Introdução
A Lei nº 9.099/95, como se sabe, criou diversas medidas despenalizadoras, entre as quais podemos citar como mais importantes a composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo (também chamada de sursis processual).
A adoção de tais medidas teve diversos objetivos, podendo ser relacionados como mais relevantes os seguintes:
- Evita-se o assoberbamento desnecessário do Judiciário com processos de menor importância (cujo destino, quase sempre, é a prescrição), restando mais tempo para cuidar dos casos considerados mais importantes;
- O autor do fato não mais se submete às chamadas "cerimônias degradantes" referidas por Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, como citação em sua casa, interrogatório, oitiva de testemunhas, constituição de advogado para acompanhar um longo processo, entre outras;
- A forma simplificada do procedimento, com a adoção do princípio da oralidade, torna o feito mais célere, atendendo a uma justa reivindicação da coletividade insatisfeita com a morosidade dos julgamentos.
- Evitam-se diversas prisões cautelares desnecessárias, o que é extremamente salutar, diante da atual situação do sistema carcerário brasileiro;- A aplicação imediata de medidas não privativas de liberdade afasta a sensação de impunidade.
A boa intenção do legislador, todavia, não evitou que diversas controvérsias surgissem no momento da aplicação da Lei nº 9.099/95, uma vez que diversos dispositivos carecem de maior detalhamento, exigindo que a doutrina e a jurisprudência apresentem soluções nem sempre satisfatórias para diversas hipóteses.
2. Cerne do problema
Um dos casos não solucionados pela Lei nº 9.099/95 é exatamente o descumprimento da transação penal proposta pelo Ministério Público.
A proposta de transação penal deve ser formulada quando se tratar de crime de ação penal pública, ou, nas hipóteses de ação penal pública condicionada em que houve exercício do direito de representação.
Somente ao Ministério Público, na qualidade de único titular da ação penal pública, cabe o direito de formular proposta de aplicação imediata de pena não privativa, nos termos do art. 76 da Lei nº 9.099/95.
Obviamente, a pena não privativa de liberdade pode ser restritiva de direitos ou multa. Em relação a esta última, não há maiores controvérsias, pelo menos no que concerne à possibilidade de sua conversão em prisão.
Desde o advento da Lei nº 9.268/96, a pena de multa passou a ser considerada como dívida de valor, sendo vedada, em qualquer hipótese, sua conversão em pena privativa de liberdade.
A vexata quaestio está em saber como deve atuar o Ministério Público diante do descumprimento, pelo autor do fato, da avença celebrada quando da transação penal.
3. Elenco das penas restritivas de direitos
Antes de manifestar um posicionamento único em relação a todas as penas restritivas de direitos, é imprescindível que se compreenda a natureza de cada uma delas, uma vez que, em determinadas hipóteses, a solução é mais simples.
Nos termos do art. 43 do Código Penal, são penas restritivas de direitos: prestação pecuniária, perda de bens e valores, prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, interdição temporária de direitos, limitação de fim de semana e prestação de outra natureza.
A multa, que também é uma pena não privativa de liberdade, ficará de fora do elenco, uma vez que ela é considerada dívida de valor, sendo vedada sua conversão em prisão. Deve a multa, portanto, ser executada nos termos da legislação processual civil em vigor.
4. Medidas restritivas de direitos cujo descumprimento pode ser sanado sem maiores transtornos
Nos termos do art. 45, § 1º, a prestação pecuniária "consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes, ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um) salário mínimo nem superior a 360 (trezentos e sessenta). O valor pago será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários".
A transação penal, como se sabe, sempre deve ser homologada pelo juiz. Ora, em se tratando de compromisso de pagamento de determinado valor em dinheiro, é evidente que o inadimplemento pode ensejar o processo de execução por quantia certa, nos termos da legislação processual civil. Afinal, estaremos diante de um título executivo judicial, conforme previsão expressa do art.584, III, do Código de Processo Civil.
Assim, pelo menos em relação à pena de prestação pecuniária, não existem maiores problemas no que concerne ao seu descumprimento, uma vez que a execução por quantia certa é o meio mais adequado para solucionar o inadimplemento.
No tocante às interdições temporárias de direitos, também não há polêmica significativa. Com efeito, prevê o art. 359 do Código Penal, em seu caput: "Exercer função, atividade, direito, autoridade ou múnus, de que foi suspenso ou privado por decisão judicial".
É necessário aqui distinguir duas hipóteses, quais sejam:
a) O descumprimento se deu em razão de suspensão ou interdição de direitos fixada em sentença condenatória, após a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos. Nesse caso, a única alternativa possível é a conversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade, pelo tempo fixado na sentença;
b) Se, por outro lado, a aplicação da pena se deu após a realização de transação penal, deve ser aplicado o disposto no art. 359 do CPB.
Quanto à perda de bens e valores, também não há transtorno significativo. O bem sobre o qual recairá a perda deverá ser perfeitamente individualizado. Em se tratando de bem imóvel, deve o juiz ter o cuidado de expedir, imediatamente, mandado de averbação ao competente Cartório de Registro Civil de Imóveis. Em se tratando de bens móveis, deverá ser providenciada a tradição imediata.
Finalmente, a prestação de outra natureza – que sempre depende, mesmo em caso de sentença condenatória, de anuência do autor do fato – pode, a depender da natureza da restrição imposta, padecer do mesmo problema da prestação de serviços à comunidade e da limitação de fim de semana. Caso a prestação de outra natureza tenha por objeto obrigação de dar, a solução á a mesma apresentada em relação à prestação pecuniária.
5. Prestação de serviços à comunidade e limitação de fim de semana
As penas de prestação de serviços à comunidade e limitação de fim de semana constituem o verdadeiro dilema de juízes e membros do Ministério Público, uma vez que aparentemente não existe solução para o problema. Ou melhor, a Lei nº 9.099/95 não tratou expressamente do tema.
Suponha-se que alguém, ao celebrar a transação penal, se comprometa a prestar serviços à comunidade em um hospital público, por exemplo, pelo período de seis meses, com carga de 08 (oito) horas semanais. O que fazer se ele jamais aparecer no local?
O mesmo se aplica à limitação de fim de semana. Qual a solução para a hipótese de o autor do fato jamais aparecer em casa do albergado ou estabelecimento adequado?
5.1 – Soluções apontadas
Ao longo dos quase 07 (sete) anos de vigência da Lei nº 9.099/95, surgiram algumas sugestões para a solução do problema. As mais aceitas serão examinadas a seguir.
5.1.1 – Conversão imediata
A primeira solução apontada é no sentido da conversão imediata da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade. Tal posicionamento, segundo seus defensores, estaria respaldado pela Lei de Execução Penal, em seu art. 181, §§ 1º e 2º. Não é o melhor caminho, todavia. Senão, vejamos.
A LEP somente se aplica às hipóteses de sentença transitada em julgado, em que houve a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos. Em outras palavras, a LEP trata da execução de sentença condenatória transitada em julgado.
A conversão imediata da medida restritiva de direitos aplicada em pena privativa de liberdade viola flagrantemente direitos constitucionais fundamentais, como o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal.
Poder-se-ia argumentar que o autor do fato, ao aceitar a proposta de transação penal, já se valeu do seu direito à ampla defesa. Tal argumento não estaria equivocado, mas não enfrenta a integralidade da questão.
Com efeito, ao renunciar às garantias constitucionais que lhe são postas à disposição, o autor do fato, na verdade, está manifestando sua vontade no sentido de que prefere ser submetido a determinada medida, ao invés de ter que passar por todos os dissabores de um processo penal.
Ocorre que a Lei nº 9.099/95 não prevê, em qualquer dispositivo, a possibilidade de conversão. Caso existisse tal previsão, não haveria a menor dúvida de que, ao aceitar a proposta de transação penal, o autor do fato teria que arcar com as conseqüências de sua decisão.
A conversão imediata, todavia, representaria uma verdadeira imposição de pena privativa de liberdade sem observância do contraditório, da ampla defesa e, sobretudo, do devido processo legal.
Finalmente, existe um argumento que aniquila qualquer possibilidade de conversão imediata. Qual seria o quantum da pena convertida? Quando a pena restritiva de direitos que substituiu a privativa de liberdade na sentença condenatória é convertida em prisão, existe um parâmetro, que é a pena aplicada. Qual seria o parâmetro, caso a conversão decorresse do descumprimento da transação penal? Seis meses, um ano? A única conclusão possível, portanto, é no sentido de que é absolutamente impossível converter imediatamente a medida restritiva de direitos aplicada na transação penal em prisão.
5.1.2 – Retomada do processo
Outra alternativa defendida é a possibilidade de retorno do processo, exatamente do ponto onde havia parado. O autor do fato não seria preso imediatamente e teria oportunidade de exercer seu direito à mais ampla defesa, num processo em que lhe fosse assegurado o contraditório.
Tal solução é altamente sedutora. O Estado não receberia críticas pela impunidade do sujeito ativo e este, por sua vez, teria a garantia de observância das garantias constitucionais postas à sua disposição pelo legislador de 88. É a posição que Luiz Flávio Gomes entende como a mais adequada, embora admita que a lei não permite tal solução.
Infelizmente não é o melhor caminho. A transação penal é homologada através de uma decisão judicial – uma sentença. Esta, como se sabe, é o ato do juiz que põe termo ao processo em primeiro grau de jurisdição. Através dela, o juiz esgota sua atividade jurisdicional.
A Lei nº 9.099/95 não prevê a possibilidade de retomada do processo. Esta esbarraria em um óbice praticamente intransponível. O recomeço do processo – trata-se, na verdade, de começo, uma vez que ainda não existia processo – implicaria o oferecimento de denúncia pelo Ministério Público. A tendência natural seria o recebimento da peça acusatória, que, como se sabe, é uma medida que impõe um constrangimento ao réu. Tanto assim é, que pode ser impetrado habeas corpus para trancar a ação penal, em determinadas hipóteses.
De acordo com um princípio comezinho de hermenêutica, as regras que restringem, de alguma forma, determinado direito, devem ser interpretadas restritivamente.
Na hipótese de que ora se cuida, o retorno do processo significaria mais que uma interpretação extensiva, mas verdadeira criação de uma norma que restringiria o jus libertatis, o que é absolutamente inadmissível.
Assim, em nosso sentir, também não pode ser adotada a retomada do processo como sendo a melhor solução para o descumprimento da transação penal.
5.1.3 – Execução por obrigação de fazer
A última alternativa que restaria – e esta é a que nós adotamos – seria a execução específica do quanto pactuado na transação penal.
Não se pode perder de vista o fato de que o autor do fato, ao se comprometer, por exemplo, a prestar serviços à comunidade, assume uma obrigação de fazer, de acordo com a teoria geral das obrigações.
A melhor solução, portanto, seria a execução da obrigação de fazer, nos termos dos arts. 632 a 641 do Código de Processo Civil.
Poder-se-ia argumentar que o direito das obrigações não é aplicável à pena restritiva de direitos, uma vez que esta última tem natureza penal, devendo, portanto, seguir as regras da LEP para sua execução. Ademais, haveria quem afirmasse que a regra do Direito Civil, segundo a qual não se pode compelir materialmente alguém a fazer algo, sob pena de odiosa restrição à liberdade, não pode ser aplicada ao Direito Penal. Tal raciocínio, todavia, seria distorcido.
Com efeito, não existe qualquer razão lógica para que se admita a execução civil para a multa e a prestação pecuniária e não se adote o mesmo raciocínio para as penas restritivas de direitos.
Não é demais lembrar que, embora estejamos nos referindo a pena restritiva de direitos, na verdade, o que temos, quando da celebração da transação penal, é uma medida restritiva de direitos, o que, de imediato, afasta a possibilidade de aplicação da LEP.
De acordo com o disposto no CPC, deve-se tentar, ao máximo, a execução específica da obrigação de fazer. Caso não seja possível, parte-se para a indenização.
Não se pode perder de vista o fato de que o legislador, ao elaborar a Lei n. 9.099/95, teve em mente abolir a pena de prisão para as infrações de menor potencial ofensivo. Ora, se a idéia é exatamente evitar a odiosa pena de prisão, qual o problema em se admitir que a obrigação de fazer, uma vez constatada sua impossibilidade de realização material, se converta em obrigação de indenizar?
6. Conclusão
A falibilidade, como se sabe, é intrínseca à condição humana. Com o legislador da Lei nº 9.099/95 não poderia ser diferente e não haveria possibilidade de se prever, em um único momento e em apenas um texto legislativo, todos os desdobramentos das medidas despenalizadoras criadas.
Diante da omissão legislativa, portanto, entendemos que a única solução viável para o descumprimento da transação penal, no que se refere à prestação de serviços à comunidade e à limitação de fim de semana, é a execução civil da medida, considerada como obrigação de fazer.
Mesmo reconhecendo que a solução pode transmitir a idéia de uma certa impunidade diante do descumprimento de uma decisão judicial – ainda que esta seja meramente homologatória – a medida é a única adequada ao espírito da lei e, principalmente, ao jus libertatis do indivíduo. Até que haja uma reforma da Lei nº 9.099/95, não vislumbramos outra alternativa.
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