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O avanço da mediação na Itália

Agenda 02/08/2014 às 12:22

Nos últimos anos, o legislador italiano criou uma série de normas que reorganizou as Câmaras de Comércio e inseriu a mediação como serviço a ser oferecido por elas, além de incentivar sua utilização.

As formas alternativas de resolução de conflitos, mais conhecidas como ADR (Alternative Dispute Resolution), tiveram um grande avanço na Itália nos últimos anos.

Seguindo a tendência dos países anglo-saxões, nos quais os instrumentos de ADR já estão inseridos na cultura local, e colocando em prática as decisões da União Europeia que incentivam o uso e a divulgação de métodos ADR, sobretudo para a resolução de conflitos que envolvem partes de Estados membros distintos, a Itália introduziu em seu ordenamento uma série de normas que estimula, regulamenta e fiscaliza o uso de tais instrumentos.

As Câmaras de Comércio têm desenvolvido um importante papel na divulgação dessas técnicas e na conscientização da sociedade a respeito delas, contribuindo de modo significativo para a mudança da cultura do contencioso, tão enraizada entre os profissionais do Direito.

  As formas alternativas de resolução de conflitos foram vistas, em um primeiro momento pelos italianos, como uma solução para os problemas enfrentados pelo Judiciário, decorrentes do acúmulo de processos e da lentidão do procedimento judicial. Contudo, com o passar dos anos, elas tem foram reconhecidas como uma maneira mais eficaz de solucionar litígios e com grandes benefícios para as partes envolvidas.

  O  instituto foi introduzido aos poucos, por meio de leis que fizeram a previsão de sua aplicação em diversos setores, estabelecendo regras nem sempre alinhadas e seguindo as necessidades e propensões do momento.

A mediação societária, por exemplo, recebeu uma atenção especial do legislador, que criou uma modalidade específica de mediação, com regras e critérios especiais de aplicação.  Na mesma linha, a Lei 69/2009 e posteriormente o Decreto  Legislativo n. 28 de 2010 também regulamentaram a mediação judicial e extrajudicial, seguindo orientações da União Europeia.


A Mediação na União Europeia

A União Europeia há muitos anos tem incentivado o uso da mediação como alternativa aos processos judiciais. O memorandum da Comissão Europeia apresentado ao conselho em 1985[1] já afirmava que a efetividade das tutelas conferidas aos consumidores dependia, fortemente, da facilidade e velocidade do acesso à Justiça. Tal proposta foi acolhida pelo Conselho da União Europeia, por meio da Resolução de 25 de junho de 1987, na qual foi reconhecida a importância do tratamento adequado das reclamações relacionadas aos direitos do consumidor e do interesse em fornecer meios apropriados de acesso à Justiça.

Com o mesmo intuito, em 16 de novembro de 1993, foi publicado, em Bruxelas, do Livro Verde, que abordava o acesso dos consumidores à Justiça e a resolução das controvérsias em matéria de consumo na esfera do mercado europeu. Tal Livro foi elaborado após um estudo feito por especialistas pertencentes a todos os países da União Europeia e mencionava os procedimentos de ADR como instrumentos alternativos aos métodos tradicionais de resolução das controvérsias, capazes de facilitar o alcance dos consumidores aos seus direitos.

A Recomendação n. 98/257/CE de 30 de março de 1998 instituiu os princípios aplicáveis aos procedimentos de resolução de controvérsias extrajudiciais em matéria de direitos do consumidor. Tais fundamentos, ligados sobretudo ao órgão responsável pela administração do procedimento, estabeleciam que este deveria desenvolver suas atividades com independência, transparência, respeito ao princípio do contraditório e à legislação do Estado membro pertinente à matéria em discussão, além de garantir o direito de representação das partes. Também determinava que o procedimento deveria ser tendencialmente gratuito para o consumidor, ter uma duração breve e que as decisões do órgão responsável pela administração do procedimento fossem vinculantes para as partes somente se estas o elegessem após o surgimento da controvérsia.

A Recomendação 2001/310/CE, por sua vez, trouxe os princípios aplicáveis a todos os Órgãos terceirizados responsáveis pelos procedimentos de resolução extrajudiciais das controvérsias que dizem respeito aos direitos do consumidor: imparcialidade, transparência, eficácia e equidade.

Em maio de 2001, o Conselho Europeu, por meio da decisão n. 2001/470/CE, instituiu uma rede judiciária europeia em matéria civil e comercial e, diante de tal perspectiva, foram criados organismos que oferecem  aos consumidores de produtos e serviços adquiridos via Internet, a possibilidade de utilização dos métodos alternativos para resolução de controvérsias internacionais, por intermédio de centros nacionais de informação e assistência.

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Em 19 de abril de 2002, a Comissão Europeia publicou um novo Livro Verde, desta vez, com a ampliação da visão dos meios alternativos de resolução das controvérsias e com a aplicação aos conflitos em matéria civil e comercial. Tal publicação, que fomentou o debate na Itália sobre tema da mediação extrajudicial, tinha como  seus principais aspectos a flexibilidade e a não obrigatoriedade dos métodos de ADR e abordou temas controversos como a efetividade de uma mediação iniciada por determinação de uma cláusula compromissória inserida em um contrato e a possibilidade de sucesso dessas mediações, uma vez que o bom andamento do procedimento depende, justamente, da vontade e da colaboração das partes.

O Livro tratou também de outros temas de extrema relevância, como a suspensão da prescrição no curso do procedimento de mediação e a executividade do acordo, sugerindo modificações nas legislações internas dos Estados membros e a previsão de procedimentos específicos para homologação dos acordos, com o intuito de uniformizar o seu conceito e a sua eficácia jurídica entre os Estados membros.

Posteriormente, a Comissão do Parlamento Europeu emitiu uma Diretiva de n. 2008/52/CE, com o objetivo de facilitar o acesso à Justiça, promovendo a utilização da mediação em matéria civil e comercial. Entre os principais temas abordados na Diretiva, estavam: a possibilidade de o juiz sugerir, quando oportuno, uma tentativa de mediação entre as partes; a necessidade e a importância da formação dos mediadores; o dever de controle dos Estados membros nesse setor e o caráter fundamental da confidencialidade dos procedimentos.

O objetivo de tal Diretiva foi priorizar um sistema que promovesse o acesso a informação sobre o que é mediação, suas vantagens,  facilitar acesso à justiça em conflitos cross-border. Ela esclareceu pontos importantíssimos da mediação judicial, ao explicar a diferença entre a tentativa de mediação efetuada pelo juiz ao longo do processo, daquela realizada com um mediador capacitado. Além disso, houve também uma preocupação com a execução dos acordos, tendo sido estabelecido que os Estados deverão garantir  “com explícito consenso das partes”,  que haverá possibilidade de executar o acordo.

A Itália, seguindo a orientação de tal Diretiva, introduziu algumas mudanças legislativas, de modo a incentivar o uso da mediação, conforme veremos a seguir.


A Mediação no ordenamento jurídico italiano

A mediação judicial já estava prevista no Código de Processo Civil de 1886 e foi mantida pelo atual código, de 1940, que estipula, em seu art. 183, I, a tentativa de mediação no curso do processo.

Nos últimos anos, o legislador italiano criou uma série de normas que reorganizou as Câmaras de Comércio e inseriu a mediação como serviço a ser oferecido por elas, além de  incentivar sua utilização, ao disciplinar determinados setores como energia elétrica e gás (Lei 481/1995), contratos de terceirização de serviços (Lei 281/1998), turismo (Lei 135/2001), direito societário (Decreto Legislativo 5/2003), comércio eletrônico (Lei 70/2003), franchising (129/2004).

  Merecem ser citadas também algumas iniciativas de associações que representam importantes segmentos de produção na Itália, como a ABI (Associação dos bancos italianos) e a ANIA (Associação nacional das empresas de seguro) e grandes empresas como a Telecom Itália e Poste Italiane, que implementaram mecanismos alternativos de resolução das controvérsias para oferecer esses serviços aos consumidores. Tais iniciativas mostram, claramente, a tendência das empresas a buscarem formas alternativas que reduzam os custos relacionados ao contencioso de massa e melhorem a sua imagem no mercado. [2]

  A mais recente inovação a respeito de mediação na Itália foi introduzida pela Lei 69/2009, que entrou em vigor em 04 de junho de 2009, em seu art. 60, delegou  a regulamentação da mediação em matéria civil e comercial ao Governo, que  teria o prazo de 06 (seis) meses, contados a partir da entrada em vigor da lei, para disciplinar uma série de questões estabelecida no citado artigo.

Entre os principais pontos que deveriam ser determinados pelo legislador delegado, estavam os critérios para registro dos órgãos interessados em oferecer o serviço de mediação, assim como os critérios para estabelecer os honorários dos mediadores, de modo que  guardassem uma relação com a obtenção ou não do acordo. Além disso, caberia ao Governo prever a possibilidade de que, para determinadas matérias, fosse facultada a instituição de centros de mediação dentro dos Conselhos de Ordens de classes profissionais e que  os órgãos de mediação devidamente registrados pudessem oferecer o serviço também por meio de procedimentos eletrônicos. Deveria, ainda, prever a duração máxima de quatro meses do procedimento de mediação, garantir a neutralidade, independência e imparcialidade do mediador, a executividade do acordo, a possibilidade de o juiz atribuir as custas processuais segundo a participação das partes no processo de mediação e o dever do advogado de informar ao seu cliente a possibilidade de utilização da mediação.

O Decreto Legislativo disciplinou a matéria delegada e estabeleceu uma série de pontos, dentre os quais muitos polêmicos, sobre o procedimento de mediação judicial e extrajudicial.

          Em 28 de outubro de 2009 o Governo aprovou o texto do Decreto Legislativo n. 28 de 4 de março de 2010, que disciplinou a matéria delegada pela Lei 69 de 2009, regulamentou o procedimento de mediação, estabeleceu parâmetros e obrigações relacionadas à matéria, seguindo os princípios da mediação societária, incentivando a cultura do diálogo e a utilização de instituições (públicas ou privadas) especializadas na administração do procedimento.

A principal novidade trazida pelo Decreto foi a chamada mediação obrigatória. A partir de março de 2011, tornou-se obrigatória a tentativa de mediação antes do inicio do processo judicial para uma série de matérias. A tentativa passou a ser condição de procedibilidade em matérias como locação, condomínio, ressarcimento de dano de responsabilidade médica, entre outras.

Para validade de tal tentativa, o Decreto criou alguns requisitos, como duração máxima de 4 (quatro) meses do procedimento de mediação, gratuidade para as partes sem condições econômicas de arcar com as despesas e dispensa da tentativa nos casos de tutelas de urgência e medidas cautelares, que podem ser propostas sem a necessidade de prévia tentativa de mediação.

Outro aspecto inovador do Decreto foi a previsão da obrigação do advogado de informar seu cliente sobre a possibilidade de submeter a controvérsia a uma tentativa de mediação. Tal informação deve ser efetuada por escrito, para comprovação em futuro processo judicial e a falta dela pode acarretar a nulidade do contrato de honorários.

Após a entrada em vigor da obrigatoriedade prevista pelo Decreto, inúmeras foram as manifestações contrárias ao procedimento previsto, sobretudo por parte dos advogados.  O centros de Mediação já existentes precisaram se adaptar rapidamente a enorme demanda decorrente da obrigatoriedade e novos centros surgiram para dar vasão a grande quantidade de novos processos de mediação.

Após mais de um ano de vigência, a situação parecia estar controlada e, aos poucos, juristas e partes estavam se adaptando à nova realidade e reconhecendo os benefícios da mediação, mesmo com a tentativa obrigatória.

 Contudo, a trajetória da Mediação sofreu novamente alterações repentinas quando, em recente decisão, a Corte Costituzionale italiana declarou a inconstitucionalidade do Decreto Legislativo n. 28, de 4 de março de 2010, por excesso de delega legislativa. A noticia inicialmente foi comunicada por meio de um comunicado de imprensa da Corte, informando o seu posicionamento, sem contudo publicar o texto da decisão.  Após alguns dias de espera, em 6 de dezembro de 2012, finalmente a decisão foi divulgada em sua íntegra e constatou-se que a argumentação da Corte estava baseada no fato de que o Decreto excedeu a esfera de sua competência quando estabeleceu a obrigatoriedade da mediação.  Além disso, entendeu a Corte que a finalidade inspiradora do legislador era identificar medidas alternativas para resolução de conflitos civis e comerciais, com o objetivo também de reduzir o contencioso judicial, sendo que a obrigatoriedade da medição não está na ratio do instituto, devendo portanto ser facultativa.

  A repercussão dessa decisão levou à diminuição dos casos de mediação no primeiro semestre de 2013 e a abertura de grandes debates a respeito do tema. O  clima de incerteza quanto a utilização da mediação e a insegurança em relação aos procedimentos já em andamento acabaram por abalar a credibilidade do instituto.

Todavia, em agosto de 2013  foram aprovadas novas modificações no Decreto Legislativo n. 28 de 2010 que sanaram as irregularidades anteriores e restabeleceram a obrigatoriedade da tentativa de mediação, que a partir de 20 de setembro de 2013 voltou a ser aplicada. A decisão novamente surpreendeu e deixou clara a intenção de diminuir o número de processos judiciais, utilizando-se a mediação como um instrumento para tal fim.

Com tantas alterações normativas em tão pouco tempo, o tema da obrigatoriedade da tentativa de mediação continua sendo amplamente debatido e representa uma das principais críticas dos advogados ao Decreto. Outras questões como a participação dos advogados no procedimento de mediação, a remuneração dos mediadores e dos Centros de Mediação também são objeto de debates e poderão sofrer novas alterações com o tempo.

Ainda é cedo para avaliar qual será a repercussão desta nova obrigatoriedade da tentativa de mediação, mas a expectativa das Câmaras de Comércio e dos Centros que administram os procedimentos é que o número de mediações volte a crescer rapidamente.         


Notas

[1] “La protezione giuridica dei consumatori”, suppl. 2/85 do Boletim Comunidade. Europeia. Luxemburgo, 1985.

[2] GIUDICE, Giovanni Nicola, DI RAGO Gianfranco e CICOGNA Michelangelo. La Conciliazione Commerciale – Manuale teórico-pratico. Italia: Maggioli, 2004. p.54-70.

Sobre o autor
Veronica Beer

Advogada, Mediadora e Professora de Mediação, Arbitragem e Direito Internacional Público e Privado da ESAMC Campinas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BEER, Veronica. O avanço da mediação na Itália. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4049, 2 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30577. Acesso em: 22 nov. 2024.

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