável o verbete da Súmula 145/STF. II – RHC improvido" (STJ – RHC 9839 – SP – 6ª T. – rel. Min. Fernando Gonçalves – DJU 28.08.2000).

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Se conseguirmos nos abstrair desta concepção eminentemente funcionalista e colocarmos a atuação do agente provocador nos limites da teoria do crime, observaremos que ela preencherá a moldura penal. Será, pois, típica. E o pior, antijurídica, uma vez que não se concebe a admissibilidade de qualquer excludente de antijuridicidade para o caso. Vai neste sentido a lição de Gonçalves, Alves e Valente quando afirmam que

"na medida em que o agente provocador pretende submeter outrem a um processo penal e, em última instância, a uma pena, actuando consequentemente com vontade e intenção de, através do seu comportamento, determinar outra pessoa à prática de um crime, agindo deste modo, com dolo ao determinar outrem à prática de um crime, ele age, também, com dolo relativamente à realização do crime. Por outras palavras: o agente provocador não pode deixar de querer, também, a própria consumação do crime, levado a efeito, embora por outra pessoa. Ele actua, em nossa opinião, em relação ao crime, pelo menos na maioria das vezes, com dolo necessário, ou no mínimo, com dolo eventual, não obstante as motivações puderem ser consideradas de relevante valor social ou moral" [7].

Para além da formal invalidade do flagrante propiciado pela atuação do agente provocador, podemos ainda arrematar que a desculpa artificiosa erigida pela doutrina e jurisprudência conflitua – quanto a isto não nos resta dúvida – com a pretensão de estruturar nosso Estado democrático sobre as bases ontológico-axiológicas inscritas na Constituição da República, mormente a da Justiça penal justa, assim compreendida a partir do princípio da dignidade da pessoa humana e da garantia fundamental ao devido processo legal.

3. Como deixamos entrevisto mais acima, a Lei n.º 10.409/2002, de 11 de janeiro, propicia melhores meios para as investigações, incluindo no seu art. 33, I, a "infiltração de policiais em quadrilhas, grupos, organizações ou bandos, com o objetivo de colher informações sobre operações ilícitas desenvolvidas no âmbito dessas associações". Trata-se, pois, da regulamentação da figura do agente infiltrado, que se destina particularmente às investigações dos crimes perpetrados por grupos.

No presente caso o policial atuará com a identidade encoberta, tentando granjear a confiança dos criminosos, mas, diferentemente do agente provocador, estará autorizado pelo juiz que, por sua vez, deve antes ouvir o Ministério Público (art. 33, caput). Esta condição leva-nos a entender que, em primeiro lugar, o controle judicial da providência investigatória retira à autoridade policial o pleno poder discricionário de investigar [8] e, por via de conseqüência, minimiza as hipóteses de arbitrariedade. Em segundo lugar, se a infiltração de agente da polícia depende de autorização do juiz, isto implica que preexista um pedido formulado pela autoridade policial que, logicamente, deverá fundamentar as suspeitas. Ou seja, em nossa opinião o pedido não pode ter como suporte meras suspeitas íntimas da autoridade policial, pois se assim for a providência poderá causar dano ao direito fundamental à intimidade e à privacidade (art. 5º, X, CR). Deverá, portanto, arrimar-se em indícios de autoria e materialidade delituosas. Tal entendimento é corroborado pelo fato de a lei ter previsto o procedimento "Em qualquer fase da persecução criminal" (art. 33, caput), isto é, a partir do inquérito policial, quando se dá a colheita de indícios.

Observa-se, por outro lado, que a infiltração de agentes não os autoriza à prática delituosa, neste particular distinguindo-se perfeitamente da figura do agente provocador. O infiltrado, antes de induzir outrem à ação delituosa, ou tomar parte dela na condição de co-autor ou partícipe, ou mesmo praticar delito autônomo (v.g., comprar entorpecente para fins de uso), limitar-se-á ao "objetivo de colher informações sobre operações ilícitas", as quais serão repassadas à autoridade que preside às investigações com o fim de traçar a tática de persecução e elucidação do crime. Para tanto, os infiltrados poderão dispor dos mecanismos de investigação previstos no art. 34 [9].

4. Ao nosso ver, a regulamentação da figura do agente infiltrado tem alcance muito maior do que a disponibilização de um novo e eficaz meio investigatório: é, também, a condição de eliminarmos a antiga praxe policial do agente provocador – a todas as luzes inconcebível para o modelo de Justiça penal de um Estado democrático de direito – sem que renunciemos à constante necessidade de debelar a criminalidade de alto potencial ofensivo, pelo menos por agora restrita aos crimes da Lei Antitóxico.


Notas

1..Cfr. arts. 13 e 14 da Lei n.º 9.807/99.

2..Para uma análise mais profunda da matéria, cfr. nossos comentários aos parágrafos 2º e 3º, do art. 32 da mencionada lei, in GUIMARÃES, Isaac Sabbá. Tóxicos – comentários, jurisprudência e prática. Curitiba: Juruá, no prelo.

3..Cfr. o nosso trabalho acima citado.

4..Ibidem, comentários ao art. 33, da Lei n.º 10.409/2002.

5..Ao tratar dos chamados "homens de confiança", categoria que abrange a figura do polizeiliche Lockspitzel, o agente provocador, Costa Andrade chama-nos a atenção para um interessante julgado do Rechsgericht alemão de 1912, segundo o qual "à luz dos princípios gerais da ética, a que terão de submeter-se, sem consideração pelos resultados, as autoridades da justiça penal, não pode de forma alguma coonestar-se esta prática (...). A utilização no processo penal de tais solicitações é, em qualquer circunstância, proibida. É desonesto e, de todo o modo., incompatível com a reputação das autoridades da justiça penal, que os seus agentes ou colaboradores se prestem a incitar tão perigosamente ao crime ou, mesmo, que apenas deixem subsistir a aparência de terem colocado ao serviço da justiça penal, meios enganosos (Täuschung) ou outros meios desleais". ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 224.

6..JESUS, Damásio E. Novas questões criminais. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 77. (Os grifos são nossos).

7..GONÇALVES, Fernando, ALVES, Manuel João e VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Lei e crime. O agente infiltrado versus o agente provocador. Os princípios do processo penal. Coimbra: Almedina, 2001, p. 256 (os grifos são nossos).

8..O que é sentido, também, nos casos de busca e apreensão domiciliar e escuta telefônica.

9..Cfr. mais detidamente os comentários ao referido artigo em nosso trabalho Tóxicos..., cit.

Sobre o autor
Isaac Sabbá Guimarães

promotor de Justiça em Santa Catarina, professor de Direito na UNISUL e na Escola Superior da Magistratura de Santa Catarina, mestre em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Isaac Sabbá. O agente infiltrado na investigação das associações criminosas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2894. Acesso em: 22 dez. 2024.

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