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O território do Estado no Direito Comparado:

novas reflexões

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O tema da organização territorial dos Estados contemporâneos é hoje de grande importância para a construção da democracia participativa e do conceito de cidadania compreendido a partir da teoria da indivisibilidade dos direitos fundamentais (ou dos Direitos Humanos em uma perspectiva constitucional).

Mais do que nunca, é fundamental que encontremos soluções efetivas de implementação de uma democracia participativa, fundada na cidadania, e, para que isso ocorra em nosso país, não podemos aguardar a construção de um Estado Social avançado, que crie as bases da participação consciente da população, uma vez que, com a globalização neoliberal, não só o Estado Social, mas o Estado nacional está em crise.

Não podemos, também, simplesmente abandonar a estrutura e o papel do Estado, em vários níveis de organização territorial, apenas afirmando que toda a solução passa pela sociedade civil organizada. Se esta afirmativa é hoje considerada por alguns autores europeus, sem dúvida ela não se aplica aos países que não se enquadram na realidade da União Européia.

Desta forma, a discussão da organização territorial contemporânea, cada vez mais sofisticada e pontual, pois parte de realidades históricas, culturais, sociais e econômicas específicas, é importante, sendo necessário que haja a transferência de competências e de parcelas de soberania não só para os níveis macroregionais, como a economia globalizada exige, mas, principalmente, para o poder local, até mesmo como forma de resistência ao que há de perverso na globalização, vista como fase de superação da internacionalização da economia, permitindo, desta forma, que possa ocorrer a superação da dicotomia entre Estado e sociedade civil, criada pela superada teoria liberal.

Tradicionalmente, os Estados são classificados, em sua conformação territorial, em Estado Unitário e Estado Federal.

Ao tratar das Formas de Estado, José Afonso da Silva, com razão, afirma que é do modo de exercício do poder político em função do território que teremos o conceito de forma de Estado. [1]

Tradicionalmente, tem-se o seguinte esquema:

Estados Unitários:

Centralizados ou puros/Descentralizado

Estados Compostos:

União Pessoal [2]/União Real [3]/Confederação/Federação

A tradicional classificação de Formas de Estado apenas entre Estado Unitário e Federal está também absolutamente superada pela evolução das formas de organização territorial e repartição de competências, cada vez mais complexas e ricas, havendo claramente, em nível mundial, uma valorização crescente da descentralização territorial efetiva, como forma de ganhar em agilidade, eficiência e, principalmente, democracia, consagrando o respeito à diversidade cultural, que permite que sejam encontradas soluções criativas que respeitem o sentimento da localidade, da região cultural e, especialmente, do sentimento de cidadania que se constrói na rica diversidade das culturas das cidades, espaço real e não virtual.

Adotaremos uma classificação de Formas de Estado mais adequada à realidade atual e perceptível nas Constituições de Estados Nacionais e de Estados membros:

1. Estado Unitário

1.1. Simples

1.2. Desconcentrado

1.3. Descentralizado

2. Estado Regional

3. Estado Autonômico

4. Estado Federal

4.1 Centrípeto ou centrífugo

4.2 De dois níveis ou três níveis

4.3 Simétrico ou assimétrico


O Estado Unitário

O Estado Unitário, entendido como aquele que possui apenas uma esfera de poder legislativo, executivo e judiciário tem hoje três configurações diferentes: O Estado Unitário simples, o Estado Unitário desconcentrado e o Estado Unitário descentralizado.

O modelo simples de Estado Unitário, não divididos em regiões administrativas desconcentradas ou descentralizadas, não é encontrado, devido ao grau acentuado de centralização que dificulta ou na maioria das vezes impossibilita a administração do território, centralizando de maneira excessiva e pouco democrática, as questões relativas ao judiciário, ao legislativo, distantes do povo e das realidades locais, e, principalmente, ao governo e a administração pública. Desta forma o modelo de Estado Unitário simples foi um modelo teórico criado para a lógica do estado nacional soberano em processo de formação e adequado a um conceito de soberania do Estado que não mais pode ser aceito, onde se imagina a soberania como sendo una; indivisível; inalienável e imprescritível. Este Estado Unitário simples por motivos óbvios (se pensarmos em termos de evolução das comunicações e transportes na época) é possível apenas em micro estados, e mesmo nestes não vão existir de fato. A delegação de poderes a entes territoriais menores é inevitável.

Embora os modelos desconcentrados de Estados Unitários não tenham diferentes esferas de poder em nível central, regional e local, a existência de uma divisão territorial onde haja um representante do poder central sem poder de decisão autônoma, mas que funcione como um consultor e representante, do mesmo poder central ou mesmo atue por delegação de competência em nome do poder central (desconcentração) possibilita o exercício do poder e a resolução de problemas nos diversos níveis com maior eficiência.

Já a descentralização dos Estados Unitário democráticos atuais com a existência de entes territoriais autônomos, com personalidade jurídica própria e com capacidade de decisão em determinada questões, sem a interferência do poder central, democratiza a administração pública, aproximando-a da população das regiões e das cidades, assim como agiliza os serviços prestados.

Importante ressaltar que, além da desconcentração e a descentralização territorial da administração pública, e, logo, das competências administrativas, também ocorre a desconcentração (e não a descentralização) da jurisdição no Estado Unitário. A existência de juízes nas localidades e de tribunais de segunda instância nas regiões, por exemplo, representa uma forma de simplificar, agilizar e aproximar o judiciário da população. Isto significa que, permanecendo apenas um poder judiciário nacional, o que é uma característica do Estado Unitário, este terá órgãos que podem ter estrutura administrativa desconcentrada nas localidades e nas regiões.

Com relação ao poder legislativo, não há a possibilidade de descentralização, conferindo autonomia legislativa, sem eliminar o Estado Unitário e o transformar em um Estado regional, autonômico ou federal. A autonomia legislativa das regiões ou das localidades representa a superação do Estado Unitário. Desta forma, o que se encontra no Estado Unitário pode ser a experiência de um legislativo itinerante, que, desta forma, procura aproximação com a população de diferentes regiões e localidades, sem, entretanto, conferir a estas mesmas alguma espécie de autonomia legislativa.

O Estado Unitário simples

O Estado Unitário simples, sem a existência de regiões administrativas autônomas ou meramente desconcentradas, e sem nenhuma espécie de desconcentração ou descentralização da administração e da jurisdição, está hoje completamente superado.

Entretanto, estudando as Constituições dos Estados membros da Federação brasileira, iremos perceber que os mesmos, que possuem territórios, na grande maioria dos casos, superiores a dimensão a vários Estados Nacionais Europeus, mantêm ainda, de maneira inadequada, um grau de centralização muito grande.

Entretanto alguns Estados da federação começam a sofisticar a administração do seu território no âmbito de suas competências. Experiência rica ocorre, por exemplo, no Estado de Minas Gerais, onde a Constituição de 1989 abre o caminho para um Estado Unitário desconcentrado ou mesmo descentralizado, regionalizado. A lei estadual de Minas Gerais, nº 11.962, de 31 de outubro de 1995, instituiu as regiões administrativas no Estado, em número de vinte e cinco. Ë um importante passo para a democratização da administração pública e da gestão governamental até então extremamente descentralizada. Temos, neste caso, uma Federação, que é o Brasil, podendo ser constituída de Estados membros unitários simples, unitários desconcentrados (como Minas Gerais), podendo existir, inclusive, Estados membros unitários descentralizados.

O Estado Unitário Simples é um modelo idealizado, mas que só pode ser possível em microestados ou então em Estados membros de uma federação de três níveis, por existir uma descentralização dos municípios como entes federados por determinação da Constituição Federal, como ocorre no Brasil. Nos modelos federais de dois níveis (modelo clássico), os Estados membros descentralizam competências através de leis estaduais, que organizam os municípios como entidades autônomas, como ocorreu na Alemanha e como ocorreu no Brasil antes da Constituição de 1988.

O Estado Unitário desconcentrado e o Estado Unitário descentralizado

O Estado Unitário desconcentrado é caracterizado pela divisão do território do Estado em diversas regiões, ou em regiões e outras divisões territoriais menores, como departamentos ou províncias, comunas ou municipalidades e arrondissements ou regionais. A terminologia é diferenciada de país para país mas em geral encontramos quatro níveis administrativos.

Havendo apenas a desconcentração, em cada divisão territorial haverá um representante do poder central, sendo que podem haver divisões territoriais, uma dentro da outra.

Desta forma, o Estado nacional pode ser dividido em regiões, que, por sua vez, podem ser divididas em departamentos ou províncias, estes em comunas ou municipalidades, estas, de acordo com a dimensão, em regionais, distritos, arrondissementes ou qualquer outro nome que possa ser adotado para designar está última subdivisão. Entretanto, havendo apenas a desconcentração, em cada uma destas divisões para finalidades administrativas haverá um representante do poder central, que não poderá tomar nenhuma decisão autônoma, tendo a função de levar ao Poder central as questões que sejam de interesse das diversas esferas de divisão territorial, para a decisão final, permitindo, assim, que a decisão central possa ocorrer sobre bases de informações e verdadeiras reivindicações de cada divisão territorial, aproximando o Poder central da população. Entretanto, por outro lado, a criação de diversas esferas apenas desconcentradas, ou seja sem autonomia de decisão, sobrecarrega o poder central, criando uma imensa burocracia, o que torna a decisões lentas, tomadas fora do tempo adequado.

Importante lembrar que o território pode ter diversas divisões, com finalidades diferentes. Desta forma, uma divisão territorial que tenha a finalidade de desconcentrar ou mesmo descentralizar a administração pública territorial pode ser diferente da adotada para a finalidade jurisdicional ou para a desconcentração dos tribunais com a sua regionalização. Obviamente, num Estado Unitário, haverá sempre uma ultima instância central, uniformizadora, de acordo com a organização judiciária adotada e com a legislação processual.

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Percebemos que, hoje, no mundo, os Estados nacionais tem caminhado para a descentralização, sendo que aqueles que ainda não adotaram tipos de Estados federais, regionais ou autonômicos, adotam a forma de Estado Unitário descentralizado nas mais recentes legislações (como a França), caminhando com passos largos em direção a uma descentralização cada vez maior, caracterizada pelo Estado Regional no modelo italiano ou pelo Estado Autonômico no modelo Espanhol, que veremos a seguir. Podemos ainda ressaltar o caso da Bélgica, que, de Estado Unitário, transformou-se em Estado federal em 1993.

Devido a motivações as mais variadas, como distância, diversidade cultural, diferença de grau de desenvolvimento, alguns Estados Nacionais como Portugal e França, que podem ser classificados como Estados Unitários descentralizados, apresentam tratamento diferente para determinadas regiões, que recebem grau de autonomia maior, semelhante, por exemplo, à autonomia das regiões italianas no seu modelo de estado regional. Nestes casos, estas regiões especiais recebem não apenas competências administrativas mas também legislativas, o que caracteriza a descentralização legislativa e administrativa. Este é o caso das Ilhas de Açores e Madeira, em Portugal, classificadas como regiões autônomas pela Constituição portuguesa de 1976, e as regiões e departamentos de além mar da França, como a Guiana Francesa, na América do Sul, que é um departamento do Estado francês. Diante do que foi exposto podemos sintetizar:

a) Estado Unitário Desconcentrado: neste modelo, ocorre apenas a desconcentração administrativa territorial, o que significa que são criados órgãos territoriais desconcentrados que não têm personalidade jurídica própria, logo, não têm autonomia, não podendo tomar decisões sem o Poder central. Esta desconcentração pode ocorrer em nível apenas municipal ou também em nível regional e/ou departamental (provincial), ou qualquer outra esfera de organização territorial que se entenda necessário criar para possibilitar uma melhor administração do território. O modelo meramente desconcentrado aproxima a administração da população e dos diversos problemas comuns as esferas territoriais diferentes. Entretanto, como toda decisão depende do Poder central, torna-se lento. Os Estados democráticos avançados não mais adotam este modelo, que permanece apenas em estados autoritários.

b) Estado Unitário Descentralizado: para permitir maior agilidade e eficiência na administração territorial, gradualmente os Estados Unitários desconcentrados passaram a adotar descentralização territorial, conferindo a estes entes territoriais descentralizados (regiões, departamentos ou provincias, comunas ou municípios, etc.) personalidade jurídica própria, transferindo competências administrativas que foram transferidas por lei nacional a estes entes. Desta forma não é necessário se reportar ao Poder central, não sendo nem mesmo possível a intervenção do Poder central na competência dos entes descentralizados. Importante notar que o Poder central mantém a estrutura desconcentrada ao lado estrutura descentralizada para o exercício de suas competências. Quanto mais competências forem transferidas para os entes descentralizados, mais ágil e mais democrática a administração. A doutrina européia tem ressaltado a necessidade da eleição de órgãos dirigentes dos entes territoriais descentralizados como característica essencial de sua autonomia em relação ao poder central.


O Estado regional

A diferença básica entre o Estado Unitário descentralizado e o Estado Regional está no grau de descentralização ou no número de competências transferidas para as regiões, assim como quais tipos de competências são transferidas. Enquanto no primeiro só há transferência de competências administrativas, no Estado Regional, além destas, as regiões possuem crescentes competências legislativas ordinárias.

O processo de descentralização que vem ocorrendo na Europa fundamenta-se não apenas na evolução da democracia e na busca de maior eficiência e celeridade dos serviços públicos, mas também na busca da manutenção da unidade territorial de Estados complexos como a Itália e a Espanha.

A manutenção da unidade territorial com base em autoritarismos e centralização tem vida curta e tende a uma ruptura radical. Por este motivo, a nova democracia espanhola, com a Constituição de 1978, após longos anos de ditadura franquista, e a Constituição democrática italiana do pós-guerra, em 1947, inauguram novos regionalismos autônomos, sendo que, no caso italiano, embora a Constituição refira-se expressamente a Itália como Estado Unitário, esta permitiu que, recentemente, a Itália caminhasse para um Estado regional, que se coloca para alguns como modelo intermediário entre o Estado Unitário e o Federal.

No caso italiano, a diversidade cultural e o desenvolvimento econômico desequilibrado, com um norte extremamente industrializado e desenvolvido e um sul pobre, leva ao surgimento e fortalecimento de movimentos separatistas como a Liga Lombarda, que defende a Independência do norte, e, especialmente, da Lombardia. Outra situação especial está na região de Alto Adge, que pertenceu à Áustria e tem hoje uma população majoritária de ascendência austríaca que só fala alemão e pouco se comunica com a população de idioma italiano. Para administrar estas e outras situações, o caminho tem sido o de oferecer maior autonomia às regiões, arrefecendo os ânimos separatistas. Desta forma, o Estado italiano tem caminhado para uma descentralização cada vez mais acentuada, o que faz a doutrina atual classificar a Itália, ao lado da Espanha, como um Estado altamente descentralizado.

No Estado regional, a descentralização ocorre de cima para baixo, sendo que o Poder central transfere, através de lei nacional, competências administrativas e legislativas ordinárias. Não há que se falar, no Estado Regional, assim como no Estado Autonômico, que estudaremos a seguir, em poder constituinte decorrente que implica em descentralização de competências legislativas constitucionais e só ocorre no Estado federal. No Estado Regional, o poder central concede autonomia, amplia e reduz esta mesma autonomia administrativa e legislativa ordinária. O Judiciário, como ocorre na Itália, permanece unitário e meramente desconcentrado. As expressões, União, poder constituinte decorrente e Estado membro só se aplicam ao Estado Federal. No Estado Regional, as Regiões elaboram seus Estatutos nos limites da Lei nacional.

Estado Nacional

região região região região região

A tradicional classificação das formas de Estados entre Estado Unitário e Estado Federal não é mais pertinente, uma vez que surgiram novas formas de organização territorial descentralizada Tampouco o grau de descentralização (ou seja o numero de competências descentralizadas) é o elemento diferenciador entre o Estado Regional, o Estado Autonômico e o Estado Federal, mas sim a forma de sua constituição e organização, expressa na maneira de criação dos entes descentralizados e a relação entre as esferas autônomas de organização territorial assim como em relação ao Estado federal, na qualidade de competências descentralizadas, e não necessariamente na quantidade.

Na Italia, exemplo de Estado Regional, temos quatro níveis de competências administrativas (o Estado nacional; a região; a província e a comuna); dois níveis de competências legislativas ordinárias (o legislativo nacional e regional); e um judiciário unitário mas sempre desconcentrado.


O Estado Autonômico

Das formas descentralizadas de Estado, a mais criativa e recente é a criada pela Constituição Espanhola de 1978. Estado de imensa complexidade, a Espanha foi mantida unida no período do franquista sob o regime autoritário centralizador, que proibia as manifestações culturais das diversas nações que compõem a Espanha. Com quatro idiomas reconhecidos no texto constitucional (o castelhano, o galego, o basco e o catalão) e mais diversos dialetos, a Espanha é rica em diversidade cultural, o que, de um lado, retrata um belo mosaico cultural, mas, de outro, traz problemas para a manutenção de sua unidade territorial.

Aspecto fundamental para a existência e permanência de um Estado nacional, o povo nacional, enquanto elemento constitutivo do Estado, deve ser compreendido como o conjunto de pessoas que se sentem parte do Estado, que compartilham valores comuns que fazem com se sintam integrantes do Estado nacional, ou, em outras palavras, pessoas que compartilhem a crença coletiva em um determinado Estado nacional. Para isto, é necessário que, por sobre o sentimento de ser galego, basco, catalão ou castelhano, exista o sentimento de ser espanhol. Este sentimento de ser parte de um Estado nacional é um sentimento recente, surgindo com a formação dos Estados nacionais, e é construído a partir de determinados pontos de aglutinação que podem ser desde uma origem étnica comum um projeto político comum, uma religião comum, um idioma comum, enfim, algum fator que possa identificar as pessoas como integrantes de uma crença coletiva no Estado nacional.

Importante notar que estes aspectos acima citados podem estar presentes simultaneamente, alguns deles, todos eles, um deles, mas devem ser suficientemente fortes para manter a unidade ou sentimento de pertinência a um estado nacional. Sem este elemento, o Estado nacional está fadado a seu esfacelamento. Vários são os exemplos de Estados que desapareceram quando da perda desta identidade comum e o mais recente é a Iugoslávia. Formada pela União federal de povos distintos, com idiomas distintos, religiões distintas, passado histórico que nem sempre uniu, a Iugoslávia foi concebida após a Segunda Guerra Mundial como um Estado socialista autogestionário e por anos o seu fator de unidade foi este projeto comum, assim como durante muitos anos um outro fator agregador foi a liderança carismática e eficiente do croata Josip Bros Tito. Com a morte de Tito e a crise do socialismo autogestionário iugoslavo, a crença no Estado nacional iugoslavo desaparece, cedendo lugar a outras crenças regionais e raciais. Da antiga federação Iugoslava, formada pela Sérvia, Croácia, Montenegro, Macedônia, Eslovênia, Bósnia, e que teve uma das mais belas constituições do mundo, hoje resta uma Iugoslávia arrasada pelo nacionalismo Sérvio e pela sede de dominação mundial do imperialismo norte-americano, disfarçado de uma preocupação humanitária (!?).

A complexidade espanhola não está muito distante da iugoslava. Entretanto, a unidade territorial espanhola é mais antiga (data da expulsão dos mouros pelos reis católicos Isabel e Fernando) e, logo, construiu outros fatores agregadores importantes, como um passado histórico comum, a religião católica, e, interessante, a enorme penetração do castelhano no mundo, que o tornou, de um idioma regional, em um idioma espanhol. Entretanto, mesmo presentes todos estes elementos, o movimento separatista, principalmente basco, é hoje ainda forte, e a unidade espanhola é atualmente representada por dois elementos extremamente eficientes até agora: a monarquia e o Estado autonômico.

A restauração da monarquia após o período franquista foi muito importante para a Espanha. Separando de maneira adequada a função simbólica de chefe de estado (o Rei) da função de governo (o primeiro ministro ou presidente de governo na terminologia da Constituição espanhola), deu-se um passo importante para eliminar o risco de se ter um chefe de governo e de estado carismático (porque símbolo e poder efetivo ao mesmo tempo), abandonando, com isto, a triste tradição fascista de Franco, ao mesmo tempo em que permitiu que a figura do Rei pudesse cumprir seu papel simbólico de representar os valores espanhóis acima dos regionalismos.

O outro fator de agregação é o criativo Estado Autonômico. Previsto pela Constituição de 1978, o Estado Autonômico assemelha-se ao Estado Regional no que diz respeito ao grau de descentralização (descentralização de competências administrativas e legislativas ordinárias), mas com este não se confunde em nenhuma hipótese. A maneira de sua constituição é diferente e pode ser assim enumerada:

1.A iniciativa de estabelecimento de regiões autônomas parte de baixo para cima, sendo que as províncias devem unir-se, formando uma região e, através de uma assembléia, elaborar seu estatuto de autonomia.

2.O estatuto de autonomia pode ou não incorporar todas as competências destinadas às regiões pela Constituição espanhola, o que significa que as competências que não forem assumidas pela região serão assumidas pelo Estado nacional.

3.Uma vez elaborado o estatuto, este deve ser aprovado pelas Cortes Gerais (parlamento espanhol), transformando-o em lei especial que não pode ser mais modificada pelo próprio parlamento espanhol através de lei ordinária, voltando para ser aplicado nos limites do território da região autonômica.

4.De cinco em cinco anos, estes estatutos podem ser revistos, seguindo-se o mesmo procedimento, sendo que, neste período, a região pode reduzir suas competências ou amplia-las, admitindo a Constituição espanhola que a região possa inclusive reivindicar competências que na Constituição espanhola estejam destinadas ao Estado nacional espanhol.

5.Em todo momento, o parlamento realiza o controle da autonomia das regiões, aprovando ou não as modificações nos estatutos.

Este modelo extremamente inteligente tem o condão de levar as discussões por autonomia a um espaço democrático e constitucional, evitando a exacerbação dos ânimos em um debate extraconstitucional. A manutenção da unidade espanhola pela forma autoritária do Estado Unitário franquista teria como conseqüência uma guerra civil, como ocorreu na Iugoslávia e na Russia. A criação de um processo constitucional, para onde podem ser levadas as reivindicações por mais autonomia permitindo que estas possam ser solucionadas democraticamente através do debate político, da argumentação séria no parlamento, é hoje a principal responsável pela continuidade da unidade territorial. Problemas existem e sempre existirão, pois são eles que fazem os sistemas evoluírem e se adaptarem constantemente a novas realidades, mas, sem dúvida, o Estado autonômico é a fórmula de administração territorial mais criativa surgida recentemente.

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Sobre o autor
José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. O território do Estado no Direito Comparado:: novas reflexões. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3156. Acesso em: 25 abr. 2024.

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