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Multiparentalidade: reconhecimento e efeitos jurídicos

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Agenda 15/09/2014 às 19:55

3. MULTIPARENTALIDADE SEGUNDO A DOUTRINA

Quando nos referimos a multiparentalidade e a doutrina, os Enunciados[11] são referencia nessa questão. Os dezesseis anos de produção de conhecimento do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família também servem como diretriz para a criação da nova doutrina e jurisprudência em Direito de Família.

Segundo Rodrigo da Cunha Pereira, pelo fato do instituto ter um percurso técnico, ético e também histórico, autoriza a publicação de conclusões em forma de Enunciados, cuja redação seja aprovada em Assembleia Geral. Assim justificou afirmou:

[...] “Reunimos as maiores cabeças pensantes do Direito de Família no Brasil, que juntas refletem sobre a doutrina e traduzem em novas propostas para a sociedade. Não um Direito duro, um Direito dogmático. É um Direito que traduz a vida como ela é". (IBDFAM, 2013 on line)[12].

Afirmou ainda que esses Enunciados contemplam temas inovadores e até polêmicos, já que as famílias mudaram e são dinâmicas, mas a lei não acompanhou essas mudanças. Por isto, eles abrem caminho e perspectivas, atribuem e ampliam direitos para algumas configurações familiares, que ainda não estavam protegidas na legislação. logo:

[...] “Os Enunciados são para aqueles aspectos da vida das famílias que não tem uma regra específica. Seja porque são questões novas, seja porque a tramitação legislativa é lenta, dando uma referência e um norte para um novo Direito de Família brasileiro". (IX CONF, Araxá, MG/2013, on line)[13].

É incalculável o valor da doutrina para o direito de família. Foi com base nela que o IX Congresso Brasileiro do IBDFAM publicou os Enunciados 06[14], 07[15] e 09[16], os quais fazem referência direta à multiparentalidade. Não podemos negar, mas sim implementar os avanços trazidos pela Constituição de 1988 aos quais chamamos de “novos caminhos”, e também pelo Código Civil de 2002, que são na verdade desdobramentos dos primeiros passos traçados pela CF de 1988. Apesar desses avanços e outros doutrinários e jurisprudenciais, ainda não foram suficientes para acompanhar a rápida evolução histórico-social da família brasileira, deflagrada de forma acentuada pelo multiculturalismo mundial na sociedade brasileira.

É nesse aspecto que podemos perceber a importância da doutrina para o Direito em geral, e especificamente para o Direito de família. ZAMATTARO afirma “a multiparentalidade deve ser entendida como a possibilidade de uma pessoa possuir mais de um pai e/ou mais de uma mãe, simultaneamente, produzindo efeitos jurídicos em relação a todos eles, inclusive, ao que tange o eventual pedido de alimentos e até mesmo herança de ambos os pais[17]”.

De fato, esse reconhecimento e, principalmente, a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica, representa um avanço significativo no Direito de Família. Consagram-se, entre outros, os princípios da dignidade humana e da afetividade, afastando-se a preocupação inicial expressiva com a proteção ao patrimônio, voltando-se à proteção das pessoas e, por consequência, passando a prevalecer, no âmbito jurídico, o trinômio amor, afeto e atenção.

Todavia, não se trata, ainda, de questão inteirmamente pacificada, dividindo-se opiniões entre nossos principais juristas. Para TAVARES (2013, on line) "o vínculo de socioafetividade vai muito além do simples sustento, de morar sob o mesmo teto ou de dar assistência. Se a criança tem um pai biológico que a assiste, também, não cabe ter uma dupla paternidade[18]".

Já TARTUCE (2013, on line), manifestou-se fazendo referencia ao livro “A escolha de Sophia”, onde uma mãe, presa num campo de concentração durante a segunda guerra mundial, é forçada por um soldado nazista a escolher um de seus dois filhos para ser morto, metaforicamente disse: “A jurisprudência escolhia um ou outro. Agora, não. São os dois: o pai biológico e o afetivo[19]”. Logo, o reconhecimento da multiparentalidade produzirá efeitos em todas as esferas, principalmente em questões de herança e de pensão alimentícia.

De qualquer forma, em que pesem as manifestações e decisões proferidas a esse respeito, devemos ter consciência que se trata de um tema ainda delicado merecedor de peculiar atenção. Principalmente, quanto ao seu fundamental objetivo, que em hipótese alguma, pode ser o caráter patrimonial. Para muitos doutrinadores os laços de sangue e os socioafetivos devem seguir juntos sempre que essa união mostrar-se benéfica, favorável e de acordo com os superiores interesses sociais e afetivos da criança e adolescente envolvidos.

Para DIAS[20], a única questão que pode colocar em dúvida a prevalência da filiação socioafetiva em relação à filiação biológica ocorre quando o vínculo registral foi construído porque o pai, por exemplo, foi induzido ao erro, ou seja, registrou o filho acreditando ser seu pai biológico e mais tarde descobriu uma traição, que ele não o era.

DIAS (2013, on line) destaca ainda “que as leis para acompanhar as mudanças culturais da sociedade, produtoras de novas composições familiares, é preciso que sejam mais abertas, especialmente ao tratar de questões como essas que, as leis devem atribuir ao juiz o encargo de decidir em cada um dos casos, pois mesmas situações podem gerar soluções diferentes[21]”.

Diante de tudo isso o que podemos elucidar é que a doutrina de maneira quase uniforme trata com muitas reservas a questão da multiparentalidade em razão de seus complexos efeitos. Entendemos que a mesma não deve ser visualizada por um único prisma, mas por todos os ângulos da hermenêutica e da volição, revestidos do sentimentalismo humano e justo, possam caracterizar qualquer injustiça, podendo em tempo oportuno fazer prevalecer um ou outro dos vínculos, seja ele qual for.

Para PEREIRA (2013, on line)[22], o fato de o STF já ter reconhecido a repercussão geral[23] sobre a questão da afetividade ou paternidade socioafetiva, é mais um motivo pra olharmos com cuidado tanto para o vínculo biológico como também para a afetividade. Assim leciona:

O Direito hoje, especialmente a partir do discurso psicanalítico, já sabe e reconhece que paternidade e maternidade são funções exercidas, ou seja, se o pai ou mãe não ‘adotar’ o seu filho, mesmo biológico, eles jamais serão pais. Segundo o advogado, os laços de sangue não são suficientemente fortes para garantir ou sustentar uma relação de paternidade ou maternidade. “Qualquer julgador que pensar um pouco mais profundamente sobre ‘o que é ser pai, o que é ser mãe’, chegará à conclusão da preponderância da socioafetividade sobre a genética”. (MIGALHAS, 29/01/2013, on line)[24]

Para CASSETTARI (2013, on line)[25], os principais efeitos jurídicos da parentalidade socioafetiva, mormente a multiparentalidade, produzem vários problemas que podem decorrer do seu reconhecimento. Como exemplo indica a maneira de sua formação, se ela é direito só do filho ou dos pais também, se a afetividade deve ser recíproca, qual é a ação judicial que deve ser proposta para discuti-la, se são devidos alimentos nesse modelo, se há direito sucessório, se o parentesco socioafetivo liga o filho a todos os parentes do pai ou da mãe, se há direitos previdenciários, se essa parentalidade gera inelegibilidade eleitoral, se essa filiação pode ser impugnada, dentre outras questões. Depois da análise que fez, afirmou:

Não há dúvida de que o maior efeito dessa forma de parentalidade, e não apenas filiação, é a criação de multiparentalidade, ou seja, a possibilidade de a pessoa ter mais de um pai e/ou mais de uma mãe. Existem no Brasil algumas decisões concedendo esse modelo plural de parentesco, motivo pelo qual se aborda nesta obra a necessidade de esse tema ser levado ao Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, para gerar os seus regulares efeitos no âmbito do Direito de Família. (CASSETTARI, 2014, p.56)

Da mesma forma também afirma:

Preocupa-se em indicar os problemas relacionados à coexistência da multiparentalidade biológica e afetiva, tais como a forma de administração do poder familiar exercida por três ou mais pessoas, na hora, por exemplo, de pagar alimentos, conceder emancipação, autorizar o casamento, aprovar pacto antenupcial feito por menor, ser usufrutuário dos bens de filhos menores, exercício da tutela, da curatela do ausente, o dever de indenizar, dentre outros. (CASSETTARI, 2014, p.56-57)

Por tudo o que foi analisado em seu livro sobre multiparentalidade, o autor acredita que o parentesco socioafetivo deve gerar todos os mesmos regulares efeitos do biológico, motivo pelo qual o Poder Judiciário deve ser mais criterioso na hora de reconhecê-lo, e alude pensar, quiçá, em admitir sua extinção com o fim do afeto.

Dizer que o reconhecimento judicial da multiparentalidade gera inúmeros efeitos legais é dizer por óbvio, que ela produz todas as implicações jurídicas que decorrem da filiação, quais sejam: cria a relação de parentesco entre o filho e todos os parentes ligados a todos os pais; em relação ao nome, poderá haver o acréscimo do nome da família (direito de personalidade); em relação à obrigação alimentar, admite proceder nos moldes determinados pelo Código Civil de 2002 e Lei de alimentos nº 5.478/68); em relação a guarda e as visitas, quando se tratar de filho menor, deve ser observado o princípio do melhor interesse da criança principalmente no direito sucessório conforme Lecionam SCHIMITT e QUEIROZ:

Conforme explicado anteriormente a filiação atualmente é um dos principais institutos formadores da família e dos laços de afeto, podendo ser provada principalmente pela certidão de termo de nascimento registrada no Registro Civil, portanto sendo autorizado judicialmente que o nome do pai afetivo conste na certidão de nascimento do menor, neste momento também será ele considerado pai, e o menor seu herdeiro legítimo. ( JUSBRASIL, 2013, on line)[26]          

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Já VALADARES (2008, p. 148) alerta “até porque descendente biológico, ou não, toda criança precisa ser adotada psiquicamente por seus pais”.

Efeitos jurídicos da multiparentalidade na sucessão

  Sobre os efeitos jurídicos na sucessão HIRONAKA (2003, p.81) aduz que “a herança transmite-se aos herdeiros legítimos e testamentários. Ela se transmite por força da lei formando um condomínio entre todos aqueles que foram contemplados com a atribuição de uma quota parte ideal, observadas as alterações instituída pelo autor da herança por meio de testamento (herdeiro testamentário). No geral, todos os da mesma classe receberão a mesma quota parte ideal determinada por lei (herdeiro legítimo)”. Por isso, entende-se que a ordem de vocação sucessória prevista no artigo 1.829, do Código Civil de 2002, foi estabelecida conforme a classe da relação do parentesco seja ele consanguíneo-biológico ou por afinidade. Na existência de herdeiros necessários e ausência de testamento válido, que deverá ser observada a ordem de sucessão legítima na forma da legislação vigente. Concernente a sucessão legítima e pertinente o que questiona Zeno Veloso:

Haverá alguma pessoa, neste país, jurista ou leigo, que assegure que tal solução é boa e justa? Por que privilegiar a este extremo, vínculos biológicos, ainda que remotos, em prejuízo dos vínculos do amor, da afetividade? Por que os membros da família parental, em grau tão longínquo, devem ter preferência sobre a família afetiva (que em tudo é comparável à família conjugal) do hereditando? (VELOSO, 2003, p.293)

Na ideia de Zeno Veloso:

A sucessão independe do vínculo de parentesco e sim do vínculo de amor, pois sua a relevância na atual sociedade deve fazê-la seguir as mesmas normas sucessórias vigentes no Código Civil, onde os descendentes (em eventual concorrência com o cônjuge ou companheiro sobrevivente) figuram na primeira classe de chamamento, sendo que os mais próximos excluem os mais remotos. Existindo, portanto, filhos do de cujo, estes concorrem entre si em igualdade de condições, recebendo cada qual por cabeça a sua quota do quinhão hereditário”. (VELOSO, 2003, p.240)

Relembramos também que conforme princípio constitucional prevista expressamente no artigo 227, § 6º da CF “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Assim sendo, independentemente da forma de reconhecimento dos filhos, serem esses naturais, afetivos ou multiparentais, possuem os mesmos direitos, inclusive sucessórios. Esse também é o sentido jurídico da regra do art. 1.596 do Código Civil.

Portanto, pelo fato de não haver distinção jurídica sobre a forma de relação pai/filho ser biológica ou afetiva, estando reconhecida a multiparentalidade, no momento da transmissão da herança estaria criada a linha de chamamento sucessório de cada pai ou mãe que o filho tiver. Assim o filho multiparental figura como herdeiro necessário de todos os pais que tiver.

Quanto à sucessão pelos ascendentes, na ausência de descendentes, todos aqueles que figurarem como pais do mesmo filho seriam herdeiros em pé de igualdade, concorrendo com eventual cônjuge sobrevivente assumindo, também, a condição de herdeiros necessários.

Efeitos jurídicos previdenciários da multiparentalidade

Conforme leciona KERTZMAN (2008, p.43), “são três os tipos de regimes previdenciários existentes no Brasil, que são: a) Regime Geral da Previdência Social (RGPS), que é administrado pelo poder público; b) os Regimes Próprios da Previdência Social (RPPS), e que também é gerenciado pela Administração Pública; c) o Regime de Previdência Complementar, regido pelos institutos privados”. O que parece bem claro é que nenhum desses regimes sofre qualquer alteração em relação direitos previdenciários na multiparentalidade.

Logo, para fins previdenciários, o descendente ou ascendente multiparental seria sempre seus próprio beneficiário, ambos, um do outro, uma vez que o artigo 16, inciso I, da Lei 8.213/91, determina:

Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado: I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou invalido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente. (LEI, 8213, 24/07/1991).

Neste mesmo sentido o artigo 16, em seu inciso II, determina que os pais também são considerados beneficiários. Logo, na multiparentalidade a relação previdenciária, é como em qualquer relação de filiação, os pais, biológicos ou afetivos, e o filho, recebem a condição de dependentes do segurado.

Na sucessão, embora haja discussão na doutrina e até mesmo porque o assunto é novo e complexo, sob o aspecto da amplitude da relação, todos os pais seriam herdeiros do filho, e o filho herdeiro de todos os pais. A mesma compreensão se estabelece em relação aos ascendentes e descendentes, bem como, aos parentes colaterais até o quarto grau. As sucessões dos pais não se comunicam entre si, salvo àqueles que são cônjuges ou companheiros.

Como já referido anteriormente, a multiparentalidade é o reconhecimento de uma relação afetiva interpessoal já existente. Como leciona Póvoas:

Não há como deixar de reconhecer que a multiparentalidade será, em breve, mais comum do que se imagina, na medida em que, em determinados casos, é a única forma de garantir interesses dos atores envolvidos nas questões envolvendo casos de filiação, albergando lhes os princípios constitucionalmente e eles garantidos da dignidade da pessoa humana e da afetividade. (PÓVOAS, 2012, p. 11).

A multiparentalidade, no que diz respeito à sucessão de direitos previdenciários, é uma forma justa de reconhecer a paternidade e a maternidade de um filho que é amado por ambos os pais, sem que para isto necessite a exclusão de um ou de outro. A exclusão pode existir tanto ao se substituir o nome de um pai ou mãe do registro de nascimento, quando este, por motivos legítimos, não aceitar a permanência no registro na forma original, sem considerar a falácia do mundo fático, uma vez que aquele filho tem mais de uma mãe ou de um pai.

 Efeitos jurídicos da multiparentalidade nos alimentos

Pra falarmos de alimentos na multiparentalidade, devemos iniciar trazendo à memória o art. 229 da Constituição de 198: “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. Da mesma forma, o art. 1.696 do Código Civil assegura que a prestação de alimentos é recíproca entre pais e filhos, de modo que todos os pais poderão prestar alimentos aos filhos, bem como, estes poderão prestar alimentos a todos os pais, caso necessitarem. Por óbvio, com fundamento nessas duas normas, na multiparentalidade não deve ser diferente, considerando sempre o binômio possibilidade e necessidade em respeito ao parágrafo 1º do artigo 1.694 do Código Civil.

Repetimos aqui o que já afirmamos acima, não há que falar-se em outra forma no dever de prestar alimentos, apenas por se tratar da multiparentalidade. Se através da multiparentalidade os filhos conquistam o direito de terem inserido em seus registros os nomes dos dois pais ou das duas mães, logo, por não haver distinção entre filhos, conforme previsto expressamente no artigo 227, § 6º da CF, não há outra forma de aplicação do direito dos alimentos a não ser a legal, vigente em nosso país, conforme leciona Gonçalves:

Destarte, os filhos ilegítimos e adotivos não eram contemplados com os mesmos direitos dos consanguíneos, principalmente no que diz respeito ao regime sucessório, injustiça que foi excluída pelo novo regime constitucional de 1988, o qual igualou os direitos de todos os filhos e proibiu a discriminação contra qualquer das espécies de filiação. (GONÇALVES, on line)[27]

Os fundamentos acima citados deixam claro o cunho tipicamente familiar do instituto da multiparentalidade, que funda-se exclusivamente no vínculo conjugal, nas relações de união estável e no vínculo de parentesco (neste último incluído o jus sanguinis e aquele decorrente da adoção), não tem por que ter sua aplicação no direito alimentar diferenciado da lei de alimentos, vigente no ordenamento jurídico pátrio.

Para Schimitt e Augusto (2013, on line):

Na tripla filiação multiparental o menor necessitado poderá requerer alimentos de qualquer um dos pais, atendendo o princípio do melhor interesse da criança, presente no Estatuto da Criança e do Adolescente. Resta claro que a possibilidade de uma tripla filiação teria muito mais condições de contribuir para o adequado desenvolvimento do menor. Nos casos onde os magistrados decidissem por reconhecer a tripla filiação, sempre haverá a prévia relação familiar de fato, restando apenas reconhecer uma regulamentação de direito[28].

Resta ainda a possibilidade de prestação de alimento, que, como explica Monteiro (2008, p.78) “também têm direito a alimentos os pais perante os filhos. Seria realmente coisa escandalosa, diz Laurent, ver um o filho negar alimentos ao pai, dando, por assim dizer, a morte a quem lhe deu a vida”.

Entende-se, então, que a multiparentalidade proporcionará ao filho o dever de ser fornecedor dos cuidados na velhice de seus pais. Poderá o filho ver-se compelido a escolher um deles para melhor atender ou, então, deverá prestar alimentos e cuidados aos dois ou três, caso necessitem? Embora, instigante, a resposta para tal questionamento está surgindo com o passar dos anos, pois, como vem sendo destacado no presente trabalho, o instituto da multiparentalidade é novo e ainda carece de maior reflexão para as respostas, que fluem da convivência do dia a dia.

Todavia arrisca-se, com base jurisprudencial, doutrinária e na analogia, considerar que o filho deverá prestar igual parcela de alimentos e questionar dos pais, que usualmente se estabelece em um limite de 1/3 (um terço) dos vencimentos líquidos. Entretanto nada impede que, de acordo com o binômio necessidade e possibilidade ocorra a fixação de valor acima ou abaixo desse critério usual. Na multiparentalidade o critério poderá ser inicialmente sempre o mesmo, nos moldes da interpretação dos juízos e tribunais.

Portanto, assim como um pai deve prestar alimentos aos filhos, seja um ou dez, na multiparentalidade ocorre da mesma forma, e os filhos deverão fornecer a todos os pais os alimentos devidos, caso necessitem.

Efeitos jurídicos da multiparentalidade no estado da pessoa

Conforme ensina PEREIRA (2004, p. 265) “o estado da pessoa é traçado pelo vínculo distintivo que são atribuídos aos indivíduos”. São tipos detectadas pelo legislador para organizar as relações pessoais, e também no campo das relações sociais, ou seja, tanto no âmbito familiar, bem como no social e político.

Pereira (2004, p.265) informando que “o estado da pessoa pode se distinguir em: estado civil, em que a pessoa pode ser classificada como casada, solteira, divorciada, ou viúva; estado político, que diferencia as pessoas pelo fato de serem nacionais ou estrangeiros; e estado individual, que distingue os sexos feminino e masculino, ou se refere ao fato da pessoa ser maior ou menor de idade”.

Disto o que mais interessa no âmbito da multiparentalidade é o estado individual da pessoa, que está intrinsecamente ligado ao fato dela ser maior ou menor de idade, visto que na multiparentalidade trata-se primordialmente de filhos, sendo os mesmos quase sempre crianças e adolescentes. O fato é que a tutela estatal distingue-se pelo estado individual da pessoa, ou seja, se menor de idade (criança ou adolescente), a proteção do Estado é bem mais abrangente e diferenciada do adulto.

Outro ponto importante a ser destacado é o fato do estado da pessoa possuir características interiores e exteriores. Dentro do aspecto interno pode-se dizer que o estado da pessoa é indivisível, ou seja, as pessoas não podem ter simultaneamente dois estados civis; indisponível, pois o estado civil de cada um não pode ser repassado para ninguém; e imprescritível, visto ser um direito que poderá ser exercido a qualquer tempo. Sobre o assunto expõe Pereira:

O estado é atributo pessoal e por isso é irrenunciável, inalienável, imprescritível, insuscetível de transação e indivisível. A pessoa pode mudar de estado, seja em decorrência de um ato jurídico ou de um fato natural, p. ex., passar de solteiro para casado, em razão da celebração do casamento, ou de casado para divorciado, em razão da ação de divórcio, de casado para o estado de viúvo, em razão da morte do cônjuge, de menor para maior, em razão do decurso do tempo. É imprescritível o estado. Por maior que seja o tempo decorrido de inércia da pessoa, ela não perde o estado que lhe compete, e também não adquire estado que indevidamente se atribua. Não é suscetível de transação. O estado envolve interesse de ordem pública, e, assim, não pode ser objeto de acordo entre pessoas envolvidas. Ex.: ação de investigação de paternidade: não se transige a respeito do direito de filho. (PEREIRA, 2004, p.270)

Logo o estado civil é indivisível não podendo uma pessoa ser simultaneamente, casada e solteira, e regra geral também não pode ter dois pais e duas mães. Veja como é importante a certeza da qualificação individual das pessoas, e todos os fatos constitutivos ou modificativos do estado devem estar inscritos no Registro Civil.

Portanto, pelo fato da ideia de filho estar quase sempre ligada à criança ou adolescente, quando falamos do estado da pessoa na multiparentalidade estamos falando de alguém que não podia ter dois pais ou duas mães, mas agora, extraordinariamente, passa a ter o seu estado alterado pela ação multiparental, passando a exercer os seus direitos a qualquer tempo. É nesse sentido que lecionam Rodrigues e Teixeira:

O registro não pode ser um óbice para a sua efetivação, considerando que sua função é refletir a verdade real; e, se a verdade real concretiza-se no fato de várias pessoas exercerem funções parentais na vida dos filhos, o registro deve refletir esta realidade. (RODRIGUES; TEXEIRA, 2010, p.106).

Como percebe-se, é nesse sentido que ganha relevância o caráter registral da paternidade, para que seja por todos claramente percebida a importância material dela. Fato pode dar-se através dos critérios biológicos e afetivos, mas na realidade sua importância no plano formal dá-se apenas pelo critério registral. É nele que se formalizam os requisitos legais da paternidade. São desses requisitos que resultarão o estado da pessoa natural, que trarão ao mundo fático as consequências jurídicas, morais e patrimoniais, tudo resultantes do novo estado da pessoa, conforme escreveu BUCHMANN (2013, on line):[29]

Toda e qualquer alteração que ocasione modificação no estado da pessoa natural deve ser averbado junto ao Registro Público. No que concerne à filiação, o Código Civil de 2002, logo em seu artigo 10, inciso II, já trás determinação expressa da necessidade de averbação em registro público.

Como a multiparentalidade poderá influenciar pelo fato de não haver norma legal sobre o tema, dizemos que vale a pena refletir de modo mais sucinto sobre o estado da pessoa, pois dele poderão surgir impedimentos jurídicos caso a dupla inserção registral não seja considerada legal. Os avanços são ainda tímidos, mais reais e podem chegar a solucionar problemas parecidos com a multiparentalidade, mesmo que por outras vias legais, conforme ensina PIOLI (2013, on line):[30]

Trata-se apenas de uma possibilidade, entre tantas outras, em que o assunto da multiparentalidade vem à tona. A Lei 11.924/2009 já regulamentou a possibilidade de o enteado ou enteada adotar o patronímico da família do padrasto ou da madrasta, porém a questão da multiparentalidade vai além, e questiona-se se seria possível alguém ter em seu registro civil o nome de duas mães ou de dois pais.

Com relação ao aspecto externo, pode-se dizer que o estado da pessoa é geral, pois deve ser observado por todas as pessoas, ou seja, seu efeito é válido em relação a qualquer um. Diz-se pessoal, pois se refere a um indivíduo determinado, sendo característica exclusiva de uma pessoa, e é de Ordem Pública, ou seja, são condições preventivamente necessárias impostas por lei, para que sejam resguardadas as relações sociais e o interesse público. Importante frisar que o estado da pessoa é provado por meio de certidão emitida pelos registros públicos.

EfeitoS jurídicos da multiparentalidade no nome da pessoa

O nome da pessoa é justamente o depositório onde se materializam direitos e deveres atribuídos e discutidos ao longo dos anos, e podemos dizer que assim ocorre desde os primórdios da sociedade organizada. Por mais que outrora juridicamente não se discutisse os direitos e deveres familiares, hoje alcançamos alguns desses ideais. Portanto, na multiparentalidade os efeitos jurídicos no nome da pessoa não estão somente impregnados da discussão em torno do melhor critério da paternidade da criança, qual será que ganhará ou perderá as prerrogativas de pai, mas sim, de tudo aquilo que mais se coaduna com o melhor interesse da criança. O genitor que tiver seus direitos afetivos violados deve lutar para manter ou incluir seu nome no registro de nascimento de seu filho. Como leciona PÓVOAS (2012, p.78), “não há como negar que fere a dignidade do pai afetivo e viola o principio da afetividade, simplesmente extirpar a relação parental, entre ele e aquele que sempre teve como filho, por não haver entre eles liame biológico”.

Por outro lado, da mesma forma feriria o princípio da dignidade da pessoa humana, e logo a dignidade do pai biológico, se o mesmo fosse excluído do registro de nascimento daquele que carrega a sua herança genética, uma vez que houvesse afeto na relação, bastando a simples disposição deste afeiçoar-se àquele. Nessa direção, PÓVOAS (2012, p.79) ressalta que a um pai biológico não pode ser o direito de tentar, de ter informações sobre seu filho “Mas não se pode negar que ao pai biológico foi sonegada a possibilidade de tentar ter relação afetiva com seu filho, pois se omitiu dele a informação de que havia tido um filho. Essa relação afetiva, não há dúvida, pode ser estabelecida posteriormente”.

De maneira mais contundente Póvoas continua analisando:

Não obstante já ter sido análise de reconhecimento judicial e doutrinária, a possibilidade de reconhecimento jurídico da coexistência entre paternidades biológica e afetiva, restou uma lacuna que ainda não foi preenchida, qual seja a necessidade do reconhecimento registral desta dupla paternidade. (PÓVOAS, 2012, p.88)

Há reais condições de vermos na dupla inserção registral corroboração ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Conforme acentua PÓVOAS,

[...] a alteração do registro, com a inclusão, no caso de multiparentalidade, de todos os pais e mães no registro, só traz benefício aos filhos, auferindo-lhes de forma incontestável e independente de qualquer outra prova (pela presunção que o registro traz em si) todos os direitos decorrentes da relação parental. E que direitos seriam esses? Ora, todos os que um filho tem em relação ao pai e vice-versa: o nome, a guarda, alimentos, parentesco, visitas, sucessórios. (PÓVOAS, 2012, p.91-92)

3.5.1 A dupla inserção registral e seus efeitos jurídicos

Seria profundamente sem fundamento toda a luta travada durante anos em busca da consolidação da multiparentalidade se dessa não se constituíssem os múltiplos efeitos jurídicos na vida dos que a buscam. Póvoas (2012, p.89) sustenta que “o reconhecimento só judicial da multiparentalidade, sem a inclusão de todos os pais no registro de nascimento da criança, cria mais um problema do que uma solução”.

Outros doutrinadores também conseguem enxergar mais problemas que benefícios caso a multiparentalidade seja acolhida apenas no judiciário, em um tribunal, sem os efeitos do reconhecimento legal registral. Sobre isto Rodrigues e Teixeira (2010, p.89) mencionaram preocupação e assim lecionam: “a multiparentalidade inaugura um novo paradigma do Direito Parental, no ordenamento brasileiro. Para que ela se operacionalize, contudo, é necessário que seja exteriorizada através de modificações no registro de nascimento”.

Instituída pela Lei nº 6.015/73, a que dispõe sobre os Registros Públicos (BRASIL, 1973) “que todo pai ou mãe que venha a ser reconhecido, venha a constar no registro de nascimento da pessoa”. Essa mesma lei é responsável pelo registro da filiação e pelos efeitos jurídicos que dela emane.

No entanto, é sabido que não está inserido na Lei nº 6.015/73, a possibilidade da dupla indicação de nomes de pais ou de mães, oriundo a multiparentalidade. Isto ocorre pelo fato da multiparentalidade ser um fenômeno de recente existência na sociedade contemporânea, por ainda não estar sob completa regulação normativa.

Por isto ainda fala-se em determinados fóruns de Direito de Família brasileiros sobre possíveis empecilhos à legalização da multiparentalidade, deixando-se a matéria para o legislador ordinário. Mas não devemos esquecer que o instituto da multiparentalidade parece amparado por princípios constitucionais que são normas superiores as leis infraconstitucionais. Neste sentido posiciona-se Póvoas, (2012, p.90) ao declarar que “a Lei Registral, infraconstitucional, jamais pode ser óbice ao reconhecimento da dupla filiação parental, porque esta é baseada em princípios constitucionais superiores a ela”. No mesmo sentido WELTER assim completa:

[...] quando se cuida de ação de estado, de direito da personalidade, indisponível, imprescritível, intangível, fundamental à existência humana, como é o reconhecimento das paternidades, genética e socioafetiva, não se deve buscar compreender o ser humano com base no direito registral, que prevê a existência de um pai e uma mãe, e sim na realidade da vida de quem tem, por exemplo, quatro pais (dois genéticos e dois afetivos), atendendo sempre aos princípios fundamentais da cidadania, da afetividade, da convivência em família genética e afetiva e da dignidade humana, que estão compreendidos na condição humana tridimensional. (WELTER, 2009, p.101)

No Brasil, a mola propulsora dessa evolução parental consta nos autos da ação de investigação de paternidade nº 0012530-95.2010.8.22.0002, ajuizada na Vara Cível da Comarca de Ariquemes, Rondônia, na qual a magistrada Deisy Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz proferiu sentença inédita, reconhecendo a multiparentalidade. Eis na parte dispositiva os termos da precursora decisão:

Diante de todo o exposto e a singularidade da causa, é mister considerar a manifestação de vontade da autora no sentido de que possui dois pais, aliado ao fato que o requerido M. não deseja negar a paternidade afetiva e o requerido E. pretende reconhecer a paternidade biológica, e acolher a proposta ministerial de reconhecimento da dupla paternidade registral da autora. Serve a presente de mandado de averbação ao Cartório de Registro Civil de Pessoais Naturais de Jaru/RO, para acrescentar no assento de nascimento n. 45.767, fl. 184 do Livro A-097, o nome de [...] na condição de genitor, e de seus pais na qualidade de avós paternos, sem prejuízo da paternidade já reconhecida por [...], passando a autora a chamar-se: [...]. (TJRO, 2012, on line).

Pelo que se vê a seara registral confere substância formal à multiparentalidade tornando-se para a criança e adolescente uma oportunidade de inclusão e favorecimento, de não ter que optar por uma ou outra paternidade. Além disto, a sentença prolatada definiu a inserção múltipla dos nomes do pai afetivo e do pai biológico no registro da criança, o direito das visitas livres e o valor da pensão alimentícia. Nesse sentido Rodrigues expõe:

São decisões que apontam para um novo fato que não pode ser desconsiderado pela doutrina mais atenta: não há, a priori, nenhum tipo de prevalência ou hierarquia do parentesco biológico sobre o socioafetivo e vice-versa. O que ocorre é que em muitos casos ambos são fundamentais na vida e na edificação da identidade e da personalidade da pessoa, devendo ser preservados em nome da dignidade da pessoa humana e do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. (RODRIGUES, 2002, p.89)

É justamente essa a percepção que a multiparentalidade proporciona, visto que tem se revelado como a possibilidade da criança manter o convívio com ambos os pais, tanto o biológico quanto o socioafetivo. Ademais, a direção que é assegurada pela Constituição Federal é justamente da prevalência dos interesses das crianças e dos adolescentes. Esse sentimento busca sempre assegurar-lhes, “por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade” (TARTUCE; SIMÃO 2010, p.45). Essa convivência múltipla, quando é mantida pelo amor e a harmonia, proporciona à criança um crescimento mais saudável, colocando a mesma em um ambiente onde  possa desenvolver sua personalidade nos termos da família eudemonista[31].

Muitos ainda questionam se a dupla inserção registral pode ser de alguma forma prejudicial à criança ou adolescente. Se existe alguma possibilidade da criança sofrer algum dano em detrimento de possuir dois, três ou mais pais em seu registro, quando a grande maioria só tem um. O que podemos perceber durante a elaboração deste trabalho é que, se existe algum dano que resulta da multiparentalidade, mais exatamente, da dupla inserção registral, esse eventual dano não chega nem perto do elevado percentual de benefícios resultantes da mesma. Se um pai amoroso é suficiente para o bom desenvolvimento da personalidade, o crescimento e a evolução social satisfatória de uma pessoa, imaginemos dois pais amorosos. Cabe aqui reafirmar que a construção multiparental é feita sob a égide da afetividade e do amor familiar, conforme SANTOS (2009, p.351) “não importam a multiplicidade e a pluralidade da filiação, o fundamental é que seja merecedora de proteção integral e de absoluta prioridade”.

O nome da pessoa está intrinsecamente ligado a seara registral. Não seria lógico alguém ter de fato dois pais e duas mães e não poder vê-los legalmente inseridos em seu registro de nascimento. A multiparentalidade traz em seu bojo essa realidade, como expõe DIAS (2011, p.51), quando defende que “Nada justifica, portanto, não admitir a presença de mais de um pai ou de mais de uma mãe. Restringir tal possibilidade só vem em prejuízo de quem, de fato, tem mais de um pai e mais de uma mãe”.

Sobre o autor
José Neves dos Santos

Sou Teólogo formado pela (FATEFIG), Pedagogo formado pela (USM) e bacharel em direito (ULBRA) e Professor de Filosofia na Rede Pública do Estado do Pará. Mas o que gosto mesmo é de escrever sobre direito de família.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, José Neves. Multiparentalidade: reconhecimento e efeitos jurídicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4093, 15 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29422. Acesso em: 22 nov. 2024.

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