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Multiparentalidade: reconhecimento e efeitos jurídicos

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Agenda 15/09/2014 às 19:55

A MULTIPARENTALIDADE NA JURISPRUDENCIA

4.1 O posicionamento do STF

A decisão do Supremo Tribunal Federal 12 de Março de 2013, que pela primeira vez reconheceu repercussão geral[32] em tema que discutiu a prevalência, ou não, da paternidade socioafetiva sobre a biológica, também parece ser a primeira voz jurídica a ecoar na sociedade sobre multiparentalidade. Este é o indicativo do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE)[33]

[...] Em primeira instância, a ação foi julgada procedente e este entendimento foi mantido pela segunda instância e pelo STJ. No recurso interposto ao Supremo, os demais herdeiros do pai biológico alegam que a decisão do STJ, ao preferir a realidade biológica, em detrimento da realidade socioafetiva, sem priorizar as relações de família que têm por base o afeto, afronta o artigo [226], caput, da Constituição Federal, segundo o qual “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. O relator do recurso, ministro Luiz Fux, levou a matéria ao exame do Plenário Virtual por entender que o tema - a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica - é relevante sob os pontos de vista econômico, jurídico e social. Por maioria, os ministros seguiram o relator e reconheceram a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada. (BRASIL, STF. 2013, on line)[34].

Na verdade, essas são decisões que apontam para um novo fato que não pode ser desconsiderado pela doutrina e jurisprudência mais atenta, pois não há, a priori, nenhum tipo de prevalência ou hierarquia do parentesco biológico sobre o socioafetivo e vice-versa. O que ocorre é que, dependendo do caso, ambos são fundamentais na vida e na edificação da identidade e da personalidade da pessoa, devendo ser preservados em nome da dignidade da pessoa humana e do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Cavalcante e Klevenhunsen reportaram-se assim sobre este assunto:

A evolução dos valores da civilização ocidental levou a progressiva superação dos fatores de discriminação entre eles. Projetou-se no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços da afetividade, tendo em vista que consagra a família como unidade de relações de afetos, a pós o desaparecimento da família patriarcal que desempenhava funções procracionais, econômicas, religiosas e políticas. (CAVALCANTI; KLEVENHUNSEN, 2008, p.98)

4.2 O posicionamento do STJ

Nesse primeiro caso[35], a relatora no STJ Ministra Nancy Andrighi (STJ 3ª Turma, 2014) apontou em seu voto que “a filiação socioafetiva é uma construção jurisprudencial e doutrinária, ainda recente, não respaldada de modo expresso pela legislação atual”. Percebe-se que o entendimento da Ministra é que tanto a ação de investigação de paternidade quanto de maternidade socioafetiva, deve ser interpretada de modo flexível, aplicando-se analogicamente as regras da filiação biológica.

Nesse aspecto ela afirmou: “essa aplicação, por óbvio, não pode ocorrer de forma literal, pois são hipóteses símeis, não idênticas, que requerem, no mais das vezes, ajustes ampliativos ou restritivos, sem os quais restaria inviável o uso da analogia”. Explicou ainda a ministra Nancy Andrighi (STJ 3ª Turma, 2014): “Parte-se, aqui, da premissa que a verdade sociológica se sobrepõe à verdade biológica, pois o vínculo genético é apenas um dos informadores da filiação, não se podendo toldar o direito ao reconhecimento de determinada relação, por meio de interpretação jurídica pontual que descure do amplo sistema protetivo dos vínculos familiares[36]”.

Ainda segundo a relatora Nancy Andrighi (STJ 3ª Turma, 2014) aduzindo em:

O artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) afasta restrições à busca da filiação e assegura ao interessado no reconhecimento de vínculo socioafetivo trânsito livre da pretensão. Afirma o dispositivo legal: O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça. (GODINHO, 2013, on line)[37]

Apesar de dar legitimidade ao meio processual buscado, no caso específico a 3ª Turma do STJ não verificou a “posse do estado de filho” pela autora da ação, que pretendia ser reconhecida como filha. A ministra Nancy Andrighi diferenciou a situação do detentor do estado de filho socioafetivo de outras relações, como as de mero auxílio econômico ou mesmo psicológico.

Sobre o caso comentado, Nancy Andrighi esclarece:

A Doutrina aponta três fatores que indicam a posse do estado de filho: sendo o nome, o tratamento e afama. No caso concreto, a autora manteve o nome dado pela mãe biológica; não houve prova definitiva de que recebia tratamento de filha pelo casal; e seria de conhecimento público pela sociedade local que a autora não era adotada pelos supostos pais. A falta de um desses elementos, por si só, não sustenta a conclusão de que não exista a posse do estado de filho, pois a fragilidade ou ausência de comprovação de um pode ser complementada pela robustez dos outros[38].

Contudo, ela concluiu no caso em exame que a inconsistência dos elementos probatórios se estende aos três fatores necessários à comprovação da filiação socioafetiva impedindo, dessa forma, o seu reconhecimento.

No segundo caso[39] a 3ª Turma do STJ decidiu que o registro civil de uma menina deverá permanecer com o nome do pai afetivo, e não do biológico. Os ministros entenderam que, no caso, a filiação socioafetiva predominava sobre o vínculo biológico, pois atendia o melhor interesse do menor.

A ação foi proposta no Rio de Janeiro[40] onde a criança nasceu de relação extraconjugal entre a mãe e o homem que, mais tarde entraria com ação judicial pedindo anulação de registro civil e a declaração de paternidade biológica. A menina foi registrada pelo marido da genitora, que acreditava ser o pai biológico dela. Mesmo após o resultado positivo do exame de DNA em relação ao pai biológico, ele quis manter a relação afetiva de pai que ao longo de anos desenvolveu com a filha.

Em primeira instância o processo foi extinto sem julgamento de mérito, por ilegitimidade do pai biológico para propor a ação. Mas o juiz deu a ele o direito de visita quinzenal monitorada. No julgamento da apelação, o TJRJ determinou a alteração do registro civil da menor, para inclusão do nome do pai biológico, e excluiu a possibilidade de visitas porque isto não foi objeto do pedido pelas partes.

No recurso ao STJ, seguindo o voto da ministra Nancy Andrighi os ministros reconheceram a ilegitimidade do pai biológico para propor a ação mantendo a paternidade socioafetiva. O Código Civil de 2002 atribui ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher (art. 1.600, CC) e dá ao filho a legitimidade para ajuizar ação de prova de filiação (art. 1606, CC).

A relatora destacou que o próprio Código abre a possibilidade de outras pessoas, com interesse jurídico na questão, discutirem a autenticidade do registro de nascimento. Segundo ela, o pai biológico pode contestar a veracidade de registro quando ficar sabendo da existência de filho registrado em nome de outro. "Contudo, a ampliação do leque de legitimidade para pleitear a alteração no registro civil deve ser avaliada à luz da conjunção de circunstâncias", considerou a ministra[41].

Analisando as peculiaridades deste caso, a relatora constatou que o pai afetivo sempre manteve comportamento de pai na vida social e familiar da criança, desde a gestação até os dias atuais, agiu como pai atencioso, cuidadoso e com profundo vínculo afetivo com a menor, que hoje já é adolescente. Ele ainda manteve o desejo de garantir o vínculo paterno-filial, mesmo após saber que não era o pai biológico, sem ter havido enfraquecimento na relação com a menina.

Por outro lado, a relatora observou que o pai biológico, ao saber da paternidade, deixou passar mais de três anos sem manifestar interesse afetivo pela filha, mesmo sabendo que era criada por outra pessoa. A ministra considerou esse tempo mais do que suficiente para consolidar a paternidade socioafetiva da criança. "Esse período de inércia afetiva demonstra evidente menoscabo do genitor em relação à paternidade", concluiu (ANDRIGH, 2013, on line)[42].

Em decisão unânime, a 3ª Turma do STJ deu provimento ao recurso para restabelecer a sentença de 1º grau que reconheceu a ilegitimidade do pai biológico para ajuizar ação de alteração do registro de nascimento. No futuro, ao atingir a maioridade civil, a menina poderá pedir a alteração ou retificação de seu registro, se quiser, inclusive para os efeitos de personalidade (arts. 11 a 21, CC).

Nos dois casos decididos pela 3ª Turma do STJ, firmou-se o entendimento que vinha ganhando espaço na Corte em seja e de que a paternidade e a maternidade não podem ser consideradas apenas sob o aspecto estritamente biológico. Lembre-se que o próprio Código Civil de 2002, em seu art. 1.593, determina que o parentesco, pode decorrer de consanguinidade ou de “outra origem”, abrindo espaço à paternidade, maternidade e consequentemente a multiparentalidade.

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Atentando-se para o princípio do melhor interesse do menor é perfeitamente viável, que a paternidade seja fixada levando-se em consideração a existência ou não de laços afetivos. No segundo caso analisado pelo STJ, vê-se o pai afetivo  responsável pela educação e criação da criança, e essa relação de afeto não cessou nem mesmo depois de descobrir que ela não é sua filha biológica. Romper o elo afetivo existente entre o pai afetivo e a criança, que  caracteriza e reconhece a figura paterna, seria um atentado ao princípio da primazia do interesse do menor, pois a criança, caso deferido o pedido de alteração registral, passaria subitamente a ter um novo pai, o qual apesar de sê-lo biologicamente, jamais lhe dedicou afeto. Observemos que neste caso era incabível a concessão da multiparentalidade.

Já em outro julgado o STJ analisou recurso em situação ocorrida em Cascavel, no Estado do Paraná. Lá o Juiz da Infância e Juventude reconheceu a paternidade socioafetiva do padrasto de um adolescente de 16 (dezesseis) anos. Ao invés de conceder a adoção unilateral requerida, determinou a inclusão do nome do pai afetivo no assento de nascimento do adolescente, sem prejuízo da paternidade biológica. Após uma criteriosa análise dos fatos, o magistrado constatou que o adolescente tinha nos dois indivíduos a figura paterna e, deferir a adoção com a consequente ruptura dos vínculos com o pai biológico, iria contra o princípio do melhor interesse da criança. Veja em parte o parecer do STJ:

A filiação socioafetiva pode estar acompanhada de outros tipos de filiação. O filho pode ser ao mesmo tempo biológico, registral e socioafetivo. A filiação também pode ser registral e socioafetiva, mas não biológica. É o caso da filiação que se estabelece por adoção, pela chamada adoção à brasileira, bem como pela paternidade assistida heteróloga[43]. O pai aparece no registro e mantém uma relação de afetividade filial com a criança, mas não é o genitor biológico. Outra situação é o da paternidade biológica e socioafetiva, mas não registral. É o caso, por exemplo, do filho que está registrado apenas no nome da mãe e convive com o pai, mas não consta no registro de nascimento o nome do genitor. Ainda é possível apenas a filiação socioafetiva, que neste caso não coincide nem com a filiação biológica, nem com a filiação registral, mas é meramente socioafetiva, como é o caso dos denominados filhos de criação[44].

É igualmente importante o reconhecimento, adotado na primeira decisão citada do STJ, de que a ação de investigação é meio legal para obter também o reconhecimento do vínculo de multiparentalidade socioafetiva. Embora nada exista na lei que diretamente embase este entendimento, tão somente na doutrina e na jurisprudência, pode-se ainda por analogia a possibilidade da medida, quando comprovado o estado de filho socioafetivo.

Doutrinariamente já se reconhece sem dificuldades que as famílias são formadas essencialmente por laços afetivos. No sentido jurisprudencial temos um caminho longo a ser trilhado, visto algumas ambiguidades existentes em decisões tomadas por juízes e tribunais nacionais, bem como, o silêncio de outros em alguns Estados[45]. Por outro lado existem alguns juízes e tribunais que têm decidido pelo reconhecimento da multiparentalidade, não obstante o vínculo genético, ou seja, mandam inserir no registro da criança ou adolescente o pai biológico, sem suplantar ou excluir o pai socioafetivo. Mas ainda o que mais percebemos na jurisprudência, a inserção do nome da criança ou adolescente na ceara registral em detrimento do vínculo socioafetivo, quase sempre preservando o nome do pai biológico. Sobre esse aspecto observa com acuidade TARTUCE (2013, on line)[46] “A jurisprudência escolhia um ou outro. Agora, não, são os dois: o pai biológico e o afetivo”.

As reiteradas decisões do STJ sobre o assunto vêm em boa hora, confirmando que a jurisprudência nacional caminha na direção apontada pela doutrina, rumo, ao reconhecimento jurídico da mutliparentalidade. Mesmo que a mesma não tenha sido aceita em alguns casos, e prioridade tem-se decidido em favor da afetividade[47], isto não constitui fator decisivo para afastar a multiparentalidade em decisões futuras, quando o assunto estiver mais debatido.

4.3 JurisprudÊncia sobre multiparentalidade no Estado de Rondônia

No Estado de Rondônia, a seguinte sentença foi proferida pela magistrada Deisy Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz, na ação de investigação de paternidade nº 0012530-95.2010.8.22.0002, ajuizada na Vara Cível da Comarca de Ariquemes, Rondônia.

Trata-se de caso onde uma menina de 11 (onze) anos havia sido registrada e criada pelo padrasto; porém, passados alguns anos, ela e seu pai biológico desenvolveram laços e vínculos afetivos, conforme restou demonstrado pelas provas e estudos psicossociais realizados.

A juíza Deisy Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz, buscando atender o melhor interesse da menina cuja paternidade era discutida, posicionou-se pela manutenção da paternidade já estabelecida, concomitante com a inclusão da recém-descoberta. Considerou na sentença que:

A pretendida declaração de inexistência do vínculo parental entre a autora e o pai registro afetivo fatalmente prejudicará seu interesse, que diga-se, tem prioridade absoluta, e assim também afronta a dignidade da pessoa humana. Não há motivo para ignorar o liame socioafetivo estabelecido durante anos na vida de uma criança, que cresceu e manteve o estado de filha com outra pessoa que não o seu pai biológico, sem se atentar para a evolução do conceito jurídico de filiação, como muito bem ponderou a representante do Ministério Público em seu laborioso estudo (JURISTAS, 2012, on line)[48].

Cabe ressaltar que a supracitada sentença fixou para o pai biológico o direito a visitas livres, bem como, determinou o valor referente à pensão alimentícia e o rateio de eventuais despesas médicas e escolares que a menina venha a gerar. Talvez seja possível afirmar tratar-se da primeira sentença que reconheceu e declarou a dupla paternidade propriamente dita, fazendo constar no assento registral os nomes do pai biológico e do afetivo da criança, sem prejuízo da manutenção do registro materno.

4.4 JurisprudÊncia sobre multiparentalidade no Estado de São Paulo

Do que pesquisamos, recentemente, houve uma decisão interessante proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (AC 0006422-26.2011.8.26.0286; 1ª C.D. Priv.; Relator Des. Alcides Leopoldo e Silva Junior, DJSP 11/102012). A situação envolveu um adolescente registrado em nome de seu pai biológico e de sua mãe biológica, sendo que houve a inclusão da madrasta como mãe socioafetiva. Veja o que comenta sobre o assunto Flávio Tartuce:

A Primeira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, por unanimidade, deu provimento à Apelação nº 0006422-26.2011.8.26.0286, declarando a maternidade socioafetiva de uma mulher (madrasta) em relação a um garoto, sem prejuízo e concomitantemente com o registro da maternidade biológica.

No caso, a mãe biológica, vítima de um acidente vascular cerebral, faleceu três dias após o parto. Meses depois, o pai biológico conheceu a autora da ação declaratória de maternidade socioafetiva, que passou a criar a criança como se filho dela fosse[49].

Flávio Tartuce prossegue observando que:

O artigo 1593 do Código Civil estipula que a filiação não decorre unicamente do parentesco consanguíneo, que a formação da família moderna não consanguínea tem sua base na afetividade, haja vista o reconhecimento da união estável como entidade familiar (art. 226, § 3º, CF), e a proibição de designações discriminatórias relativas à filiação (art. 227, § 6º, CF). (TARTUCE, 2013, p.132)

É por tudo isso que o próprio STJ já reconheceu a adoção de um adolescente por duas mulheres, diante da existência de “fortes vínculos afetivos” (REsp 889852/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 27/04/2010, DJe 10/08/2010). O relator da Apelação, Desembargador Alcides Leopoldo e Silva Júnior, deu provimento ao recurso e declarou reconhecida a maternidade socioafetiva da recorrente. Essa é a mesma linha que integra o entendimento de outros tribunais em relação a multiparentalidade o que exemplificamente veremos.

Para PEREIRA (2013, p.on line)[50] “o Direito hoje, especialmente a partir do discurso psicanalítico, já sabe e reconhece que paternidade e maternidade são funções exercidas. Ou seja, se o pai ou mãe não ‘adotar’ o seu filho, mesmo biológico, eles jamais serão pais”. Em outras palavras, quem exerce juízo de valor sobre as questões familiares tem que sopesar não só a importância jurídica do vínculo biológico, mas sim, o fato do exercício da paternidade/maternidade, que se dá pela afetividade. E é justamente isto que está fundamentando a doutrina e a jurisprudência nacional.

4.5 Jurisprudência sobre multiparentalidade no Estado de Pernambuco

O Juiz da 2ª Vara da Infância e Juventude de Recife reconheceu a necessidade da multiparentalidade ao conceder a adoção unilateral da madrasta, autorizando que uma criança de quatro anos fosse registrada no nome dos pais biológicos e no da companheira do pai, que criava o infante praticamente desde o seu nascimento, em virtude da carência material da mãe biológica[51]. A ideia inicial, como mencionado, era a de que a mãe socioafetiva adotasse o enteado, mas, em nome do princípio do melhor interesse da criança, o magistrado terminou por determinar que menino tivesse duas mães e um pai, por não enxergar razões para que o vínculo com a mãe biológica fosse destruído.

O caso chegou à justiça pela Defensoria Pública do Estado. A mãe biológica não tinha condições de sustentar o filho, que era criado também pelo pai com sua companheira. A madrasta tinha intenção de adotar a criança, mas a mãe não queria que seu filho deixasse de ter o seu nome no registro de nascimento. O juiz decidiu então por autorizar que o nome da mãe afetiva fosse também inserido no registro de nascimento da criança, sem suplantar o nome da mãe biológica. Esse acontecimento tornou-se decisão jurisprudencial pioneira no Brasil, onde uma criança passa a ter um pai e duas mães, com os nomes inseridos no registro de nascimento da mesma.

O mesmo juiz de Recife, também em outra decisão inédita, em outubro de 2012 permitiu que duas mulheres adotassem uma criança de doze anos e incluíssem o nome do irmão de uma delas como pai da criança. O argumento das requerentes foi de que gostariam que a criança tivesse um pai. Segundo Maria Berenice Dias “já houve outros casos de filiação tripla no Brasil, mas isto foi concedido depois que um dos pais biológicos já havia morrido, ou em processo de investigação de paternidade[52]”. Contudo sem afeto a medida seria prejudicial e ilegal.

As decisões jurisprudenciais no Brasil são dotadas de maior segurança jurídica, visto que, segundo leciona BRAZ (2012, p.140) “a filiação poliafetiva já existe na humanidade há muitos anos. Outras pessoas já tiveram dois pais e duas mães. A justiça só reconheceu para efeitos previdenciários, para planos de saúde e outros efeitos da vida”.

Na verdade as recentes decisões de juízes e tribunais brasileiros fazem parte de uma nova corrente no Direito de Família, que defende terem os laços afetivos prevalência sobre os das relações sanguíneas. Em casos de multiparentalidade, é bom ressaltar, são simultâneos.

4.6 JurisprudÊncia sobre multiparentalidade no Estado de Santa Catarina

Outro exemplo de multiparentalidade ocorreu no Estado de Santa Catarina, quando um juiz ordenou ser dever de um padrasto pagar alimentos a uma enteada[53]. O padrasto teria vivido em união estável com a mãe biológica dela, e depois separaram-se. A justiça, reconhecendo a existência de paternidade socioafetiva entre a enteada e o padrasto, ordenou que o mesmo continuasse a sustenta-la. O alimentante recorreu, mas a decisão foi confirmada em segunda instância pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Visto, podemos concluir que a referida decisão judicial fundamentou-se nessa ‘nova visão do direito de família’, colocando o vínculo afetivo em prevalência e capaz de presumir a existência de uma paternidade socioafetiva construída pela convivência. Leva-se algum tempo para compreendermos uma decisão nesses termos, visto considerarmos a existência de regras bastante objetivas dispostas pelo legislador nos artigos 1964 e seguintes do Código Civil Brasileiro, no que tange à obrigação alimentar.

Apesar desta decisão favorável à paternidade socioafetiva, não se veja a rigor a presença da multiparentalidade. Mas certamente, se a filha socioafetiva tivesse feito na inicial o pedido de dupla inserção registral com relação ao pai sócioafetivo, por certo o juiz ou o tribunal lhe concederiam. Essa afirmativa parte da premissa de que, se houver caracterização da concomitante paternidade socioafetiva, cabe o reconhecimento da multiparentalidade. Esta visão cabe não somente na esteira da discussão jurídica, existindo aprovação popular, conforme observa-se desta transcrição:

O debate que ora se propõe repousa na legitima e honesta dialética doutrinária, no saudável debate necessário à evolução das ciências sociais, compreendendo-se a amplitude dos institutos jurídicos e suas conseqüências no teatro da vida real. Também já salientei que a Doutrina familiarista evoluiu enormemente na ultima década, reformulando conceitos e trazendo a lume parâmetros interpretativos, institutos e princípios fincados na nova ordem constitucional vigente após 1988.   A constitucionalização do ordenamento jurídico não poderia excluir, logicamente, o direito de família, ramo imprescindível à manutenção dos vínculos sociais, garantindo-se a introdução de valores como liberdade, responsabilidade, igualdade, solidariedade e afetividade. (JURISWAY, 2013, on line):[54].

Lênio Streck, citando Daniel Sarmento, critica excessos, mas pondera que, com base nos princípios, pode-se ir mais além:

Daniel Sarmento também pondera sobre a necessidade de cuidado redobrado da inconsequente aplicação dos princípios: “E a outra face da moeda (do uso desmesurado dos princípios) é o lado do decisionismo do “oba-oba”. Acontece que muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, através deles, buscarem justiça – ou o que entendem por justiça – passaram a negligenciar do seu dever de fundamentar racionalmente seus julgamentos. Esta “euforia” com os princípios abriu um espaço maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com seus jargões grandiloqüentes e com sua retórica inflamada, mas um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, convertem-se em verdadeiras “varinhas de condão”: com ele, o julgador consegue fazer quase tudo o que quiser.” (STRECK, 2012, p.47)

Neste caso as críticas a esses tipos de decisões são ainda consideráveis. Em certos casos as inovações são aplaudidas e noutros elas servem de material jurídico um tanto apologético para muitos que as usam para produzir ou defender novas teses.

4.7 JurisprudÊncia sobre multiparentalidade no Estado do Paraná

No Paraná, houve caso em que um padrasto entrou com um pedido de adoção do adolescente A. M. F., com o qual conviveu desde os três anos de idade, aproximadamente, mantendo boa relação paterno-filial, visto haver a aquiescência do pai registral por meio de declaração aceitando a adoção pelo pai socioafetivo. Na oitiva do adolescente, já com 15 (quinze) anos completos, percebeu-se a afetividade do adotando com ambos os pais, o registral e o socioafetivo, fato que deixou claro o interesse e possibilidade da manutenção da paternidade biológica, que seria acrescida da socioafetiva.

O juiz Sérgio Luiz Kreuz, da Vara da Infância e Juventude de Cascavel/PR, reconheceu a paternidade socioafetiva do padrasto do adolescente[55]. Ao invés de conceder a adoção unilateral inicialmente requerida, optou-se pela multiparentalidade, determinando a inclusão do nome do pai afetivo no assento de nascimento do adolescente, sem prejuízo da paternidade biológica. Após uma criteriosa análise dos fatos, o magistrado constatou que o adolescente tinha nos dois indivíduos a figura paterna, e que deferir a adoção ao padastro, com a consequente ruptura dos vínculos com o pai biológico, iria contra o princípio do melhor interesse da criança.

Assim, em atendimento a tal princípio, o juiz ficou convencido de que a melhor solução para o caso seria levar para o mundo jurídico a multiparentalidade, que já se apresentava no mundo fático. Mãe e pais exerciam genuinamente de forma efetiva e afetiva os seus papéis parentais, possuindo peso e importância relevantes na vida do adolescente. Então, por que excluir ou por que ter de escolher entre um e outro, se em ambos criou-se o liame afetuoso? Por que não dizer sim à possibilidade dessas paternidades coexistirem harmonicamente?

Depois da decisão judicial o adolescente passou a ter uma mãe e dois pais, registrais, dos quais poderá ser dependente em planos de saúde, planos previdenciários, pedir alimentos, assim como ser herdeiro de ambos e vice versa. Tal decisão leva-nos à compreensão de que a filiação socioafetiva possui a mesma solidez e leva aos mesmos efeitos jurídicos que a filiação natural.

4.8 Jurisprudência de multiparentalidade no Estado do Rio De Janeiro

A Justiça do Rio de Janeiro reconheceu o direito de três irmãos terem duas mães, a biológica e a socioafetiva, em seus registros de nascimento[56]. A decisão foi da juíza titular da 15ª Vara de Família da Capital do Rio de Janeiro, Maria Aglae Vilardo[57]. O fato deu-se após o falecimento da mãe biológica, quando os irmãos ficaram sob os cuidados da madrasta. Já adultos, eles ingressaram no Judiciário pedindo para constar nos seus registros de nascimento o nome da mulher que os criou como mãe sem que o nome da mãe biológica fosse retirado.  Segundo a juíza, este é um exemplo clássico de família por laços afetivos, pois os vínculos da madrasta com os três autores, e vice versa, são fortes o suficiente para caracterizar a maternidade.

De acordo com a juíza Maria Aglae Vilardo o processo constituiu um desafio, apresentado pela dinâmica social com fatos relevantes, já que foi requerido o reconhecimento da existência de duas mães; uma biológica e outra afetiva, sem que seja um casal, e mantendo o nome do pai biológico. A magistrada justificou nestes termos:

O que temos é uma tradição de séculos, onde somente constavam pai e mãe no registro civil, que deixa de ser seguida porque a própria sociedade criou novas formas de relacionamento sem deixar de preservar o respeito por quem participou desta construção. É uma formação familiar diferente e que o Estado de Direito, caracterizado exatamente por respeitar as diferenças sem qualquer forma de discriminação, deve reconhecer. (IBDFAM, 2014, on line)[58]

Na sentença, a juíza observou que:

O argumento de que o documento contendo duas mães e um pai poderia gerar constrangimento não procede. Essa realidade partiu da vontade natural destas pessoas, razão porque também não gera insegurança social, simplesmente acrescenta um nome aos documentos, sendo certo que existem documentos sem nome algum na filiação, com apenas um dos nomes e, recentemente, com nome de duas mulheres ou de dois homens[59].

A magistrada analisou o caso com base nos princípios éticos do respeito à autonomia, da não maleficência e da beneficência e da Justiça. Princípios desenvolvidos pela filosofia para a ética biomédica[60]. Segundo a magistrada esses princípios “se aplicam perfeitamente à análise porque um julgamento desta ordem não pode ter suporte exclusivamente jurídico por se tratar de uma discussão com forte conteúdo moral, portanto tratado pela ética”. [61]

A decisão determinou que fosse acrescentado o nome da madrasta como mãe, mantendo o nome da mãe biológica e acrescidos os nomes dos avós maternos por parte da madrasta. A alteração do registro civil e os demais documentos públicos deverão conter o nome do pai e das duas mães.

4.9 Jurisprudência de multiparentalidade no Estado do Rio Grande do Sul          

O pensamento jurisprudencial do tribunal e juízes do Rio Grande do Sul tem-se revestido de profunda cautela jurídica. Nesses termos o Ministro Luiz Felipe Salomão assegura que “a tese segundo a qual a paternidade socioafetiva sempre prevalece sobre a biológica deve ser analisada com bastante ponderação, e depende sempre do exame do caso concreto”. [62]

Essa afirmação é resultante do julgamento realizado pelo TJRS quando analisou o recurso que tratou da história de uma mulher registrada pelos pais adotantes como se fossem seus genitores, depois de ter sido entregue pela mãe biológica ainda bebê. Posteriormente, a mãe biológica passou a conviver com ela como se fosse sua madrinha de batismo. O pai biológico possivelmente nem sabia da existência da filha.

Na adolescência ela soube que sua madrinha era na verdade sua mãe biológica. Porém, somente após a morte de seus pais registrais, e contando com 47 (quarenta e sete) anos, soube a identidade do pai biológico e propôs a ação de investigação de paternidade e maternidade, cumulada com anulação de registro.

O TJRS julgou improcedente o pedido da autora pois entendeu que a existência do vínculo socioafetivo entre a autora e seus pais registrais afastava a possibilidade do reconhecimento da paternidade biológica. Tempos depois o STJ reformou o entendimento do tribunal gaúcho. A Quarta Turma do STJ deu provimento ao recurso da autora.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul havia rejeitado a possibilidade de usar esse meio processual para o reconhecimento da relação de paternidade socioafetiva. Para o TJRS, seria uma “heresia” usar tal instrumento que é destinado a “promover o reconhecimento forçado da relação biológica, isto é, visa impor a responsabilidade jurídica pela geração de uma pessoa” [63]para esse fim.

Mas para o STJ “independentemente da nobreza dos desígnios que a motivaram; a filiação socioafetiva desenvolvida com os pais registrais não afastou os direitos da mesma, resultantes da filiação biológica, pois não pode haver equiparação entre adoção regular e a chamada adoção à brasileira[64]”.

A razão precípua de termos adotado a exposição jurisprudencial da multiparentalidade por Estados é justamente perceber que ainda há desigualdades nas decisões de juízes e tribunais. Diante do que já se percebe na jurisprudência nacional, resta-nos:

Encontrar as trilhas que poderão conduzir ao porvir, que exige ultrapassar a compreensão exegética do texto constitucional e nele identificar que cada uma das formas ali contidas é apenas mais uma forma, dentre outras, conhecidas ou não, de conformação de uma entidade familiar o que pode ser realizado mediante a ressignificação prospectiva da ideia de família, realidade a ser pensada a partir da existência de cada pessoa que busca se encontrar no outro o que permitirá construir, diuturnamente, cada singularidade. (FACHIN, 2009, p. 248)

No caso recente do menino Bernardo Uglione Boldrine, de Três Passos (RS), cidade ao noroeste gaúcho, cuja morte criminosa repercutiu nacionalmente, onde a necessidade de ter um pai era tão urgente que o adolescente “chegou a procurar o Ministério Público por conta própria pedindo para não morar mais com o pai e com a madrasta. E indicou duas famílias com as quais gostaria de morar. Relatou deu detalhes de sua rotina, marcada pela indiferença e pelo desamor no lar em que vivia[65]”.

Sobre o fato sustenta DAUD (2014, on line)[66] que “ o criar está no campo material, o cuidar está no campo afetivo”. Era justamente de um lar de amor e carinho que Bernardo precisava, não simplesmente de um nome em seu registro civil para que pudesse dizer que tinha um pai. Esse é um exemplo real e legal onde caberia a multiparentalidade, pois além de dar um pai de verdade, que cuidasse dele, não excluiria a paternidade biológica, acrescentando-lhe de fato um pai socioafetivo e gerando ao mesmo tempo, aos dois, a justa responsabilidade nos alimentos, no campo sucessório e outras.

Sobre o autor
José Neves dos Santos

Sou Teólogo formado pela (FATEFIG), Pedagogo formado pela (USM) e bacharel em direito (ULBRA) e Professor de Filosofia na Rede Pública do Estado do Pará. Mas o que gosto mesmo é de escrever sobre direito de família.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, José Neves. Multiparentalidade: reconhecimento e efeitos jurídicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4093, 15 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29422. Acesso em: 22 dez. 2024.

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