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Crime sem pena

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Agenda 01/08/2002 às 00:00

Sumário: 1. Introdução; 2. O legislador e o Direito Penal; 3. Crime sem pena: parágrafo único do art. 1º, da Lei 8.137/90; 4. Crime sem pena: análise da alíneas "a", "b", "c", "g", "h", "i" e "j" do revogado art. 95, da Lei 8.212/91; 5. Conclusões

"Me faça enxergar o paraíso que não vê e o tormento que desconhece; me faça sentir todos os sabores da vida, mesmo sem ter experimentado nenhum deles!"


1. Introdução

O presente trabalho, apesar da falta de maiores pretensões doutrinárias, tem o objetivo de, inicialmente, buscar uma visão crítica do leitor a respeito da invasão do Direito Penal pelo legislador, que, com veemência, joga no lixo o princípio da intervenção mínima.

Porém, não quero apenas ficar irradiando afrontas ao legislador. Entendo que, além disto, algo a mais precisa ser demonstrado ao leitor, e é exatamente por isto que me propus a buscar dois exemplos diretos (e pejorativos) daquela invasão. Tais exemplos são a falta de preceito secundário (ou sanctio juris) para o preceito primário previsto no parágrafo único do art. 1º, da Lei 8137/90, e também para aqueles previstos nas alíneas "a", "b", "c", "g", "h", "i" e "j" do art. 95, da Lei 8212/91 (art. 95 que já foi revogado pela Lei 9983/00, mas que nem por isso deixa de causar celeuma, como veremos).

No decorrer do trabalho, então, procurarei demonstrar que o legislador, quando invade o Direito Penal com abundantes dispositivos penais materiais, não apenas desorganiza o sistema penal brasileiro, sem maiores conseqüências, mas principalmente possibilita várias conseqüências de ordem prática que altera, e muito, o caminhar de um processo, de um inquérito policial e até mesmo chegando, involuntariamente, a causar impunidade.


2. O legislador e o Direito Penal

O título deste despretensioso trabalho bem que poderia ser intitulado de "A impropriedade da legislação penal", ou "Direito Penal x Legislador", ou, em um tom mais vocativo, "meu Deus, socorro!".

Muito se tem comentado, com razão, sobre as investidas a esmo do nosso legislador pelo Direito Penal. Realmente, não podemos negar que existe exagero, mas agora que o mesmo descobriu a "galinha dos ovos de ouro", ficará bastante difícil fazê-lo retroceder neste intento já sedimentado.

Convenhamos, até mesmo o nobre leitor, se descobrir uma árvore com frutos cifrados, terá dificuldade em se desvencilhar do porto seguro encontrado. Portanto, não vamos ser assim tão rigorosos com nossos legisladores, afinal, o Direito Penal abarca o estado de necessidade, e tal estado está bem caracterizado, em muitos casos, na utilização daquela "galinha dos ovos de ouro", diante da necessidade da reeleição.

Desculpe-me pelas divagações, mas o leitor tem que concordar comigo: torna-se quase impossível deixar de comentar o momento histórico que estamos passando, em relação à verdadeira contenda Direito Penal x Legislador. É uma relação de amor e ódio: aquele, com ódio deste, e este, amando aquele.

Como de tudo neste mundo podemos retirar algo de bom, tenho que admitir que esta fase é maravilhosa para os estudantes, sejam eles avós ou netos do Direito Penal. Maravilhosa porque o legislador dá ensanchas a vários escólios de competentes doutrinadores, levando o atento estudante a perceber a importância técnica e, mais que isto, política, do Direito Penal.

Lembro de alguns casos daquela investida a esmo, que ainda pairam no ar: a) abundância de legislação penal material [1]; b) utilização das expressões "sabe" e "deve saber"2; c) ação penal sem crime3; d) ferimento à adequação social no art. 337-A, I, do CP, com redação dada pela Lei nº 9.983, de 14.7.20004; e) combinação do art. 14 da Lei 6368/76 com o art. 8º da Lei dos Crimes Hediondos5; f) tipo suicida na Lei 9437/976; g) atecnia no Código de Trânsito Nacional7; h) maneira demagógica de elaboração da Lei dos Crimes Hediondos8; i) pena sem crime9, entre tantos outros exemplos.

Além das "trapalhadas" legislativas, é preciso dizer que o referido acúmulo de tipos penais no nosso ordenamento jurídico ofende não só o princípio da intervenção mínima, mas a todo a estrutura e razão de ser do Direito Penal, daí peço vênia aos zelosos e responsáveis legisladores, que sei presentes no Congresso Nacional, para me sentir à vontade e criticar o que hoje está instalado.

Pretendo nunca ser regressivo, e muito menos conservador10, e até desejo, sempre, que novas leis penais surjam, não de forma banalizada, mas sim como uma maneira de minimizar a parêmia legislativa de que tudo se resolve pelo Direito Penal, até, quem sabe, a fome...

Realmente, se leis penais em abundância existem, elas acabam produzindo banalização de tudo quanto é protegido por elas, e as objetividades jurídicas caem no ridículo, como se não fossem nada de mais para a sociedade. O homem, ser pensante e influenciável, vivendo sob o pálio do Estado de Direito, onde o sistema romanístico é a voga maior, só passará a hostilizar determinado comportamento se o legislador, antes de elevar à condição de crime, passe a verificar, em tudo e por tudo, até que ponto vai a ojeriza social sobre determinados comportamentos. Esta análise, se não frívola, tangencia a hipocrisia, servindo, então, de paradigma para todo e qualquer pessoa, de modo que o comportamento do legislador, não raras vezes, merece maior repulsa do que aqueles que violam suas insanas leis.

Por estes motivos que as leis penais criadas a granel são motivo de comentários espinhosos de juristas, e, o que é muito pior, caem no gracejo popular, porque o homem comum não sabe até onde vai o que é moral ou imoral para a lei, ficando vagando na imensidão de dispositivos penais que podem, a qualquer momento, fazê-lo preso em flagrante.

Infeliz daquele que imagina um Estado de Direito cujas leis são, apenas e tão somente, retrato da sociedade, pois a lei, no Estado de Direito, não é criada só para retratar e englobar condutas já existentes na sociedade; é também criada para forjar determinados comportamentos idealizados, fazendo mudar aquelas já existentes. Por isso, não pode o legislador dizer que eles próprios são reflexos da sociedade, se eximindo de toda e qualquer responsabilidade pelas leis produzidas11. É dizer: a função principal do Estado de Direito é ser o efeito da sociedade, pois esta é causa imediata, já que a lei é a encarnação da querença popular. Porém, a lei, no Estado de Direito, deve ser também causa da modificação da sociedade, principalmente a lei penal material, devido a sua implícita prevenção geral, reforçando a idéia de que, perdendo ela tal prevenção, o próprio Direito Penal perde sua razão de ser.

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3. Crime sem pena: parágrafo único do art. 1º, da Lei 8137/90

Gostaria de incitar o leitor a, junto comigo, analisar mais um caso em que o legislador atrapalhou-se na elaboração da norma penal. Porém, neste caso, necessário uma interpretação mais acurada da atecnia legislativa para, enfim, se chegar à conclusão de que houve um crime sem a pena respectiva. Trata-se do parágrafo único do art. 1º, da famosa Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária12. Em um primeiro momento, pode-se pensar que estou exagerando, ou "forçando a barra", quando da interpretação do dispositivo. Porém, com mais acuidade, veremos se o desregramento é meu ou do legislador.

O parágrafo único referido diz assim: "A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez dias), que poderá ser convertido em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V". O inciso V, por sua vez, está assim redigido: "negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação".

Pode ser observado que a pena é de dois a cinco anos de reclusão, e multa, e está localizada acima do parágrafo único, estabelecida que foi para os incisos do art. 1º, e não para o parágrafo único, daí a razão do legislador dizer, de forma estranha e até jocosa, que o crime que ele definiu na verdade não é o crime que ele definiu, e sim o crime que ele definiu anteriormente. É dizer: esta conduta que estou tipificando na verdade trata-se daquela outra que tipifiquei anteriormente. Mais uma tragédia legislativa, como o próprio leitor deverá estar pensando, isto sem comentar a ilegítima instauração de uma norma penal aberta, ao possibilitar ao administrador controlar a extensão e o conteúdo da norma penal. Porém, esta tragédia legislativa não fica apenas na atecnia, sem qualquer conseqüência prática, pois, efetivamente, reitero que no caso houve uma tipificação sem a devida penalização.

Luiz Otávio de Oliveira Rocha, interpretando o parágrafo único, no artigo O tipo penal do parágrafo único do artigo 1º da Lei 8137/90: uma interpretação à luz dos princípios da legalidade e da proporcionalidade, in www.direitocriminal.com.br, 18.09.2001, chega à seguinte conclusão:

"Aplicadas essas proposições à questão que aqui examinamos, aflora que o tipo penal do parágrafo único em exame somente se encaixa no ordenamento jurídico vigente se interpretado com as seguintes limitações: a) a conduta que pode configurar infração é somente aquela que deriva da conjugação do seu texto com o do inciso V – como determina a norma -, isto é, a ‘falta de atendimento a exigência da fiscalização’ que possui relevância penal é somente a que se prende ao fornecimento de notas fiscais ou documentos equivalentes (cupons fiscais e assemelhados); e b) a pena aplicável não pode ser aquela prevista para os crimes materiais dos incisos I a V do artigo 1º, devendo-se aplicar, segundo o critério da proporcionalidade, a pena prevista para o delito análogo, o art. 330 do C. Penal."

O autor chega à conclusão porque os crimes previstos no art. 1º são materiais (exigem a supressão ou redução de tributo, ou contribuição social e qualquer acessório), além do que a doutrina entende que o parágrafo único é um tipo autônomo de desobediência13, cuja objetividade jurídica não é a mesma do art. 1º e seus incisos, já que "não se protege o crédito tributário e sim a dignidade da administração pública e o respeito às ordens legais emanadas de seus agentes", no dizer de Pedro Roberto Decomain (Crimes contra ordem tributária, Obra Jurídica, Florianópolis, 1994, p. 88), inclusive com previsão no Código Tributário Nacional (arts. 195 a 200) da obrigação de facilitar aos agentes fiscais o acesso a documentos necessários à verificação do cumprimento das leis tributárias. Citando também Andréas Eisele (Crimes contra a ordem tributária, Dialética, SP, 1998, 141), diz que não se investiga a respeito dos elementos constitutivos dos tipos previstos nos incisos do art. 1º, que são materiais, já que o parágrafo único é crime formal, "que se consuma com o desatendimento à exigência da autoridade fiscal, independentemente da verificação naturalística de qualquer resultado, como, por exemplo, a vantagem patrimonial do sujeito ativo ou terceiro e prejuízo econômico do Estado, como ocorre no ‘caput’ do art. 1º".

Como o parágrafo único fez menção expressa ao inciso V, e na lei não contém palavras supérfluas (Carlos Maxiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Livraria Freitas Bastos AS, 8ª edição, 1965, p. 122), é necessário relacionar as duas normas penais para se entender que a desobediência só existirá caso a exigência for de nota fiscal ou documento equivalente, devido a vinculação expressa das duas normas feita pela própria lei. Tal interpretação, assim, estaria de acordo com o princípio da fragmentariedade, uma vez que o Direito Penal, por ser a mais grave intervenção estatal no domínio da vida privada, "não deve ocupar-se da proteção de todos os bens jurídicos, senão daqueles considerados mais graves em cada segmento da atividade humana", daí a razão porque qualquer recusa à exigência das autoridades fiscais não deve ser levada ao nível de crime, e tão somente a recusa de notas fiscais ou documentos equivalentes (cupons fiscais impressos mecanograficamente), e também de acordo com o princípio da legalidade.

O autor, assim, alertando que a objetividade jurídica protegida no art. 1º é diferente daquela do parágrafo único, acaba notando que a pena para desobediência, no Código Penal, é de 15 dias a 6 meses de detenção, e multa, e a prevista na Lei 8137/90 é de 2 a 5 anos de reclusão e multa, mesmo sendo a intenção do Código Penal muito mais ampla, pois visa proteger a administração como um todo, inclusive as ordens emanadas do Poder Judiciário. Por isso é que, finalmente, não pode o crime do parágrafo único ser punido com as mesmas penas do art. 1º, crime muito mais grave, pois feriria o princípio da proporcionalidade, que tem assento expresso e implícito na Constituição Federal14, devendo-se aplicar as penas do art. 330 do CP.

Apesar de muito bem fundamentada sua posição, concordo até o ponto que impede a penalização do crime do parágrafo único pela pena prevista no final dos incisos, e considera o crime do parágrafo único formal e autônomo. O mesmo autor faz questão de dizer algo interessante, que, no meu ponto de vista, acaba por contrariar a sua conclusão final. Cita Hans-Heinrich Jescheck, Damásio Evangelista de Jesus e Antonio Garcia-Pablos de Molina para dizer que, "... embora o Direito Penal admita a formulação de leis penais em branco, ´o legislador deve estabelecer inequivocadamente a cominação legal, assim como descrever com tal precisão e conteúdo a finalidade e o alcance da autorização (dada a instância que deve gerar a norma complementar – acrescentamos), que o destinatário da lei penal possa extrair dela mesma os pressupostos de punibilidade e a classe de pena correspondente, pois do contrário não se respeitaria o princípio da determinação ‘legal’, que é um dos consectários do princípio da legalidade" (grifei). Ao final do seu artigo, como se viu, o autor entende melhor compatibilizar o preceito primário do parágrafo único do art. 1º, da Lei 8137/90, com o preceito secundário do art. 330, do Código Penal. Porém, como ele mesmo fez notar, é impossível que uma lei penal venha a tipificar uma conduta, deixe de efetuar a pena abstrata para tal conduta, e a doutrina, em um esforço incomensurável, venha utilizar a pena já prevista para outro crime sem qualquer teleologia entre as leis. A lei penal deverá, se não quiser ferir o princípio da legalidade, dizer a conduta proibida (norma implícita) e puni-la exemplarmente, a fim da prevenção geral, já que não há pena sem prévia cominação legal, pois "o legislador deve estabelecer inequivocadamente a cominação legal".

A primeira impressão que tive foi a de que, para o caso, deveria ser dada a mesma solução que o Supremo Tribunal Federal15 e o Superior Tribunal de Justiça16 deram para o caso da compatibilidade do art. 14 da Lei 6368/76 com o art. 8º da Lei 8072/90, já citado. Porém, é preciso analisar o caso cum granum salis. No caso das Leis 6368/76 e 8072/90 existe a mesma ratio, inclusive com citação expressa nas Leis que se tratava do crime de tráfico de entorpecentes, daí a possibilidade vista pelo STF e pelo STJ de compatibilizar os referidos dispositivos para fazer brotar um crime previsto em uma Lei com uma pena prevista em outra Lei (o que, mesmo assim, e com razão, é veementemente combatido pela doutrina17).

Entendo impossível compatibilizar o preceito primário do parágrafo único do art. 1º, da Lei 8137/90, cujos objetivos são específicos e distintos do art. 330, do Código Penal, com as penas daquele art. 330. Inexiste possibilidade de compatibilização, diante da mens legis específica e distinta para cada norma penal analisada. Daí o erro em se pensar que pode subsistir o tipo do parágrafo único com a pena do art. 330 do CP. No caso do art. 14 da Lei 6368/76 com o art. 8º da Lei 8072/90, este último artigo entrou no mundo jurídico justamente fazendo menção expressa ao crime de tráfico de entorpecentes, cuja descrição já vinha sendo feita pela lei específica mencionada, o que, absolutamente, não ocorreu no caso em análise.

Ademais, como o próprio Luiz Otávio destacou, outras leis tipificam e punem a desobediência, em um mesmo contexto legal e racional, como o art. 10, da Lei 7347/85, art. 11, II, Lei 6.091/74 e Lei 7492/86, art. 12. O legislador, nestes casos, descreveu a conduta e puniu, no mesmo contexto, de modo que não deixou à margem do intérprete qualquer possibilidade de conciliar preceito primário com preceito secundário de leis diferentes com diferentes objetividades.

Somente dentro de um sistema sem garantias individuais é que se pode permitir ao intérprete completar o preceito primário de uma lei com o preceito secundário de outra, com objetividades jurídicas diferentes e sem menção expressa de uma à outra. Como o sistema brasileiro é caracterizado pelas garantias individuais, como a legalidade e a proporcionalidade, amplamente aplicáveis à tese que proponho, a pouca intuição que me resta afasta qualquer possibilidade de compatibilizar o parágrafo único do art. 1º da Lei 8137/90 com a pena do art. 330 do Código Penal, assim como permitir que a desobediência tributária seja despropositadamente punida com 2 a 5 anos de reclusão, e multa (mesma pena ou até maior que alguns crimes do Código Penal cuja potência lesiva é muito superior à mera desobediência, como difusão de doença ou praga – CP, art. 259, rapto violento ou mediante fraude – CP, art. 219, lesão corporal grave – CP, art. 129, §1º etc.).

Lembrou bem Ricardo Antunes Andreucci, in Direito Penal e Criação Judicial, 1989, RT, p. 14, "A conclusão representa, em tese, um princípio fundamental da civilização jurídica, inserida, como destaca Petrocelli, para garantia da liberdade dos cidadãos e da certeza do Direito, abrangendo o conceito de crime em seus elementos estruturais, objetivos e subjetivos, assim como a pena. Daí a relevância do tipo penal, em suas funções de garantia e de fundamentação, da culpabilidade e da individualização das sanções criminais". (grifo sem originalidade). Não pode haver desvinculação, no princípio da legalidade estrita para as normas incriminadoras, do preceito primário com o secundário, e Julio Fabrrini Mirabete lembrou que "O postulado básico inclui também, aliás, o princípio da anterioridade da lei penal no relativo ao crime e à pena. Somente poderá ser aplicada ao criminoso pena que esteja prevista anteriormente na lei como aplicável ao autor do crime praticado. Trata-se, pois, de dupla garantia, de ordem criminal (nullum crimen sine praevia lege) e penal (nulla poena sine preaevia lege)" (grifei) (Manual de Direito Penal, Parte Geral, Vol. 1, Atlas, 2000, p. 56). Por isso mesmo que, tanto no seu sentido amplo, como no estrito, norma penal sempre está ligada à sanção penal, salvo aquelas que não descrevem condutas criminosas, daí dizer que "em toda norma penal há duas partes distintas: o preceito e a sanção" (Damásio Evangelista de Jesus, Direito Penal, Vol. 1, Saraiva, 1993, pp. 10 e 11).

Ora, quando a Constituição brasileira não se contenta com a legalidade geral, prevista no art. 5º, II, e estabelece a legalidade estrita em matéria penal, ao dizer que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal" (5º, XXXIX), obviamente que teve a intenção de tornar ainda mais forte a premissa constitucional da legalidade, tanto é verdade que atualmente tal princípio vem sendo desdobrado na necessidade da norma penal ser certa, taxativa e determinada. A intenção da Constituição passa, inevitavelmente, pelo sentimento da população cristalizado na tipificação de uma conduta e sua imediata reprimenda, justamente para abarcar a repulsa social a determinado fato. Daí ser extremamente necessário que o legislador, dentro de um mesmo sentimento, estabeleça o crime e puna-o, imediatamente, na mesma norma penal, ferindo o espírito constitucional o apanhado de leis para formular uma norma penal completa, com preceito primário e secundário, tendo-se em vista que fará juntar dois sentimentos repulsivos com história e contexto diferentes, salvo a menção absolutamente expressa de uma lei à outra.

Também não se pode esquecer que, em se tratando de normas penais incriminadoras, a analogia, a interpretação extensiva e analógica é limitada, quando a intenção é prejudicar. No caso, a conciliação entre o parágrafo único e o preceito primário do art. 330 do Código Penal é uma forma de prejudicar aquele que não atende a exigência da autoridade fiscal, considerando que não é possível aplicar a pena de 2 a 5 anos de reclusão, e multa, do art. 1º da Lei 8137/90.

Portanto, a melhor exegese é a que entende que o legislador tipificou uma conduta, mas não estipulou uma pena... Criou um crime sem pena!

Claro que, na prática, se houver uma denúncia narrando todas as elementares do parágrafo único do art. 1º, da Lei 8137/90, o juiz poderá, utilizando-se do art. 383 do Código de Processo Penal, e considerando que a defesa arrosta a imputação, não a classificação jurídica dada na denúncia, entender que se trata de crime de desobediência previsto no art. 330, do Código Penal, e não a "desobediência tributária", e acabar aplicando as penas do art. 330, se as elementares deste estiverem provadas nos autos. É preciso lembrar que o crime de desobediência do Código Penal pode ser caracterizado se a ordem emanar de funcionário público, mas o crime do parágrafo único do art. 1º, da Lei 8137/90, a ordem deve emanar de autoridade. Porém, o menos não impede o mais, de modo que se pode caracterizar o crime do parágrafo único desrespeitar ordem de autoridade, com muito maior razão estará caracterizado o art. 330 do Código Penal.

Malgrado isso, se o Ministério Público denunciar os fatos, descrevendo todos os elementos do parágrafo único do art. 1º referido, e classificar no mesmo dispositivo, o juiz deve, por obrigação constitucional (art. 93, IX, CF/88), fundamentar a sentença demonstrando que estão presentes as elementares do art. 330 do Código Penal. Não pode dizer que estão provados todos os elementos do parágrafo único do art. 1º e, sucessivamente, condenar no crime do art. 330, do Código Penal. Tem que explicar, obviamente, os motivos probatórios do encaixe da conduta no art. 330, e não no parágrafo único do art. 1º, sob pena de ser cassada a sentença em grau de recurso. A sentença do juiz, se bem fundamentada, não deve ser cassada se a classificação jurídica for errada, e sim consertada no tribunal "ad quem", mas se na fundamentação não forem imiscuídas as elementares do art. 330, e sim as do parágrafo único, deverá ser anulada.

Porém, nada impede que o juiz, no juízo de prelibação junto à denúncia com a classificação jurídica baseada no parágrafo único do art. 1º da Lei 8137/90, com a pena do mesmo art. 1º, rejeite18 a denúncia, isto se o "Parquet", desde logo, não pedir o arquivamento face à evidente falta de justa causa para a instauração da ação penal19.

Finalmente, resta dizer que tenho plena consciência da necessidade de respeitar a sensível tripartição dos poderes, daí o esforço maior para manter uma lei, quando da sua interpretação, haja vista que a nossa Constituição deu ao legislador a responsabilidade maior de efetivar o seu intento. Por isto, uma lei deverá sempre ser analisada de forma conservadora (não de forma regressiva), tanto no aspecto da constitucionalidade (já que a reserva de plenário do art. 97 faz presumir constitucional toda lei) como no aspecto da harmonia dos poderes. Esse respeito e essa forma conservadora não devem, porém, extrapolar os limites do razoável, principalmente em se tratando de normas penais incriminadoras, e talvez a extrapolação dos legisladores percebida atualmente seja causada, junto com outras coisas, também pela timidez dos operadores do Direito, que acabam, com tal pusilanimidade, não intimidando a veleidade legislativa.

Por isso é que, se existem no texto constitucional brasileiro os princípios da proporcionalidade e da legalidade, como de fato existem justamente para dar garantias ao cidadão, aceitar a idéia de que o parágrafo único do art. 1º da Lei 8137/90 instituiu um crime sem a respectiva pena passa a ser mais uma questão de coragem do que propriamente de técnica jurídica.

Sobre o autor
Bruno Cezar da Luz Pontes

analista processual do Ministério Público Federal de Goiás, advogado, pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PONTES, Bruno Cezar Luz. Crime sem pena. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3044. Acesso em: 26 dez. 2024.

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