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Agenda 09/06/2014 às 14:27

O presente trabalho tem como objetivo analisar as questões suscitadas em relação à cirurgia de redesignação de sexo, em especial os reflexos trazidos pela realização dessa cirurgia no âmbito jurídico.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar as questões suscitadas em relação à cirurgia de redesignação de sexo, em especial os reflexos trazidos pela realização dessa cirurgia no âmbito jurídico. Para tanto, fez-se um estudo da legislação do Brasil, de doutrinas existentes que versam sobre o assunto, onde a bioética, em especial seus princípios, juntamente com os princípios constitucionais que oferecem base e suporte ao transexual não apenas quanto à feitura da cirurgia de redesignação de sexo, mas também quanto à adequação de sua documentação na vida civil. Entende-se como transexual aqueles que vivenciam um conflito permanente entre seu sexo físico e psíquico sendo a cirurgia de redesignação de sexo o único meio de tratamento efetivo. A cirurgia é, enfim, a resolução do conflito que acomete o transexual, reparando-lhe o sofrimento, permitindo-lhe alcançar o equilíbrio entre seu biológico e seu psicológico, essencial para a preservação da vida, da saúde, da integridade física e psíquica e do bem-estar pessoal. Atualmente, é reconhecido o direito à alteração do prenome e do sexo em seu registro civil. Entretanto, por não tratar-se de posição unânime, serão analisadas as principais correntes jurisprudenciais, bem como os diversos projetos de lei – favoráveis e desfavoráveis aos transexuais – que visam à alteração da Lei de Registros Públicos. Demonstra-se ao longo do trabalho que existe uma falta de previsão legal para disciplinar a matéria, que serve de pretexto para o exercício de posturas, por vezes, conservadoras e preconceituosas. Ultrapassados esses pontos, tem-se que a única maneira de promover a inclusão social do transexual será com a efetiva alteração de seu registro civil, em complemento à realização da cirurgia de redesignação de sexo, preservando, assim, a dignidade humana e os direitos de personalidade inerente aos cidadãos.

Palavras-chave: Transexualidade. Redesignação de Sexo. Bioética. Princípios Constitucionais. Sexualidade.

Sumário: Introdução. 1. Bioética. 1.1. Princípios bioéticos. 1.1.1. Princípio da beneficência. 1.1.2. Princípio da não-maleficência. 1.1.3. Princípio da autonomia. 1.1.4. Princípio da justiça. 1.2. Bioética e direito. 2. Sexualidade humana. 2.1.. Sexo. 2.1.1. Sexo biológico. 2.1.1.1. Sexo genético. 2.1.1.2. Sexo gonádico. 2.1.1.3. Sexo somático. 2.1.2. Sexo neural. 2.1.3. Sexo jurídico. 2.1.4. Sexo social. 2.2. Estados físicos e comportamentais. 2.2.1. Orientação sexual. 2.2.1.1. Bissexualidade. 2.2.1.2. Homossexualidade. 2.2.1.3. Heterossexualidade. 2.2.1.4. Assexualidade. 2.2.2. Identidade. Gênero. 2.2.2.1. Travestismo. 2.2.2.2. Intersexualidade. 2.2.2.3. Transexualidade. 2.3. A cirurgia de redesignação de sexo. 3. Reconhecimento do transexual no ordenamento jurídico. 3.1. O registro civil – breve introdução. 3.2. A possibilidade de alteração do nome. 3.2.1. Alteração. Prenome. Transexuais. 3.3. Direitos da personalidade e a Lei de Registros Públicos. 3.3.1. Da dignidade da pessoa humana. 3.3.2. Direito a identidade. 3.3.3. Direito à integridade física e psíquica. 3.3.4. Direito à liberdade. 3.3.5. Direito à honra. 3.4. Projetos de lei alterando a Lei de Registros Públicos. Conclusão. Referências bibliográficas.


INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem o intuito de demonstrar as dificuldades e discrepâncias jurídico-sociais com as quais os transexuais têm de lidar na busca de seus direitos fundamentais, os quais são diariamente violados.

Jean Jacques Rousseau foi um importante intelectual do século XVIII que acreditava que o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe.

Ainda, afirmava que o homem nasce livre, mas se encontraria acorrentado por fatores como sua própria vaidade, tornando-se escravo de suas necessidades e daqueles que o rodeiam.

Em sua obra “Do Contrato Social”, Rousseau defendeu ser possível preservar a liberdade natural do homem e garantir, ao mesmo tempo, a segurança e o bem-estar da vida em sociedade através de um contrato social, por meio do qual prevaleceria o Estado soberano, que asseguraria a vontade geral de todos, devendo esta ser, necessariamente, justa.

Portanto, para Rousseau o que cria o Estado é a vontade geral e o governo deve buscar uma justiça comum à sociedade, trazendo o apelo à democracia social e preservando a liberdade individual de cada pessoa.

Transportando o pensamento de Rousseau para a sociedade atual, nota-se claramente que esta sociedade justa, que preserva a liberdade de cada indivíduo ainda está longe de se concretizar.

Em especial, podemos citar a inexistência dessa liberdade pregada por Rousseau quando se trata de indivíduos transexuais, que lutam diariamente por direitos fundamentais que deveriam ser inerentes a qualquer ser humano, mas lhe são negados injustificadamente.

A transexualidade, assim, está inserida em uma série de desvios sexuais, sendo uma realidade que não pode mais ser ignorada ou marginalizada pelo estado e pela própria sociedade.

Esses “desvios sexuais” vieram à tona no Século XXI, envolvidos por frequentes indagações jurídicas, em meio a discussões sobre moralidade pública, tolerância e aceitação da sociedade.

O fenômeno da transexualidade teve sua primeira aparição em 1952, quando um médico americano chamado Christian Hamburger fez uma intervenção em um ex-soldado do exército chamado George Jorgensen, transformando sua aparência sexual através de tratamento hormonal e cirurgia.

O paciente, antes com sexo biológico e social masculino, tornou-se Christine Jorgensen, ganhando, inclusive, o título de “Woman of the year” 2 (dois) anos após a feitura da intervenção cirúrgica.

Um ano depois, em 1953, surgiu a expressão “transexual”, utilizada pelo endocrinologista americano Harry Benjamin para designar indivíduos que, apesar de biologicamente normais, sentiam-se desconfortáveis com seu sexo biológico e queriam fortemente a troca do sexo.

A angustia do transexual não se resume somente ao sofrimento causado pela incompatibilidade entre sua identidade sexual biológica e psíquica, mas também no fato de que, quando consegue alcançar a difícil conciliação entre seu sexo físico e seu sexo psicológico, se vê incapaz de refletir seu gênero na documentação civil, mantendo-se em posição de humilhação perante a sociedade.

O Pacto de São José da Costa Rica - conhecido como Convenção Interamericana de Direitos Humanos - estabelece que os Estados devem fazer cumprir os direitos de personalidade.

Os direitos de personalidade são subespécie dos direitos fundamentais, sendo constituídos por direitos aplicáveis a, não somente os cidadãos de forma geral, mas a cada cidadão individualmente, independente de suas características e necessidades.

Dentre esses direitos de personalidade, citamos o direito ao nome, previsto nos artigos 16 e 17 do Código Civil, que trata da identificação social da pessoa, com a finalidade de individualizá-la, assegurando sua própria satisfação psicológica e sua estabilidade jurídica, além dos direitos de personalidade, como direito à integridade – física e psíquica -, direito à liberdade e à dignidade da pessoa humana.

Portanto, faz-se imprescindível que o direito garanta às pessoas uma vida digna, com garantias mínimas.

Por conseguinte, podemos aduzir que, no caso de transexuais, de nada adiantará o tratamento para adequação sexual, com a feitura de cirurgia de redesignação sexual, se posteriormente o indivíduo não tiver resguardado seus direitos fundamentais, com a preservação de sua liberdade, integridade e, principalmente, seu direito a adequação de nome e gênero, evitando a contumaz humilhação perante a sociedade.

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A personalidade deve ser protegida e o nome deve ser um dos direitos de personalidade a obter proteção.

Não se deve esquecer que o nome civil deve existir para identificar a pessoa, nunca a expondo ao escárnio.

Nesse diapasão, temos que a dignidade da pessoa humana é o mais imperioso valor do direito brasileiro por estar intimamente atrelado ao conceito de personalidade jurídica, sendo elemento norteador para elevação do ser humano como bem principal a ser tutelado pelo ordenamento jurídico.

Faz-se imprescindível que o direito garanta às pessoas uma vida digna, com garantias mínimas para que gozem de salutar existência no meio social.

Fica perceptível, portanto, a influência da dignidade da pessoa humana aos direitos de personalidade, sendo estes entendidos como os que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa projetada na sociedade e em si mesma.

Podemos aduzir, então, que, nos casos de transexuais, de nada adiantará o tratamento para adequação sexual se, posteriormente, o indivíduo não tiver seu nome e sexo alterados, carregando por toda a vida acintosa humilhação e sofrimento.

Entretanto, o que enxerga-se atualmente é que a falta de previsão legal para disciplinar a matéria serve de pretexto para o exercício de posturas, por vezes, conservadoras e preconceituosas.

Em muitos casos, a jurisprudência tem se mostrado progressista ao reconhecer ao transexual o direito a uma nova identidade sexual, mas ainda não consegue delimitar o alcance social dessa nova identidade.

Por fim, esclarece-se que esse trabalho tem como finalidade expor as os estudos existentes acerca do reconhecimento ao transexual de nova identidade sexual, principalmente no que consta ao Registro Civil.

Visa-se um esclarecimento acerca do tema, com intuito de formular contribuições que facilitem a obtenção do caminho mais favorável a cada caso, preservando o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos de personalidade.

Eu proponho o termo Bioética como forma de enfatizar os dois componentes mais importantes para se atingir uma nova sabedoria, que é tão desesperadamente necessária: conhecimento biológico e valores humanos.


1. BIOÉTICA

Primeiramente, importante frisar que não há um conceito unívoco de Bioética.

Portanto, faz-se necessário definir o conceito básico do termo.

A palavra Bioética, se separada, é composta dos vocábulos gregos bios, que designa o desenvolvimento observado nas ciências da vida, como a ecologia, a biologia e a medicina; e ethos, que busca trazer à consideração os valores implicados nos conflitos da vida.

Portanto, literalmente, o termo significa “ética (ethos) da vida (bio)”.

Na introdução à segunda edição da Enciclopédia de Bioética (Encyclopedia of Bioethics), consta o termo definido como:

O estudo sistemático das dimensões morais, incluindo a visão, a decisão, a conduta e as normas, das ciências da vida e da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar.

Destarte, a definição de Bioética abarca um procedimento de confrontação entre os fatos biológicos e os valores humanos na tomada de decisões envolvendo os problemas práticos em diferentes áreas da vida.

Ainda, pode-se afirmar que a Bioética possui diversas correntes teóricas que fornecem material suficiente para ponderação sobre o tema:

O corpo teórico da Bioética se constitui por uma gama de vertentes e correntes teóricas que fornecem seu próprio arcabouço para a reflexão e prescrição.

Essas vertentes fundamentam-se em teorias éticas diversas e mesmo quando há a adoção de uma mesma teoria ética como alicerce de suas construções teóricas as correntes podem variar na forma de emprega-la aos casos concretos.

A Bioética Teórica não se apresenta de forma uniforme, é o conjunto de proposições teóricas, ancoradas em diferentes campos do saber, como o filosófico, jurídico, teológico ou sociológico, que buscam fornecer substrato para a reflexão e prescrição bioética.

A Bioética é um campo de estudo ainda muito recente.

Em 1927, Paul Max Fritz Jahr, teólogo alemão, empregou pela primeira vez o termo Bioética, em seu artigo intitulado “Bioética: uma revisão do relacionamento ético dos humanos em relação aos animais e plantas”, publicado na revista Kosmos. O teólogo afirmava que a Bioética é o reconhecimento de obrigações éticas em relação a todos os seres vivos, daí o título de seu artigo que traz, ao final, a seguinte afirmação: “respeita todo ser vivo essencialmente como um fim em si mesmo e trata-o, se possível, como tal”.

Anteriormente, a criação do termo Bioética era atribuída ao professor e oncologista estadunidense Van Rensselaer Potter, quando da publicação do artigo intitulado Bioetchics, the Science of survival. Potter caracterizou a Bioética em três estágios, sendo o primeiro o da Bioética Ponte, o segundo como o da Bioética Global e o terceiro – e atual, de acordo com o próprio professor – como o da Bioética Profunda. Na primeira fase, Potter qualificou a Bioética como Ponte no sentido de estabelecer uma interconexão entre as ciências e as humanidades que garantiria a possibilidade do futuro. Já na década de 80, o professor denominou a Bioética como Global, enfatizando as características interdisciplinares e abrangentes da Bioética, com o objetivo de abarcar não apenas as reflexões no que concerne às questões de medicina e saúde, mas também os novos desafios ambientais. Já em 1998, utilizando-se da influência da “Ecologia Profunda” de Arne Dekke Eide Næss, Potter definiu o terceiro estágio da Bioética como sendo uma Bioética Profunda, sendo está a “nova ciência ética”, combinando humildade, responsabilidade e uma competência interdisciplinar, intercultural, que potencializa o senso de humanidade.

No pensamento de Goldim:

A Bioética, dessa forma, nasceu provocando a inclusão das plantas e dos animais na reflexão ética, já realizada para os seres humanos.

Posteriormente, foi proposta a inclusão do solo e dos diferentes elementos da natureza, ampliando ainda mais a discussão.

A visão integradora do ser humano com a natureza como um todo, em uma abordagem ecológica, foi a perspectiva mais recente.

Assim, a Bioética não pode ser abordada de forma restrita ou simplificada.

É importante comentar cada um dos componentes da definição de Bioética profunda de Potter – ética, humildade, responsabilidade, competência interdisciplinar, competência intercultural e senso de humanidade – para melhor entender a necessidade de uma aproximação da Bioética com a teoria da complexidade.

Para melhor entendimento do que seria a Bioética, podemos citar três autores contemporâneos, quais sejam

Portanto, verifica-se que a definição de bioética envolve um processo de confronto entre os fatos biológicos e os valores humanos na tomada de decisões envolvendo os problemas práticos em diferentes áreas da vida, em especial na área médica.

A inclusão do estudo da transexualidade na bioética se deve principalmente ao fato do assunto abranger a dignidade da pessoa humana, os princípios da bioética, a licitude e a eticidade da intervenção cirúrgica e a multidisciplinaridade.

Por fim, como toda forma de instrumento ético, os princípios bioéticos se revelam instrumentos imprescindíveis para que a Bioética possa exercer sua função de resguardar o homem e sua dignidade, os quais verificaremos a seguir.

1.1. Princípios Bioéticos

Sabemos que os princípios bioéticos são indispensáveis para o bom funcionamento da Bioética. Entretanto, no que consistem esses princípios e em que se baseiam? Na obra Principles of Biomedical Ethics, de Tom L. Beauchamps e James Franklin Childress, são determinados quatro princípios que devem ser seguidos para a correta aplicação da bioética, quais sejam:

Passaremos a estudar os referidos princípios.

1.1.1. Princípio da Beneficência

O princípio da beneficência está diretamente ligado com o juramento hipocrático dos médicos, mais precisamente ao que exige por parte do profissional de saúde a atuação no melhor interesse do paciente.

Para Neves e Osswald esse princípio enuncia a obrigatoriedade de agir de maneira a fornecer benefícios que equilibrem os custos, os riscos e as benfeitorias, para efetivamente produzir o bem para a pessoa à qual se age.

Nesse diapasão, Schaefer ensina que:

Explica-se na atitude positiva de assistir o paciente ou pesquisado, incluindo-se o dever de impedir ou remover possíveis danos e de promover benefícios e qualidade de vida presente ou futura.

Trata-se, numa visão naturalista, de promover benefícios, ponderando-os frente aos riscos da ação ou omissão médica ou científica, ou seja, maximizar benefícios e minimizar os danos.

É considerado delimitador de padrões de condutas, o fim primário da Medicina, cuja necessidade é de efetivamente fazer o bem e não apenas desejá-lo.

Está baseado na regra da confiabilidade do paciente em seu médico que deve observar constantemente o sigilo profissional, levando-se em consideração o bem do indivíduo prioritariamente.

Ainda, a própria etimologia da palavra (bene facere) nos leva à ideia de fazer bem, agir para alcançar o bem-estar das pessoas, prevenindo o mal.

Na esfera da saúde, entretanto, o entendimento chega a ser um dever moral, devendo-se usar a medicina apenas para aliviar o enfermo, melhorando seu bem-estar, nunca lhe causando males ou injustiças.

Com isso, conclui-se que a aplicação do princípio Bioético da beneficência se trata de fazer o bem e não fazer o mal, aumentando ao máximo as vantagens do procedimento em prol do paciente, reduzindo ao mínimo os inconvenientes que possam derivar do procedimento.

1.1.2. Princípio da Não-Maleficência

A palavra tem origem do latim primum non nocere, que significa não fazer o mal, não lesionar. Esse princípio deriva do desdobramento do princípio da beneficência.

Nesse sentido, Kuramoto argumenta que o princípio da não maleficência também decorre do juramento hipocrático, portanto, envolvendo uma abstenção dos médicos/pesquisadores na prática de atos que saibam ser prejudiciais aos pacientes/pesquisados.

Sobre esse princípio, afirma Schaefer que:

Traduz-se no mandamento de não fazer o mal a outra pessoa e se diferencia do princípio da beneficência, pois esse envolve ações positivas, enquanto aquele envolve ação ou omissões negativas.

Trata-se de obrigação de não impor dano intencional quer sejam eles presentes ou futuros.

Assim, para se assumir riscos biomédicos é necessário que sejam seus objetivos legalmente e moralmente justificáveis, tendo como sempre com o fim primário a preservação da vida ou melhoramento de sua qualidade.

Portanto, verifica-se que, a exemplo do princípio anterior, o princípio da não maleficência trata-se de um forte instrumento de proteção ao ser humano nos procedimentos realizados na área de saúde.

1.1.3. Princípio da Autonomia

A palavra autonomia possui origem grega (autos – eu – e nomos – lei), tratando-se da vontade da pessoa de criar seu próprio código de conduta, fazendo suas próprias escolhas e atuando da maneira que melhor lhe convir.

Portanto, o que se tem por princípio da autonomia nada mais é que a necessidade de atribuir a participação voluntária dos seres humanos sujeitos da pesquisa, respeitando sua autonomia e visando, acima de tudo, seu benefício e bem estar.

No pensamento de Machado:

O princípio da autonomia impõe que, na produção do conhecimento científico, sobretudo na fase de experimentação, e na aplicação de seus resultados pelos diversos profissionais que lidam com a vida e a saúde humanas, deve-se respeitar a autonomia de cada pessoa, isto é, o direito que cada ser humano tem de decidir sobre assuntos que lhe tocam, de ser ouvido e de ter efetivamente consideradas suas opiniões no momento da tomada de uma decisão.

Assim, podemos concluir que o princípio da autonomia se dá ao atribuir ao paciente o poder de decidir os trâmites do tratamento médico ao qual será submetido, sendo este princípio forte instrumento de proteção ao homem e a sua dignidade.

1.1.4. Princípio da Justiça

No decorrer de nossa história médica houve diversos casos nos quais um grupo de pacientes foi submetido a pesquisas, na busca da cura de determinadas enfermidades que assolam a sociedade.

A título de exemplo, podemos citar os casos de Tuskegee, no Estado do Alabama (EUA), Hospital Estatal de Willowbrook, em Nova Iorque (EUA) e Hospital Israelita de doenças crônicas, no Brooklin.

Nesses locais, realizavam-se experimentos com negros, crianças mentalmente enfermas e idosos internados, respectivamente.

Em nome da ciência e do progresso, os integrantes desses grupos –compostos por pessoas vulneráveis – foram submetidos à barbárie, ferindo seus direitos mais básicos, como o da dignidade da pessoa humana.

Assim sendo, sabe-se que os prejuízos à saúde foram suportados pelos integrantes desses grupos.

Entretanto, os benefícios que incidiram dessas pesquisas científicas não foram colhidos pelas pessoas que foram submetidas a estas, sendo voltados para aqueles que financiaram as pesquisas e para aqueles que possuíam condições financeiras de arcar com o produto destinado à cura das enfermidades estudadas.

O princípio da justiça impõe que a distribuição dos encargos e vantagens das pesquisas deve ser justo e igualitário, requerendo a imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios.

Sobre esse princípio, aduz Schaefer:

Em termos bastante genéricos o princípio da justiça envolve valores que devem ser respeitados por toda a sociedade e pode ser resumido em dar a cada pessoa o que lhe pertence ou o que lhe é devido (justiça distributiva), ou conforme contido no Informe Belmont: “a cada pessoa de acordo com seu esforço individual; a cada pessoa de acordo com a sua contribuição à sociedade; a cada pessoa de acordo com o seu”.

Portanto, entende-se que esse princípio bioético está baseado na obrigação de igualdade de tratamento imposta aos profissionais de saúde, bem como na imposição ao Estado quanto à justa distribuição das verbas para a saúde.

1.2. Bioética e Direito

Anteriormente, quando tratado sobre o princípio bioético da justiça, foram apontados casos que ferem a dignidade humana, banalizando a saúde e o bem-estar de seres humanos, onde estes não tiveram sua vontade respeitada, tudo em prol de um teórico progresso científico.

Os casos supracitados tiveram grande repercussão social, fazendo com que a Bioética fosse desenvolvida para tentar impedir essas práticas ofensivas aos seres humanos.

Entretanto, somente a Bioética não seria capaz de frear de modo significativo essas práticas abusivas, sendo necessária, também, a intervenção do Direito, “para que este normatize regras de conduta coercitivas que venham a equilibrar os avanços biotecnológicos de modo consentâneo com a dignidade do ser humano”.

Neste cenário, surge o Biodireito, inserido na Bioética, visando o poder de coerção para obstar e punir o exercício dessas atividades, em contraparte com a bioética, que delimita moralmente às condutas praticadas pelos pesquisadores.

Nesse sentido, expõe Loureiro:

A Bioética propõe limites à biotecnologia e à experimentação científica em seres humanos, com a finalidade de ver protegidas a dignidade e a vida da pessoa humana como prioridade sobre qualquer valor.

Porém, a normal moral é insuficiente porque, ainda que alcance a dimensão social da pessoa humana, opera no plano interno da consciência, impondo-se, portanto, um novo ramo do dever ser, mediante o qual se regulem as relações intersubjetivas à luz dos princípios da Bioética.

Necessário, por isso, que as normas sejam jurídicas, e não apenas éticas, pois somente o seu caráter coercitivo impedirá ao cientista sucumbir à tentação experimentalista e à pressão de interesses econômicos.

Como visto, o Biodireito tem a finalidade de fixar normas coercitivas que delimitem as atuações dos cientistas no que tange às experimentações científicas, no sentido de ver respeitada a dignidade do ser humano, sua identidade e sua vida.

Tem a função de “normatizar os efeitos da revolução biotecnológica sobre a sociedade em geral”.

Portanto, conclui-se que a bioética terá cumprimento mediante o biodireito, estando os dois intrinsicamente ligados.

Nesse diapasão, o biodireito tem se consolidado como um campo da Ciência Jurídica que tem como finalidade maior a busca pela proteção da pessoa humana, em especial, proteção à vida e à dignidade humana.? A coerência e a continuidade supostas entre sexo-gênero-sexualidade servem para sustentar a normatização da vida dos indivíduos e das sociedades.

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