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A constitucionalidade do teleinterrogatório no processo penal brasileiro

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Agenda 14/07/2014 às 17:07

2 A BASE PRINCIPIOLÓGICA DO INTERROGATÓRIO NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

O foco das críticas contrárias à utilização do teleinterrogatório no processo penal empunha a bandeira da inconstitucionalidade desse procedimento, ancorada fundamentalmente na inobservância dos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

A defesa da aplicação do procedimento do teleinterrogatório, objetivo geral deste estudo, por sua vez, tem como uma de suas vertentes a desconstrução daquela argumentação contrária, fundamentada na afirmação de que a mesma desrespeita os princípios constitucionais da proporcionalidade, da razoabilidade e da eficiência. 

Por essas razões, entende-se que o enfrentamento da questão, por excelência, deve ser feito à luz de uma abordagem dita “principiológica”, abarcando o conteúdo de cada um dos princípios trazidos à baila, em confronto com o novo procedimento.

Uma tal abordagem exigirá uma conceituação prévia desses princípios, de modo a contextualizá-la e propiciar a criação de um substrato operacional com os conceitos elencados, a partir do qual se desenvolverá a temática aqui proposta.

2.1 PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

O princípio do devido processo legal (previsto no inciso LIV, do art 5º da Constituição Federal[6], e que tem origem na Magna Charta Libertatum, de 1215, do direito inglês), determina que somente será possível privar a liberdade ou os bens de qualquer indivíduo desde que sejam observados todos os procedimentos e formalidades legalmente previstas. Significa dizer que o respeito aos direitos do acusado só poderá ser garantido mediante a tramitação regular e legal do processo penal; todo e qualquer desvio nesse fluxo processual deve necessariamente estar previsto em lei.

É somente pela evolução normal do processo, em fiel observância à seqüência e “conteúdo” dos atos processuais, tudo em absoluta conformidade com o previsto na lei, que será possível assegurar o respeito aos direitos dos indivíduos. Desvios não são admitidos, salvo aqueles para os quais haja previsão legal.

São claras, no ordenamento, as evidências dos efeitos decorrentes do princípio do devido processo legal. Apenas para citar, a vedação da admissibilidade de provas ilícitas no processo (que tem matiz constitucional, elencada como garantia fundamental no art. 5º, LVI, CR/88[7], e que consagrou a teoria do “fruto da árvore envenenada”) é manifestação do devido processo legal; e o próprio contraditório (outra garantia fundamental insculpida no mesmo art. 5º, LV, CR/88[8]) só se efetiva a partir da observância do devido processo (prova disso é o subconjunto de dispositivos do CPP[9] inseridos no capítulo que trata do acusado e do seu defensor, estabelecendo a necessidade de um defensor para que tramite o processo contra o acusado), que se negligenciado tem o condão de eivar todos os atos praticados pelo vício da nulidade.

Fioreze (2008, p. 179) esclarece que o princípio do devido processo legal remete à

[...] existência de um regulamento jurídico que garante às partes um processo justo, ou seja, a tramitação regular do processo, segundo as normas e regras estabelecidas em lei, em obediência a todos os requisitos necessários e fundamentais para a efetividade do processo e da jurisdição. Isso exige a observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa.

[...]

[...] representa, portanto, a prévia existência de um regulamento jurídico que garanta às partes um processo efetivo e justo, com paridade de tratamento e iguais oportunidades em juízo.

O devido processo legal determina o estabelecimento de um verdadeiro “sistema de garantias” ao acusado, que visa o equilíbrio de forças com o poder punitivo do Estado, impondo-lhe limitações e evitando arbitrariedades. Nas palavras do que ensina Moraes (2005, p. 252)

O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade e propriedade quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito à defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal).

Do pensamento de Moraes acima evidencia-se a existência de duas vertentes do princípio do devido processo legal, as quais Fioreze (2008, p. 179) denomina “substantive due process (sentido material)” e “procedural due process (sentido processual)”, este último também referido como o sentido formal do devido processo legal.

Buscando delinear essas vertentes, Luís Flávio Gomes (GOMES, 2003) esclarece que pelo devido processo legal formal “[...] todos os processos, todas as atividades persecutórias devem seguir as formalidades legais e respeitar estritamente as garantias do devido processo legal”; por outro lado, pelo devido processo legal material “[...] a criação dessas regras jurídicas também possui limites. O legislador deve produzir regras "justas". [...] a produção legislativa tem limites formais e substanciais: não só deve seguir o procedimento legislativo como deve ser proporcional, equilibrada”.

De acordo com Fioreze (2008, p. 179-181) a cláusula do devido processo legal a princípio “[...] foi elaborada e interpretada como uma garantia apenas processual”, o que conduz à constatação de que “[...] a jurisdição penal só será válida num processo em que o conjunto de atos for executado de acordo com a forma e a ordem preestabelecidas”; contudo, acompanhando o movimento de transformação social que expandiu as fronteiras dos direitos fundamentais do homem, esse princípio experimentou significativa evolução em seu conteúdo, tornando-se um efetivo “[...] controle axiológico da atuação do Estado e de seus agentes, instrumento de defesa contra a arbitrariedade do Legislativo (garantia contra o arbítrio do legislador e lei injusta)”.

Por essa via, no entender de Souza Netto (2006, p. 119), o princípio do devido processo legal “[...] impede o automatismo na aplicação das normas, exigindo uma atividade valorativa”.

Delineia-se assim o aspecto material do princípio do devido processo legal, que

[...] nasceu com a preocupação de garantir ao cidadão um processo ordenado. Hoje o objetivo é maior. Adaptado à instrumentalidade, o processo legal é devido quando se preocupa com a adequação substantiva do direito em debate, com a dignidade das partes, com preocupações não só individualistas e particulares, mas coletivas e difusas, com, enfim, a efetiva igualização das partes no debate judicial. (PORTANOVA, 2003, p. 147).

O princípio vem consagrar “[...] uma das mais significativas garantias conferidas pelo Estado aos cidadãos: direito à jurisdição” (FIOREZE, 2008, p. 182), e seu conteúdo, na cátedra de Nery Junior (2004, p. 69-70), abrange os direitos à citação e ao conhecimento do teor da acusação; a um rápido e público julgamento; ao arrolamento de testemunhas e à notificação das mesmas para comparecimento perante os tribunais; ao procedimento contraditório; de não ser processado, julgado ou condenado por alegada infração às leis ex post facto; à plena igualdade entre acusação e defesa; contra medidas ilegais de busca e apreensão; de não ser acusado nem condenado com base em provas ilegalmente obtidas; à assistência judiciária, inclusive gratuita; ao privilégio contra a auto-incriminação.

Em suma, a observância a este princípio é um requisito inafastável no sentido de assegurar a transparência da atuação jurisdicional do Estado e, principalmente, para que o processo conduza à formulação de uma sentença justa e imparcial. Em outras palavras, a legalidade da atuação do Estado de Direito na persecução penal legitima-se a partir da elevação do princípio do devido processo legal ao status de garantia fundamental constitucional, no que se consagram as máximas “não há pena sem processo” e “não há crime nem pena sem lei anterior” (esta última, também outra garantia constitucional prevista no art. 5º, XXXIX, CR/88[10]). Como bem sintetiza Rangel (2006, p. 6, grifo do autor), “O Estado, sendo o titular do ius puniendi, tem, na realidade, o poder-dever de punir, mas deve, também, preservar a liberdade do indivíduo através do instrumento de tutela de ambos os interesses: o processo penal”.

Entende a melhor doutrina ser o devido processo o princípio basilar de todo o sistema jurídico processual; nele se fundam todos os demais princípios que informam a esfera processual. Em que pese sua relevância, ele não deve, contudo, ser considerado absoluto, e, por essa razão, já se consolidou tanto na doutrina como na jurisprudência o entendimento de que as garantias que derivam do devido processo legal devem ser tomadas em cotejo com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade; isso determina, em situações específicas, a atenuação de algumas dessas garantias.

Evita-se assim incorrer em possíveis distorções, motivadas pela rigidez na aplicação desse sistema de garantias à casos que se revestem de inquestionável gravidade, em função dos riscos de prejuízo ao direito material tutelado que decorrem da necessidade de observância de formas procedimentais.

2.2 PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO

O princípio do contraditório (consagrado na Constituição pátria no art. 5º, inciso LV[11]) assegura a igualdade entre as partes no processo, na medida em que a ambas é assegurado o direito, em iguais condições, para produzir as provas aptas a demonstrar que a verdade alberga-se na sua pretensão específica.

Este princípio está intimamente relacionado com o próprio direito de defesa e desagua no dever de imparcialidade do julgador. Um processo que se pretenda consagrado pela legalidade deve assegurar a instrução contraditória, propiciando ao acusado a oportunidade de refutar (ou contradizer!) as imputações que lhe são direcionados pelo acusador. Ao julgador incumbe conhecer a controvérsia, o que significa ouvir ambas as partes, não somente quem acusa mas também o acusado; sob a ótica do magistrado, não verifica-se um antagonismo entre as partes, mas uma imprescindível colaboração entre elas. Por isso, o princípio do contraditório “[...] é identificado na doutrina pelo binômio ciência e participação” (CAPEZ, 2009, p. 20, grifo do autor).

O contraditório é uma marca característica do sistema acusatório (cujo traço marcante, no dizer de Fioreze (2008, p. 190), reside na “[...] separação orgânica entre o órgão acusador e o órgão julgador [...]”) que vigora no sistema processual penal brasileiro. Em linhas gerais, consiste “[...] na possibilidade de as partes, em igualdade de condições, praticarem todos os atos tendentes a influir no convencimento do juiz. Atinge, também, a necessidade de cientificação da parte contrária, dos atos praticados por uma delas [...]” (FIOREZE (2008, p. 190). É em função desse seu conteúdo que entende a melhor doutrina que esse princípio

[...] visa exatamente garantir o equilíbrio na relação jurídico-processual, onde as partes (autor e réu) ficam no mesmo pé de igualdade, mantendo uma perfeita harmonia entre os bens jurídicos que irão se justapor (e não contrapor): direito do Estado de punir e proteção dos direitos e garantias do acusado (RANGEL, 2006, p. 17, grifo do autor).

A relevância, no processo penal, conferida às etapas de produção probatória e valoração das provas tem como principal alicerce o princípio do contraditório; dele emerge uma conjugação de garantias às partes no processo que lhes assegura, por um lado, o direito de produzir provas e defender suas razões, e por outro lado, o direito de que tais provas sejam efetivamente consideradas e valoradas pelo magistrado. E essa sistemática de paridade de armas faz do contraditório um autêntico método de conhecimento do fato penal, na medida em que propicia uma estrutura dialética que exerce efetiva influência na formação do convencimento do juiz. Conforme sustentam Grinover, Fernandes e Gomes Filho (2007, p. 145)

A garantia do contraditório não tem apenas como objetivo a defesa entendida em sentido negativo – como oposição ou resistência –, mas sim principalmente a defesa vista em sua dimensão positiva, como influência, ou seja, como direito de incidir ativamente sobre o desenvolvimento e o resultado do processo.

Pelo contraditório, as partes têm assegurado o acesso à informação de todo e qualquer fato ou alegação processual contrária aos seus interesses, bem como o direito de reação, manifestando-se sobre os mesmos antes que o órgão jurisdicional prolate qualquer juízo (o que configura a garantia de participação no processo). Além disso, essa reação deve oportunizar uma resposta que se equipare, em intensidade e extensão, ao evento que a motivou. Ou seja,

O contraditório está calcado e se manifesta na idéia de bilateralidade da audiência ou contraditoriedade real e indisponível, isto é, todos os atos praticados o devem ser na presença das partes, e essas devem poder se manifestar sobre eles, especialmente os praticados pela parte contrária (FIOREZE, 2008, p. 191).

O contraditório configura-se, assim, como requisito de validade do processo que, se não observado, leva quase que invariavelmente à nulidade absoluta do processo. E, nas palavras de Pacelli (OLIVEIRA, E., 2009, p. 39, grifo do autor), revela-se a magnitude da sua importância para o processo penal:

O contraditório, portanto, junto ao princípio da ampla defesa, institui-se como a pedra fundamental [...] do processo penal. E assim é porque, como cláusula de garantia instituída para a proteção do cidadão diante do aparato persecutório penal, encontra-se solidamente encastelado no interesse público da realização de um processo justo e eqüitativo, único caminho para a imposição da sanção de natureza penal.

2.3 PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA

O mesmo inciso constitucional arrolado na seção supra introduz no nosso ordenamento jurídico o princípio da ampla defesa. Deriva deste princípio a garantia assegurada ao réu que lhe outorga plenas condições para que sejam carreadas ao processo todos os elementos cabais que se fizerem necessários para que estabeleça a verdade dos fatos (facultando-lhe inclusive o direito de permanecer calado, se assim considerar necessário).

Em outras palavras, enquanto o princípio do contraditório busca garantir a participação da parte (principalmente do réu) no processo, assegurando-lhe o direito de impugnar tudo o que seja atentatório ao seu interesse, o princípio da ampla defesa busca imprimir à tal impugnação a mais concreta efetividade, de forma que a participação da parte seja verdadeiramente efetiva, sob risco de nulidade nos casos em que resta prejudicada a defesa do acusado.

Com base na ampla defesa fica o Estado obrigado a assegurar ao acusado a sua defesa da forma mais completa, abrangendo a autodefesa (defesa pessoal, que o próprio réu desenvolve, sobretudo no momento do interrogatório, ao exercer seu direito de ser ouvido pelo juiz da causa), a defesa técnica (realizada por advogado regularmente inscrito na OAB, cuja participação é exigida em todos os atos do processo), a garantia de defesa efetiva (onde não se concebe uma defesa técnica falha e omissa, equivalente à ausência de defesa, o que da causa à nulidade processual), a prestação de assistência jurídica integral e gratuita (concedida aqueles que não dispõem de condições financeiras para a constituição de defensor), e, por fim, qualquer meio de prova que se revele hábil para comprovar a inocência do acusado. Nesta última modalidade incluem-se, inclusive, as provas ilícitas, entendimento esse defendido por doutrinadores como Pacelli (OLIVEIRA, E., 2009, p. 41, grifo do autor), para o qual

[...] é possível, também, atribuir à ampla defesa o direito ao aproveitamento pelo réu, até mesmo de provas obtidas ilicitamente, cuja introdução no processo, em regra, é inadmissível. E isso porque, além da exigência da defesa efetiva, o princípio desdobra-se, dada a sua amplitude, para abarcar toda [sic] e quaisquer modalidades de prova situadas no ordenamento jurídico, até mesmo aquelas vedadas à acusação, pois não se pode perder de vista que a ampla defesa é cláusula de garantia individual instituída precisamente no interesse do acusado (art. 5º, CF).

É com base na ampla defesa que tem-se determinada a ordem natural do processo, ou seja, o obrigatoriedade de que a manifestação da defesa ocorra sempre por último, e que, em regra, obriga que, a cada intervenção da acusação no processo, se conceda vista aos autos à defesa do réu, possibilitando assim o mais amplo exercício de seu direito de defesa.

Enfim, a essência do princípio da ampla defesa é brilhantemente sintetizada pelo pensamento de Vladimir Aras (ARAS, 2001), ao afirmar que “[...] não é tolerável nem razoável admitir que alguém possa ser acusado de um crime sem defender-se.”, e que “[...] o único direito de defesa que se lhe retira [do acusado] é o de não se defender. Ou seja, mesmo que o réu silencie em seu interrogatório sempre haverá defesa. Sem defesa, não há processo penal”.

2.4 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

O princípio da proporcionalidade opera de modo diverso do que se verifica com outros princípios normativos presentes no ordenamento jurídico pátrio; para muitos destes (como p. ex., os princípios da ponderação, da otimização, da proibição de excesso etc), a aplicação depende da existência de elementos vinculados entre si através de uma determinada relação que tais elementos devem obedecer. Contudo, apesar da exigência desse relacionamento entre elementos, estes não são indicados ou especificados a priori com também não o são os critérios que regem o relacionamento entre os elementos e que orientam a aplicação de tais princípios. Por essa razão, a doutrina classifica esses princípios como princípios inespecíficos (ou incondicionais) (ÁVILA, 2008, p. 142).

A aplicação do princípio da proporcionalidade (e também do princípio da razoabilidade, como será visto na próxima seção) exige a presença de elementos específicos e de critérios claramente determinados que estabeleçam a relação entre tais elementos (no caso da proporcionalidade, sua aplicação está condicionada à existência de um meio e de um fim como elementos a serem vinculados). A doutrina refere-se a tais princípios como princípios específicos (ou condicionais) (ÁVILA, 2008, p. 142-143).

A Constituição Federal de 1988 não trouxe previsão expressa para o princípio da proporcionalidade; por essa razão é considerado um princípio constitucional implícito. Tal fato não representa óbice à efetiva aplicação desse princípio já que o mesmo se deriva de outros princípios constitucionais; nesse sentido Brugger e Leal esclarecem que o princípio da proporcionalidade se pressupõe

[...] com base (1) na supremacia da Constituição e (2) na supremacia do indivíduo em face do poder estatal. Ambos os princípios decorrem da natureza vinculante representada pela Constituição brasileira em relação a todos os poderes estatais (art. 3º), bem como da supremacia representada pelos direitos e liberdades fundamentais em face de todas as ações governamentais (art. 5º), impondo ao governo ter bons motivos/fundamentos antes de restringir quaisquer direitos e liberdades básicas (BRUGGER; LEAL, 2007, p. 137).

Na cátedra desses mesmos doutrinadores, com a expressão “ter bons motivos” deve se entender

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[...] antes de mais nada, (1) respeitar o âmbito de proteção dessas liberdades e garantias e (2) estabelecer cláusulas limitativas em relação à possibilidade de sua restrição. Se limitações podem e são consideradas, então elas devem servir, empiricamente, para a realização do bem comum – um bem comum legítimo – de modo que a restrição do direito individual seja apropriada (BRUGGER; LEAL, 2007, p. 137).

Conforme esclarece Vizzotto (2006, p. 139),

Devido à existência, hoje cada vez mais pulsante, de conflitos entre direitos fundamentais, e destes com valores inerentes a toda a comunidade (segurança pública e nacional, saúde pública etc) a Constituição autoriza, ainda que de modo não explícito, que tanto o legislativo quanto o judiciário imponham restrições aos direitos fundamentais [grifo nosso].

Contudo, a liberdade concedida pela Constituição ao legislador ordinário não é total, sob o risco de se cometerem arbitrariedades e excessos através de dispositivos legais que restrinjam de forma severa direitos legitimamente conquistados; de forma a permitir o controle da discricionariedade do legislador, a doutrina constitucional concebeu critérios racionais que atual como vetores diretivos no tocante à determinação do alcance das restrições dos direitos fundamentais. Entre tais critérios destaca-se o princípio (ou máxima) da proporcionalidade. (VIZZOTTO, 2006, p. 140).

Assim, o princípio da proporcionalidade desempenha duas funções distintas e essenciais “[...] para que possa se alcançar um resultado equilibrado e coerente com o Estado Democrático” (VIZZOTTO, 2006, p. 141); de um lado, esse princípio

[...] configura instrumento de salvaguarda dos direitos fundamentais contra a ação limitativa que o Estado impõe a esses direitos. De outro lado [...] cumpre a relevante missão de funcionar como critério para solução de conflitos de direitos fundamentais, através de juízos comparativos de ponderação dos interesses envolvidos no caso concreto (FIOREZE, 2008, p. 211-212, grifo da autora).

O resultado combinado dessas funções confere ao princípio da proporcionalidade relevante papel na interpretação constitucional e infraconstitucional, notadamente como técnica de controle dos limites que são impostos aos direitos fundamentais, atuando “[...] precipuamente para a averiguação da constitucionalidade de leis que possam interferir no âmbito da liberdade humana” (FIOREZE, 2008, p. 204; 206).

De forma similar, Bonavides (2009, p. 425) sustenta que

Uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no princípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos fundamentais e se busca daí solução conciliatória, para a qual o princípio é indubitavelmente apropriado.

E para que não restem dúvidas quanto à sua relevância no seio do ordenamento jurídico, mais precisa ainda é cátedra de Bechara e Campos ao afirmarem que o princípio da proporcionalidade

tradicionalmente atua como critério solucionador dos conflitos entre valores constitucionais, mas que constitui, na realidade, uma norma de sobredireito ou de conformação, que define a dimensão conceitual e o âmbito de aplicação de cada liberdade pública. O princípio da proporcionalidade constitui, enfim, uma solução de compromisso, que procura realizar o primeiro mandamento básico da fórmula política de um ordenamento, que é o respeito simultâneo dos interesses individuais, coletivos e públicos. Sua operacionalização perfaz-se por meio dos subprincípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade estrita (BECHARA; CAMPOS, 2005, p. 134).

Destaque-se que a necessidade de se impingir restrições a direitos fundamentais não é um advento da modernidade; desde o surgimento dos primeiros núcleos sociais esse expediente se mostrou necessário como meio de viabilizar uma tênue e minimamente harmoniosa convivência, seja entre os homens ou entre estes e o Estado (VIZZOTTO, 2006, p. 133-134). Tal evidência vem corroborar o fato já pacificado de que não existem princípios absolutos (vide seção 1.1 supra) e, via de conseqüência,

[...] grande parte dos direitos fundamentais não são intocáveis e absolutos, principalmente pelo fato do homem viver em sociedade, e estar em contato com outros sujeitos que gozam de suas respectivas garantias e prerrogativas que defluem do Estado Democrático de Direito. Evidente é, portanto, que surgem hipóteses em que ocorre conflito e eventual choque entre esses direitos (VIZZOTTO, 2006, p. 135).

Ficam evidentes, portanto, as razões pelas quais se tornam imperiosos a precisa compreensão e o correto manejo em concreto do princípio da proporcionalidade, o qual se espraia por todo o ordenamento jurídico pátrio (VIZZOTTO, 2006, p. 141); diante da colisão entre dois princípios constitucionais, em que a decisão de se aplicar um deles significa reduzir o campo de aplicação do outro, esse princípio atua como base de ponderação jurisdicional para avaliar se a redução ministrada é proporcional em face da relevância do princípio afetado. Busca-se por essa via impedir que dispositivos legais que impliquem em restrições à direitos fundamentais venham eliminar por completo esses direitos, “[...] sob pena de inviabilizar a efetivação da dignidade humana, mola mestra do Estado Democrático de Direito” (VIZZOTTO, 2006, p. 142).

Ainda que a noção de proporção se encontre difusa por todo o ordenamento jurídico, assumindo uma diversidade de significações, estas não devem ser confundidas com o que postula o princípio da proporcionalidade. A sistematização apresentada por Ávila (2008, p. 161-162) é extremamente didática ao estabelecer a distinção; afirma esse autor que o princípio da proporcionalidade

[...] se aplica apenas a situações em que há uma relação de causalidade entre dois elementos empiricamente discerníveis, um meio e um fim, de tal sorte que se possa proceder aos três exames fundamentais: o da adequação (o meio promove o fim?), o da necessidade (dentre os meios disponíveis e igualmente adequados para promover o fim, não há outro meio menos restritivo do(s) direito(s) fundamentais afetados?) e o da proporcionalidade em sentido estrito (as vantagens trazidas pelo promoção do fim correspondem às desvantagens provocadas pela adoção do meio?).

É pacífico, então, que a aplicabilidade desse princípio está condicionada à existência de um meio, de um fim concreto[12] e de uma relação de causalidade que os vincula, sem o que não há como aplicar o postulado da proporcionalidade. Mas mesmo quando tais elementos encontram-se presentes, a aplicação da proporcionalidade requer a superação de dificuldades inerentes ao exame dos seus três aspectos fundamentais, e que decorrem do fato de que os conceitos de adequação, necessidade e vantagens (e em relação ao quê e a quem estas últimas devem ser apuradas) são, o mais das vezes, juridicamente imprecisos e controvertidos. Por essa razão, a investigação desses aspectos “[...] revela problemas que devem ser esclarecidos, sob pena de a proporcionalidade, que foi concebida para combater a prática de atos arbitrários, funcionar, paradoxalmente, como subterfúgio para a própria prática de tais atos” (ÁVILA, 2008, p. 162).

A preocupação desse autor justifica-se na medida em que a relevância do princípio da proporcionalidade tem crescido no ordenamento jurídico brasileiro como um dos principais instrumentos de controle dos atos do Poder Público, quando, conforme esclarece Ávila (2008, p. 182), “A exigência de realização de vários fins, todos constitucionalmente legitimados, implica a adoção de medidas adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito”. Tal comportamento torna-se imprescindível quando enfrentam-se conflitos entre bens jurídicos, e desde que, entre eles, seja possível estabelecer “[...] uma relação meio/fim devidamente estruturada” (ÁVILA, 2008, p. 162); é esse o cenário típico no qual o princípio da proporcionalidade torna-se poderosa ferramenta de aplicação. E como sistematiza esse doutrinador, cabe a aplicação de tal princípio

[...] sempre que houver uma medida concreta destinada a realizar uma finalidade. Nesse caso devem ser analisadas as possibilidades de a medida levar à realização da finalidade (exame da adequação), de a medida ser a menos restritiva aos direitos envolvidos dentre aquelas que poderiam ter sido utilizadas para atingir a finalidade (exame da necessidade) e de a finalidade pública ser tão valorosa que justifique tamanha restrição (exame da proporcionalidade em sentido estrito) (ÁVILA, 2008, p. 162-163, grifo do autor).

Indo mais à frente, para que seja possível alcançar todas as nuanças do princípio da proporcionalidade, cumpre destacar ainda a perspicaz abordagem erigida por Lênio Streck em relação à aplicação desse princípio, a qual caracteriza o que esse doutrinador designa como a “dupla face do princípio da proporcionalidade”.

Tratando de forma mais detida da questão do direito material penal (mas que, em diversas oportunidades, ele próprio estende à esfera processual, o que, de certo modo, afigura-se como óbvio), Streck procura ressaltar a

[...] dupla via que devem ter as análises acerca da validade de dispositivos penais, Ou seja, é preciso ampliar a perspectiva do Direito Penal [e, via de conseqüência, do Direito Processual Penal] da Constituição na perspectiva de uma política integral de proteção dos direitos, o que significa estender o garantismo não somente no sentido negativo como limite do sistema punitivo (proteção contra o Estado), mas, sim, também como garantismo positivo, o que [...] aponta para a resposta às necessidades de assegurar à todos os direitos, inclusive os de prestação por parte do Estado (direitos econômicos, sociais e culturais), e não apenas aqueles que podem ser denominados de direitos de prestação de proteção, em particular contra agressões provenientes de comportamentos delitivos de determinadas pessoas (STRECK, 2005, p. 199, grifo do autor).

Esse entendimento tem guarida na evidência de que, em que pese o processo de transformação pelo qual passou o Estado, deslocando-se de um modelo liberal-individualista para o modelo de Estado Democrático (e Social) de Direito (vide capítulo 1 supra), os juristas brasileiros continuam hoje a pautar sua atuação com base em construções axiológicas forjadas no início do século XIX (típicas do Estado Liberal então se germinação, e caracterizadas pela hegemônica função ordenadora da lei, voltada exclusivamente para a defesa do cidadão contra o Estado, e pelo antagonismo entre Estado e Sociedade), em detrimento da proteção de outras categorias de direitos e garantias reconhecidas constitucionalmente “[...] a partir da identificação de novos valores gerados em face das novas necessidades (individuais e sociais)[13]”, e que conferem à ordem constitucional vigente “[...] um papel decisivo nesse sentido”; (STRECK, 2005, p. 199).

Em outras palavras, em seu modelo atual, o Estado Democrático de Direito lida não apenas com direitos individuais, mas agrega também direitos de segunda e terceira gerações, competindo ao Estado o dever de protegê-los de forma conjunta. Conforme sustenta com propriedade Streck (2005, p. 201),

[...] analisar o Direito Penal [e o Direito Processual Penal] sob a ótica do Estado Democrático de Direito e do (neo)constitucionalismo que o engendrou implica, necessariamente, levar em conta as mudanças paradigmáticas ocorridas no campo do Estado e do Direito. Conseqüentemente, torna-se necessário romper com a idéia de que há uma contradição insolúvel entre Estado e Sociedade ou entre Estado e Indivíduo.

É neste ponto que reside a fragilidade das teses que não admitem a extensão da função de proteção penal aos bens de interesse da comunidade (bens transindividuais) [...] [grifo nosso].

A conclusão inevitável é que “[...] a tarefa do Estado é defender a sociedade, a partir da agregação das três dimensões [ou gerações] de direitos – protegendo-a contra os diversos tipos de agressões” (STRECK, 2007, grifo nosso). No novo modelo de Estado destacam-se assim dois componentes: o do Estado de Direito protetor da liberdade individual (que protege o indivíduo de uma intervenção desproporcional do próprio Estado), e do Estado Social preservador do interesse social (que “[...] protege igualmente a sociedade e os seus membros dos abusos do indivíduo [...] mesmo à custa da liberdade do indivíduo” (STRECK, 2007)).

Fica patente, portanto (e a própria Constituição assim o determina, ainda que em alguns casos de forma implícita), que essa proteção estatal é ampla, e açambarca também a proteção dos direitos fundamentais[14] (a qual deve se processar em duas vertentes: protegendo tais direitos do cidadão (a) frente ao Estado, e (b) através do Estado, contra violações por parte de outros indivíduos); essa postura faz do Estado verdadeiro protetor dos direitos fundamentais, agente fomentador de seu desenvolvimento, abandonando sua postura antiga de potencial opositor (ou inimigo) desses direitos (STRECK, 2007).

Sistematizando esse entendimento, Streck (2007, grifo do autor) reitera que

[...] o Estado passou a ter a função de proteger a sociedade nesse duplo viés: não mais apenas a clássica função de proteção contra o arbítrio, mas, também a obrigatoriedade de concretizar os direitos prestacionais e, ao lado destes, a obrigação de proteger os indivíduos contra agressões provenientes de comportamentos delitivos, razão pela qual a segurança passa a fazer parte dos direitos fundamentais (art. 5º, caput, da Constituição do Brasil).

Por outro lado, na visão lúcida de Streck, uma avaliação mais detida em torno da superação do modelo clássico de garantismo negativo (focado exclusivamente na proteção do indivíduo contra o Estado) permite evidenciar que o mesmo é fruto de “[...] uma leitura unilateral do princípio da proporcionalidade, como se este fosse apenas voltado à proteção contra os excessos (abusos do Estado)” (STRECK, 2007, grifo nosso).

Contudo, conforme oportunamente sustenta Sarlet (2005, p. 107),

[...] a noção de proporcionalidade não se esgota na categoria da proibição de excesso, já que abrange [...] um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a agressões contra direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se está diante de dimensões que reclamam maior densificação, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamada proibição de insuficiência no campo jurídico-penal [...] [grifo nosso].

A proibição de insuficiência a que se refere Sarlet remete à outra face do princípio da proporcionalidade, que a doutrina comumente designa como proibição de proteção deficiente.

Conforme esclarece o mesmo Sarlet, quando, por outro lado, se aplica o “teste da proporcionalidade” para aferir a constitucionalidade de atos restritivos de direitos fundamentais, através da utilização daqueles subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (referidos anteriormente nesta seção) em que se desdobra o princípio da proporcionalidade, é a função precípua de proibição de excesso desse princípio que se faz presente (SARLET, 2005, p. 134).

Assim, no sopesamento necessário em face da colisão entre direitos fundamentais (tendo em vista que a própria Constituição não estabelece direitos fundamentais absolutos), notadamente quando a questão envolve interesses coletivos e direitos prestacionais de terceiros (garantismo positivo), é necessário ter em vista essa dupla face do princípio da proporcionalidade; dessa forma, a violação a este princípio tanto pode ocorrer a partir de um ato do Estado que se mostre arbitrário (ou seja, excessivo), ou então que se revele débil para prover a necessária proteção estatal a um determinado bem jurídico (em outras palavras, que configure uma proteção deficiente àquele bem) (STRECK, 2007).

Dessa forma, são passíveis de críticas as decisões que, abraçando tão somente a perspectiva do garantismo negativo (onde a proporcionalidade só será violada em caso de inobservância da proibição de excesso), deixam de considerar a “[...] relevante circunstância de que o Estado [...] pode vir a violar o princípio da proporcionalidade na hipótese de não proteger suficientemente direitos fundamentais de terceiros (garantismo positivo) [...]” (STRECK, 2007).

Conforme didaticamente esclarece Streck (2007)

A proibição de proteção deficiente pode ser definida como um critério estrutural para a determinação dos direitos fundamentais, com cuja aplicação pode-se determinar se um ato estatal – [...] uma omissão – viola um direito fundamental de proteção. Trata-se de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional o restado do seu sopesamento [...] entre fins e meios; de outro lado, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da constituição e tem como conseqüência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador [grifo nosso],

cátedra essa que Sarlet (2005, p. 131-132, grifo nosso) reitera de forma sempre magistral ao lecionar que 

No plano do direito penal (e isto vale tanto para o direito penal material, quanto para o processo penal) resulta [...] inequívoca a vinculação entre os deveres de proteção (isto é, a função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela) e a teoria da proteção dos bens jurídicos fundamentais, como elemento legitimador da intervenção do Estado nesta seara, assim como não mais se questiona seriamente [...] a necessária e correlata aplicação do princípio da proporcionalidade e da interpretação conforme a Constituição. Com efeito, para a efetivação de seu dever de proteção, o Estado [...]  pode acabar por afetar de modo desproporcional um direito fundamental (inclusive o direito de quem esteja sendo acusado da violação de direitos fundamentais de terceiros). Esta hipótese corresponde às aplicações correntes do princípio da proporcionalidade como critério de controle de constitucionalidade das medidas restritivas de direitos fundamentais que, nesta perspectiva, atuam como direitos de defesa, no sentido de proibições de intervenção (portanto, de direitos subjetivos em sentido negativo [...]). O princípio da proporcionalidade atua, neste plano (o da proibição de excesso), como um dos principais limites às limitações dos direitos fundamentais [...].

Por outro lado, o Estado – também na esfera penal – poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese, por sua vez, vinculada [...] à problemática das omissões inconstitucionais. É neste sentido que – como contraponto à assim designada proibição de excesso – expressiva doutrina e inclusive jurisprudência tem admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado [...]).

A proteção e preservação dos direitos e garantias fundamentais, no seio do ordenamento jurídico, levadas em conta as peculiaridades e características do caso concreto, é o caminho mais curto e infalível para assegurar que “[...] a democracia e a dignidade humana não serão atingidas de modo fatal e irreversível”. Em cada caso concreto alçado à barra dos tribunais deve a jurisdição buscar a “melhor resposta possível”, e para tanto deve a prestação jurisdicional ser pautada pelo princípio da proporcionalidade (VIZZOTTO, 2006, p. 152), “[...] peça essencial para a manutenção de direitos e garantias fundamentais no Estado Democrático de Direito” (VIZZOTTO, 2006, p. 151).

Essa importantíssima função desempenhada pelo princípio da proporcionalidade no âmbito do Estado Democrático (e Social) de Direito se ancora

[...] em dois pilares: a (ampla) possibilidade de sindicância de índole constitucional não somente de normas [...] violadoras da cláusula da proibição de excesso [...], como também das normas [...] que violem o princípio da proporcionalidade por proteção deficiente [...] (STRECK, 2005, p. 202).

2.5 PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE

Conforme referido na seção supra, o princípio da razoabilidade integra o conjunto de princípios designados como princípios específicos (ou condicionais), e se constitui num princípio estruturador para a aplicação de outras normas, princípios e regras, com ênfase para estas últimas.

Sua aplicação se dá com base em três vertentes principais: eqüidade, congruência e equivalência. Pela primeira forma de aplicação (eqüidade), o princípio da razoabilidade atua como linha mestra para assegurar que a subsunção da norma geral ao caso individual, em concreto, se processe de forma harmoniosa. No dizer de Ávila (2008, p. 152), nesse sentido a razoabilidade é

[...] diretriz que exige a relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral.

Para obtenção desse resultado, dois cuidados devem orientar a aplicação das normas jurídicas: (a) a presunção de que as condutas e fatos manifestam-se, como regra geral, segundo seus aspectos considerados normais, típicos, padrão ou corriqueiros; e (b) a consideração de que se as especificidades do caso individual, em concreto, conferem-lhe tamanha diferenciação, a ponto de ser enquadrado como um caso anormal em face daquilo que seria legalmente aceitável como típico ou normal, então a norma geral não pode ser aplicada para um tal caso.

O primeiro cuidado pode ser sintetizado pela idéia de que, na interpretação das normas jurídicas, a presunção deve, em regra, orientar-se no sentido do que é considerado como normalidade ou percebido como sendo o que normalmente ocorre, e não no sentido do contrário, do extraordinário ou extravagante. Ávila (2008, p. 153) atalha, concluindo que

[...] a razoabilidade atua como instrumento para determinar que as circunstâncias de fato devem ser consideradas com a presunção de estarem dentro da normalidade. A razoabilidade atua na interpretação dos fatos descritos em regras jurídicas. A razoabilidade exige determinada interpretação como meio de preservar a eficácia de princípios axiologicamente sobrejacentes.

O segundo cuidado evoca, em última análise, para uma interpretação teleológica da norma jurídica, focada na finalidade almejada pelo legislador com a criação da própria norma; assim, identificado desvio dessa finalidade ou diante de um princípio que estabeleça uma finalidade contraposta, a norma jurídica não se aplica mesmo se as suas condições de aplicação estiverem presentes no caso concreto. Por essa via,

[...] a razoabilidade serve de instrumento metodológico para demonstrar que a incidência da norma é condição necessária mas não suficiente para sua aplicação. Para ser aplicável, o caso concreto deve adequar-se à generalização da norma geral. A razoabilidade atua na interpretação das regras gerais como decorrência do princípio da justiça (“Preâmbulo” e art. 3º da CF) (ÁVILA, 2008, p. 155).

A vertente da congruência, tal como a anterior, também trata da aplicação harmoniosa das normas, contudo numa outra instância; aqui, à luz da congruência, o relacionamento harmonioso que o princípio da razoabilidade requer deve se verificar entre as normas e suas condições externas de aplicação.

Para atingir essa harmonização, pela via da razoabilidade, dois aspectos importantes precisam ser observados: (a) as razões que motivam a elaboração das normas jurídicas devem ter vinculação com a realidade (é esse vínculo que determina as condições externas de aplicação das normas, e que nada mais são do que parâmetros externos que orientam a sua interpretação); e (b) ao eleger, na realidade (mundo fático) o seu campo de incidência, as normas devem valer-se de critérios de distinção que mantenham uma “coerência lógica”, plausível e aceitável, com as medidas que elas determinam. Aqui

[...] a razoabilidade é empregada como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com o mundo ao qual elas fazem referência, seja reclamando a existência de um suporte empírico e adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir (ÁVILA, 2008, p. 152).

Decorre daí o “dever de congruência e de fundamentação” na realidade (na essência das coisas), a que se refere Ávila (2008, p. 156), e que deve ser observado na produção legislativa, sob risco de violação de princípios basilares do ordenamento jurídico, todos de matriz constitucional. Assim é que, ao tomar a razoabilidade como exigência para a harmonia entre normas e condições externas de aplicação, Ávila (2008, p. 156) dispõe que

Os princípios constitucionais do Estado de Direito (art. 1º) e do devido processo legal (art. 5º, LIV) impedem a utilização de razões arbitrárias e a subversão dos procedimentos institucionais utilizados. Desvincular-se da realidade é violar os princípios do Estado de Direito e do devido processo legal.

Em seguida, ao tratar da razoabilidade pela ótica da harmonia que deve existir entre os critérios distintivos incorporados pelas normas e as medidas que elas adotam, Ávila (2008, p. 158) mais uma vez evoca princípios constitucionais como instrumentos de controle da razoabilidade ao concluir que

À eficácia dos princípios constitucionais do Estado de Direito (art. 1º) e do devido processo legal (art. 5º, LIV) soma-se a eficácia do princípio da igualdade (art. 5º, caput), que impede a utilização de critérios distintivos inadequados. Diferenciar sem razão é violar o princípio da igualdade.

Finalmente, a vertente da equivalência do princípio da razoabilidade impõe que a medida adotada e o critério utilizado para dimensioná-la devem manter entre si uma relação de equivalência. Talvez a mais clássica das situações onde esse prisma da razoabilidade deve se fazer presente é a que se verifica na etapa de dosimetria da sentença penal, quando a fixação do quantum da pena em concreto depende da culpabilidade do réu. Em tal situação, a pena fixada observa uma correspondência com a culpa, esta operando como critério de fixação daquela. Sob tal ótica, a punição deve ser equivalente ao delito praticado.

É nesse sentido que, ao abordar a razoabilidade como equivalência, Ávila (2008, p. 152) sintetiza seu pensamento afirmando que, nessa vertente, “[...] a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação de equivalência entre duas grandezas.”

2.6 PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA

O princípio da eficiência foi consagrado constitucionalmente por intermédio da Emenda Constitucional nº 19/98 (que promoveu a chamada Reforma Administrativa), a qual alterou o texto do caput do art. 37[15], inserindo-lhe a referência a tal princípio. O fundamento dessa alteração tem clara relação com os reclamos de longa data da sociedade, dirigidos à baixa qualidade e deficiente prestação dos serviços públicos, de forma geral, que tantos prejuízos trazem à coletividade, e contra os quais não dispunham os cidadãos de instrumentos de controle e cobrança adequados e hábaoletividade e rança adequadosste, dos Poderes da Unieis para exigir, da administração pública, a qualidade das atividades públicas e serviços prestados, bem como exercer um efetivo controle da discricionareidade dos agentes públicos.

Meirelles (2008, p. 98) conceitua o princípio da eficiência como sendo

[...] o que se impõe a todo o agente público de realizar suas atribuiçõesadministraç com presteza, perfeição e rendimento profissional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço púbico e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros.

Mais abrangente é o entendimento de Di Pietro (2007, p. 75), que sustenta que o princípio da eficiência

[...] apresenta-se sob dois aspectos, podendo tanto ser considerado em relação á forma de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atuações e atribuições, para lograr os melhores resultados, como também em relação ao modo racional de se organizar, estruturar, disciplinar a administração pública, e também com o intuito de alcance dos resultados na prestação do serviço público [...].

O célebre doutrinador Carvalho Filho (2007, p. 23-24) sintetiza a essência desse postulado ao afirmar que “O núcleo do princípio é a procura de produtividade e economicidade e, o que é mais importante, a exigência de reduzir os desperdícios de dinheiro público, o que impõe a execução dos serviços públicos com presteza, perfeição e rendimento funcional”.

Cumpre destacar a estreita vinculação entre o princípio da eficiência e o princípio da legalidade; a rigorosa observância dessa inter-relação assegura que a busca da eficiência da atuação administrativa, a despeito da relevância social de uma tal atuação, não se faça a margem da lei, contrariando o ordenamento jurídico.

Decorre daí o caráter instrumental do postulado da eficiência, cuja aplicação deve estar integrada com a dos demais princípios que informam a atuação da administração pública (conforme elencados no caput do art. 37, CR/88); por maior que seja o clamor social pela prestação eficiente dos serviços públicos, em nome de tal clamor não pode o princípio da eficiência se sobrepor àqueles outros princípios e nem negar a validade dos mesmos. Neste exato sentido é o ensinamento de Mello (2008, p. 122), ao chamar a atenção para o fato de que “[...] tal princípio não ser concebido [...] senão na intimidade do princípio da legalidade, pois jamais uma suposta busca de eficiência justificaria postergação daquele que é o dever administrativo por excelência”; e, no entender desse doutrinador, a eficiência é, em verdade, apenas um dos aspectos inseridos no chamado “princípio da boa administração”, mais abrangente e há muito consagrado no ordenamento jurídico italiano.

De se notar ainda que o princípio em comento tem vasta abrangência, não se restringindo aos serviços públicos que a administração presta de forma direta à sociedade, alcançando igualmente os serviços internos relacionados à administração da própria “máquina pública” bem como das entidades a ela vinculadas. É dever do Poder Público zelar por uma boa administração, fazendo do aparelho estatal uma estrutura menos burocrática e mais aderente aos padrões modernos, sem contudo levar prejuízos à coletividade. Conforme esclarece Carvalho Filho

[...] Significa que a Administração deve recorrer à moderna tecnologia e aos métodos hoje adotados para obter a qualidade total da execução das atividades a seu cargo, criando, inclusive, novo organograma em que se destaquem as funções gerenciais e a competência dos agentes que devem exercê-las (CARVALHO FILHO, 2007, p. 24, grifo nosso).

No que tange ao direito processual penal, disciplina que mais de perto interessa aos objetivos do presente estudo, a observância do princípio da eficiência tornou-se um imperativo a partir da Emenda Constitucional nº 45/04, a qual promoveu a chamada “Reforma do Judiciário”, e introduziu, entre outras tantas alterações constitucionais, o inciso LXXVIII no art. 5º, com a seguinte redação: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Esse comando, ungido com a força de direito fundamental, traz a marca do postulado da eficiência, de forma imediata ao buscar a celeridade processual, e, de forma reflexa ao propiciar assim maior efetividade ao princípio do acesso à justiça para evitar lesão ou ameaça a direito (este também um outro princípio fundamental, estampado no art. 5º, XXXV[16]).

O princípio da eficiência, contudo, encontra dificuldades na consecução de seus fins. A primeira, de natureza prática, decorre de ser a eficiência um conceito jurídico indeterminado (como determinar se a atividade administrativa é eficiente?), e reclama uma regulamentação infraconstitucional para esse postulado que estabeleça, de forma precisa, os instrumentos à disposição do cidadão para assegurar seus legítimos direitos; a segunda, relacionada ao controle judicial da observância desse princípio, o qual possui restrições doutrinárias e que, no dizer de Carvalho Filho (2007, p. 25), “[...] sofre limitações e só pode incidir quando se tratar de comprovada ilegalidade”; complementando esse raciocínio, Vladimir da Rocha França (FRANÇA, 2008) destaca que “[...] o Poder Judiciário não pode compelir a tomada de decisão que entende ser de maior grau de eficiência”. A existência de tais limitações ao controle judicial do princípio da eficiência, ao contrário de buscar excluí-lo, visa evitar a intervenção legitimada do Judiciário na esfera de competência constitucional definida para os órgãos da Administração Pública.

Por fim, cumpre destacar que eficiência, eficácia e efetividade, não obstante serem termos empregados geralmente como sinônimos pelo senso comum, correspondem à conceitos jurídicos diferenciados. Uma distinção precisa entre esses conceitos pode ser enunciada da seguinte forma:

A eficiência transmite sentido relacionado ao modo pelo qual se processa o desempenho da atividade administrativa; a idéia diz respeito, portanto, à conduta dos agentes. Por outro lado, eficácia tem relação com os meios e instrumentos empregados pelos agentes no exercício de seus misteres na administração; o sentido aqui é tipicamente instrumental. Finalmente, a efetividade é voltada para os resultados obtidos com as ações administrativas; sobreleva nesse aspecto a positividade dos objetivos. O desejável é que tais qualificações caminhem simultaneamente [...] (CARVALHO FILHO, 2007, p. 25, grifo do autor).

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2.7 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Razões históricas de mesma natureza têm inspirado os constituintes de diversas nações a positivar a dignidade da pessoa humana em suas constituições. A pioneira foi a República Federal da Alemanha, que expressamente estabelece esse direito fundamental em seu art. 1º, nº 1 (“A dignidade humana é inviolável. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todos os Poderes estatais”); essa previsão constitucional foi motivada pelos horrores cometidos pelo regime nazista, em nome do Estado, contra a dignidade humana (SILVA, 1998, p. 89).

No Brasil,

[...] também a tortura e toda sorte de desrespeito à pessoa humana praticadas sob o regime militar levaram o Constituinte brasileiro a incluir a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil, conforme o disposto no inc. III do art. 1º da Constituição de 1988 (SILVA, 1998, p. 90, grifo do autor).

O referido dispositivo constitucional textualmente preceitua (BRASIL, 2010a, p. 7):

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III - a dignidade da pessoa humana;

[...].

Considerada como o “valor supremo” que “dimensiona e humaniza” a democracia, “único regime político capaz de propiciar a efetividade” dos direitos fundamentais do homem, que por ela são catalisados (SILVA, 1998, p. 94), a dignidade da pessoa humana compreende dois valores jurídicos fundamentais: a pessoa humana e a dignidade (SILVA, 1998, p. 90).

Em relação ao primeiro desses conceitos fundamentais, destaca José Afonso da Silva (1998, p. 90, grifo do autor) que, a partir do pensamento kantiano, a racionalidade está na essência da pessoa humana a qual “[...] como ser racional, existe como fim em si, e não simplesmente como meio, enquanto os seres, desprovidos de razão, têm um valor relativo e condicionado, o de meios, eis por que se lhes chamam coisas [...]”. No dizer de Kant (apud SILVA, 1998, p. 90, grifo do autor),

ao contrário, os seres racionais são chamados de pessoas, porque sua natureza já os designa como fim em si, ou seja, como algo que não pode ser empregado simplesmente como meio e que, por conseguinte, limita na mesma proporção o nosso arbítrio, por ser um objeto de respeito.

Assim, na precisa análise de José Afonso da Silva (1998, p. 90, grifo do autor), o ser humano “[...] se revela como um valor absoluto, porque a natureza racional existe como fim em si mesma”, para em seguida sintetizar com brilhantismo que

[...] só o ser humano, o ser racional, é pessoa. Todo ser humano, sem distinção, é pessoa, ou seja, um ser espiritual, que é, ao mesmo tempo, fonte e imputação de todos os valores. [...] desconsiderar uma pessoa significa em última análise desconsiderar a si próprio. Por isso é que a pessoa é um centro de imputação jurídica, porque o Direito existe em função dela e para propiciar seu desenvolvimento.

Insere-se aí a idéia de dignidade, que Kant (apud SILVA, 1998, p. 91, grifo nosso) associa com o conceito de preço, de valor; se é possível associar um preço a algo, decorre que o mesmo pode ser substituído por outra coisa que possua igual preço ou valor, ou seja, que lhe seja equivalente; ínsito nesse raciocínio a idéia de valor relativo, de valor condicionado, já que sua existência tem característica de simples meio, que por isso tem atribuído um preço de mercado em função da necessidade e avaliação humanas. Por outro lado, “[...] aquilo que não é um valor relativo, e é superior a qualquer preço, é um valor interno e não admite substituto equivalente, é uma dignidade, é o que tem uma dignidade” (KANT, apud SILVA, 1998, p. 91, grifo do autor).

Ao correlacionar os dois valores jurídicos delineados acima, José Afonso da Silva (1998, p. 91) conclui que

[...] a dignidade é atributo intrínseco, da essência, da pessoa humana, único ser que compreende um valor interno, superior a qualquer preço, que não admite substituição equivalente. Assim a dignidade entranha e se confunde com a própria natureza do ser humano.

Já Ingo Sarlet (2008, p. 63) faz ótima sistematização ao conceituar a dignidade da pessoa humana como

a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

A partir do acima exposto, dois aspectos fundamentais relacionados com a dignidade da pessoa humana merecem destaque: o primeiro deles dá conta de sua irrenunciabilidade e inalienabilidade. De fato, como bem esclarece Sarlet (2008, p. 44), à medida que a dignidade da pessoa humana constitui

[...] elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado [...] não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Esta, portanto, compreendida como qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou retirada (embora possa ser violada), já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente.

O segundo aspecto fundamental da dignidade da pessoa humana remete ao seu caráter imanente, numa alusão ao fato de que a sua manifestação não exige a presença de quaisquer requisitos ou condicionantes; no dizer de Sarlet (2008, p. 46), a dignidade

[...] independe das circunstâncias concretas, já que inerente a toda e qualquer pessoa humana, visto que, em princípio, todos – mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pessoas – ainda que não se portem de forma igualmente digna nas suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmos.

Conforme muito bem esclarece esse doutrinador (SARLET, 2008, p. 46), a dignidade é uma característica intrínseca da pessoa humana, está na sua essência, como um traço característico inerente à espécie e que a distingue das demais, presente em todo e qualquer ser no qual se reconheça a condição de humano, determinante de seu valor absoluto; por isso, não é possível negar, ignorar ou por de lado a dignidade de quem quer que seja, mesmo daquelas pessoas que pratiquem as “ações mais indignas e infames”.

Longe de ser um entendimento solitário, muito pelo contrário, o pensamento de Sarlet encontra ecos, dentre outros, na concepção de José Afonso da Silva (1998, p. 93, grifo do autor), para quem a dignidade é “atributo intrínseco da pessoa humana; [...] um valor de todo ser racional, independentemente da forma como se comporte”. Afirma ainda Silva (1998, p. 93) que

[...] a Constituição tutela a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, de modo que nem mesmo um comportamento indigno priva à pessoa dos direitos fundamentais que lhe são inerentes [...].

Porque a dignidade acompanha o homem até sua morte, por ser da essência da natureza humana, é que ela não admite discriminação alguma e não estará assegurada se o indivíduo é humilhado, discriminado, perseguido ou depreciado [...].

Além disso, cumpre destacar que o entendimento acima compartilhado por esses doutrinadores também pode ser extraído dos fundamentos da Declaração Universal da ONU, de 1948, a qual, em seu art 1º, dispõe que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade” (SARLET, 2008, p. 46).

A partir do contexto aqui delineado, que pretende estabelecer de forma inconteste a dimensão da dignidade como valor absoluto da natureza humana, importa destacar que a dignidade da pessoa humana assume papel dúplice, operando simultaneamente como limitação do poder estatal (a qual busca coibir a violação da dignidade da pessoa pelo poder público) e, por outro lado, também como prestação que o poder estatal está obrigado a adimplir no sentido de tornar efetiva a dignidade (ou seja, fazer da “proteção, promoção e realização concreta de uma vida com dignidade para todos” uma “meta permanente” do Estado), prestação essa que deve se estender à comunidade em geral, à todos e à cada um. Essa condição dúplice revela, por sua vez, a dimensão defensiva (enquanto limite) e prestacional (enquanto atribuição do Estado e da comunidade) da dignidade da pessoa humana (SARLET, 2008, p. 49; p. 115).

A extensão dessa condição dúplice da dignidade pode ser alcançada a partir da precisa exposição de Sarlet (2008, p. 49-50) ao afirmar que

[...] na condição de limite da atividade dos poderes públicos, a dignidade necessariamente é algo que pertence a cada um e que não pode ser perdido ou alienado, porquanto, deixando de existir, não haveria mais limite a ser respeitado (este sendo considerado o elemento fixo e imutável da dignidade). Como tarefa (prestação) imposta ao Estado, a dignidade da pessoa reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente, quanto objetivando a promoção da dignidade, especialmente criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da dignidade, sendo portanto dependente (a dignidade) da ordem comunitária, já que é de se perquirir até que ponto é possível ao indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente, suas necessidades existenciais básicas ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado ou da comunidade (este seria, portanto, o elemento mutável da dignidade) [...].

Desdobramento do que acima se expõe é que, sempre na visão esclarecedora de Ingo Sarlet (2008, p. 115-116),

[...] todos os órgãos, funções e atividades estatais encontram-se vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-se-lhes um dever de respeito e proteção, que se exprime tanto na obrigação por parte do Estado de abster-se de ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, quanto no dever de protegê-la (a dignidade pessoal de todos os indivíduos) contra agressões oriundas de terceiros, seja qual for a procedência, vale dizer, inclusive contra agressões oriundas de outros particulares, especialmente – mas não exclusivamente – dos assim denominados poderes sociais (ou poderes privados). Assim, percebe-se, desde logo, que o princípio da dignidade da pessoa humana não apenas impõe um dever de abstenção (respeito), mas também de condutas positivas tendentes a efetivar e proteger a dignidade dos indivíduos. [...] Em outras palavras [...], o princípio da dignidade da pessoa humana impõe ao Estado, além do dever de respeito e proteção, a obrigação de promover as condições que viabilizem e removam toda sorte de obstáculos que estejam a impedir as pessoas de viverem com dignidade.

Afirmar então que a dignidade da pessoa humana ostenta a condição de princípio fundamental do Estado democrático de Direito brasileiro significa dizer que, para além de uma declaração de conteúdo ético e moral, o inciso III do art. 1º da Constituição de 1988 apresenta-se como verdadeira norma jurídico-positiva dotada de status constitucional formal e material, que confere à dignidade da pessoa humana caráter jurídico-normativo, a qual, nessa condição, possui plena eficácia na ordem constitucional pátria (SARLET, 2008, p. 74-75).

Nesse viés, reconhece-se de pronto na dignidade um caráter de princípio e também de regra jurídica. Sob a feição de princípio, a dignidade constitui “mandado de otimização” que determina que se proteja e promova a dignidade da pessoa, da forma mais abrangente possível; já a feição de regra da dignidade, portadora de “prescrições imperativas de conduta”, por sua vez, aflora no “[...] processo de ponderação que se opera no nível do princípio da dignidade, quando cotejado com outros princípios, de tal sorte que absoluta é a regra (à qual, nesta dimensão, se poderá aplicar a lógica do “tudo ou nada”), mas jamais o princípio” (SARLET, 2008, p. 76).

Uma análise mais detida de toda a dogmática que fundamenta a condição da dignidade como valor intrínseco e fundamental da pessoa humana revelará a relação visceral que existe entre ela e os direitos fundamentais, estes assim entendidos como verdadeiras “[...] explicitações da dignidade da pessoa [...]”; não é exagero por isso afirmar que “[...] em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo, ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa”. (SARLET, 2008, p. 88).

É por essa razão que, conforme afirma o próprio Sarlet (2008, p. 88-89), os direitos fundamentais são concretizações da dignidade da pessoa humana, a qual

[...] exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferirmos). Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade.

Essa forte conexão entre os direitos fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa humana tem levado doutrina e jurisprudência, majoritariamente, a “[...] referir a dignidade da pessoa não como fundamento isolado, mas vinculado a determinada norma de direito fundamental”; nessa via, os direitos fundamentais acabam por se constituir em “[...] garantias específicas da dignidade da pessoa humana, da qual são – em certo sentido – mero desdobramento”. (SARLET, 2008, p. 107).

Essa constatação, contudo, não deve levar ao entendimento de que o princípio da dignidade da pessoa humana tenha “aplicação meramente subsidiária”, uma vez que, conforme destacado anteriormente, considerando que cada direito fundamental traz em si algum conteúdo da dignidade da pessoa, a violação de um dado direito fundamental pode significar a simultânea violação do seu correspondente “conteúdo em dignidade” (SARLET, 2008, p. 107). Conforme constata Sarlet (2008, p. 107), com a lucidez que lhe é peculiar,

[...] a relação entre a dignidade e os direitos fundamentais é uma relação sui generis, visto que a dignidade da pessoa assume simultaneamente a função de elemento e medida dos direitos fundamentais, de tal sorte que, em regra, uma violação de um direito fundamental estará vinculada com uma ofensa à dignidade da pessoa.

Por fim, cumpre também destacar um aspecto que será determinante para abordagem que será feita mais a frente, quando da consideração da constitucionalidade do emprego do teleinterrogatório no processo penal; diz respeito à concepção equivocada que confere à dignidade da pessoa humana a aura de princípio absoluto, o que determinaria sempre sua prevalência em relação à todos os outros princípios constitucionais. De fato, conforme esclarece Sarlet (2008, p. 77) fundamentado no pensamento de Alexy, tal concepção é “[...] improcedente [...] já que irremediavelmente o reconhecimento de um princípio absoluto [...] contradiz a própria noção de princípios [...]”.

Convém ressaltar que essa noção de princípios a que se refere Sarlet guarda íntima relação com sua natureza como mandamentos de otimização (vide seção 1.1 supra), conceito cunhado por Alexy do qual decorrem duas características basilares dos princípios, na teoria por ele proposta, a saber: (a) não existe entre os princípios uma relação absoluta de precedência (ou, em outras palavras, não existem princípios absolutos); e (b) os princípios se referem à ações e situações que não são quantificáveis (no sentido de que não é possível atribuir um peso quantiticável aos interesses contrapostos no caso concreto de uma colisão de princípios, e que permita sopesá-los para decidir qual princípio deve prevalecer e qual deve ceder) (ALEXY, 2008, p. 97; 99).

Neste passo, é conveniente consignar que ao abordar, em sua teoria dos princípios, a questão da inexistência dos princípios absolutos, Alexy acaba inevitavelmente por se deparar com a questão da dignidade da pessoa humana, a qual sem sombra de dúvidas aparenta notório caráter de princípio absoluto, mas que em verdade não passa de uma visão imprecisa desse princípio; para a formação dessa visão imprecisa, que enxerga esse princípio como absoluto, dois fatores contribuem: (a) a dupla dimensão da norma da dignidade da pessoa humana, sendo tratada em parte como regra e em parte como princípio; e (b) a constatação de que em muitas situações o princípio da dignidade de pessoa humana efetivamente prevalece sobre os demais princípios que com ele venham a colidir (ALEXY, 2008, p. 111-112).

De fato, ao enfrentar a questão com o objetivo de desqualificar esse aparente caráter absoluto do princípio da dignidade da pessoa, Alexy conclui que

[...] é necessário que se pressuponha a existência de duas normas da dignidade humana: uma regra da dignidade humana e um princípio da dignidade humana. A relação de preferência do princípio da dignidade humana em face de outros princípios determina o conteúdo da regra da dignidade humana. Não é o princípio que é absoluto, mas a regra [...]. O princípio da dignidade humana pode ser realizado em diferentes medidas. O fato de que, dadas certas condições, ele prevalecerá com maior grau de certeza sobre outros princípios não fundamenta uma natureza absoluta desse princípio, significando apenas que, sob determinadas condições, há razões jurídico-constitucionais praticamente inafastáveis para uma relação de precedência em favor da dignidade humana. [...] Por isso, é possível dizer que a norma da dignidade humana não é um princípio absoluto. A impressão de um caráter absoluto advém, em primeiro lugar, da existência de duas normas da dignidade humana: uma regra e um princípio; além disso, essa impressão é reforçada pelo fato de que há uma série de condições sob as quais o princípio da dignidade humana prevalecerá – com grande grau de certeza – em face de todos os outros princípios (ALEXY, 2008, p. 113-114, grifo nosso).

A cristalização desse entendimento se reveste de especial importância uma vez que ele serve de sustentáculo no qual se apoiarão os pilares da fundamentação da constitucionalidade do teleinterrogatório, como se verá mais adiante neste estudo (vide seção 4.3 infra).

Portanto, essa visão equivocada fica totalmente afastada pela evidência prática de que, na esteira do pensamento de Alexy, há diversos graus de realização do princípio da dignidade da pessoa humana, e que não raro se faz necessário solucionar os conflitos que se verificam entre a dignidade de diversas pessoas, ou até mesmo entre o direito à vida e o direito à dignidade titularizados pelo mesmo sujeito de direitos (SARLET, 2008, p. 78).

Por outro lado, saliente-se que negar à dignidade a condição de princípio absoluto não significa conceder carta branca para a sua violação, não se justificando, sob esse fundamento, quaisquer tentativas de relegá-la (SARLET, 2008, p. 78). Contudo, conforme brilhantemente destaca Sarlet com extrema lucidez,

No mínimo [...] impende reconhecer que mesmo prevalecendo em face de todos os demais princípios (e regras) do ordenamento, não há como afastar [...] a necessária relativização (ou, se preferirmos, convivência harmônica) do princípio da dignidade da pessoa em homenagem à igual dignidade de todos os seres humanos (SARLET, 2008, p. 78, grifo nosso).

Finalmente, reforçando todo o ideário que vai acima exposto contra a concepção de um caráter absoluto do princípio da dignidade da pessoa humana, cumpre assinalar o pensamento do jurista lusitano Jônatas Eduardo Mendes Machado, o qual ao discorrer sobre a dignidade da pessoa, sustenta com precisão que

[...] o conceito de dignidade humana apresenta-se desvinculado de qualquer concepção mundividencial fechada e heterónoma acerca do sentido existencial e ético da vida, não podendo servir para a imposição constitucional de qualquer absolutismo valorativo (MACHADO, 2002, p. 358, grifos do autor e nosso).

Sobre o autor
José Manuel de Abreu Paulo

Advogado, Bacharel em Direito (2010) pela FDV (Faculdade de Direito de Vitória), e Engenheiro Eletricista (1983) pela UFES (Universidade Federal do Espírito Santo).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULO, José Manuel Abreu. A constitucionalidade do teleinterrogatório no processo penal brasileiro . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4030, 14 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30205. Acesso em: 23 dez. 2024.

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