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Anotações sobre o crime de furto e sua redação no Anteprojeto de Código Penal

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Agenda 01/07/2002 às 00:00

Sumário: 1. Breve desenvolvimento histórico; 2. Legislações brasileiras sobre o tema; 3. Mudanças propostas nas redações típicas; 4. Quanto às penas; 5. Da ação penal; 6. Crítica quanto à condição objetiva de punibilidade; 7. Implicações quanto ao crime de roubo; 8. Conclusão.


1.Breve desenvolvimento histórico

Nas leis das XII Tábuas encontramos a mais antiga concepção dos Romanos sobre o furto. Distinguia-se o furtum manifestum do nec manifestum, o primeiro quando o delinqüente era encontrado no ato de furtar, ou quando descoberto e perseguido com clamores, sendo a pena a servitus para o homem livre e a proecipitatio e saxo para o escravo; o segundo quando não se verificavam as condições de flagrância (Gaio, Institutas, 3, 184). [1] As sanções para o furto não manifesto eram pecuniárias: o duplo ou o triplo valor da coisa furtada.

Posteriormente, o furto passou a considerar-se crime privado, punido com pena pecuniária, sendo objeto de extensa elaboração doutrinária, que lhe fixou o conceito. [2]

No direito germânico o furto era a subtração clandestina e se distinguia do roubo, que era a subtração manifesta, sendo severamente punido. Durante longo período, para o primeiro furto, se era simples, aplicava-se penas benignas combinadas; no segundo, penas mais severas; no terceiro furto o ladrão era enforcado. Entendia-se que se o indivíduo havia furtado três vezes era em razão de ter feito de tal agir sua profissão, seu modo de vida, e não havia outro remédio senão matá-lo. [3]

Distinguia-se na Idade Média, o furto de pequeno valor, nos quais a pena era aplicada na pele e nos cabelos, do furto de grande valor, em que a pena era aplicada nas mãos e no pescoço. Também a pena de morte era largamente aplicada, não só nos furtos de alto valor, como nas hipóteses agravadas.

O Código francês, de 1810, punia com a morte somente o furto acompanhado de homicídio.

As Ordenações Filipinas também cominavam penas severas (Liv. V, tit. 60).

Com o movimento filosófico do século XVIII, as penas do furto foram grandemente mitigadas. [4]

É certo, entretanto, que sempre que se pretendeu punir com mais rigor o crime de furto ao longo do tempo, se estabeleceu a persecução como sendo de ação penal pública incondicionada, além da exasperação da reprimenda em abstrato.


2. Legislações brasileiras sobre o tema

Entre nós, o Código Penal do Império cuidou do crime de furto em seu art. 257. O Código Republicano, mandado executar pelo Dec. 847, de 11.10.1890, tratou do furto nos arts. 330/335, e a forma fundamental tinha a seguinte redação: "Subtrahir para si, ou para outrem, cousa alheia movel, contra a vontade do seu dono".

A Consolidação das lei penais, Código Penal brasileiro completado com as leis modificadoras então em vigor, obra de Vicente Piragibe, [5] aprovada e adaptada pelo Dec.22.213, de 14.12.1932, em nada modificou o tratamento legal anteriormente dispensado ao tema, conforme seu Título XII, Capítulo II.

O Código Penal em vigor, Dec.-lei 2.848/40, cuida do crime de furto no Título II, Capítulo I, conforme os arts. 155/156, e o tipo básico assim dispõe: "Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel".

As alterações introduzidas pelas Leis 6.416/77 e 7.209/84, no particular, em nada modificaram a redação original do Código em vigor. A Lei 9.246/96, por sua vez, apenas acrescentou o § 5º ao art. 155, para estabelecer reprimenda mais severa nas hipóteses que menciona.

O Anteprojeto de Código Penal, que visa introduzir mudanças na Parte Especial do Código em vigor, trata do assunto em seu art. 184, onde se verifica que não há nenhuma tentativa de mudança na redação da forma fundamental.


3. Mudanças propostas nas redações típicas

Se por um lado a Comissão não apresentou qualquer proposta de modificação na redação do tipo básico, importa destacar, mesmo de passagem, que a redação do § 1º, do artigo precitado, conforme se apresenta, visa nitidamente punir a subtração de qualquer forma de energia que represente valor econômico, seja elétrica, eólica, solar, nuclear etc., bem como o gás, de qualquer natureza, e a água, fornecidos por empresa pública ou privada, aumentando com tal redação a esfera de proteção do patrimônio, tomando-se em comparação a redação do atual § 3º do art. 155, do Código Penal.

As formas qualificadas também estão no rol das modificações pretendidas.

Embora se tenha mantido a estrutura básica atualmente em vigor, como decorre do § 4º do art. 155, pela proposta as formas qualificadas estão divididas entre os §§ 2º e 3º do art. 184. O § 2º conta com as situações qualificadoras vigentes, exceto a escalada, mais as seguintes: ter sido o crime praticado em casa habitada (inc. II), e durante o período de repouso noturno (inc. III). Não se cogita a hipótese de furto praticado com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa, porém, fala-se em furto mediante arrombamento (inc. IV), simplificando a fórmula anterior com a expressão genérica. Nas hipóteses acima mencionadas o furto será punido com reclusão, de dois a seis anos, e multa. Já no § 3º, levando em consideração situações particulares de agravamento, bem como o titular do interesse lesado e a própria natureza da res, a reprimenda será exasperada além do que se estabeleceu nas demais formas qualificadas do parágrafo anterior. Assim é que, se cometido em ocasião de incêndio, naufrágio, inundação, calamidade pública ou desgraça particular da vítima (inc. I); contra o patrimônio da União, Estado, Distrito Federal, Município, empresa concessionária de serviço público, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação (inc. II), ou, tendo por objeto veículo automotor, para ser transportado para outro Estado ou para o exterior (inc. III), [6] a pena será de reclusão, de três a oito anos, e multa.

O furto de coisa comum, [7] hoje regulado no art. 156, caput, e §§ 1º e 2º, do Código Penal, passa a constituir o § 4º do art. 184. Sua forma básica original é mantida, acrescendo-se apenas, em sua parte final, a indicação de que se a subtração for de valor que não exceda a quota parte do autor, não haverá furto, ampliando o alcance do atual § 2º, que se restringe à subtração de coisa comum fungível.

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Tal acréscimo pode ser compreendido nos seguintes termos: subtraindo aquilo que pode ser perfeitamente deduzível de sua quota parte, sem prejuízo aos demais, não há que se cogitar de furto, pois, operada a dedução, a subtração passa a ser entendida como de coisa própria, e não alheia, embora no momento da retirada a situação fosse diversa, porquanto comum a coisa furtada.

Assim interpretada, tal prática surtirá efeito apenas no Direito civil ou comercial, sucessório ou societário, por exemplo.

Pela interpretação inversa que se pode dar à redação do artigo, na ótica acima apontada, aquilo que excede a quota parte, evidentemente não deveria ser considerado comum para efeito de configuração do ilícito, e assim, tal subtração deveria ser punida com a mesma pena que o furto simples, isso quando não fosse a hipótese de furto qualificado pelo abuso de confiança ou pela fraude, por exemplo. A esse respeito o art. 334 do Código Penal Republicano, sem abrandamento de pena, dispunha: "O crime de furto se commetterá ainda que a cousa pertença a herança ou communhão em estado de indivisão".


4. Quanto as penas

Na forma fundamental, hoje, o crime de furto é punido com reclusão, de um a quatro anos, e multa, podendo a reprimenda ser aumentada de um terço, se o crime é praticado durante o repouso noturno, em conformidade com o § 1º (RT 639/279).

Poderá ser privilegiado nas condições do § 2º, quando então o juiz terá o poder-dever de substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.

As hipóteses qualificadas do § 4º, I/IV, por óbvio, também são punidas com reclusão, porém, de dois a oito anos, além da multa.

O § 5º estabelece pena de reclusão, de três a oito anos, se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado da federação ou para o exterior.

Pelo Anteprojeto, a forma básica passa a ser punida com reclusão, de um a três anos, e multa. [8] Tentado ou consumado, sendo primário e de bons antecedentes, permanece possível a proposta de suspensão condicional do processo, regulada no art. 89 da Lei 9.099/95, desde que presentes os requisitos de ordem subjetiva. Sofrendo condenação igual ou inferior a um ano, a pena poderá ser substituída por multa ou por uma pena restritiva de direitos, a teor do disposto no art. 44, § 2º, primeira parte, do Código Penal, com a redação dada pela Lei 9.714/98. É cabível, ainda, o sursis, desde que satisfeitos os requisitos legais, de ordem objetiva e subjetiva.

Se a subtração recair sobre qualquer forma de energia que tenha valor econômico, bem como gás ou água fornecidos por empresa pública ou privada, conforme o § 1º, a pena regula-se pelo caput.

As formas qualificadas do § 2º passam a ser punidas com reclusão, de dois a seis anos, e multa, [9] lembrando que dentre elas figuram o furto noturno e o praticado em casa habitada. Sobrevindo condenação mínima, desde que presentes os requisitos de ordem subjetiva, será possível o sursis.

Para as hipóteses elencadas no § 3º a pena prevista é de reclusão, de três a oito anos, e multa.

Em todos os casos, inclusive nas formas qualificadas, é de avaliar-se com acuidade a possibilidade de aplicação de penas restritivas de direitos, conforme o art. 43 do Código Penal, com a redação conferida pela Lei 9.714/98, e o regime inicial de cumprimento de pena privativa de liberdade, em sendo o caso, deverá levar em conta a particular situação do condenado, no tocante à sua vida ante acta (art. 33, §§ 2º e 3º, do CP).

O furto de coisa comum tem sua reprimenda partida ao meio, se comparada à atual, e passa a ser punido com detenção, de três meses a um ano, ou multa, o que permite até mesmo a transação penal regulada pelo art. 76 da Lei 9.099/95, com a aplicação de pena exclusivamente pecuniária, que não importa em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos, não tem efeitos civis e nem é anotada em certidão de antecedentes criminais. [10]

O atual furto privilegiado (§ 2º do art.155 do CP) dá lugar à possibilidade de diminuição ou isenção de pena, pois, de acordo com o § 5º do artigo em comento: "O juiz aplicará somente uma das penas, diminuída até metade, ou deixará de aplicá-la, se o agente é primário e pequena a lesão patrimonial". [11]


5. Da ação penal

Na legislação em vigor o furto é crime de ação penal pública incondicionada. Exige-se a representação do ofendido, ou de seu representante legal, em sendo o caso, apenas na hipótese de furto de coisa comum, regulada pelo art.156, caput, do Código Penal.

O art. 185 do Anteprojeto, entretanto, dispõe que todos os crimes definidos no Capítulo [12] que cuida do furto (Capítulo I) passam a depender de representação, salvo nas hipóteses do § 3º (segundo rol de formas qualificadas, ou mais que qualificadas, do art. 184), que por exclusão continuam sendo de ação penal pública incondicionada.

No caso do art. 184, § 4º (furto de coisa comum), a ação penal passa a ser privada exclusiva e, portanto, somente se procede mediante queixa.


6. Crítica quanto à condição objetiva de punibilidade

Segundo lição de José Frederico Marques, [13] a ação penal pública condicionada pode depender de representação do ofendido, nos casos taxativamente previstos em lei. Embora o crime atinja um bem jurídico, cuja tutela penal interessa precipuamente ao Estado, figuras delituosas existem em que a pretensão punitiva somente surge quando o sujeito privado, que desse bem jurídico é titular, também tenha interesse na punição do autor da infração penal, e isso por motivos vários, que vinculam a própria tutela penal ao poder dispositivo do sujeito passivo do crime. Quando mais acentuada essa subordinação, o Estado transfere ao titular do bem jurídico, atingido ou ameaçado, o direito de ação e o direito de acusar: são os casos de ação penal privada. Hipóteses existem, no entanto, em que o interesse público na punição do crime fica menos subordinado à vontade do ofendido, e, por isso, lhe não transfere o Estado o direito de acusar, mas tão-só condiciona à sua provocação o início da persecutio criminis: são as hipóteses de ação penal pública dependente de representação.

Nos crimes de ação penal pública condicionada à representação, esta deve ser o primeiro ato do processo penal em sentido amplo, cuja primeira fase é o inquérito, de regra, porquanto não imprescindível, e este não pode ser iniciado sem aquela.

No quadro dos direitos subjetivos, é ela de natureza pública e se enquadra como notícia de crime, dentre os direitos emanados do status activae civitatis da classificação de Jellinek.

Mas a representação não é só notitia criminis, [14] uma vez que contém indisfarçável sentido postulatório. Quem se apresenta ao juiz, promotor ou autoridade policial não lhes está dando apenas conhecimento de um delito, mas também pedindo a prática de atos persecutórios e a própria propositura da ação penal. E esse pedido nada mais traduz, nos quadros dos direitos públicos subjetivos, que o exercício de um direito cívico, isto é, de um direito filiado ao status civitatis. Esta, aliás, é a conceituação de Battaglini ao estudar o direito de querela.

Adotando os ensinamentos de Tourinho Filho, [15] cumpre ponderar que, na doutrina, inúmeros juristas têm profunda aversão em reconhecer a influência da vontade particular quanto à aplicação da lei penal. Binding, no seu Handbuch, n. 1.706, apresentou sete inconvenientes e que são conhecidos como o "ato de acusação de Binding". Ei-los: 1º. prejuízo do Estado, como titular do jus puniendi e do poder de indultar; 2º. prejuízo do ofendido, a quem não foi possível apresentar a tempo a representação, ou que teve um representante inativo; 3º. lesão ao princípio de justiça de que toda a culpa deve ter sua retribuição; 4º. abandono da autoridade do Estado ao arbítrio privado; 5º. condições favoráveis ao criminoso, que, com freqüência, se subtrai à pena; 6º. condição favorável para o ofendido, que, às vezes, comercia o seu direito e é impelido a extorções; 7º. facilidade do representante legal do ofendido para descuidar, sem consciência, dos interesses do representado.

E segue o Ilustre Professor: "No mesmo sentido, as objeções de Tolomei, Ottorino Vannini, Ricio, Florian, Ferri, Maggiore e outros. Maggiore entende que não se concebe permitir-se tal direito ao particular. Só o Estado é que deve ser o árbitro sobre o direito de se proceder ou não".

É certo e reclama destaque, por conseguinte, que condicionar a ação penal à representação do ofendido restringe demasiadamente a atividade persecutória do Estado, uma vez que se extingue a punibilidade, por ocorrer a decadência, [16] se o ofendido, ou seu representante legal, em sendo o caso, não a apresentar dentro de seis meses, de regra contados do dia em que se tomou conhecimento de quem foi o autor do ilícito. [17]

Comentava-se, não faz muito tempo, e as estatísticas da época comprovaram, que grande parte dos processos criminais em curso tratava de crimes de lesões corporais dolosas, de natureza leve, e culposas, notadamente aquelas decorrentes de acidentes de trânsito.

Para resolver o problema do numeroso volume de processos criminais, qual foi a solução adotada pelo legislador?

O procedimento célere, informal e econômico da Lei 9.099/95?

Não só.

A solução encontrada e aplicada naquele momento veio regulada notadamente pelos arts. 88 e 91 da lei que instituiu os Juizados Especiais Criminais e que condicionou as ações penais nos crimes de lesões corporais dolosas, de natureza leve, e culposas, à representação do ofendido. De públicas incondicionadas passaram a públicas condicionadas.

Foi o que bastou. O resultado da alteração é cediço.

A maior parte das vítimas não oferece representação. A nosso sentir e experiência, não por opção, mas por falta de cultura, orientação etc. Contribui para o quadro o fato dos Juizados Especiais Criminais ainda não estarem instalados conforme estabelecidos em Lei e a ausência de estrutura, que dificulta a aplicação eficaz das normas ditadas.

Reduzido o número de processos em curso, especialmente em razão da condição objetiva de procedibilidade, após certo tempo nova avalanche se deu. As estatísticas do momento revelam que um dos crimes de maior incidência na atualidade é o furto, em suas diversas modalidades.

A prática reiterada de crimes de furto tem conduzido todos os dias um número incontável de rapinadores à reincidência. Esta, por sua vez, tem levado aqueles ao regime fechado, face à expressa e clara literalidade do art. 33, § 2º, do Código Penal, inobstante os abrandamentos jurisprudenciais que procuram estabelecer o regime mais severo como não obrigatório ao reincidente. [18] Certo é, porém, que além da quantidade da pena, "o único óbice legal à concessão dos regimes aberto e semi-aberto e que impõe o regime fechado é a reincidência, critério objetivo estabelecido expressamente pelo legislador no art. 33, § 2º, do Código Penal". [19]

Verificada a reincidência, a questão da superlotação carcerária entra em cena.

Qual a solução em vista?

Condicionar à representação a ação penal nos crimes mais reiterados, como é o caso dos furtos mais comuns, inclusive os qualificados, em suas diversas modalidades, exceto naquelas já apontadas.

Tais afirmações não são aleatórias e estão autorizadas pela apreciação que se faz exatamente quanto a ressalva apontada no art.185, primeira parte, do Anteprojeto.

Tomemos um exemplo: Está claro que a partir de 1996, com o advento da Lei 9.246, o legislador procurou punir de forma mais severa o furto de veículo automotor, para ser transportado a outro Estado ou para o exterior, tentando conter a crescente prática de tais crimes. Também está claro que a Douta Comissão distingue as formas reguladas no art. 184, § 3º, do Anteprojeto, e quer puni-las de forma mais severa, inclusive em relação àquelas formas variantes de furto qualificado previstas no § 2º do precitado artigo. É forçoso reconhecer que no § 3º há um plus em relação às outras condutas qualificadas reguladas no § 2º, e a forma mais severa de punir, além da exasperação em abstrato da própria reprimenda, é deixar a ação penal como pública incondicionada, enquanto que para as demais modalidades qualificadas a condição existirá. Tanto isso é exato que na redação anterior do Anteprojeto, onde todas as formas de furto qualificado então estabelecidas, se encontravam no § 2º do art. 180. [20]e a pena prevista (para todas as condutas qualificadas) era de detenção, de dois a quatro anos, e multa, apenas o furto de veículo automotor, para ser transportado para outro Estado ou para o exterior, era de ação penal pública incondicionada. Veja-se, pretendia-se a mesma pena para todas as formas qualificadas e a única distinção era permitir a ação penal incondicionada para a forma indicada. Nítida, portanto, a visão a Douta Comissão.

Agora, na atual redação, referida subtração passou a ser punida com reclusão, de três a oito anos, e multa, continuando de ação penal pública incondicionada, aliás, nos exatos mesmos termos da Lei 9.426/96, que incluiu o § 5º no art. 155 do Código Penal ainda em vigor.

Reconhece-se que a condição objetiva de procedibilidade é óbice à punição, que se traduz em enorme benefício ao criminoso. [21]

Não se trata pura e simplesmente de valoração do bem jurídico tutelado para efeito de opção quanto à natureza da ação penal.

Condicionar à representação o crime de furto é andar na contramão da realidade atual.

Desde a fase da humanidade em que a maquinaria praticamente não existia e o braço do homem era a força que movimentava toda a economia estatal e privada, o Código de Hamurabi, em seu Capítulo II, que referia-se a crimes de furto, de roubo e reivindicações de móveis, dispunha em seu art.15: "Se alguém furta pela porta da cidade um escravo ou uma escrava da Corte, ou escravo ou escrava de um liberto, deverá ser morto".

É inconteste que o Brasil é um País Capitalista e vive, de longa data, sob instabilidade econômico-financeira. É crescente, assustador e incontrolável o número de crimes contra o patrimônio, notadamente o furto em suas diversas modalidades. De rigor, assim, medidas enérgicas na tentativa de conter a criminalidade patrimonial, já que a situação calamitosa gerou uma inversão de valores e de situação, pois o honesto e trabalhador vive preso em sua residência com seus pertences, acautelando-se para não ser furtado ou roubado, enquanto que os ladrúnculos vivem pelas ruas garimpando e disputando vítimas.

Por razões óbvias, historicamente, sempre se procurou punir com mais rigor os crimes mais graves e praticados com maior freqüência, estabelecendo-se penas mais severas e permitindo a ação penal pública incondicionada. Toda vez que se verifica um considerável aumento no cometimento de determinados tipos de crimes, de pronto a sociedade reclama medidas enérgicas, notadamente do Poder Legislativo, que responde com a elaboração de regras específicas, com as características acima apontadas. Não tem sido outra a realidade Pátria, e como exemplos podemos citar o advento das Leis 8.072/90, 8.078/90, 8.137/90, 8.429/92, 8.930/94, 9.434/97, 9.455/97, 9.503/97, 9.605/98, 9.609/98 e 9.613/98, entre outras.

A gravidade de um ilícito deve ser aferida levando-se em conta o contexto atual em que se vive e as particularidades do meio em que ocorre.

Condicionar o crime de furto à representação do ofendido é contribuir com a impunidade na medida em que muitas vezes (na maioria delas) as vítimas, temerosas ou ameaçadas, desinformadas ou mesmo instruídas pela opção negativa, deixarão de formular representação, preferindo o prejuízo patrimonial em garantia hipotética da própria integridade. Nem se diga que o Estado lhes garantirá alguma segurança se agir de forma a ensejar ação penal, já que não lhe garante nem mesmo a possibilidade de não ser vítima freqüente, por conta da falência da segurança pública.

A busca de soluções para os problemas decorrentes do volume de processos na esfera judiciária criminal e da superlotação carcerária deve ter outro rumo, não o abrandamento do poder de punir do Estado. Não se deve buscar evitar o processo como forma de solução da questão estrutural do Poder Judiciário, pena de se desvirtuar a natureza do próprio Poder e não atingir uma de suas finalidade precípuas na busca da pacificação social.

Sobre o autor
Renato Marcão

Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP). Autor dos livros: Tóxicos (Saraiva); Curso de Execução Penal (Saraiva); Estatuto do Desarmamento (Saraiva); Crimes de Trânsito (Saraiva); Crimes Ambientais (Saraiva); Crimes contra a Dignidade Sexual (Saraiva); Prisões Cautelares, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares Restritivas (Saraiva); dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARCÃO, Renato. Anotações sobre o crime de furto e sua redação no Anteprojeto de Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 57, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2963. Acesso em: 25 nov. 2024.

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