IV- Análise dos argumentos das partes envolvidas
Os EUA sustentaram que o Revenue Act era uma lei antitruste e o seu objetivo, com essa atitude, era justamente caracterizar a incompetência do painel para analisar a questão face às normas apontadas pela UE na fase de consultas. Para reforçar tal idéia, os Estados Unidos acentuam que o próprio lugar em que se encontra o Revenue Act no U.S. Code consiste uma forte evidência de que se trata de uma legislação antitruste. Inclusive, quando o Revenue Act foi incorporado ao U.S. Code, ele foi disposto no Título XV, intitulado Commerce and Trade. Igualmente situado no Título XV encontra-se o Sherman Act, o Clayton Act e o Federal Trade Commision Act, que são todas leis antitruste. Em contraste, as leis antidumping norte-americanas estão todas codificadas no Título XIX, intitulado Customs Duties. Ademais, deve-se notar que na terminologia norte-americana, dumping não representa uma competição ilegal.
Também foi dito que a Suprema Corte dos EUA, órgão máximo do Poder Judiciário, responsável pela última palavra na interpretação e aplicação das leis no país, no caso United States v. Cooper Corp. (17), reconheceu que o Revenue Act era um estatuto antitruste. Neste caso, a Suprema Corte expressamente reconheceu o U.S. Revenue Act of 1916 como um ato suplementar ao Sherman Act, a primeira lei antitruste dos EUA.
Por sua vez, a UE sustentou que, na medida em que o Revenue Act elege o mesmo critério objetivo que o Art. VI do GATT 1994, torna-se irrelevante o lugar em que ele esteja situado no contexto da legislação norte-americana ou se ele é considerado pelo sistema jurídico norte-americano uma lei antidumping ou antitruste. Além disso, a UE afirmou que o Revenue Act, consoante evidencia o Antitrust Enforcement Guidelines for International Operations, documento elaborado pelo Departamento de Justiça dos EUA, não é uma lei antitruste.
A UE também contestou a alegação dos EUA referente ao caso United States v. Cooper Corp., porquanto a questão ali discutida consistiu em saber se o Governo dos Estados Unidos poderia ou não ser enquadrado na acepção de "pessoa", palavra empregada na Seção VII do "Sherman Act". O que a Corte fez ao analisar o Sherman Act foi listar toda a legislação considerada suplementar, incluindo nesse rol "the antidumping provisions of the Revenue Act of 1916". Desta forma, a decisão da Suprema Corte no caso United States vs. Cooper Corp., deve ser entendida mais como uma confirmação da natureza antidumping do Revenue Act do que uma negação.
Os EUA insistiram na questão da natureza jurídica do 1916 Act, para desautorizar o painel a apreciar a questão suscitada pela UE. Eles também afirmaram que o art. VI permite a imposição de medidas antidumping e o Código Antidumping disciplina a forma como isso pode ser feito. Portanto, se um país adotasse outras medidas, distintas daquelas indicadas no Código Antidumping, a saber, medidas antidumping definitivas, medidas provisórias e compromisso sobre preços, ele não poderia ser a elas aplicado.
No art. VI.2 do GATT, o verbo "poderá" autorizaria o Estado Membro a impor medidas antidumping, mas não o impediria de lançar mão de outros mecanismos para coibir a prática. O art. VI.2 do GATT dispõe o que adiante segue:
Com o fim de neutralizar ou impedir o dumping, a parte contratante poderá cobrar sobre o produto objeto de dumping um direito antidumping que não exceda a margem de dumping relativa a esse produto. Para os efeitos deste Artigo, a margem de dumping é a diferença de preço determinada de acordo com os dispositivos do parágrafo 1. (destaques acrescidos)
À luz do dispositivo acima transcrito, e fazendo referência também ao art. 17.4 do Código Antidumping, os EUA sustentaram que as medidas autorizadas pelos Código Antidumping são três e que, se um país impusesse à prática de dumping uma outra penalidade distinta das previstas pelo Código, este não poderia ser invocado. O Código, portanto, somente teria aplicabilidade quando fosse identificada uma das três medidas previstas pelo art. 17.4, que reza:
Se o Membro, que requereu consultas considera que as mesmas, segundo o disposto no parágrafo 3º, não alcançaram solução mutuamente satisfatória, e se as medidas definitivas tiverem sido tomadas pelas autoridades administrativas do Membro importador no sentido de cobrar direitos antidumping definitivos ou de aceitar compromissos de preços, o Membro poderá levar o assunto ao Órgão de Solução de Controvérsias (OSC). Na hipótese de uma medida provisória ter impacto significativo e de o Membro que tiver solicitado consultas considerar ter sido a medida provisória tomada ao arrepio do disposto no parágrafo 1º do artigo 7, poderá esse Membro levar o assunto à consideração do OSC. (destaques acrescidos)
Para os EUA, o principal erro do painel consistiu em concluir que o art. VI, disciplinado pelo Acordo Antidumping, aplica-se ao 1916 Act. O art. VI prevê a aplicação de medidas antidumping, quando for verificada a prática de dumping nas circunstâncias ali previstas. Ocorre que o 1916 Act não pune práticas de dumping, pois exige um elemento subjetivo (intuito predatório) que não é requerido pelo Código Antidumping.
Ademais, no caso WT/DS136/R, os demandantes apenas se insurgiram contra a lei em tese e não apontaram nenhum evento concreto que pudesse ser enquadrado no art. 17.4. Em virtude disso, o painel careceria de competência pata deliberar sobre o caso. No entendimento dos EUA, quando um Membro possuir uma lei que o autorize a impor medidas de combate ao dumping, para que um país possa insurgir-se contra essa lei, ele deve aguardar até que uma das três medidas mencionadas no art. 17.4 do Código Antidumping seja adotada. Neste sentido, os EUA foram enfáticos ao afirmar:
(...) when Article 17 of the Anti-Dumping Agreement is invoked as a basis for a panel´s jurisdiction to determine claims made under that Agreement, it is necessary for the complaining party to challenge one of the three types of measure set forth in Article 17.4 of that Agreement, i.e., a definitive anti-dumping duty, a provisional measure or a price undertaking. In the view of the United States, a Member wishing to challenge another Member´s anti-dumping law as such must wait until one of the three measures referred to in Article 17.4 is also challenged (18).
A UE rechaçou os argumentos dos EUA e reputaram-nos intempestivos e infundados, pois o art. VI do GATT 1994 não é aplicável apenas a leis que prevejam as medidas citadas no art. 17.4 do Código Antidumping. A UE também afirmou que o verbo "poderá" implica que o país lesado tem a faculdade de impor medidas antidumping definitivas, provisórias ou compromisso sobre preços, podendo, todavia, abdicar dessa prerrogativa. O dispositivo legal citado pelos EUA não autorizaria um país a aplicar essas medidas ou outras, mas sim conferir-lhe-ia a faculdade de aplicá-las ou não (19).
Com relação ao argumento de que o 1916 Act veda a prática de preços predatórios e não de dumping, a UE argüiu que a conduta prevista na legislação estadunidense considerada pune a exportação de produtos abaixo do preço praticado no mercado do país exportador, isto é, pune a prática de dumping. Portanto, se o 1916 Act emprega ou não o termo dumping ou faz exigências além das previstas nas normas da OMC, isso seria irrelevante.
Já a respeito do argumento norte-americano de que o Código Antidumping aplicar-se-ia apenas quando uma das três medidas previstas no art. 17.4 fossem utilizadas, a UE afirmou que o art. VI do GATT 1994 condena a prática de dumping que causa ou ameaça causar dano e autoriza a cobrança de "direitos antidumping" (20) com a finalidade de elidir o dano decorrente de sua prática. Em lugar algum encontra-se autorização para a adoção de medidas outras que não sejam aquelas enquadradas na expressão "direitos antidumping".
V- Conclusões
Face ao exposto acima, conclui-se que, apesar do contexto em que se encontra codificado o Revenue Act, ele não pode ser considerado lei antitruste, pois elege como critério objetivo de análise o mesmo elemento consagrado no art. VI do GATT 1994, qual seja a venda de produtos no mercado importador por preços inferiores aos praticados no mercado interno do país exportador.
Se a lei norte-americana exige condições adicionais para a configuração da conduta por ela reputada ilegal, isso se torna completamente irrelevante face aos dispositivos consagrados na OMC. Exigir a comprovação do intuito predatório para fazer valer as medidas repressivas previstas no Revenue Act não descaracteriza a sua natureza antidumping, porquanto o seu objetivo principal consiste na vedação de exportação de produtos para os EUA por um preço inferior ao praticado no mercado exportador.
Não importa qual o contexto (antidumping ou antitruste) em que o diploma legal se situe no U.S. Code ou qual a expressão por ele empregada para descrever essa conduta, pois ela será sempre dumping, de acordo com o GATT 1994, do qual os EUA fazem parte. Desta forma, não há razão para se argüir a incompetência do painel para analisar a questão suscitada pela UE, à luz da legislação por ela indicada na fase de consultas. A legislação é aplicável, sim, e os EUA devem envidar esforços para compatibilizar a sua legislação interna aos termos dos tratados internacionais por ele incorporados. Neste sentido, dispõe o art. art. 18.5 do Código Antidumping:
Cada Membro tomará as providências necessárias, genéricas ou específicas, para garantir, até a data de entrada em vigor para ele do Acordo Constitutivo da OMC, a conformidade de sua legislação, regulamentos e procedimentos administrativos com o disposto neste Acordo, segundo sejam aplicáveis ao Membro em causa.
Também carece de fundamento o argumento de que os países lesados pelo U.S. Revenue Act deveriam aguardar até que uma das medidas previstas pelo art. 17.4 do Código Antidumping (medidas definitivas, provisórias e compromissos sobre preços) fosse implementada. Em inúmeros precedentes (21), o antigo órgão de solução de controvérsias do GATT consolidou entendimento no sentido de ser possível a análise da compatibilidade entre leis em tese e as obrigações decorrentes dos tratados firmados no seu âmbito.
O painel concluiu que a autorização do 1916 Act relativamente à imposição de multa e ao ajuizamento de ações criminais contra a prática de dumping violava o disposto no art. VI do GATT 1994 e, por conseguinte, deveria ser modificada. No caso WT/DS136/R, portanto, os EUA foram condenados a modificar sua legislação dentro do prazo de dez meses, contados a partir da data em que foram adotados os relatórios do OSC e do OAp. Este prazo esgotou-se em 26 de julho de 2001.
Contudo, até o momento de conclusão deste trabalho (setembro/2001), não se teve notícia de que os EUA efetivamente revogaram o 1916 Act, conforme a recomendação do painel da OMC. Informações disponíveis em agências norte-americanas de comércio exterior (International Trade Comission – ITC e U.S. Trade Representative – USTR) indicam que até o dia 26 de julho de 2001 o Congresso ainda não havia analisado a proposta de revogação do Revenue Act of 1916, porém há indicativos de que os EUA pediriam um alargamento do prazo de implementação da decisão proferida no WT/DS136/R até o término da sessão congressional de 2001. Se for aceita essa proposta, os EUA haverão disposto de quinze meses para implementar a decisão do painel, conforme havia sido por eles solicitado na fase de arbitramento. Ou seja, por via oblíqua, os EUA terão feito valer sua vontade.
Desta forma, apesar de muitas serem as vantagens do sistema de solução de controvérsias da OMC, ainda se podem observar falhas com relação ao cumprimento de suas decisões, principalmente quando estas envolvem grandes potências. Jackson (22) afirma que, em geral, o sistema de solução de controvérsias tem atuado de forma satisfatória, contudo, as perspectivas não são das mais otimistas quando as decisões dos painéis contrariam interesses de países com grande participação no comércio exterior. A pergunta que permanece sem resposta é: por quanto tempo as Organizações Internacionais subsistirão se os próprios Estados que delas fazem parte insistem em desacreditá-las enquanto instâncias eficazes de implementação do Direito Internacional?
NOTAS:
1. O U.S. Revenue Act of 1916 é também conhecido como U.S. Antidumping Act, muito embora a doutrina especializada considere o U.S. Antidumping Act of 1921 como o primeiro diploma legal norte-americano a combater especificamente a prática do dumping.
2. A sigla GATT consiste na abreviação da expressão inglesa General Agreement on Tariffs and Trade (Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio) e é utilizada para fazer referência ao sistema concebido em 1947 e que, até 1995, quando então foi criada a OMC, conduziu uma série de negociações multilaterais destinadas a reduzir os obstáculos (barreiras tarifárias e não-tarifárias) ao comércio internacional.
3. Prazeres, ‘O sistema de solução de controvérsias’, p. 47.
4. As denominadas "rodadas", gozando de natureza de convenção internacional, foram criadas pelo GATT para promover discussões e negociações de temas importantes causadores de desequilíbrio na dinâmica do comércio mundial. Elas eram realizadas periodicamente, tendo totalizado, até a sucessão do GATT pela OMC, oito "rounds", a saber: Genebra, 1947; Annecy, 1949; Torquay, 1951; Genebra, 1956; Genebra, 1960/61 (Dillon Round); Genebra, 1964/67 (Kennedy Round); Genebra, 1973/79 (Tokyo Round); e Punta del Este, 1986/94 (Uruguay Round).
5. O art. 17.3 do Código Antidumping dispõe: "O Membro que considere estar sendo anulada ou prejudicada alguma vantagem que lhe é devida, direta ou indiretamente e, em virtude do presente Acordo, ou estar sendo comprometida a consecução de qualquer de seus objetivos por outro Membro ou Membros, poderá, com vistas a alcançar solução mutuamente satisfatória sobre o assunto, requerer consultas, por escrito, com o Membro ou Membros em apreço. Todo membro examinará com boa vontade qualquer pedido de consultas formulado por outro Membro".
6. Cf. §6.229 do WT/DS136/R.
7. Todos os 144 países-membros da OMC integram o Órgão de Solução de Controvérsias.
8. Cf. §155 do WT/DS136/AB/R.
9. Reza o art. 3.7 do ESC: "In the absence of a mutually agreed solution, the first objective of the dispute settlement mechanism is usually to secure the withdrawal of the measures concerned if these are found to be inconsistent with the provisions of any of the covered agreements".
10. Cf. WT/DS108/R, adotado em 20 de março de 2000, com as modificações indicadas pelo OAp no WT/DS108/AB/R.
11. Neste sentido, o art. 3.3 do ESC dispõe: "The prompt settlement of situations in which a Member considers that any benefits accruing to it directly or indirectly under the covered agreements are being impaired by measures taken by another Member is essential to the effective functioning of the WTO and the maintenance of a proper balance between the rights and obligations of Members".
12. Guedes e Pinheiro, Anti-dumping, subsídios e medidas compensatórias, p. 28.
13. No §18 do WT/DS136/AB/R, consta o seguinte: "According to the United States, the word ‘may’ in Article VI:2 of the GATT 1994 confirms that Article VI provides a right that Members would not otherwise have – the right to impose duties – but does not contain any prohibition on the use of other types of measure".
14. Barral, Dumping e comércio internacional, p. 71.
15. Pires, Práticas abusivas no comércio internacional, p. 133.
16. Cf. §128 do WT/DS136/AB/R.
17. Cf. 312 U.S. 600 (1941).
18. Cf. §9 do WT/DS136/AB/R.
19. O §116 do WT/DS136/AB/R dispõe: "In light of this provision [art. 9º do Código Antidumping], the verb ´may´ in Article VI:2 of the GATT 1994 is, in our opinion, properly understood as giving Members a choice between imposing an anti-dumping duty or not, as well as a choice between imposing an anti-dumping duty equal to the dumping margin or imposing a lower duty".
20. A expressão "direito antidumping" é empregada na tradução oficial do acordo do GATT 1994, incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro através do Dec. n.º 1.355, de 30 de dezembro de 1994.
21. Cf. Panel Report, "United States – Taxes on Petroleum and Certain Imported Substances" (United States – Superfund), adotado em 17 de junho de 1987, BISD 34S/136; Panel Report, "United States – Section 337 of the Tariff Act of 1930", adotado em 7 de novembro de 1989, BISD 36S/345; Panel Report, "Thailand – Restrictions on Importation of and Internal Taxes on Cigarettes" (Thailand – Cigarettes), adotado em 7 de novembro de 1990, BISD 37S/200; Panel Report, "United States – Measures Affecting Alcoholic and Malt Beverages" (United States – Malt Beverages), adotado em 19 de junho de 1992, BISD 39S/206; e Panel Report, "United States – Measures Affecting the Importation, Internal Sale and Use of Tobacco" (United States – Tobacco), adotado em 4 de outubro de 1994, BISD 41S/131.
22. Jackson, ‘Dispute settlement and the WTO’, p. 48.
Referências bibliográficas
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GUEDES, Josefina Maria M.M.; SILVIA, M. Pinheiro. Antidumping, subsídios e medidas compensatórias. 2 ed. São Paulo: Aduaneiras, 1996.
JACKSON, John H.. Dispute settlement and the WTO: background note for conference on developing countries and the new round of multilateral of trade negotiations. Center for International Development, John F. Kennedy School of Government, Harvard University, nov. 5-6, 1999 (mimeo).
LAFER, Celso. A OMC e a regulamentação do comércio internacional: uma visão brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. 168 p. (Coleção Direito e Comércio Internacional).
PIRES, Adilson Rodrigues. Práticas abusivas no comércio internacional. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
PRAZERES, Tatiana Lacerda. O sistema de solução de controvérsias. In: BARRAL, Welber (org.). O Brasil e a OMC: os interesses brasileiros e as futuras negociações multilaterais. Florianópolis: Diploma Legal, 2000. p. 41-67.
THORSTENSEN, Vera. OMC – Organização Mundial do Comércio: as regras do comércio internacional e a rodada do milênio. São Paulo: Aduaneiras, 1999.
WORLD TRADE ORGANIZATION. Report of the Panel. WT/DS136/11.
__________. Report of the Appellate Body. WT/DS136/AB/R.
__________. Report of the Panel. WT/DS136/R.
__________. Report of the Appellate Body. WT/DS162/AB/R..
__________. Award of the arbitrator A. V. Ganesan. WT/DS162/14.