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Responsabilidade penal no âmbito das empresas

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Agenda 01/08/2002 às 00:00

1. Introdução

O estudo de qualquer questão jurídica, para ser feito seriamente, pressupõe que se tenha a noção de Direito como sistema, que todos afirmam mas cujas conseqüências poucos na prática reconhecem. A propósito, já escrevemos:

"Quase todos afirmam que o Direito é um sistema de normas. Muitos, porém, são os que não explicam o que querem dizer com a expressão sistema de normas, e ainda, nenhuma conseqüência prática retiram da concepção do Direito como sistema, deixando-a, assim, inteiramente inútil.

Importante, pois, é demonstrarmos porque o Direito é um sistema e quais as principais conseqüências práticas dessa idéia.

Muitos estudam o Direito a partir da norma jurídica, como se fosse possível explicar o fenômeno jurídico sem levar em conta, em primeiro lugar, que o conceito de norma não abrange todas as prescrições jurídicas, mas apenas uma espécie destas, e em segundo lugar, sem considerar as relações inevitáveis entre as prescrições que o integram.

É certo que a norma jurídica tem especial relevo no contexto do sistema jurídico, e por isto mesmo é comum a referência a esta, quando a referência cabível seria à prescrição, que é o gênero. De todo modo, explicar o que se deve entender por Direito a partir da norma jurídica (Na verdade o Direito é um sistema de prescrições, embora se possa dizer que as normas são a espécie mais importante destas.) isolada, buscando determinar as características desta, é uma tarefa impossível, pois, como ensina Bobbio com inteira propriedade, "o Direito não é norma, mas um conjunto ordenado de normas, sendo evidente que uma norma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas com as quais forma um sistema normativo." (Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, trad. de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, 4ª edição, EDUNB, Brasília, 1994, p. 21).

Dizemos, portanto, que o Direito é um sistema de prescrições jurídicas, interligadas e harmônicas. É um sistema porque integrado de partes que se completam e que dependem umas das outras, como se pode constatar na experiência jurídica (Adotamos, assim, a idéia de sistema no sentido de conjunto de partes sem incompatibilidades entre elas. É o terceiro sentido de sistema, a que se reporta Bobbio [Teoria do Ordenamento Jurídico, cit., p. 80]).

Resta demonstrar que a consideração do Direito como um sistema de normas tem várias conseqüências práticas, das quais vamos apontar a seguir as três mais importantes. Como todo sistema há de ser coerente, isento de incongruências, a primeira e talvez mais importante conseqüência prática da idéia de sistema consiste em que as incongruências ou antinomias devem ser eliminadas. A segunda conseqüência importante da idéia de sistema consiste na sua utilização como elemento indispensável na busca do significado das prescrições jurídicas. Finalmente, a terceira conseqüência importante da idéia de sistema consiste em que as lacunas cuja presença consubstancie uma incongruência devem ser de pronto eliminadas pelo intérprete" (Hugo de Brito Machado, Uma Introdução ao Estudo do Direito, Dialética, São Paulo, 2000, pág. 139/140).

Assim, tendo presente a necessidade de superar eventuais incongruências, buscando o significado de cada prescrição jurídica no conjunto de normas e princípios que integram nosso ordenamento, e procurando superar as lacunas neste eventualmente existentes, estudaremos aqui a questão da responsabilidade penal no âmbito das empresas, na tentativa de esclarecer alguns equívocos e apontar o que nos parece ser o melhor caminho no sentido de se obter maior grau de eficácia das sanções, e em conseqüência maior eficácia do próprio ordenamento jurídico.

Preferimos o termo empresa, em vez de pessoa jurídica, porque muitas pessoas jurídicas não são empresas, pelo menos no sentido em que estamos a empregar essa palavra, e muitas empresas eventualmente podem não ser pessoas jurídicas. Com a palavra empresa queremos aqui designar a unidade econômica ou profissional a que se refere o art. 123, do Código Tributário Nacional.

Examinaremos a questão da responsabilidade apenas no que concerne aos aspectos que se fazem relevantes para o estudo da aplicação das sanções administrativas e das sanções penais, relativamente aos cometimentos ilícitos que geralmente ocorrem no âmbito das empresas, e cuja repressão suscita a questão de saber qual a espécie de sanção é mais adequada, vale dizer, mais eficaz, mais apta a reduzir tais práticas a limites toleráveis.

Não rejeitamos as inovações, mas as vemos com cautela, sem nos deixar levar pela sedução do novo, e atentos sobretudo para a verificabilidade das novas teses, sempre lembrados da advertência de Pontes de Miranda, para quem:

"Escusado é dizer-se que, à semelhança do que ocorre com os matemáticos, com os físicos, com os biologistas e com todos os investigadores de ciências naturais, o estar em dia exige o senso científico, o hábito e a capacidade de trabalho. Aquele senso, para que o jurista se não apegue, demasiado, às convicções que tem, nem se deixe levar facilmente pela sedução do novo: a Ciência é a livre disponibilidade do espírito, mas tem peneira fina, que é a verificabilidade." (Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1967, pág. 29).

Assim, nossa oposição relativamente às inovações, em matéria de responsabilidade penal, apontadas como o melhor caminho para coibir comportamentos ilícitos no âmbito das empresas, é de extrema cautela. No que concerne a atribuição de responsabilidade penal à pessoa jurídica, pensamos tratar-se de uma notável inutilidade, mesmo que as sanções penais correspondentes venham a ser efetivamente aplicadas. E quanto à responsabilidade sem culpabilidade, decorrente pura e simplesmente do fato de ser sócio, acionista ou diretor de uma pessoa jurídica, tais inovações mais nos parecem verdadeiros retrocessos, absolutamente incompatíveis com o Estado Democrático de Direito que o Brasil é, ou pretende ser.

As razões desse nosso ponto de vista serão a seguir colocadas, revisitando noções já consolidadas no Direito Penal, e fazendo a crítica do que vem sendo colocado pelos especialistas como inovações.


2. Responsabilidade e Sanção

2.1. O dever e a responsabilidade

Embora muitos ainda não tenham percebido, na verdade o dever e a responsabilidade não se confundem. O dever jurídico decorre da incidência de uma norma, legal ou contratual, e está situado no momento da liberdade humana. Por isto se diz que o homem é livre para cumprir, ou para descumprir os seus deveres jurídicos. Já a responsabilidade surge em um segundo momento, e a seu respeito, portanto, somente se questiona em face do não cumprimento do dever, isto é, em face da não prestação jurídica. Por isto se diz que a responsabilidade é um pressuposto para a efetividade da sanção que resulta da não prestação.

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2.2. A não prestação e a sanção

Da não prestação, isto é, do descumprimento do dever jurídico, decorre a sanção. Por isto muitos dizem que a sanção é a conseqüência da não prestação.

Dada a não prestação, vale dizer, dada uma situação na qual alguém deixa de cumprir o seu dever jurídico, surge a questão de saber se esse alguém, que descumpriu o seu dever jurídico, é responsável.

Ser responsável quer dizer estar juridicamente sujeito à sanção.

Pode parecer, então, que a pessoa juridicamente irresponsável não se submete a nenhuma espécie de sanção. Não é bem assim, porém. A vida nos oferece situações as mais diversas, nas quais as relações entre as pessoas devem ser reguladas também de formas diversas, e a quase infinita multiplicidade de situações exige que o direito disponha de múltiplas formas de regulação dos interesses nelas envolvidos.

Por isto a responsabilidade é definida em razão da sanção que o direito prescreve para a não prestação, em cada situação. Sanção que pode ser simplesmente a execução forçada da obrigação, vale dizer, a utilização de meios coercitivos para compelir o devedor a cumprir o seu dever jurídico, ou a imposição de multa, ou do dever de indenizar, ou a privação de certos direitos, entre os quais a liberdade corporal ou física, geralmente designada na linguagem jurídica como liberdade de ir e vir.

Assim, alguém pode estar sujeito a determinada sanção, e não estar sujeito a outra. Pode ser responsável, tendo-se em vista determinada sanção, e ser irresponsável, tendo-se em vista outra espécie de sanção.

2.3. Responsabilidade e natureza da sanção

Alguém pode ser ao mesmo tempo responsável e irresponsável, dependendo do tipo de sanção da qual se esteja a cogitar. Em outras palavras, alguém pode estar ao mesmo tempo sujeito a sanção de determinada espécie, e não estar sujeito a sanção de outra espécie. Alguém pode ser responsável pelos atos de outrem, no que diz respeito a sanções cíveis, vale dizer, sanções impostas pelo Direito Civil. Entretanto, ninguém é responsável pelos atos de outrem no que diz respeito a sanções penais.

A resposta à questão de saber se alguém é ou não é responsável exige, portanto, que se esclareça previamente de qual responsabilidade se está cogitando, e a perquirição sobre a responsabilidade, por seu turno, passa pela questão de saber qual o tipo de sanção prevista para o caso.

2.4. As espécies de sanção

São inúmeras as classificações possíveis, posto que são vários os critérios que podem ser adotados e a partir de cada critério se pode ter uma classificação diferente, com a indicação de diferentes espécies de sanções. Vamos cogitar aqui apenas das sanções ditas cíveis, ou administrativas, e das sanções penais.

Por outro lado, a classificação das sanções, como as classificações de figuras jurídicas em geral, quando atinentes ao direito positivo, deve ser formulada em face de cada ordenamento jurídico. Assim, neste estudo fica esclarecido que estamos tomando em conta simplesmente o ordenamento jurídico brasileiro, e em face deste é que vamos distinguir as sanções cíveis ou administrativas, das sanções penais.

A rigor, pode ser considerada sanção cível, ou administrativa, por excelência, a execução forçada, vale dizer, a adoção de meios coercitivos para compelir o devedor à prestação a que está juridicamente obrigado, que pode, em certos casos, já incluir, ou até mesmo consistir em outra sanção cível, como a multa. Já a sanção penal por excelência é a pena prisional, vale dizer, a privação da liberdade corporal, ou liberdade física.

As sanções cíveis ou administrativas, porém, geralmente se apresentam com conteúdo patrimonial, por isto podemos dizer que são sanções patrimoniais. Já as sanções penais atingem mais diretamente a pessoa, por isto podemos dizer que são sanções pessoais. Seja como for, porém, o certo é que podem existir sanções cíveis sem conteúdo patrimonial, e existem sanções penais de conteúdo patrimonial.

A distinção pode ser estabelecida em nosso sistema jurídico pelo critério da autoridade competente para a respectiva aplicação. As sanções penais, ou criminais, somente podem ser aplicadas pela autoridade judiciária, enquanto as sanções cíveis ou administrativas, em princípio, podem ser aplicadas pela autoridade administrativa. Esse critério, porém, não nos permite estabelecer distinção válida em todos os casos, pois a sanção cível por excelência, vale dizer, a execução forçada da obrigação, só pode ser aplicada pela autoridade judiciária. E por isto mesmo, as penas pecuniárias, vale dizer, multas de natureza administrativa, embora possam ser aplicadas pela autoridade administrativa que constitui o crédito respectivo, só se tornam efetivas com a intervenção da autoridade judiciária, na execução fiscal correspondente.

A final, a distinção entre as sanções cíveis ou administrativas e as sanções penais ou criminais é feita simplesmente pelo critério da indicação legislativa. É sanção cível ou administrativa aquela que o legislador como tal definir, e de natureza penal aquela que assim seja por ele definida. Seja como for, uma vez formulada a definição legislativa, tem-se definida a competência da autoridade e o procedimento a ser observado para a correspondente aplicação.

A aplicação das sanções penais ou criminais compete à autoridade judiciária e o procedimento a ser observado é, salvo disposição legal especial em sentido diverso, o Código de Processo Penal. Já a aplicação das sanções cíveis ou administrativas tanto pode ser atribuição da autoridade judiciária, como da autoridade administrativa. Da atribuição privativa da autoridade judiciária é a aplicação da mais importante sanção cível (Com isto certamente não se pretende excluir a auto-executoriedade dos atos administrativos, que entretanto não autoriza, como todos sabem, a execução forçada dos créditos da Fazenda Pública, sejam decorrentes de tributos ou de penalidades de qualquer natureza). O procedimento a ser observado pela autoridade judiciária é o previsto na lei processual civil, para a aplicação da sanção consistente na execução forçada da obrigação, enquanto o procedimento a ser observado na aplicação das sanções cíveis ou administrativas em geral é o previsto na legislação pertinente ao processo administrativo.

É certo, porém, que o legislador não é inteiramente livre para definir as sanções em uma ou em outra das categorias mencionadas, porque em nossa Constituição existem dispositivos que tornam privativa da autoridade judiciária a competência para aplicar as sanções que consubstanciem restrições ou a privação da liberdade física (Constituição Federal de 1988, art. 5°, incisos LXI, LXII e LXV, entre outros), e assim, tais sanções não podem ser utilmente definidas como cíveis ou administrativas. Em outras palavras, as sanções que consubstanciam privação, ou restrição da liberdade física não podem ser definidas como cívis ou administrativos, porque isto implicaria retirá-las do regime jurídico próprio dessa categoria de sanções.

As sanções de natureza patrimonial, como as multas, bem como a interdição de certos direitos, podem ser aplicadas pela autoridade administrativa. Assim, o legislador é livre para cominar tais sanções tanto aos ilícitos cíveis ou administrativos, como aos ilícitos penais.

Ressalte-se, finalmente, que as sanções cíveis ou administrativas distinguem-se das sanções penais pelo rigor com que nestas se exige a instauração de um processo judicial. Relativamente às sanções cíveis, ou administrativas, o devedor pode submeter-se, e isto dispensa o processo judicial, que somente se faz necessário, em certos casos, em face da resistência do devedor, quando se impõe a execução forçada. Já nas sanções penais o processo judicial é indispensável. Em nenhuma hipótese, ainda que o acusado concorde, pode haver imposição de pena criminal sem processo.

2.5. Utilidade da sanção

A sanção é o meio de que se vale o Direito para desestimular a conduta, ou a omissão, consistente na não prestação. Em outras palavras, a finalidade da sanção é dar maior eficácia à norma que institui o dever jurídico.

Assim, a sanção é útil na medida em que é eficaz. E a eficácia da sanção depende, em primeiro lugar e acima de tudo de sua viabilidade, que incrementa para o seu destinatário a certeza de que ela ocorrerá. Por isto mesmo se diz que o efeito intimidativo da sanção depende mais da certeza de sua aplicação do que de sua gravidade.

Será, portanto, mais eficaz uma sanção patrimonial cuja aplicação é mais viável, porque definida como sanção cível, ou administrativa, do que uma sanção penal, mais grave, e cuja aplicação é menos provável, em face dos obstáculos decorrentes do formalismo processual que a tornam praticamente inviável.


3. A Ilusão da Criminalização

3.1. Natureza infamante e efeito intimidativo

Na tentativa de coibir práticas consideradas nocivas aos interesses da sociedade o legislador tem utilizado a criminalização dessas práticas, e o aumento das penas para aquelas já definidas como crime. É a crença na eficácia da pena criminal.

É certo que as penas criminais se mostram mais eficazes na medida em que predomina o preconceito, especialmente nas classes mais dotadas de riqueza. As penas criminais conservam sua natureza infamante, e por isto o efeito intimidativo destas se faz mais forte.

3.2. O formalismo processual

Ocorre que os obstáculos criados pelo formalismo processual praticamente inviabilizam a aplicação das sanções penais na maioria dos casos, especialmente em se tratando de penas patrimoniais, vale dizer, de multas, ou de penas prisionais de menor duração. Exatamente porque o processo penal é destinado a aplicação das penas mais severas, especialmente as penas prisionais, inclusive as de longa duração, que constituem violenta restrição ao mais importante dos direitos do homem, que é o direito à liberdade física, o processo penal oferece o máximo possível de garantias ao réu, no sentido de afastar a possibilidade de condenação injusta.

Esses formalismos processuais são de tal ordem que nos casos de penas patrimoniais, ou de penas prisionais de curta duração, um advogado hábil não tem dificuldades para conseguir protelar o andamento do processo pelo tempo suficiente a consumação da prescrição. A menos, é claro, que o processo seja presidido por juiz também muito hábil, e sobretudo muito arbitrário.

Seja como for, tais formalismos são necessários à garantia do direito fundamental de liberdade. E não podem ser desprezados em um Estado Democrático de Direito.

3.3. Suavização do preconceito

Na medida em que se vai tornando mais suave o preconceito contra a pena criminal, na medida em que o "homem de bem" já não se sente tão atingido em sua dignidade subjetiva pelo fato de ser réu em uma ação penal, o efeito intimidativo se vai enfraquecendo e a eficácia da pena criminal, em conseqüência, se vai tornando menor.

Por tudo isto nos parece que a criminalização das condutas geralmente praticadas no âmbito das pessoas jurídicas, condutas pelas quais geralmente são responsáveis indivíduos com melhor posição social e econômica, constitui pura ilusão que se vai aos poucos esmaecer.

3.4. A crise dos presídios

Por outro lado, se a criminalização produzir resultados práticos, e se é verdadeira a afirmação freqüentemente feita por autoridades da administração tributária, segundo a qual para cada real pago em impostos vários reais são sonegados, teremos extremamente agravada a conhecida crise dos presídios, que ficarão ainda mais superlotados. A menos, é claro, que o efeito intimidativo da pena produza o milagre de acabar com a sonegação, milagre no qual francamente não acreditamos.

Na verdade, se fosse eficaz a norma penal, e se os presídios não estivessem mergulhados na crise em que se encontram, não estaríamos assistindo o crescimento assustador de crimes os mais diversos, praticados quase sempre com violência, para os quais há muito tempo existe a cominação de sanção penal. Não obstante a lei penal, assistimos "o aumento significativo da prática do crimes de extorsão, e do crime de extorsão mediante seqüestro, tornando-os delitos corriqueiros em nosso país, gerando insegurança em toda a sociedade brasileira." (Umberto Luiz Borges D´Durso, Crime de Extorsão e de Extorsão mediante Seqüestro, em Panorama da Justiça, Ano 4, nº 24, junho/julho de 2000, pág. 50).

3.5. Incremento da corrupção e discriminação injusta

Na perspectiva que se nos afigura mais realista, a criminalização de muitos ilícitos que geralmente ocorrem no âmbito das pessoas jurídicas de direito privado, especialmente das empresas, tem produzido dois resultados igualmente lamentáveis, a saber: (a) o incremento da corrupção e a discriminação injusta.

O incremento da corrução existe porque o agente do poder público que, com o objetivo de tornar efetivo o cumprimento das normas pertinentes à tributação, ou à preservação do meio ambiente, ou a qualquer outra ação estatal, fiscalizam as empresas, ficam investidos de poder para instaurar processos que poderão resultar, além das sanções administrativas de natureza patrimonial, a ação penal contra as pessoas que atuam no âmbito destas. Poder que facilmente descamba para o arbítrio à míngua de controle, pois tais agentes atuam como o guarda da esquina, que pode ver, e pode não ver o cometimento ilícito.

A discriminação injusta decorre do fato de que o agente do poder público tenderá a ser mais rigoroso exatamente com os menos abastados, em relação aos quais o não ver o ilícito geralmente é menos vantajoso. E mais ainda, em relação àqueles que realmente não disponham de meios para fazer com que os ilícitos praticados não sejam vistos, ou não queiram, por questão de princípio, utilizar tais meios.

3.6. A criminalização e a responsabilidade

Outro grave inconveniente da criminalização de certas condutas está na questão atinente à responsabilidade. Enquanto a responsabilidade civil e administrativa, inclusive tributária, em princípio independe de elementos subjetivos e por isto pode ser atribuída tanto às pessoas físicas, ou naturais, como às pessoas jurídicas, a responsabilidade penal depende, sempre, do elemento subjetivo e por isto mesmo só pode ser atribuída às pessoas naturais.

Assim, a criminalização de certos ilícitos que geralmente ocorrem no âmbito das empresas tem provocado situações nas quais princípios e normas do direito penal, atinentes a responsabilidade, são violados a pretexto de que se precisa viabilizar a sanção penal. Não se pode, porém, admitir tais violações em um Estado Democrático de Direito. A necessidade de emprestar eficácia a certas normas jurídicas não pode justificar a violação de outras. A sanção, como instrumento capaz de incrementar a eficácia da norma, deve ser aplicada sem desobediência aos princípios e normas que regem essa aplicação.

Resulta, assim, de magna importância o estudo da responsabilidade penal no âmbito das pessoas jurídicas. Não se pode admitir seja a sanção penal aplicada com fundamento em responsabilidade objetiva, porque isto seria violar o princípio fundamental do Direito Penal em um Estado Democrática de Direito, segundo o qual não pode haver pena sem culpabilidade. Nem se pode admitir a atribuição de responsabilidade penal à pessoa jurídica porque isto faz inútil a criminalização. É o que vamos a seguir examinar.

Sobre o autor
Hugo de Brito Machado

professor titular de Direito Tributário da UFC, presidente do Instituto Cearense de Estudos Tributários (ICET), juiz aposentado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Hugo Brito. Responsabilidade penal no âmbito das empresas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3009. Acesso em: 21 nov. 2024.

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