Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Dano coletivo nas relações de trabalho:

o dumping social e seus reflexos

Exibindo página 1 de 3
Agenda 02/02/2015 às 14:35

Este texto analisa a aplicação do Dumping Social na Justiça do Trabalho, bem como qual seria a competência para requerer e aplicar a condenação de tal instituto e a multa pecuniária acarretada pelo seu reconhecimento.

Resumo: As relações de trabalho evoluem com a mesma velocidade que a sociedade evolui, muito embora o Direito não acompanhe as evoluções com a mesma rapidez. Neste sentido, tendo em vista a grande quantidade de lacunas que o processo do trabalho detém e considerando ainda a própria previsão celetista de uso das normas de direito comum e de direito processual comum como fonte subsidiária naquilo em que não for incompatível, este trabalho se propõe a estudar a aplicação subsidiária da multa prevista no artigo 404, § único do Código Civil nas situações de Dumping Social. Este ocorre quando o empregador não respeita deliberada e reiteradamente as leis e normas do Direito do Trabalho, auferindo com este ato, melhor posição econômica que seus concorrentes que observam tais preceitos. Utilizando pesquisa doutrinária e jurisprudencial, o presente trabalho irá traçar uma evolução do conceito de dano até chegarmos ao conceito de Dumping, bem como analisar a competência para requerer tal condenação, inclusive se a melhor forma processual é via processo individual, ou ação coletiva proposta pelo Ministério Público do Trabalho. Discorreremos se cabe ou não a um autor de demanda trabalhista requerer este tipo de condenação, bem como para onde deve ser destinado o fruto desta condenação, utilizando para isto, posicionamentos doutrinários tradicionais e posicionamentos modernos oriundos de doutrinadores que vivenciam o Direito do Trabalho que ocorre diariamente nas salas de audiência, e por vezes, muito diferente daquele direito ideal que aprendemos, ou quer era para ocorrer.

Palavras-chave: Dano Social. Dumping Social. Competência. Direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos.


1 INTRODUÇÃO

Normalmente, o Direito vem apenas normatizar uma situação de fato que a própria sociedade já instituiu como certa ou necessária. Quando usamos a expressão Direito, não estamos neste momento nos referindo a algum ramo específico, mas sim a todo ordenamento, afinal, o Direito precisa ser interpretado em conjunto, em sintonia ente seus diversos ramos, e não competindo internamente sobre qual é mais eficiente que o outro. E assim deve ser com o Direito do Trabalho.

As pessoas passam pelo menos um terço de sua vida adulta trabalhando. E nessa relação de entrega de força de trabalho por dinheiro, podem acontecer fatos que exponham as partes a situações que lhe cause alguma lesão, seja financeira, material, física, psicológica ou moral. Nestes casos, onde há o ferimento de algum direito ou de algum bem da vida, é que o Estado vem impor reparação pelo lesante, como bem assegura a redação do artigo 186 do Código Civil[2].  Mas não apenas atos ilícitos são repudiados pelo ordenamento civil, mas também todos aqueles que, independentemente da culpa do agente ativo, causarem dano a alguém. Este é o cerne do instituto da Responsabilidade Civil, ou seja, o dever do agente de reparar o dano oriundo de suas ações ou omissões.

Nas relações de trabalho, a fixação de indenizações em valores ínfimos acaba estimulando o empregador a não se regularizar, a continuar oprimindo direitos, a permitir com que os acidentes aconteçam, e de maneira geral, desrespeitando a saúde, a privacidade e a moral de seus empregados, o que pode acarretar série de doenças físicas e psicológicas aos trabalhadores, cujo custo final será, com certeza, de toda a sociedade, trazendo à tona a figura do Dano Social.

Este trabalho buscará traçar noções sobre as diferentes formas deste dano se manifestar, principalmente na figura do Dumping Social, onde o dano ocorre pelo fato de empregadores desrespeitarem de maneira contumaz e volitiva os direitos de inúmeros trabalhadores, e, além disso, a própria economia a qual pertencem juntamente com outros empregadores que respeitam os direitos sociais. Enfrentaremos algumas posturas que o Estado pode adotar frente a estas situações, desde a inércia, apenas assistindo estes fatos se repetirem, ou tomando atitudes mais ousadas, criticadas por muitos, utilizadas por poucos, mas com olhar audacioso e solidário. Utilizando as idéias apresentadas por Souto Maior, Mendes e Severo, apontamos que está evidenciando-se uma crise nas nossas instituições, fruto da divergência de vontade popular e a atuação do legislador, do desrespeito desenfreado dos direitos sociais e da mesma vontade que exige que o Juiz assuma uma postura diferente daquela que lhe foi definida classicamente, de apenas julgar procedente ou não um litígio que já aconteceu, indo além do ideal burguês de apenas aplicar a lei sem questioná-la, sem ultrapassar os limites de um processo ficando atrelado à vontade das partes.

Veremos que o Dano Social vai além do patrimônio das partes, e que a atitude perante este fato deve ser também, abrangente. Nas palavras de Lenio Streck, o “direito deve ser transformador da realidade” (apud SOUTO MAIOR, MENDES e SEVERO, 2012, p.88).


2 O DANO INDENIZÁVEL

2.1 Conceituando o dano

Conforme Carlos Alberto Bittar Filho (2002, texto digital), não há que falar-se em responsabilidade civil sem dano, bem como sem a ação lesiva e o nexo causal. Dano é a lesão a bens juridicamente tutelados, não apenas materiais como também intangíveis: liberdade, saúde, honra etc. Mas nem todo o dano é atingido pela responsabilidade civil, devendo este ser sempre contrário ao ordenamento jurídico, ou seja, injusto[3] (grifo nosso).

Quanto à separação do dano moral do dano estritamente patrimonial, assevera o citado autor:

A separação pela patrimonialidade, ou não, do reflexo produzido na esfera atingida põe em evidência, de imediato, a bipartição do contexto valorativo que interessa ao Direito: o da pecuniaridade e o da moralidade. Inserem-se, no primeiro, os valores dotados de expressão pecuniária, ou aferição econômica e, no segundo, os que se exaurem na esfera mais íntima da personalidade, ou seja, na linha dos componentes sentimentais, valorativos, no âmbito da intelectualidade e no da vontade (aptidão de entender e atitude de querer), com as diversas manifestações possíveis. Por outras palavras, em um contexto, figuram bens ou direitos revestidos de caráter econômico; em outro, atributos de cunho moral ou espiritual, que individualizam o ser na sociedade, vale dizer, que definem o ser como entidade dotada de essencialidade e de individualidade próprias. O dano moral, portanto, é o resultado de golpe desfechado contra a esfera psíquica ou a moral, em se tratando de pessoa física. A agressão fere a pessoa no mundo interior do psiquismo, traduzindo-se por reações desagradáveis, desconfortáveis ou constrangedoras, bem como trazendo à tona o fato de que o homem é dividido em corpo e espírito.

Hoje, já consolidado no ordenamento jurídico de todos os povos que se dizem cultos, o reconhecimento do dano moral enfrentou grandes resistências doutrinárias e jurisprudenciais, e agora, não é muito diferente quando estudamos uma nova modalidade de dano moral, que não se refere apenas a pessoa física do indivíduo, mas aquele dano que atinge toda uma coletividade. Fruto das transformações sociais que enfrentamos nos últimos anos e decorrência natural da evolução das tecnologias, dos meios de produção e das relações interpessoais entre grupos, o Direito tem olhado atentamente para outro reflexo do dano moral: aquele que sobrepõe o coletivo sobre o individual.

De acordo com Mirna Cianci (2009, p. 34), a ideia do dano coletivo foi abstratamente tratada com a Lei de Ação Civil Pública (ACP, Lei 7.347/85) e com o Código de Defesa do Consumidor (CDC, Lei 8.078/90), quando se começou a discutir a possibilidade de ocorrência de um dano causado a toda uma parcela da sociedade, sem um titular individualizado, agredindo de maneira injustificável o patrimônio de certa comunidade. Para a caracterização do dano, tem que ser demonstrada uma ofensa à coletividade – neste caso, do ponto de vista moral, atingidos valores essenciais deste grupo. Também Teori Albino Zavaschi (2011, p. 27) aponta a preocupação ambiental e com as relações de consumo como a origem do pensamento com o dano coletivo, e com a idéia de direitos transindividuais, sendo estes direitos que estão em domínio jurídico de uma coletividade, e não apenas de uma pessoa ou pessoas determinadas.

Segundo Luiz Claudio da Silva (2009, p. 228), o dano para ser indenizável requer legitimidade, eis que a reparação só pode ser pleiteada pelo titular do direito violado. Quando o dano é coletivo, não há apenas uma pessoa ou um titular atingido, podendo ser uma categoria inteira ou uma coletividade indefinida, pessoas unidas por fatores comuns, valores comuns, os quais se amplificam em relação aos valores individuais. Ou ainda: “Tratam-se, destarte, de valores do corpo, valores esses que não se confundem com os de cada pessoa, de cada célula, de cada elemento da coletividade. Tais valores, como se vê, têm um caráter nitidamente indivisível” (BITTAR FILHO, 2002, texto digital). Nao se tem como decompor o interesse de cada indivíduo, pois cada lesão compõe a lesão de todos, e a satisfação de um é necessariamente a satisfação de todos. Ou todos perdem, ou todos vencem. Nas palavras deste autor:

O dano moral coletivo é a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico; quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto imaterial. Tal como se dá na seara do dano moral individual, aqui também não há que se cogitar de prova da culpa, devendo-se responsabilizar o agente pelo simples fato da violação (damnum in re ipsa).

E nessa relação estabelecida, onde há sujeito ativo (a coletividade lesada), sujeito passivo (o causador do dano) e a reparação pretendida/devida, incide a responsabilidade civil. Ainda conforme Bittar Filho (2002, texto digital), o instrumento processual cabível para defender os interesses coletivos em caso de dano é a Ação Civil Pública, prevista na Lei 7.347/85. A citada lei também já passou por várias alterações, e uma delas, em 1994[4], deu ao caput do art. 1º a redação que inclui o dano moral entre os objetos da ação civil pública.

Se a condenação for pecuniária, deve esta ter o mesmo princípio da condenação individual, ou seja, de compensar o lesado (coletividade) pelo dano sofrido, bem como de servir de punição para o autor deste dano, assumindo seu caráter pedagógico para que a ação/omissão não mais se repita:

Em havendo condenação em dinheiro, deve aplicar-se, indubitavelmente, a técnica do valor de desestímulo, a fim de que se evitem novas violações aos valores coletivos, a exemplo do que se dá em tema de dano moral individual; em outras palavras, o montante da condenação deve ter dupla função: compensatória para a coletividade e punitiva para o ofensor; para tanto, há que se obedecer, na fixação do quantum debeatur, a determinados critérios de razoabilidade elencados pela doutrina (para o dano moral individual, mas perfeitamente aplicáveis ao coletivo), como, v.g., a gravidade da lesão, a situação econômica do agente e as circunstâncias do fato (2002, texto digital).

Bezerra Leite (2004, p. 145), diz ainda que os critérios de arbitramento do valor indenizatório devem levar em consideração o lucro obtido com a prática do dano. Neste sentindo, por exemplo, nos chama à atenção o projeto de lei 5.554/2013, que impõe à empresa que desenvolve atividade de acentuado risco a responsabilidade objetiva de reparar os danos causados em decorrência da atividade profissional desenvolvida, pelos danos irreversíveis à saúde, a moral e à dignidade do trabalhador, independente culpa ou dolo[5].

De maneira diversa, Zavascki (2011, ps. 40 e 41) ensina que a atual redação da Lei da Ação Civil Pública, quando regulou a responsabilização por danos morais ‘a qualquer outro interesse difuso ou coletivo’(grifo do autor), criou uma corrente que sustenta, equivocadamente, em seu entender, a possibilidade de ocorrer dano de natureza transindividual. Para o ministro, o dano moral para existir precisa atingir necessariamente uma pessoa, ou seja, envolver dor, sentimento, a vida privada de alguém individualizado, sua alma, seus valores, não sendo então compatível com a indeterminabilidade de sujeitos ou com a indivisibilidade da ofensa e da reparação. Se fosse analisada a questão pelo viés da natureza reparatória e punitivo-pedagógica, a possibilidade de configuração do dano moral coletivo seria inegável, citando por exemplos, o dano moral que um dano ecológico pode acarretar, bem como a destruição de um patrimônio cultural. Mas, relativamente à qualificação jurídica e à identificação do titular do direito à respectiva indenização, bem como a destinação do produto da condenação, não faz com que o dano assuma uma natureza transindividual, sendo convertido de subjetivo individual e divisível em indivisível e transindividual.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Mas reconhece o autor a possibilidade de demanda coletiva, na forma de substituição processual, quando se tratar de lesão decorrente da mesma situação de fato e que atinja um número expressivo de pessoas. Seria o caso dos direitos individuas individuais homogêneos (que explicaremos adiante), que permite a sua tutela coletiva. Ou seja, instituições e entidades foram legitimadas para, em nome próprio, defender direitos individuais de outrem, como é o caso dos sindicatos quando representam a sua categoria. Porém, como não é possível identificar ou quantificar de forma determinante os titulares desses direitos (que em sua essência, são individuais), o produto dessa condenação por dano moral seria revertido para o fundo criado pela Lei da Ação Civil Pública. Conclui que não se pode dar interpretação literal ao redigido no art. 1º da citada lei no tocante aos danos morais, pois, estaria criado, em suas palavras, um exótico dano moral supraindividual (ZAVASCKI, 2011.).

Já na esfera laboral, Bezerra Leite (2004) utiliza os ensinamentos de Manoel Jorge e Silva Neto, de que há indubitavelmente um patrimônio moral que pertence a toda sociedade, mesmo que os atingidos não possam se apresentar como beneficiários do valor devido pela indenização de dano moral, e que então, toda indenização que envolva direitos coletivos deve ser revertida ao Fundo de Amparo ao Trabalhador, conforme a Lei 7.998/90[6].

Tendo em vista o reconhecimento dos direitos sociais como fundamentais para a construção de uma sociedade democrática, ainda que regida pelo sistema capitalista, é imprescindível entender que certos danos extrapolam a esfera de alguém individualizado. Neste contexto a noção de dano social se apresenta, pois são lesões à sociedade, que a atingem de forma tanto material quanto moral, e da mesma forma ensejam a aplicação da responsabilidade em seu caráter reparatório e pedagógico. Desta forma, há sim a possibilidade de aplicação de dano moral de forma metaindividual, sendo o Dano Social gênero da qual surgem duas espécies: o dano moral coletivo, com sua natureza extrapatrimonial, e o Dumping Social, que tem natureza material, sendo ambos de origem ilícita (SOUTO MAIOR; MENDES; SEVERO, 2012).

O termo dumping é originado das lições de comércio e economia, e ocorre quando uma empresa adota práticas comerciais sabendo que estas causam grave prejuízo aos seus concorrentes, e assim segue agindo de maneira proposital a obter lucro. Ocorre, normalmente, quando uma empresa ou até mesmo um país utiliza-se de medidas protetivas que favorecem o seu mercado interno em desfavor considerável de outros, ou quando desrespeita leis e aufere vantagens financeiras com essas adoção, vantagens essas, que no outro extremo, acarretam grave prejuízo aos seus concorrentes, que respeitam as normas impostas.

Deve existir uma consciente vontade de não respeitar as normas impostas, ou de utilizá-las de modo abusivo, e nos ensinamentos de Amauri Mascaro Nascimento (2011, texto digital), deve revitalizar a economia do praticante de tal ação. Essa é uma prática prejudicial e condenável, pois além de propiciar o desenvolvimento desleal do comércio, agride a dignidade da pessoa humana na medida em que os trabalhadores acabam submetidos a condições de trabalho degradantes.

2.2 Da subsidiariedade do art. 404, parágrafo único do Código Civil na Justiça do Trabalho

Ocorre que se está verificando casos escancarados da prática de Dumping Social através da análise das lides trabalhistas, e para estes casos, os juízes estão aplicando uma multa suplementar aos réus baseados no que preceitua o art. 404, parágrafo único do Código Civil (CC) [7], como forma de combater e repudiar esta prática danosa.

É notório que a CLT, que em 2013 completou seus 70 anos de promulgação, trouxe dinamicidade processualística e rompeu com formalismo civil existente na década de 1940, “embora editada em um período de negação da democracia, já albergava o paradigma da solidariedade” (SOUTO MAIOR; MENDES; SEVERO, 2012). Com a evolução natural da sociedade, o Direito evolui também, e atualmente, as normas processuais trabalhistas, como foram criadas, são poucas e não contemplam todas as possibilidades visualizadas em um processo nos dias atuais, sendo por vezes, lacunosas. Para estas situações de lacunas, a própria Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) [8] previu em seu texto original a aplicação da legislação comum de forma subsidiária, desde que não seja contrária à lei processual trabalhista. Ou seja, o juiz do trabalho somente se valerá das normas comuns quando estas, sendo compatíveis com o espírito da justiça do trabalho, puderem melhorar a efetiva prestação jurisdicional.

Da mesma maneira, o art. 8º, §único da CLT também diz que o direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, desde que mantenha sua compatibilidade com este. Esclarece Sergio Pinto Martins (2009, p. 119) que por direito comum leia-se Direito Civil, não sendo “necessário que a norma pertença ao campo do Direito do Trabalho para ser aplicada na Justiça Laboral, podendo pertencer ao Direito Civil e ter incidência na relação de emprego ou na relação processual”.

Assim, temos dois artigos da CLT que prevêem a utilização da legislação comum quando da omissão material ou processual da legislação trabalhista. É o caso, em tela, de aplicarmos à Justiça do Trabalho, a multa complementar de que trata o citado artigo, quando o juiz constatar que apenas os juros da mora não serão suficientes para cobrir o prejuízo do credor.

Percebe-se que a redação do art. 8º da CLT, no momento que abre as normas trabalhistas para receber conceitos cíveis que a elas são compatíveis, torna aplicável o artigo citado acima, não sendo uma aventura jurídica a aplicação ex oficio por parte do magistrado, não apenas como forma de cobrir o dano já causado, mas também, conforme destaca Maria Claudia Gomes Chaves (2010, texto digital), para desestimular novas práticas prejudiciais. É importante lembrar que a condenação trabalhista visa a obrigatoriedade de pagamentos que já deveriam ter ocorrido há tempos atrás, ou seja, que já era para ter sido creditado ao empregado quando da efetiva prestação do trabalho.

Assim, o empregador já está com o débito, e o mesmo será pago com juros de 1% ao mês, não capitalizados e com correção monetária que não cobre na verdade nem o seu prejuízo, quem dirá a sentença ter algum efeito pedagógico ou ressarcitório para a sociedade. Desta maneira, conclui a autora acima citada que a multa suplementar poderia ser arbitrada tanto em benefício do empregado, tendo assim um caráter individual, pois visaria compensá-lo pela ineficiência dos juros moratórios trabalhistas, bem como revertida para um fundo público social, destinado a promover os direitos da classe trabalhadora, quando aplicada em sentença que reconhece a prática de dano social pelo empregador contumaz em desrespeitar direitos trabalhistas.

Wagner Giglio (2007, p. 158) explica que “toda sanção condenatória ex officio é conseqüência do verdadeiro comtempt of court que toda litigância de má-fé encerra (matéria de ordem pública)”. E que a multa aplicada pelo juiz não visa ressarcir prejuízo sofrido pela parte lesada diretamente no processo, e sim resguardar o respeito ao Poder Judiciário e punir a conduta reprovada do lesante.

Não é este o entendimento de Zavascki (2011, ps. 40 e 41), o qual leciona que a natureza de uma indenização por dano moral é a de reparar o dano sofrido, e rege-se pelas normas da reparação civil, apesar de ter uma secundária função de punir e ensinar ao lesante. O poder de impor sanções é monopólio do Estado, e não poderia a indenização por dano moral ser confundidas com sanções pecuniárias (multas), pois teriam de estar sujeitas aos princípios da tipicidade e da legalidade estrita. Não se poderia confundir indenização com penalidades:

São imposições juridicamente inconfundíveis, que até podem ser cumuladas, desde que se tenha em conta que a indenização supõe dano e que a aplicação de penas supõe prévia lei que estabeleça seu conteúdo e as hipóteses típicas de sua incidência. Assim, havendo dano, cabe a reparação, segundo as normas que regem o sistema da responsabilidade civil; todavia, por mais graves que sejam o ilícito e a lesão, significará pura arbitrariedade, à luz do nosso sistema normativo, impor ao responsável pelo ato qualquer penalidade não prevista em lei, arbítrio que não se atenua, mas, ao contrário, se mostra ainda mais evidente quando a pena imposta venha disfarçada sob o rótulo de indenização por dano moral. [...] Não há previsão normativa tipificando conduta ou fixando pena por dano moral. O que existe, inclusive na Constituição, é o reconhecimento do direito à indenização do dano moral, matéria que, como se percebe, pertence, e assim deve ser tratada, ao exclusivo domínio da responsabilidade civil.

E expressamente discorda de Giglio, dizendo que a condenação por dano moral não pode ser uma sanção pecuniária, e que não há espaço em nosso ordenamento para as chamadas indenizações punitivas (punitive damages) originadas do direito anglo-saxão. Porém, a matéria vai ao encontro da tese da indenização suplementar, pois, as Punitive Damages visam fixar um montante que não busca imediatamente apenas a compensação do dano, mas principalmente a repressão à conduta do ofensor, para que esta não se repita, cumprindo sua finalidade punitiva. (SOUTO MAIOR; MENDES; SEVERO, 2012).

Outro aspecto a ser considerado é o fato da equiparação a aplicação da multa, em seu aspecto punitivo, às multas de direito penal. Neste sentido, Souto Maior, Mendes e Severo (2012) esclarecem que a função punitiva da condenação ao pagamento da multa visa coibir a repetição de práticas lesivas à sociedade, não sendo importante medir sua ilicitude, mas os efeitos sociais do dano causado, e que a matéria é civil, afinal, encontra sua autorização no art. 404, parágrafo único do Código Civil.

2.3 O Enunciado nº4 da ANAMATRA e o convite a repensar a jurisprudência trabalhista

Trazendo para dentro da Justiça do Trabalho a legislação civil no tocante a reparação por perdas e danos a aplicação do artigo 404, § único do CC, vemos que esta indenização tem motivado intensas divergências na doutrina trabalhista, não firmando ainda entendimento na jurisprudência. Mas conseguimos verificar que aqueles que são favoráveis a aplicação da multa do art. 404, § único do CC nas ações trabalhistas, defendem uma sinergia entre os ramos do direito no sentido de proteger o empregador, visto ser este o espírito da legislação trabalhista.

Não à toa que o Enunciado nº 4 da ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), aprovado na 1ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, realizada pelo TST em 23.11.2007 e da qual participaram operadores de todas as áreas do direito do trabalho, reconhece a existência do Dumping Social, o caracteriza, demonstra a necessidade de intervenção do poder Judiciário e lhe concede amparo legal através do artigo 404, §único do Código Civil:

DUMPING SOCIAL. DANO À SOCIEDADE. INDENIZAÇÃO SUPLEMENTAR. As agressões reincidentes e inescusáveis aos direitos trabalhistas geram um dano à sociedade, pois como tal prática desconsidera-se, propositalmente, a estrutura do Estado Social e do próprio modelo capitalista com a obtenção de vantagem indevida perante a concorrência. A prática, portanto, reflete o conhecido “dumping social”, motivando a necessária reação do Judiciário trabalhista para corrigi-la. O dano à sociedade configura ato ilícito, por exercício abusivo do direito, já que extrapola limites econômicos e sociais, nos exatos termos dos arts. 186, 187 e 927do Código Civil. Encontra-se no art. 404, parágrafo único do Código Civil, o fundamento de ordem positiva para impingir ao agressor contumaz uma indenização suplementar, como, aliás, já previam os arts. 652,d, e 832, § 1º, da CLT (grifo nosso).

É nas ações que reconhecem a existência de dano coletivo que podemos encontrar os melhores argumentos jurisprudenciais e doutrinários para a aplicação da multa do art. 404, § único do Código Civil ao processo trabalhista, bem como que, a aprovação do Enunciado acima, representaria a opinião dos magistrados (pelo menos, quase a maioria) de 1º grau da Justiça do Trabalho, no sentido de que a redação civil permite a aplicação desta multa de forma ex oficio, ou seja, sem o necessário pedido da parte empregada. Ou seja, como afirma Valdete Souto Severo ([2012], texto digital), uma vez verificada a insuficiência da reparação por meio de condenação por perdas e danos acrescida dos juros e mora, e não havendo pena convencional a ser aplicada, pode o juiz conceder indenização suplementar independentemente do pedido da parte. Reforça a magistrada que o pedido da parte é dispensável quando se trata de dano social, pois a indenização não tem por fundamento ressarcir a lesão individual da parte, mas sim compensar e inibir lesões que afetam a harmonia social. Lembra ainda, bem como foi mencionado pelo Enunciado nº 4 da ANAMATRA, que a própria previsão da CLT, em seu art. 652, letra ‘d’, autoriza o magistrado, dizendo que é sua função impor multas e demais penalidades relativas aos atos de sua competência, não limitando esta ação ao pedido da parte.

No entendimento de Jorge Luis Souto Maior (2009), a responsabilidade, na perspectiva do direito social é completamente diversa da responsabilidade na esfera civil, pois a sua aplicabilidade não decorreria exclusivamente do dano em si, mas sim do fato de expor alguém ao risco de sofrer um dano, impondo um modo de agir perante o outro, promovendo um valor humanístico para as condições de trabalho.

Não podemos esquecer que a ANAMATRA, criada em 1976 é uma entidade corporativa, representativa dos magistrados trabalhistas. Seus enunciados são orientações, não possuindo a entidade prerrogativa de legislar. O Enunciado nº 4, que trata do Dumping Social, serve mais como um norte, um indicador de como pensam a maioria dos Juízes de primeiro grau do Brasil. Vale dizer ainda, que esses mesmos juízes que aprovaram o Enunciado nº 4 durante aquela jornada de debates estão todos os dias presenciando o cenário de desrespeito aos direitos trabalhistas, olhando na face de milhares de empregados subtraídos em sua dignidade, tendo que recorrer à Justiça para pedir que lhe seja pago o que lhe é devido por força de contrato, e normalmente apenas por aquilo que trabalharam, sem muitas vezes ousar adentrar na esfera da reparação moral, quanto mais social.

2.4 Indenizações suplementares ex oficio nas condenações trabalhistas pela prática de Dumping Social

Trazido para o mundo das relações trabalhistas e do Direito do Trabalho, o conceito de Dumping Social está sendo utilizado pela doutrina e pela jurisprudência como forma de repúdio às reiteradas práticas adotadas por várias empresas em deliberadamente não respeitar as leis trabalhistas, ignorar as sentenças judiciais e continuar minimizando a relação de trabalho, e com essas atitudes, aumentar os seus lucros obtidos. “Não é, em absoluto, equivocado identificar por meio da mesma configuração a adoção de práticas ilegais para obtenção de vantagens econômicas no mercado interno” (SOUTO MAIOR; MENDES; SEVERO, 2012). Explicam ainda os autores que não precisa haver dolo de querer prejudicar o concorrente, como no dumping clássico, para a caracterização do dumping social, bastando que haja a prática de agressões contumazes e deliberadas aos direitos trabalhistas (2012).

Para punir tal ação, com base no art. 404, § único do código civil, é arbitrada uma multa, que não necessariamente foi pedida pela parte autora, contra a empresa empregadora, no momento da sentença trabalhista. De fato, ocorre a transgressão não apenas dos direitos individuais decorrentes do contrato de trabalho, mas também daqueles considerados metaindividuais, que pertencem a toda sociedade, pois desrespeitam a ordem jurídica trabalhista, afronta os princípios da livre concorrência e a busca do pleno emprego, em detrimento daqueles que respeitam as leis. Assim, o Dumping Social seria como um desdobramento do dano coletivo, sendo a violação de direitos de grupos sociais determinados (ligados entre si por uma situação jurídica base) ou, até mesmo devido ao grau e a extensão dos direitos violados, da própria sociedade como um organismo.

Assim, pelo lado do empregador, este se sobressai, e pelo lado do direito do trabalho, todos os outros perdem, pois os empregados são muitas vezes explorados em seus direitos e nas suas condições dignas de trabalho, sendo que isto se reflete em seu meio familiar, em seu meio social, em sua saúde e em diversos outros setores, acabando por infringir um mal à própria sociedade, e esta pode e deve ser indenizada, com os fundamentos dos art. 186, 187, 404, §único e 927 do CC e art. 627, d e art. 821,§ único da CLT.

O fundamente, portanto, reside na idéia de que ao desrespeitar o mínimo de direitos trabalhistas que a Constituição garante ao trabalhador brasileiro, a empresa não apenas atinge a esfera patrimonial e pessoal de determinado trabalhador, mas também compromete a própria ordem social. Atua em condições de desigualdade com as demais empresas do mesmo ramo, já que explora mo de obra sem arcar com o ônus daí decorrente, praticando concorrência desleal. (SOUTO MAIOR; MENDES; SEVERO, 2012, p.58)

E é esta atitude que os juízes de primeiro grau, timidamente podemos dizer quando pesquisamos a jurisprudência, estão tentando coibir. Quando dizemos timidamente, estamos reconhecendo que não é tarefa fácil sair da sua zona de conforto e imparcialidade e aplicar uma multa ex oficio, importada para dentro do ordenamento trabalhista e sabendo que a maioria dessas condenações serão reformadas pelos tribunais, e encarar a árdua tarefa que é modificar jurisprudência e ampliar teses inovadoras e por vezes, radicais. São em maior quantidade ainda os acórdãos modificando a sentença que condenou ao dano social, principalmente com o argumento de ausência de pedido da parte, ou seja, agarram-se a uma atribuição passiva do Juiz e ignoram o fato de que o dano não foi sofrido apenas pela parte figurante daquele processo, e mantém ainda hoje uma visão míope do conteúdo do Princípio Dispositivo, que deve ser considerado conjuntamente com outros princípios presentes em nosso ordenamento, como a Dignidade da pessoa humana  e o da efetividade da tutela jurisdicional. Assim, o processo deve ser iniciado e limitado pelas partes, mas impulsionado pelo juiz que deve agir em busca da solução definitiva do litígio e da paz social, conforme o posicionamento dos autores e juízes acima citados (2012).

Essa preocupação não é novidade, pois Mauro Capelletti (apud SOUTO MAIOR; MENDES; SEVERO, 2012, ps.47 e 48) em 1977 (logo após a promulgação do Código de Processo Civil), já se referia aos danos que atingem uma categoria inteira de indivíduos, e que a decisão proferida pelo juiz tem legitimidade para produzir efeitos a todos que foram atingidos pelas conseqüências do dano, mesmo que não presentes na causa. Em seus argumentos, Souto Maior, Mendes e Severo (2012) afirmam que não é nenhum exagero dizer que a empresa que transgride direitos trabalhistas perde sua legitimidade frente ao mercado, uma vez que afronta o preceito constitucional da função social da propriedade, que significa trazer para o direito privado o condicionamento do poder à uma finalidade, algo tido antes com exclusivamente de direito público: não é apenas não prejudicar ninguém com a sua propriedade, mas acima disso, exercer esse direito em benefício de alguém, ou do coletivo, com o bem comum se sobrepondo ao bem individual, com o solidário se sobrepondo ao individual.

Os direitos sociais (direito do trabalho e direitos a seguridade social, com inserção nas Constituições) constituem a fórmula criada para desenvolver o que se convencionou chamar de capitalismo socialmente responsável. Um modo, portanto, de manter vigente o sistema, diante de suas crises cíclicas, e de sua clara tendência autofágica. Sob o ângulo exclusivo do positivismo jurídico pátrio, é possível constatar que os Direitos Sociais, por via reflexa, atingem outras esferas da vida em sociedade: o meio-ambiente; a infância; a educação; a habitação; a alimentação; a saúde; a assistência aos necessitados; o lazer (art. 6º, da constituição Brasileira), como forma de fazer valer o direito à vida na sua concepção mais ampla. Neste sentido, até mesmo valores que são normalmente indicados como direitos liberais por excelência (a liberdade, a igualdade e a propriedade) são atingidos pela formação de um Direito Social e o seu conseqüente Estado Social (2012, ps. 16, 17 e 34).

Mostram os autores que deve-se pautar por um sentido ético para esse capitalismo socialmente correto, pois, o desrespeito às normas de caráter social, além de trazer vantagens econômicas para o agressor, conduz todos ao risco de instabilidade social, e é nesse ponto que a teoria do dumping social toma forma, na noção de que o responsável por um dano que extrapola a figura de um indivíduo e atinge toda uma sociedade de forma negativa, deve ser coibido a não repetir tal conduta (2012). Os valores do trabalho são interesses sociais na ordem constitucional vigente, pois não interessam apenas a pessoa do trabalhador, mas são importantes para toda sociedade que pretende ser desenvolvida, saudável e justa. O juiz tem a missão constitucional de coibir condutas que neguem a própria Carta, e neste contexto está também a atribuição de identificar macro lesões e aplicar a quem as causa um tratamento rigoroso e diferenciado para que não volte a fazê-lo.

O Direito do Trabalho deve ser visto como a essência dos Direitos Sociais, cuja função é a de regular o modelo capitalista de produção dentro do pressuposto da necessária concretização de uma justiça social como elemento essencial da convivência pacifica entre os homens. Pode parecer exagerada ou romântica esta afirmação, mas  uma leitura histórica mais atenta, como não tem como ser mais elastecida no presente texto, vai revelar que a humanização do capital foi, exatamente, o teor do compromisso assumido diante da manutenção do modelo de produção capitalista. (SOUTO MAIOR, 2009, P. 198)

A redação do art. 170 da Constituição Federal (CF) é clara ao afirmar que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano, tem a finalidade de assegurar a todos uma existência digna de acordo com os ditames da justiça social e ainda, entre outros, observados os princípios da função social da propriedade (e aqui podemos incluir a empresa empregadora), livre concorrência, redução das desigualdades sociais e a busca do pleno emprego. Ainda utilizando os pensamentos de Souto Maior, “a relação humana mais evidente em um mundo capitalista é a relação de trabalho” (2009, p. 207).

Assim, conforme Pamilla Pessoa (2013, texto digital), em 2012 foi notória a notícia da condenação da rede de lojas Magazine Luiza por dano moral coletivo em decorrência da prática de Dumping, pois, a empresa já tinha recebido 87 autuações por desrespeitar direitos trabalhistas, submeter os empregados a jornadas excessivas de trabalho, firmar Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e não cumpri-los, e assim se mantendo por anos. Mesmo não havendo uma punição jurídica específica para o tema, isso causou preocupação no judiciário que, de oficio, condenou a empresa a pagar R$ 1,5 milhão de reais a título de indenização. A condenação por dumping social foi requerida pelo Ministério Público do Trabalho, em forma de Ação Civil Pública, baseada em Termos de Ajustamento de Condutas firmados pela empresa entre os anos de 1999 e 2003, nos quais se comprometia a não submeter os empregados a longas jornadas de trabalho[9]: a condenação foi aplicada em 2012 por danos causados há quase uma década. Essa realidade demonstra-se totalmente oposta aos princípios que norteiam todo o ordenamento trabalhista.

O Direito do Trabalho existe, exatamente, para inibir a exacerbação das formas de exploração do capital sobre o trabalho humano, e o que se verifica é, exatamente, a intensificação da exploração, embora com as roupagens retóricas da “colaboração” ou da “parceria social”. Para o DT, a forma de exploração pouco importa, pois é exatamente diante da busca desmesurada da exploração do capital dobre o trabalho humano que o DT encontra a razão de sua existência, como instrumento neutralizador dos efeitos destruidores dessa quebra do pacto de solidariedade. [...] Certamente, o aplicador do direito poderá ter problemas para reinventar, constantemente, as fórmulas jurídicas para manutenção da proteção trabalhista nos modos de produção que mudam a cada instante, mas este, por isto mesmo, é um desafio permanentemente imposto aos homens do direito, já que a humanidade creditou ao direito social a tarefa de frear as ganâncias capitalistas. Foi por esta razão, ademais, que os direitos sociais foram fixados a partir de noções principiológicas e é esta compreensão de poder e de responsabilidade que se exige dos homens do direito. (SOUTO MAIOR, 2009, p. 208).

Podemos, ainda, acrescentar ao rol de artigos de leis que autorizam uma ação do judiciário como forma de frear e coibir o desrespeito às leis trabalhistas, a lei 8.884/1994, mas esta foi praticamente toda revogada pela lei 12.529/2011, que regula a estrutura do sistema de concorrências no Brasil e dispõe sobre a prevenção às infrações contra a ordem econômica, mas a essência de conteúdo é praticamente igual. A anterior redação do art. 20 da Lei 8.884/94 é a mesma do art. 36 da lei atual:

Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa[10]

Além de o § 3o  acrescentar as seguintes condutas ao rol de infração à ordem econômica:  inciso IV - criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços; inciso XV - vender mercadoria ou prestar serviços injustificadamente abaixo do preço de custo[11].

Segundo Souto Maior, Mendes e Severo (2012), se percebe ao estudar o fenômeno do Dumping Social, que esta lógica de precarização é muito mais marcante em empresas pertencentes a conglomerados do que em empresas pequenas. Nas primeiras, as relações de trabalho já são marcadas por um grau maior de impessoalidade do que nas segundas. Assim, não apenas os empregados e seus familiares são vítimas desse sistema de desrespeitos às leis trabalhistas, mas também as micros, pequenas e médias empresas que têm suas despesas em valor elevado devido ao custo dos encargos trabalhistas, invertendo “o objetivo do Estado Social e Democrático, fazendo do lucro não um meio para a vida digna, mas um fim em si mesmo” (SOUTO MAIOR; MENDES; SEVERO, 2012, p. 22). Acabam também esses pequenos empreendimentos invertendo e distorcendo a realidade, imputando a culpa de seus altos custos ao trabalhadores “cheios de direitos”, ao invés de perceber essa concorrência desleal que se instaura no mercado, concorrência esta que se pretende coibir com a aplicação da teoria do Dumping Social nas relações de trabalho. O projeto capitalista se mostra na sua face mais escura, não se valendo nem de seus ideais liberais, e esta prática se traduz como dumping social, pois prejudica toda a sociedade.

A mais forte característica do dano social é a sua amplitude de alcance. Souto Maior, Mendes e Severo (2012) nos mostram, por exemplo, que ao submeter trabalhadores a jornadas de trabalho superiores ao permitido por lei, ou por não tomar as precauções devidas em matéria de saúde, higiene e meio ambiente do trabalho, não é só a pessoa do trabalhador que pode adoecer e sua família que perde alguém que traz subsistência; os danos vão muito além. Ao não possuir condições de trabalhar, o empregador precisa se socorrer da Previdência Social, repassando aos cofres públicos o ônus da atitude lesiva de seu empregador, que não custeia o sistema previdenciário sozinho, ao contrário, é custeado por toda a sociedade, inclusive pelas empresas que cumprem seus deveres legais.

Um dos argumentos que encontramos nas sentenças que condenam pela prática de Dumping Social é a manutenção da ordem econômica, que confere existência digna e justiça social, insculpidos nos art. 170 da CF. Assim, o Direito Social não é apenas uma norma perdida na CF, mas uma regra que impõe valores ao sistema jurídico, como a solidariedade, a justiça social e a dignidade da pessoa humana (SOUTO MAIOR; MENDES; SEVERO, 2012).

E ainda, todo o custo de movimento da máquina judiciária é majorado, pois a Justiça do trabalho acaba tendo “clientes” que figuram diariamente nas salas de audiência respondendo pelos mesmos fatos, pelas mesmas omissões, e mesmo com enxurradas de sentenças desfavoráveis, não vêem nisso um motivo para mudarem suas atitudes. Ao contrário, pagar a condenação de um processo do trabalho não é nada mais do que pagar o que já era para ter sido pago quando da realização do trabalho, só que com multa e juros de fazer rir, se não fosse o desrespeito escondido por trás desta situação. Ou seja, beira a impunidade. O que é mais barato: pagar o que é devido a todos, ou pagar o que é devido para alguns? Concordamos com os autores, que dizem que estamos diante de uma fraude ao projeto constitucional (SOUTO MAIOR; MENDES; SEVERO, 2012, ps. 25 a 30), se continuarmos sendo coniventes com essa situação, e que a reversibilidade desta precarização é totalmente possível, pois esta é a proposta de inclusão social da nossa Carta. Ou continuaremos permitindo ser um bom negócio não observar os direitos trabalhistas, pois não há nenhuma coerção efetiva por parte do Estado, afinal, mandar pagar o que já era devido não é coerção, mas sim uma simples dilação de prazo de pagamento.

É preciso reconhecer que alguns atos são socialmente nocivos e que os mesmos devem ser repreendidos pelo Estado-Juiz, e uma dessas formas de repreensão por parte do Judiciário é a condenação por dumping social. Assim, fica claro o caráter pedagógico da condenação pela prática de dumping, pois visaria evitar sua repetição futura, e, a prevenção de ilícitos também é uma das obrigações do Estado. O administrador público tem o dever de prevenir, e o juiz, comumente chamado de Estado-juiz, também é um administrador público, não podendo ficar inerte a fatos ilícitos (2012, p. 44). É de suma importância o papel do Estado na concretização dos direitos essenciais para que o projeto constitucional se torne realidade, pois, ao vedar a autotutela privada, o Estado automaticamente se responsabilizou pela concretização dos direitos fundamentais.

Como veremos a seguir, quando do estudo de algumas decisões sobre a manutenção ou indeferimentos da condenação pela prática de dumping, um dos argumentos contra sua aplicabilidade em processos individuais é a ausência de pedido para esta condenação pela parte autora, mas justamente neste ponto os autores rebatem que é dever do Estado prevenir, independente de haver pedido específico.

Sobre a autora
Suelen de Souza Lindenmaier

Graduada em Direito pela Universidade Luterana do Brasil. Aluna do curso de Pós Graduação Lato Sensu do Centro Universitário Univates. Funcionária de carreira do Banco do Brasil. Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LINDENMAIER, Suelen Souza. Dano coletivo nas relações de trabalho:: o dumping social e seus reflexos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4233, 2 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31000. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Artigo científico apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Nível de Especialização em Direito e Processo do Trabalho, do Centro Universitário Univates, como parte da exigência para a obtenção do título de Especialista em Direito e Processo do Trabalho.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!