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A constitucionalidade do teleinterrogatório no processo penal brasileiro

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Agenda 14/07/2014 às 17:07

3 INTERROGATÓRIO E TELEINTERROGATÓRIO NO CONTEXTO DA TEORIA DAS PROVAS NO PROCESSO PENAL

3.1 A PROVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

De forma geral, a fase de instrução do processo tem por objetivo identificar e firmar a chamada verdade jurídica, condição essa que se mantém no caso específico do processo penal. Para que seja possível cumprir tal finalidade é necessário que sejam trazidas ao processo as provas, as quais, segundo a doutrina mais balizada, correspondem aos meios utilizados na busca para “[...] estabelecer a existência da verdade [...]” (TOURINHO FILHO, 2009, p. 213).

Essa é precisamente a essência do ato de provar, no âmbito do rito processual: demonstrar a existência da verdade; para tanto se serve o processo das provas “[...] que se produzem e se valoram segundo as normas prescritas em lei” (TOURINHO FILHO, 2009, p. 213).

É pacífico que no processo penal brasileiro impera o sistema do livre convencimento motivado ou persuasão racional do juiz para a apreciação das provas[17]; equivale dizer que, por tal sistema, tem o magistrado total liberdade na formação de seu convencimento, não se vinculando a qualquer raciocínio ou estratégia valorativos prévios em relação à prova, estando absolutamente livre para abraçar aquela que se mostrar mais convincente. Em outras palavras, o juiz atua livremente na valoração das provas, podendo, p.ex., prolatar sua decisão baseada em apenas um único depoimento desprezando dois outros testemunhos contrários ao primeiro; essa liberdade, entretanto, exige do magistrado que exponha os fundamentos nos quais baseou seu convencimento, discorrendo sobre “[...] as razões que o levaram a optar por tal ou qual prova, fazendo-o com base em argumentação racional, para que as partes, eventualmente insatisfeitas, possam confrontar a decisão nas mesmas bases argumentativas” (OLIVEIRA, E., 2009, p. 328).

Fica claro, portanto, o fim último da prova, que é contribuir para a formação daquela convicção do juiz em relação aos aspectos fundamentais para a decisão da lide, conforme referida acima. “As partes, com as provas produzidas, procuram convencer o Juiz de que os fatos existiram, ou não, ou, então, de que ocorreram desta ou daquela maneira” (TOURINHO FILHO, 2009, p. 214). O objetivo é claro: “[...] a reconstrução dos fatos investigados no processo, buscando a maior coincidência possível com a realidade histórica, isto é, com a verdade dos fatos, tal como efetivamente ocorridos no espaço e no tempo” (OLIVEIRA, E., 2009, p. 317, grifo do autor).

Visto por outro enfoque mais analítico e dissecante, mas sem conflitar com o entendimento acima, Malatesta (2005, p. 87) conceitua prova como

[...] o meio objetivo com que a verdade atinge o espírito; e o espírito pode, relativamente a um objeto, chegar por meio das provas tanto à simples credibilidade, como à probabilidade e certeza; existirão, assim, provas de credibilidade, de probabilidade e de certeza. A prova, portanto, em geral, é a relação concreta entre a verdade e o espírito humano nas suas especiais determinações de credibilidade, probabilidade e certeza.

Esse prestigiadíssimo doutrinador sustenta, contudo, que para o juízo penal somente as provas de probabilidade e de certeza são capazes de estabelecer a realidade dos fatos, uma vez que somente elas podem determinar no espírito humano “[...] uma preponderância de razões afirmativas para crer em tais realidades [...]”, já que as provas de credibilidade apenas levam o espírito “[...] a uma idéia de simples possibilidade [...]” em relação a um dado fato, com “[...] igualdade dos motivos para crer ou não [...]”, não havendo assim “[...] nenhuma razão preponderante para crer em sua realidade” (MALATESTA, 2005, p. 87)

Por essa razão, no entendimento de Malatesta (2005, p. 87), somente as provas de probabilidade (caracterizadas pela “[...] simples preponderância, maior ou menor, das razões afirmativas sobre as negativas [...]”) e as de certeza (onde tem-se o “[...] triunfo das razões afirmativas para crer na realidade do fato”) são  propriamente provas; deixa claro, porém, que as provas por excelência para o processo penal são as provas de certeza quando afirma que

[...] o fim supremo do processo judiciário penal é a verificação do delito, em sua individualidade subjetiva e objetiva. Todo o processo penal, no que respeita o conjunto das provas, só tem importância do ponto de vista da certeza do delito, alcançada ou não. Qualquer juízo não pode resolver senão em uma condenação ou absolvição e é precisamente a certeza conquistada do delito que legitima a condenação, como é a dúvida, ou, de outra forma, a não conquistada certeza do delito, que obriga à absolvição. O objeto principal da crítica criminal é, portanto, indagar como, da prova, pode legitimamente nascer a certeza do delito; o objetivo principal de suas investigações é, em outros termos, o estudo das provas de certeza (MALATESTA, 2005, p. 88),

para concluir então, numa frase, que a prova é “[...] a relação particular e concreta entre e verdade [objetiva] e a convicção racional [certeza subjetiva]” (MALATESTA, 2005, p. 90).

Polastri, contudo, é mais pragmático; ao fazer referência aqueles efeitos que a prova é capaz de induzir no espírito de quem a aprecia, identificados por Malatesta, alerta para o fato de que

[...] no processo dificilmente, ou nunca, se atingirá a certeza absoluta, pois como a instrução probatória equivale à busca do fato histórico deverá haver uma reconstrução dos fatos com dados do passado, através da prova, para se buscar a verdade e, conseqüentemente, a certeza, e esta forma de reconstrução não permite, em regra, uma certeza absoluta, mas meramente relativa, tendo em vista as próprias deficiências humanas. O que terá o juiz é uma aproximação, ou seja, uma probabilidade, significando que deve buscar algo mais que a simples possibilidade, algo mais próximo da certeza, e isto é que é, em maior ou menor grau, a probabilidade. É o que se chama de certeza possível (LIMA, 2009, p. 371-372, grifo do autor).

Em outros termos, a tarefa de reconstruir a verdade a partir das provas trazidas ao processo é extremamente árdua, e por não raras vezes, impossível; mas é empreitada que precisa ser enfrentada a todo custo, configurando um “[...] compromisso irrenunciável da atividade estatal jurisdicional”, haja vista ser o Estado o detentor do monopólio da jurisdição, não sendo tolerada qualquer outra forma de “[...] solução privada e unilateral dos conflitos (sociais, coletivos ou individuais) [...]” que não aquela que decorra da atuação do Direito (OLIVEIRA, E., 2009, p. 318).

Nesse sentido, Pacelli firma posição em relação ao entendimento de que

[...] ainda que prévia e sabidamente imperfeita, o processo penal deve construir uma verdade judicial, sobre a qual, uma vez passada em julgado a decisão final, incidirão os efeitos da coisa julgada, com todas as suas conseqüências, legais e constitucionais. O processo, portanto, produzirá uma certeza do tipo jurídica, que pode ou não corresponder à verdade da realidade histórica (da qual, aliás, em regra, jamais se saberá), mas cuja pretensão é a de estabilização das situações eventualmente conflituosas que vêm a ser o objeto da jurisdição penal (OLIVEIRA, E., 2009, p. 318, grifo do autor).

Para alcançar essa certeza jurídica, as partes e o juiz podem lançar mão, no processo, de uma série de meios ou métodos de prova; é por intermédio deles que se buscará a maior proximidade possível acerca da verdade dos fatos ocorridos (OLIVEIRA, E., 2009, p. 318).

De acordo com Tourinho (TOURINHO FILHO, 2009, p. 217), o meio de prova é “[...] tudo quanto possa servir, direta ou indiretamente, à comprovação da verdade que se procura no processo: testemunhas, documentos, perícias etc”. Em outras palavras, mas mantendo a mesma essência do conceito, é o entendimento de Polastri para quem “Meios de prova são os elementos que podem justificar ou esclarecer os fatos que se apuram, através dos quais se irá adquirir o conhecimento de um objeto de prova” (LIMA, 2009, p. 380).

Para cumprir sua função precípua, os meios de prova se desdobram em atos processuais específicos praticados no processo penal, aos quais a doutrina genericamente se refere como atos de instrução e que compreendem os assim denominados atos probatórios e as alegações da parte. De modo mais específico, referindo à esfera processual penal, fala-se em instrução criminal a qual remete ao conjunto de atos processuais que permitem a coleta das provas necessárias para solucionar a questão penal, e também designada como instrução probatória (LIMA, 2009, p. 373).

Neste ponto é necessário destacar que não há que se falar em hierarquia entre as provas, como se houvesse uma ordem de prevalência entre elas que permitiria ao juiz simplesmente descartar uma determinada prova em face de outra que lhe seria hierarquicamente superior, ainda que ambas fossem igualmente admitidas. Nesse sentido se posiciona Pacelli (OLIVEIRA, E., 2009, p. 330), que entende

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[...] efetivamente não ser possível afirmar, a priori, a supremacia de uma prova em relação a outra, sob o fundamento de uma ser superior a outra, para demonstração de qualquer crime. Como regra, não se há de supor que a prova documental seja superior à prova testemunhal, ou vice-versa, ou mesmo que a prova dita pericial seja melhor que a prova testemunhal. Todos os meios de prova podem ou não ter aptidão para demonstrar a veracidade do que se propõem.

A jurisprudência é vasta em julgados que corroboram esse entendimento da inexistência de hierarquia entre as provas no processo penal (OLIVEIRA, E., 2009, p. 330).

Deve ser admitida, por outro lado, a existência do que a doutrina refere como regra da especificidade da prova, e que decorre da identificação de meios de prova específicos que, em função de sua característica particular e da natureza da prova a ser produzida, se mostram mais aptos para a constatação de determinados fatos; a existência dessa regra da especificidade, contudo, nem de longe permite inferir sobre uma possível hierarquia de provas. A especificidade tem relação com o “[...] grau de convencimento resultante do meio de prova utilizado” (OLIVEIRA, E., 2009, p. 329, grifo do autor), e, conforme esclarece Pacelli,

No caso da regra da especificidade, não haverá hierarquia, por exemplo, entre a prova pericial e a prova testemunhal. O que ocorrerá é que, tratando-se de questão eminentemente técnica, e ainda estando presentes os vestígios da infração, a prova testemunhal não será admitida como suficiente, por si só, para demonstrar a verdade dos fatos. Não se nega, contudo, qualquer valor à prova não específica, mas somente não se admite que ela seja a única e bastante para sustentar a ocorrência de um fato ou de uma circunstância desse fato (OLIVEIRA, E., 2009, p. 330, grifo do autor).

A abordagem das questões alusivas à inexistência de uma hierarquização das provas e à regra da especificidade remete a um aspecto crucial em relação aos meios de prova, a saber, o fato de que a admissão desses meios pode sofrer restrições, uma vez que sua aplicação no processo requer a estrita observância “[...] a um limite previamente definido na Constituição Federal: o respeito aos direitos e às garantias individuais, do acusado e de terceiros [...]” (OLIVEIRA, E., 2009, p. 318). Nesse sentido, novamente é Pacelli quem traz luz à questão ao afirmar que

[...] toda restrição a determinados meios de prova deve estar atrelada (e, assim, ser justificada) à proteção de valores reconhecidos pela e positivados na ordem jurídica. As restrições podem ocorrer tanto em relação ao meio da obtenção da prova, no ponto em que esse (meio) implicaria a violação de direitos e garantias, quanto em referência ao grau de convencimento resultante do meio de prova utilizado (OLIVEIRA, E., 2009, p. 329, grifo do autor).

As restrições que se referem ao grau de convencimento conduzem à questão da especificidade da prova, aludida anteriormente, e não devem trazer maiores preocupações uma vez que “[...] funcionariam como verdadeiras garantias do acusado, na medida em que estabelecem critérios específicos quanto ao grau de convencimento e de certeza a ser obtido em relação a determinadas infrações penais” (OLIVEIRA, E., 2009, p. 330). Além disso, são restrições que, em regra, decorrem da lei, o que também não representa qualquer incoerência em relação ao já aqui referido sistema do livre convencimento motivado, uma vez que “[...] o juiz somente é livre na apreciação da prova enquanto prova válida, não podendo superar as restrições expressamente declinadas pelo legislador” (OLIVEIRA, E., 2009, p. 330, grifo do autor).

É em relação àquelas restrições associadas à violação de direitos e garantias, decorrente do meio de obtenção da prova, que se verificam as situações de maior gravidade, uma vez que tais direitos e garantias estão constitucionalmente[18] “[...] protegidos pelo imenso manto da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente” (OLIVEIRA, E., 2009, p. 318, grifo do autor). A questão das provas ilícitas no processo penal é tão palpitante quanto extensa; sua abordagem em maior detalhe foge aos objetivos do presente estudo, razão pela qual não será aqui enfrentada.

Resta consignar ainda que o CPP, no intervalo compreendido entre os seus arts. 158 e 250, traz expressamente relacionados os meios de prova contemplados pelo legislador para a solução da lide levada à jurisdição penal. A corrente doutrinária majoritária entende que tal rol não é taxativo, posicionamento esse que finca pé na natureza pública do processo penal, de onde advém o caráter ilimitado do meio de prova (LIMA, 2009, p. 381); as únicas exceções seriam aquelas verificadas em casos extremos, tais como os que envolvem expressa restrição legal, ou meio de prova ilegítimo ou que “[...] atente contra a moralidade ou viole o respeito à dignidade humana” (TOURINHO FILHO, 2009, p. 220).

Conforme esclarece Polastri (LIMA, 2009, p. 381, grifo do autor), “[...] desde que os meios de prova não sejam indignos, imorais, ilícitos ou ilegais, respeitando a ética e o valor da pessoa humana, poderão ser admitidos no Processo, mesmo que não estejam legalmente relacionados no Código de Processo Penal”, e assim, “[...] não há nenhum impedimento à produção de outras provas além daquelas indicadas nos arts. 158 a 250 do estatuto processual penal” (TOURINHO FILHO, 2009, p. 220).

Entre os meios de prova expressamente contemplados pelo CPP (o qual abrange também o exame de corpo de delito e outras perícias, o depoimento da vítima, e o depoimento de testemunhas, dentre outros), o interrogatório do acusado tem seu regramento inserido nos arts. 185 à 196. É óbvio que sobre esse meio de prova em particular recaí o foco das atenções neste trabalho, dada a visceral relação desse procedimento com o objeto de estudo aqui esposado.

Por essa razão, a próxima seção deste capítulo se dedica à uma breve abordagem dos aspectos elementares do interrogatório do acusado, com base em sua consagrada concepção doutrinária, e ato contínuo apresenta também as principais características de sua “variante tecnológica”, o teleinterrogatório, uma nova modalidade de interrogatório, resultado da agregação deste procedimento à tecnologia de videoconferência, e objeto central deste estudo.

3.2 INTERROGATÓRIO E TELEINTERROGATÓRIO

Conforme já referido acima, o interrogatório é o ato judicial previsto e regulamentado nos arts. 185 a 196 do CPP. O procedimento que o diploma processual penal traz insculpido em tais artigos é presidido pelo juiz, e consiste basicamente em inquirir o acusado a respeito de sua pessoa e dos fatos que lhe são imputados, por queixa ou denúncia; com o interrogatório, busca-se atingir dois objetivos principais: (a) dar ciência ao acusado das acusações que pesam sobre ele; e (b) dar-lhe oportunidade de defender-se dessas acusações.

Não há qualquer exagero em afirmar que através do interrogatório, o acusado dá seu testemunho pessoal no tocante aos fatos delituosos que pesam sobre ele. É com base nesse raciocínio que o interrogatório também pode ser entendido como momento do testemunho do acusado; por esse motivo é possível afirmar que tal meio de prova é espécie que integra o gênero da prova testemunhal. Esta constatação tem suporte em Malatesta (2005, p. 414), o qual sustenta que

Ninguém, em boa-fé, pode negar que a palavra do acusado tem também, legitimamente, seu peso na consciência do juiz, para a formação do convencimento. E se assim é, sua palavra é, portanto, uma prova; e se é uma prova, não pode ser senão pessoal, e pois, nos limites da oralidade por nós determinados, um testemunho: é claro como a luz do sol.

E como afirma o próprio Malatesta, ainda que pairem suspeitas sobre a prova consubstanciada no testemunho proveniente da pessoa do próprio acusado, quando este encarna o papel de testemunha, tais suspeitas “[...] não valem para anular o valor probatório de sua palavra” (MALATESTA, 2005, p. 414).

Com efeito, quando fala sobre o “fato próprio” (isto é, os fatos que lhe são imputados), na hipótese de ser realmente culpado, o acusado é a pessoa que, melhor do que ninguém, conhece os elementos objetivos do delito por ele perpetrado, e pelo qual foi levado perante o juízo. E isso é óbvio, pois enquanto o máximo que se poderia esperar de outra testemunha qualquer é ter presenciado pessoalmente o fato, o acusado sabe do fato não apenas por tê-lo presenciado (enquanto fato exterior), “[...] mas também por tê-lo pensado e querido no íntimo de sua consciência e por tê-lo, por isso, produzido exteriormente” (MALATESTA, 2005, p. 434-435).

Essa condição se verifica ainda com maior intensidade quando se consideram os elementos subjetivos do delito cometido pelo acusado. Em relação a tais elementos, ele é o único que tem a sua exata e imediata dimensão. Somente o acusado “[...] conhece diretamente o que se desenvolveu no segredo de sua consciência e só dele se pode esperar uma prova direta da intenção” (MALATESTA, 2005, p. 435).

Esse raciocínio elaborado acima se mantém igualmente verdadeiro se considerada a hipótese de inocência do acusado: novamente é ele (o acusado) que, estando em posição privilegiada sobre o conhecimento do delito, reúne as melhores condições de apresentar fatos e coisas capazes de provar sua inocência (MALATESTA, 2005, p. 235).

Não é sem razão, portanto, que Malatesta (2005, p. 435) afirma que

O acusado [...], querendo, está sempre melhor do que qualquer outra pessoa, em posição de iluminar a justiça sobre o fato a ser julgado: é deste ponto de vista que aparece legítima a grande importância atribuída ao testemunho do acusado, diante de qualquer outra testemunha.

Por isso, também não é sem razão que, na visão de Tourinho Filho, não restam quaisquer dúvidas de que o interrogatório do réu constitui um dos mais importantes atos processuais a integrar o rito do processo penal (TOURINHO FILHO, 2009, p. 277).

A natureza jurídica que o CPP atribui ao interrogatório é a de meio de prova, posto estarem os artigos que disciplinam esse procedimento todos inseridos em capítulo do Título VII desse diploma, o qual trata da prova no processo penal. A doutrina mais autorizada e a jurisprudência “[...] mais sensível aos novos postulados ideológicos informativos do processo penal [...]”, contudo, vêm entendendo que o interrogatório tem também natureza de meio de defesa, uma vez que configura a chamada autodefesa, conferindo-lhe assim um caráter híbrido, de meio de prova e de defesa (condição essa corroborada pela Lei 11.719/08, a qual introduziu alterações no CPP que reforçam a natureza de meio de defesa do interrogatório); esse entendimento encontra fundamento no princípio da ampla defesa (vide seção 2.3 supra), constitucionalmente consagrado e elevado à condição de garantia fundamental (CAPEZ, 2009, p. 350). Nesse exato sentido, Fioreze (2008, p. 100-101) acentua que

[...] a Constituição Federal de 1988 vê o acusado como sujeito processual capaz de direitos, em especial o direito de defesa em oposição à pretensão penal, pois enuncia em seu art. 5º, inc. LV, o direito de o acusado exercer ampla defesa. Além da defesa técnica, é garantido ao acusado o oferecimento da autodefesa, por meio do interrogatório, que é o momento em que o acusado apresenta sua versão dos fatos ao juiz, ou simplesmente silencia, construindo, assim, a sua defesa.

Esse entendimento é compartilhado por Pacelli que, por um lado, não vê nenhum inconveniente em que o interrogatório continue a ser considerado como uma espécie de prova,

[...] até porque as demais espécies defensivas são também consideradas provas. Mas o fundamental, em uma concepção de processo via da qual o acusado seja um sujeito de direitos, e no contexto de um modelo acusatório, tal como instaurado pelo sistema constitucional das garantias individuais, o interrogatório do acusado encontra-se inserido fundamentalmente no princípio da ampla defesa.

Trata-se efetivamente, de mais uma oportunidade de defesa que se abre ao acusado, de modo a permitir que ele apresente a sua versão dos fatos [...] (OLIVEIRA, E., 2009, p. 366, grifo nosso).

Também Capez se filia a essa corrente doutrinária, ao afirmar que paralelamente à sua natureza de meio de defesa (autodefesa), o interrogatório

[...] constitui também um meio de prova, na medida em que, ao seu final, as partes poderão perguntar. [...] Em suma, o interrogatório constitui meio de autodefesa, pois o acusado fala o que quiser e se quiser, e meio de prova, posto que submetido ao contraditório (CAPEZ, 2009, p. 352-353).

O fato de o interrogatório ostentar também natureza de meio de defesa traz, pelo menos, três conseqüências importantes. A primeira delas é que, como meio de defesa, o interrogatório constitui uma prerrogativa da defesa, o que equivale dizer que a decisão de participar ou não desse ato processual fica sujeita à discricionariedade do acusado e de seu defensor, os quais passam a deter “[...] a titularidade sobre o juízo de conveniência e a oportunidade de prestar ele (o réu), ou não prestar, o seu depoimento” (OLIVEIRA, E., 2009, p. 366). Assim, conforme conclui Pacelli,

[...] a eles [réu e seu defensor] caberia, então, a escolha da opção mais favorável aos interesses defensivos. E é por isso que não se pode mais falar em condução coercitiva do réu, para fins de interrogatório, parecendo-nos revogada a primeira parte do art. 260 do CPP[19] (OLIVEIRA, E., 2009, p. 366, grifo do autor).

Destaque-se que precisamente nessa impossibilidade de condução coercitiva do réu para participar do interrogatório reside uma das principais características distintivas do seu testemunho em relação ao das demais testemunhas no processo penal. Na cátedra de Malatesta (2005, p. 414), “Enquanto qualquer outra testemunha pode ser obrigada ao cumprimento do dever cívico do testemunho, o acusado, ao contrário, como tal, é uma testemunha não-coercível”.

A segunda conseqüência relevante da natureza de meio de defesa do interrogatório é que, nessa condição, a não realização desse ato processual, privando o réu da oportunidade de prestar depoimento em interrogatório, é caso de nulidade absoluta do processo. Nas palavras de Pacelli (OLIVEIRA, E., 2009, p. 366), “Haveria, no caso, manifesta violação da ampla defesa, no que se refere à manifestação da autodefesa”.

A terceira conseqüência é sintetizada de forma primorosa por Capez, e consiste no fato de que

[...] nenhuma autoridade pode obrigar o indiciado ou acusado a fornecer prova para caracterizar a sua própria culpa, não podendo ele, por exemplo, ser obrigado a fornecer à autoridade policial padrões gráficos do seu próprio punho para exames grafotécnicos ou respirar em bafômetro para aferir embriaguez ao volante. Se não pode ser obrigado a confessar, não pode ser compelido a incriminar-se [...] (CAPEZ, 2009, p. 352).

Nunca é demais relembrar, por oportuno, que o art. 5º, LXIII[20] da Constituição Federal consagrou o direito ao silêncio, guindando-o à condição de direito fundamental, o qual foi posteriormente regulamentado a nível infraconstitucional no art. 186, caput do CPP[21], pela redação que lhe deu a Lei 10.792/03. Assim, dá leitura dos artigos do CPP que disciplinam o interrogatório é possível inferir que, durante a sua realização, é facultada ao réu a possibilidade de confessar, negar, silenciar ou até mesmo mentir (posto, neste último caso, que o réu não presta compromisso) (CAPEZ, 2009, p. 361).

O uso das prerrogativas de silenciar ou mentir não poderá se dar em desfavor do réu, de forma que não cabe qualquer sanção ao acusado caso venha este a adotar qualquer um desses comportamentos. Em função do direito de silenciar, não recaí sobre o réu qualquer obrigação em responder as perguntas a ele formuladas. Por outro lado, “[...] se o silêncio é direito do acusado e forma de realização de sua defesa, não se pode conceber que o exercício desta, através do silêncio, possa ser interpretado em prejuízo do réu“ (CAPEZ, 2009, p. 361-362), vedação essa que vem consignada no parágrafo único do art. 186, CPP.

Dessa forma, em cumprimento da determinação legal inscrita no caput e no parágrafo único desse artigo da lei processual, “[...] deve o juiz informar ao acusado do seu direito de permanecer calado sem que do exercício legítimo dessa prerrogativa constitucional possam advir restrições de ordem jurídica em desfavor dos interesses processuais do indiciado ou do acusado [...]” (CAPEZ, 2009, p. 362). E como esclarece com propriedade Tourinho Filho,

Qualquer insistência do Magistrado no sentido de exigir que o acusado falasse, sob pena de ser a sua defesa prejudicada, não teria nenhum valor, cabendo ao Advogado, se estivesse presente, fazer consignar o seu protesto ante esse manifesto abuso de autoridade. E, se ficasse provado que o réu falou diante da insistência e ameaça do Juiz, a prova colhida era supinamente ilícita (TOURINHO FILHO, 2009, p. 278).

Finalmente, conforme destaca Capez (2009, p. 354-356), o interrogatório tem ainda como características básicas: (a) pessoalidade (é ato personalíssimo, pelo que não é admitida a representação (nem sequer por seu defensor), substituição ou sucessão – somente o réu pode ser interrogado); (b) judicialidade (é ato exclusivo do juiz, a quem incumbe, com exclusividade, interrogar o acusado); (c) oralidade (é ato que se processa pela forma oral de comunicação, uma vez que a fala é “manifestação inequívoca do pensamento” (FIOREZE, 2008, p. 99)); e (d) é ato não preclusivo (dada a sua reafirmada característica de ser também um meio de defesa, o interrogatório não é alcançado pela preclusão, o que torna possível sua realização a qualquer momento). Além disso, convém destacar ainda que o interrogatório do réu também goza da característica da publicidade, uma vez que é ato que se desenvolve através de audiência pública, conforme preceituado pela Constituição Federal em seu art. 93, IX[22], e disciplinado pelo CPP, no art. 792[23].

Por outro lado, o teleinterrogatório, também designado como interrogatório on line, é, em essência, tão somente uma forma atualizada de se operacionalizar o interrogatório do acusado, pela incorporação dos recursos da moderna tecnologia de videoconferência. Esta caracteriza-se como um serviço de comunicação interativa audiovisual através do qual se processa uma troca bidirecional e em tempo real de sinais de áudio (som/voz) e vídeo (imagem), e que se estabelece entre dois ou mais grupos de usuários situados em locais distintos e, em regra, geograficamente dispersos (FIOREZE, 2008, p. 51). A “troca bidirecional e em tempo real” significa que os sujeitos em comunicação estabelecem uma conversação simultânea, como aquela que ocorre numa ligação telefônica comum (porém, com qualidade de som muito superior, como a que se tem numa transmissão de TV), ao mesmo tempo em que também suas imagens estão mutuamente disponíveis (com a mesma qualidade de imagem de uma transmissão de TV); ou seja, os participantes da comunicação têm, simultaneamente, a visão da(s) pessoa(s) com quem falam.

A videoconferência “[...] foi criada para facilitar a comunicação entre as pessoas, viabilizando uma interação rápida, fácil, e dinâmica, pois tem por objetivo colocar em contato, através de um sistema de vídeo e áudio, duas ou mais pessoas separadas geograficamente” (FIOREZE, 2008, p. 52).

É um recurso disponível desde a década de 70, mas que recebeu grande impulso nos dias atuais em função da incorporação de tecnologias digitais e do uso de canais de comunicação com altas taxas de transferência de informações, disponibilizados pelas concessionárias de telefonia, o que conferiu expressiva qualidade e elevado desempenho à comunicação entre os usuários, os quais podem hoje trocar dados, imagens e sons. A popularização da Internet e o advento da Internet em banda larga contribuíram sobremaneira para ampliar as possibilidades de utilização das facilidades da videoconferência (FIOREZE, 2008, p. 52-53).

A videoconferência encontra uma infinidade de aplicações práticas e que simplificam em muito a vida moderna; apenas para citar algumas: ela permite a comunicação eficiente e ágil entre as sedes das empresas e suas filiais para a realização de reuniões, evitando viagens desnecessárias, com economia de tempo e dinheiro; ela viabilizou a educação à distância, através do qual é possível à instituições de ensino oferecer cursos para alunos localizados remotamente (os quais podem participar de palestras e seminários, e onde até mesmo os professores que ministram as disciplinas podem situar-se em locais distantes); na medicina, ela tornou possível o telediagnóstico, pelo qual médicos localizados em centros de referência distantes podem intercambiar os prontuários de pacientes (inclusive os mais diversos exames, através de suas cópias digitalizadas), propiciando a discussão para alcançar um diagnóstico mais preciso e o tratamento mais eficaz (FIOREZE, 2008, p. 52).

O teleinterrogatório é, assim, apenas mais uma das aplicações práticas dessa moderna tecnologia, e que requer, para tanto, a utilização de um sistema que opera com hardware e software específicos. Esclarece Fioreze (2008, p. 107) que o teleinterrogatório consiste em

[...] um interrogatório realizado à distância, ficando o juiz em seu gabinete no fórum e o acusado em uma sala especial dentro do próprio presídio, onde há uma interligação entre ambos, por meio de câmeras de vídeo, com total imagem e som, de modo que um pode ver e ouvir perfeitamente o outro.

Os equipamentos que compõem o sistema consistem em câmeras de vídeo, telões, monitores de vídeo, microfones, microcomputadores e softwares de controle e monitoração; em cada ponto de comunicação é disponibilizada uma configuração similar a essa, porém, o usual é que o local onde o acusado será interrogado seja equipado com um número maior de câmeras, o que permitirá ao magistrado uma visão mais abrangente propiciada pelos diversos e simultâneos ângulos de visão disponibilizados. Um canal de comunicação exclusivo interliga os locais, conexão esta provida por linha telefônica, link de rádio-freqüência, e até via Internet, formando uma rede de comunicação digital de alta performance. Complementam o sistema equipamentos auxiliares como impressora (para impressão do termo de registro do interrogatório), scanner (para digitalização de documentos a serem transmitidos) e gravador de CD/DVD (para gravação digital da audiência) (FIOREZE, 2008, p. 53-54).

Outro aspecto a ressaltar é de que o juiz, de seu gabinete no fórum, tem o total controle do sistema, podendo, remotamente, ajustar o posicionamento das câmeras instaladas na sala onde se encontra o interrogado (visto, em geral, serem câmeras móveis, com controle PTZ – pan/tilt/zoom); isso permite ao magistrado que preside o interrogatório fazer o enquadramento de qualquer dos presentes na sala (acusado, agentes penitenciários, oficial de justiça, servidor do judiciário e, obrigatoriamente, o defensor do acusado), de acordo com o seu interesse.

A forma como o teleinterrogatório se desenvolve é basicamente a mesma do procedimento tradicional, com pequenas adaptações que visam adequar as características da nova ferramenta aos princípios e requisitos legais que regem o ato processual do interrogatório. O procedimento do teleinterrogatório pode ser sintetizado como segue:

O juiz, em seu gabinete, faz as perguntas ao acusado, as quais são digitadas pelo escrivão e simultaneamente aparecem na tela do computador instalado no presídio. No presídio, um servidor do Judiciário a apresentar as perguntas feitas pelo juiz e, em seqüência, a digitar as respostas oferecidas pelo preso. A imagem e o som são transmitidos para os monitores. Ao final da audiência o termo do depoimento é enviado diretamente para a impressora na sala em que se encontra o preso, que lê e assina o documento. Esse termo é encaminhado de volta para o Fórum por malote no dia seguinte. Tudo rápido, simples e econômico. (FIOREZE, 2008, p. 108).

Sobre o autor
José Manuel de Abreu Paulo

Advogado, Bacharel em Direito (2010) pela FDV (Faculdade de Direito de Vitória), e Engenheiro Eletricista (1983) pela UFES (Universidade Federal do Espírito Santo).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULO, José Manuel Abreu. A constitucionalidade do teleinterrogatório no processo penal brasileiro . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4030, 14 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30205. Acesso em: 19 mai. 2024.

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