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O território do Estado no Direito Comparado:

novas reflexões

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Agenda 01/08/2002 às 00:00

O Estado Federal

O conflito surgido entre o Estado de Minas Gerais e o Governo Federal em 1999/2000 criou a oportunidade para importante discussão para a democracia brasileira: o pacto federal, o regime de distribuição de competências e a necessidade de fazer avançar o nosso modelo federal centrífugo. O nosso federalismo encontra-se fortemente comprometido, assim como nossa democracia, por um governo federal altamente centralizador e autoritário, portanto, inconstitucional.

Existem várias formas de Estados Federais no mundo contemporâneo. Podemos perceber com clareza o movimento em direção a uma acentuada descentralização, que os Estados democráticos do mundo vêm procurando, sentido inverso do trilhado pelo nosso neo-presidencialismo autoritário vivido nos anos noventa e neste início de século XXI.

O federalismo clássico constitui-se no modelo norte-americano, formado por duas esferas de poder, a União e os Estados (federalismo de dois níveis), e de progressão histórica centrípeta, o que significa que surgiu historicamente de uma efetiva união de estados anteriormente soberanos, que abdicaram de sua soberania para formar novas entidades territoriais de direito público, o Estado federal (pessoa jurídica de direito público internacional) e a União (pessoa jurídica de direito público interno), uma das esferas de poder, ao lado dos Estados membros, diante dos quais não se coloca em posição hierárquica superior.

Importante ressaltar, neste ponto, alguns aspectos importantes:

1.O federalismo clássico de dois níveis diferencia-se de outros estados descentralizados, como o estado autonômico, regional ou unitário descentralizado, pelo fato de ser o único cujos entes territoriais autônomos detêm competência legislativa constitucional, ou, em outras palavras, um poder constituinte decorrente. Assim:

1.1.No estado unitário descentralizado, as regiões autônomas recebem por lei nacional competências administrativas, caracterizando a descentralização pela existência de uma personalidade jurídica própria e eleição dos órgãos dirigentes. Esta descentralização de competências administrativas pode ocorrer em nível municipal, departamental ou regional, em um nível ou em vários níveis simultaneamente. Exemplo: a França.

1.2.No estado regional, as regiões autônomas recebem competências administrativas e legislativas ordinárias, elaborando o seu estatuto, mas sempre com o controle direto do estado nacional (é modelo italiano, estudado neste livro, onde, embora a Constituição da Itália de 1947 mencione este Estado como sendo unitário, as transformações por que vem passando fazem com que a doutrina classifique-o hoje como modelo de estado altamente descentralizado: um estado regional).

1.3.No estado autonômico espanhol, outro modelo altamente descentralizado, ocorre uma descentralização administrativa e legislativa ordinária, diferenciando-se este modelo de estado do regional pela forma ímpar de constituição das autonomias, onde a Constituição espanhola de 1978 permitiu que a iniciativa partisse das províncias para constituírem regiões autonômicas e que estas elaborassem seus estatutos, que, para terem validade, devem ser aprovados pelo parlamento nacional, transformando-se em lei especial.

1.4.Já no estado federal, os entes descentralizados detêm, além de competências administrativas e legislativas ordinárias, também competências legislativas constitucionais, o que significa que os Estados membros elaboram suas Constituições e as promulgam, sem que seja possível ou necessária a intervenção do parlamento nacional para aprovar esta Constituição estadual (como é necessário em relação aos estatutos das regiões autônomas no estado regional e no estado autonômico), que sofrerá apenas um controle de constitucionalidade a posteriori. Não há portanto hierarquia entre Estados membros e União.

1.5.Não estamos considerando, como característica diferenciadora entre estes tipos de Estados, a descentralização de competências judiciais.

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1.6.O grau de descentralização ou o número de competências legislativas e administrativas transferidas aos entes descentralizados também não é hoje mais elemento diferenciador, pois há Estados federais centrífugos onde o número de competências legislativas e administrativas dos estados membros é inferior ao de regiões autônomas. O nosso federalismo é um dos modelos mais centralizados, bastando, para confirmar esta afirmativa, ler a distribuição de competências legislativas e administrativas nos artigos 21 a 24 da Constituição Federal de 1988.

O Estado Federal centrípeto ou centrífugo, o Estado Federal de dois níveis ou de três níveis e o Estado Federal simétrico ou assimétrico.

O federalismo centrípeto dirige-se ao centro, pois historicamente originário de estados soberanos que formaram, no caso norte-americano, uma confederação (1777) e posteriormente uma federação (1787), sendo que, nos mais de duzentos anos de existência da federação, vem gradualmente centralizando competências – a União vai incorporando competências dos Estados, gradual e lentamente, todos estes anos. Entretanto, ao contrário do que uma leitura apressada possa sugerir, o federalismo centrípeto, justamente por estes motivos, é o mais descentralizado, pois se originou historicamente de Estados soberanos que se uniram e abdicaram de sua soberania, mantendo com eles, entretanto, um grande número de competências administrativas e legislativas ordinárias e constitucionais. Esta terminologia com freqüência causa confusão e por vezes é empregada de maneira equivocada.

Desta forma, o grau de descentralização é muito grande e representado pelo grande número de competências administrativas, legislativas e jurisdicionais dos Estados membros, que ainda transferem diversas competências para os municípios. Embora caminhem em direção ao centro, não se pode afirmar até quando permanecerá nesta direção e muito menos que esta centralização tenha sido constante e linear. É perceptível que a tendência ao centro, nos momentos de crise grave, é revestida no momento de crescimento, o que também não pode ser tomado como uma afirmativa absoluta.

Importante portanto lembrar que o federalismo centrípeto (EUA, Suiça e Alemanha) são formados a partir de Estados soberanos que formam uma Confederação e depois uma federação. Por este motivo percebe-se uma tensão típica deste modelos, onde o movimento constitucional é centrípeto para resistir a uma matriz de poder político e cultural centrífuga, o que é o oposto do nosso modelo.

O federalismo brasileiro, ao contrário de norte-americano, é um federalismo centrífugo (movimento constitucional em tensão com um movimento político e cultural centrípeto em nossa história independente até os dias de hoje) e absolutamente inovador ao estabelecer um federalismo de três níveis, incluindo o município como ente federado, e, portanto com um poder constituinte decorrente. A partir da Constituição de 1988, os municípios brasileiros não só mantém sua autonomia como conquistam a posição de ente federado, podendo, portanto, elaborar suas Constituições municipais (chamadas pela Constituição Federal de leis orgânicas), auto-organizando os seus poderes executivos e legislativo e promulgando sua Constituição sem que seja possível ou permitida a intervenção do legislativo estadual ou federal para a respectiva aprovação. O que ocorrerá com as Constituições municipais será apenas o controle a posteriori de constitucionalidade o mesmo que ocorre com os Estados membros.

Alguns autores têm rejeitado a idéia do município como ente federado, por ser uma idéia nova, mas seus argumentos (ausência de representação no Senado, impossibilidade de falar-se em União histórica de municípios, ausência de poder judiciário no município) são frágeis ou inconsistentes diante da hoje característica essencial do federalismo, que difere esta forma de Estado de outras formas descentralizadas, que é a existência de um poder constituinte decorrente ou de competências legislativas constitucionais nos entes federados.

Quanto à união histórica, esta não existiu no Brasil, assim como em vários Estados federais, e, quanto à inexistência de representação no Senado, existem estados federais não bicamerais (Venezuela), assim como existe o bicameralismo em Estados unitários (França), regional (Itália), autonômico (Espanha), sendo que, no caso brasileiro, o nosso Senado na realidade não representa uma casa de representação dos Estados (isto é apenas formal), mas sim uma casa extremamente conservadora, que distorce a representação popular e por isto deve ser extinta ou reformada como visto no primeiro capítulo.

Quanto ao aspecto centrífugo do nosso federalismo, ele é extremamente importante para a interpretação da Constituição e rejeição de aspectos inconstitucionais em medidas provisórias, leis, atos de governo e até emendas inconstitucionais, pois ferem a nossa forma federal e tendem a abolir o federalismo ao centralizar competências.

O nosso Estado federal surgiu a partir de um Estado unitário, criado pela Constituição de 1824. O seu processo de formação é, portanto, exatamente o inverso do norte-americano, o modelo clássico, com o qual não pode ser comparado. A Constituição brasileira de 1891, copiando várias instituições norte-americanas, copia deles o federalismo, mas, como a história não pode ser copiada e o modelo norte americano, tanto de Suprema Corte, como de presidencialismo, como de bicameralismo, como federalismo, são modelos históricos, a nossa cópia quase nada tem com o modelo original.

A visão de nosso federalismo como federalismo centrífugo explica a nossa federação extremamente centralizada, que, para aperfeiçoar-se, deve buscar constantemente a descentralização. Somos um Estado federal que surgiu a partir de um Estado Unitário, o que explica a tradição centralizadora e autoritária que devemos procurar abandonar para construir uma federação moderna e um Estado democrático de Direito. A Constituição de 1891 construiu um modelo federal altamente descentralizado, mas artificial, pois não houve União de Estados soberanos, mas sim uma divisão para se criar uma União artificial, que, por este mesmo motivo, recuou nas Constituições brasileiras posteriores. Não se pode negar a história, mas sim trabalhar com ela para fazer evoluir o nosso Estado para modelos mais descentralizados e, logo, mais democráticos. Por isto, um federalismo de três níveis teria que surgir no Brasil, país de tradição municipalista.

A federação descentralizada de 1891 recua no grau de descentralização em 1934 e 1946, sendo que, na Constituição de inspiração social-fascista de 1937, a federação foi extinta. A conexão entre autoritarismo e centralização é muito forte na nossa história. Nas Constituições de 1967 e principalmente de 1969 (a chamada Emenda nº1), temos uma federação nominal, sendo que de fato o Brasil retorna a um Estado unitário descentralizado, sendo esta descentralização autoritária. Lembremos que os requisitos básicos de um Estado unitário descentralizado não estavam presentes em 1969: personalidade jurídica própria e eleição dos administradores regionais. No Brasil da ditadura que se instalou pós-64 e com a Constituição de 69, os governadores não eram eleitos, assim como os senadores. Uma ditadura mais sofisticada que outras ditaduras latino-americanas, pois dava-se o trabalho de eleger um novo general de quatro em quatro anos, em um sistema de eleição indireta e bipartidário, igual ao modelo presidencial norte-americano.

A Constituição de 1988 restaura a federação e a democracia, procurando avançar um novo federalismo centrífugo (que deve sempre buscar a descentralização) e de três níveis (incluindo uma terceira esfera de poder federal: o município). Entretanto, apesar das inovações, o número de competências destinadas à União em detrimento dos Estados e Municípios é muito grande, fazendo com que nós tenhamos um dos Estados federais mais centralizados do mundo. Isto ainda é uma grave distorção, que tem raízes no autoritarismo das "democracias formais "constitucionais" que tomaram conta da América Latina na década de noventa, com a penetração do perverso modelo neoliberal: os neo-autoritarismos ou o neo-presidencialismo autoritário, segundo o constitucionalista Friedrich Muller. [4]

A compreensão do nosso federalismo como federalismo centrífugo é de fundamental importância para sua leitura constitucionalmente correta e para que se exerça uma leitura constitucionalmente adequada das regras infra-constitucionais, assim como um correto controle de constitucionalidade, coibindo contratos, medidas provisórias, atos administrativos e emendas à constituição absolutamente inconstitucionais, pois tendentes a abolir a nossa forma federal (centrífuga), limite material expresso ao poder de emenda à constituição, e, logo, restrição a qualquer ação contrária à forma federal centrífuga. Não é necessário lembrar, que se uma emenda centralizadora, logo, tendente a abolir a forma federal, é inconstitucional, inconstitucional também será qualquer outra medida neste sentido.

Desta forma, o reflexo desta compreensão ocorre, por exemplo, na leitura correta das limitações materiais previstas no artigo 60, § 4º, quando dispõe que é vedada emenda tendente a abolir a forma federal. Alguns autores referem-se a este dispositivo como cláusula pétrea. Não acreditamos que esta terminologia seja a mais adequada para nomear as limitações materiais do poder de reforma na atual Constituição, uma vez que não estamos nos referindo a cláusulas imutáveis, mas sim a cláusulas não modificáveis em um certo sentido. No caso específico da vedação de emendas tendentes a abolir a forma federal, esta limitação só pode ser compreendida a partir do sentido do nosso federalismo, no caso um federalismo centrífugo.

Isto quer dizer que:

1.O artigo 60 não veda emendas sobre o federalismo, mas emendas tendentes a abolir a forma federal.

2.Ao vedar emendas tendentes a abolir a forma federal, no nosso caso específico, em um federalismo centrífugo, que tem que tender constitucionalmente à descentralização, só serão permitidas emendas que venham a aperfeiçoar o nosso federalismo, ou, em outras palavras, que venham a acentuar a descentralização.

3.Emendas que venham a centralizar, em um modelo federal historicamente originário de um Estado unitário e altamente centralizado, são vedadas pela Constituição, pois tenderiam à extinção do Estado federal brasileiro. Centralizar mais o nosso modelo significa transforma-lo de fato em um Estado unitário descentralizado.

4.Logo, qualquer emenda que centralize mais competência na União é inconstitucional e deve sofrer o controle de constitucionalidade.

5.Finalmente, o modelo centrífugo (federalismo que tende constitucionalmente à descentralização) é princípio constitucional que se impõe não apenas ao legislativo e ao constituinte derivado, mas também a toda a atuação dos poderes da União e, obviamente, também ao executivo.

Podemos concluir que toda e qualquer atuação do legislativo e do executivo da União, que tenda a centralizar competências, centralizar recursos, centralizar poderes, uniformizar ou padronizar entendimento direcionados aos Estados membros e/ou municípios, é conduta inconstitucional e deve ser combatida, além de não ser de observância obrigatória para os Estados e Municípios, pois inconstitucional. Diante da opção de cumprir uma determinação inconstitucional e a Constituição, cumpre-se a norma hierarquicamente superior, ou seja, a Constituição. Para aquele que descumpre a Constituição, se chefe do executivo federal, cabe o processo por crime de responsabilidade, por atos contrários à Constituição, à Federação e ao Estado democrático de Direito.


Notas

1. Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p.100.

2. União pessoal: união precária que se dá quando dois ou mais Estados soberanos vêem-se governados por um só chefe de Estado (ex.: Inglaterra até a subida ao trono da Rainha Vitória)

3. União Real: os Estados, embora distintos na organização interna, apresentam-se sob a mesma unidade externa (ex.: Império Austro-Húngaro sob o reinado de Francisco José).

4. Muller,Friedrich, Quem é o povo. São Paulo: Max Limonad, 1998.

Sobre o autor
José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. O território do Estado no Direito Comparado:: novas reflexões. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3156. Acesso em: 19 nov. 2024.

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