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Memórias Póstumas de Brás Cubas: reflexões jurídicas

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Agenda 13/09/2014 às 09:57

A literatura para o cientista do direito, deve ser vista, como uma ciência que irá melhorará seu senso crítico no momento da aplicação da norma ao caso concreto. A obra Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis é uma cópia fiel da realidade social vivida no Século XIX.

Resumo: O Direito e a literatura são disciplinas que se completam. As obras literárias retratam vários questionamentos jurídicos durante o transcorrer da história demonstrando o pensamento da sociedade da época. No presente artigo foi contextualizado a obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, dentro do universo jurídico. Com  isso, foram abordados temas importantes como: aspecto jurídicos e sociais do Século XIX, escravidão e o direito de propriedade, o positivismo jurídico: a norma como justificação do poder estatal. Assim, o trabalho tem por escopo justificar a importância da literatura para o Direito demonstrando como esta auxilia os operadores do Direito no momento da aplicação da lei.

Palavras-chave: Direito e Literatura; Aspectos sociais e políticos do século XIX; escravidão; positivismo jurídico.

Sumário: 1 – Introdução; 2 – Direito e literatura; 3 – Aspectos Jurídicos e sociais do Século XIX;  3 – Escravidão e o Direito de Propriedade; 4 -  Positivismo Jurídico: a norma como justificação do poder estatal; 5 – Referências bibliográficas.


1. Notas introdutórias

A interdisciplinariedade entre literatura e o Direito é um assunto debatido há anos por diversos autores que buscam contextualizar uma obra literária, principalmente do século XIX, dentro do mundo jurídico.

O presente artigo aborda essa interdisciplinariedade. Revisita a história e adentra na cultura jurídica-política de uma obra literária, partindo da visão crítica do seu autor.

A obra escolhida é Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, de 1.881. Nessa época, o Brasil tinha como forma de governo a Monarquia, cujo imperador era D. Pedro II. Ainda vigorava o sistema escravocrata e a sociedade era totalmente submissa ao Imperador que governava com amplos e irrestrito poderes sempre embasado no Poder Moderador. Também, a doutrina adotada no Império Brasileiro era o positivismo jurídico, cujo bacharéis, juízes e juristas faziam leis  sempre para defender os interesses do Imperador.

Machado de Assis, através de Brás Cubas, mostra as mazelas da sociedade política e jurídica do século XIX. Aborda assuntos como política, cultura, costumes e sociedade. Ironiza ainda com acidez o positivismo (cientificismo) chegando ao ponto de um dos seus personagens criar o “humanitismo” e de Brás Cubas morrer em virtude de um remédio que o próprio inventou.

Sua obra demonstra claramente a interseção entre o Direito e a Literatura com brilhantismo.

Diante deste quadro, considerando que a literatura é um suporte do Direito, capaz de retratar vários institutos jurídicos diante da história, revelando o pensamento social da época,  o presente artigo tem como objetivo abordar alguns aspectos importantes da interdisciplinariedade entre a literatura e Direito, tais como: aspecto jurídicos e sociais do Século XIX, escravidão e o direito de propriedade e o positivismo jurídico: a norma como justificação do poder estatal.


2.Direito e Literatura

O direito e a literatura são disciplinas que devem ser estudadas sempre em conjunto. Um completa o outro.

É impossível estudar direito sem a literatura. Esta desperta o espírito crítico e reflexivo do estudioso do direito em todas suas relações, seja prática ou empírica.

O mesmo pode se falar da literatura que não vive sem o direito. As estórias ou histórias sempre estão relacionadas a temas jurídicos, tais como, homicídios, adultérios, herança, propriedade, direitos fundamentais da pessoa humana, entre outros.

Machado de Assis, na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, retrata fielmente a realidade social da época. Até parece uma obra autobiográfica.

Assim se manifesta Plauto Faraco de Azevedo:

Ninguém se apropria do idioma sem ler os grandes escritores, a começar, entre nós, por Machado de Assis, sobretudo sua trilogia – Dom Casmurro, Quincas Borba e Memórias Póstumas Brás Cubas. Em Machado de Assis não se aprende só a língua, despojada, transparente e gramaticalmente correta. Nele sente-se a mensagem de sua época, ao mesmo tempo em que sua prosa transmite significados que transcendem de muito  de por dizerem respeito aos homens de todos os tempos. O leitor Machado de Assis abebera-se da psicologia ao mesmo tempo em que aprende a perscrutar filosoficamente o mundo, percebendo que a ironia de gênio não é forma de negar o mundo ou de menosprezar os homens, mas de sabiamente aceitá-los na sua humana condição.[1]

A literatura através da análise de textos proporciona ao jurista amadurecimento de idéias, conhecimentos, problematização dos mais diversos assuntos, alternativas para determinados casos, uso correto do idioma, etc.

Os textos, seja jurídico ou literário sempre partem da problematização de temas variados. Ocorre que o primeiro trabalha obrigatoriamente com a realidade enquanto que o segundo geralmente com a ficção.

A interdisciplinariedade permite que o direito traga para seu bojo características fundamentais da literatura como a invenção, a inovação, a crítica e o aperfeiçoamento. Isso facilita ao jurista no momento de se debater com questões éticas, morais e sociais do seu cotidiano.

Nesse sentido, afirma Germano Schwartz que:

“[..] é necessário explorarmos elementos para a análise literária da ciência jurídica, demonstrando a conexão existente entre Direito e Literatura, corn o objetivo de resgatar o senso de um tempo em que a justice era poética, quando os debates acadêmicos e sociais se desenvolviam em m ambiente de paixão, hoje abandonado pela crescente burocratização do papel desenvolvido pelos pesquisadores em nossas universidades e pelos operadores do Direito na praxis jurídica.”[2].

O estudo conjunto do Direito e Literatura permite quebrar a barreira que existe entre a realidade e a ficção, permitindo ao julgador aplicar a lei de acordo com o clamor da sociedade (Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, art. 5º)[3].

Assevera Arnaldo Sampaio de Morais Godoy, na sua obra Direito e Literatura: ensaio de uma síntese teórica:

"a relação entre direito e literatura sugere que se abandonem fronteiras conceituais clássicas" no sentido da superar as dificuldades de aproximação existentes entre a "lógica abstrata" do direito e a característica "ficcional" da literatura. Trata-se de um caminho ambicioso que pode levar, segundo o autor, ao inesperado, não esquecendo do desafio de gerar um campo de investigação interdisciplinar. "[4]

O autor Pedro Tavalera relaciona direito e literatura sob uma a ótica intrínseca e extrínseca, vejamos:

Intrínseca - “el derecho no es sino um tipo particular de relato literário, cuya compreensión e interpretación podría perfectamente abordase com los instrumentos próprios de la hermenêutica literária, ... . ...há unidade hermenêutica entre ambas as disciplinas, aplicando al discurso jurídico los métodos utilizados em el análisis literários”.

Extrínseco – “el derecho es el tema central de muchas narrativas literárias que aportan valiosas reflexiones críticas sobre la mltitud de sus postulados normativos, su origen, su aplicación y su interpretación”. "[5]

Assim, o operador do direito não pode se privar da literatura. Ambas são ciências sociais. Devem ser estudadas de forma conjunta, pois auxiliam na compreensão integral e completa da ciência no qual está sendo investigada.

Por fim, a literatura para o cientista do direito, deve ser vista, como uma ciência que irá melhorará sua interpretação e compreensão no momento da aplicação da norma, vez que estará apto para fazer um juízo crítico e justo daquilo que está sendo posto para sua análise e decisão[6].


3. Aspectos Jurídicos e sociais do Século XIX

A obra Memórias Póstumas de Brás Cubas é de autoria de Machado de Assis e marca o início do Realismo no Brasil.

O Realismo tinha como objetivo mostrar o homem e a sociedade como realmente eles eram na época. Tinha um enorme senso crítico.  

Nesta seara, Machado de Assis, vive a realidade da sociedade da época dentro da obra ficcional Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Brás Cubas é um defunto-autor, de família rica do Rio do Janeiro mas sem tradição na política, que não gostava de trabalhar, gozava de vários privilégios com os pais, formou-se bacharel em Coimbra, o pai queria casá-lo com uma filha de político e fazê-lo deputado. Era um típico cidadão da sociedade política, social e cultural do século XIX.

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Nesse universo, é preciso ressaltar que a História do Direito é de suma importância, vez que é a disciplina que estuda a realidade social, jurídica e política durante o percorrer dos anos.

A história do direito pode ser definida de dois modos distintos, de acordo com o próprio sentido dúplice que a própria ‘história’ encerra. De um  lado,a história do direito é o ramo do saber que se ocupa do passado jurídico (como na expressão a história do direito aborda prioritariamente o período moderno). De outro lado, a história do direito é objeto deste mesmo saber, aquilo que está sendo estudado (como por exemplo na expressão “a história do direito demonstra que a emergência da propriedade foi um processo descontinuo e complexo”).[7]

   

O Brasil, do Século XIX, tinha como forma de governo  a monarquia e vigorava a Constituição Federal de 1.824, outorgada pelo Imperador D. Pedro I[8].

Existia quatro poderes, o executivo, o legislativo, o judiciário e o moderador[9]. Este último era exercido exclusivamente pelo Imperador e tinha como função “harmonizar os demais poderes”[10].

Fato esse que não era verdadeiro. Tal poder era uma forma do Imperador controlar todos os demais poderes.

Na verdade, a monarquia do Brasil, foi um parlamentarismo “às avessas”, vez que era o Imperador quem nomeava ou destituíam os ministros, os senadores e juízes. Através do poder moderador o Imperador podia fechar o Congresso Nacional, embasado simplesmente  na necessidade de salvaguarda do Estado.[11]

Segundo Flávia Lages de Castro “o Poder Legislativo era composto pela Câmara dos Deputados e Senado. Este último  tinha como característica principal a vitaliciedade e, em última instância  eram escolhidos pelo Imperador através  de listas tríplices”.[12]

Constituição Imperial Brasileira de 1824, Art. 40. O Senado é composto de membros vitalícios e será  organizado por  eleição  provincial.

Constituição Imperial Brasileira de 1824, Art. 43. As eleições serão feitas pela mesma ma­neira que as dos deputados, mas em listas tríplices, sobre as quais a Imperador escolherá o terço na totalidade da lista.

Já os deputados, as eleições eram indiretas e só se elegiam quem fosse de família rica (“próxima  ao Imperador”)  e preenchessem alguns requisitos.[13] E mais, poucas pessoas tinha direito de voto. Isso para ratificar a suposta “democracia” que então existia.

Na realidade, a atribuição aos indivíduos-cidadãos de alguns direitos subjetivos tipificados diante do estado como poder (e não, portanto como sujeito patrimonial ou fisco) foi uma espécie de subproduto ou efeito secundário da chamada dos indivíduos a participar, através do voto e a eleição de órgãos políticos coletivos, da administração do estado. Em outros termos, os direitos subjetivos públicos constituíram uma espécie de reflexo sobre os indivíduos da sua legitimação para participar da composição de um órgão colegiado legislativo, amparado no poder monárquico. O que quer dizer que o direito subjetivo publico foi desde o inicio o reflexo ou efeito de uma função, em que o individuo veio a encontrar-se ligado enquanto chamado a eleger um corpo legislativo: ele foi o revestimento jurídico social, segundo a estilização que então lhe foi dada. O que quer dizer ainda que o direito público se constrói sobre uma relação  ou série de relações, nas quais o individuo comparecia munido de uma capacidade especial, justamente a de contribuir ou participar da formação de um órgão do estado, o que significava tomar parte da construção e conjuntamente no controle social e coletivo do poder estatal. Não, portanto, em virtude de uma liberdade em senso pleno, mas de uma liberdade já modificada e adaptada para participar do poder.[14]

O Poder Judiciário também não escapava da subordinação ao Imperador. Eram também nomeados por este[15].

É necessário não olvidar, que a Constituição Imperial Brasileira, para não ser execrada pela comunidade internacional fixou vários direitos fundamentais do cidadão[16]. Mas estes só existiram no papel.

Também, para convencer que era uma monarquia constitucional a Constituição Federal do Brasil de 1824 gozava de certa flexibilidade, já que apenas os direitos políticos e individuais não poderiam ser alterados por lei ordinária.

A Constituição  do Império  foi fruto da sua época  e de suas circunstancias. Durou muito tempo e tinha certa flexibilidade pois seu art. 178 havia determinado que apenas o que dizia respeito aos limites e atribuições  dos poderes políticos e os direitos políticos  e individuais era propriamente constitucional. Tudo o mais po­deria ser alterado sem as formalidades da reforma constitucional.[17]

A Constituição Imperial do Brasil na verdade foi elaborada para atender as necessidades e aos desejos das elites aristrocratas da sua época. O mesmo acontecia com as leis civis, já que o legislativo estava sob o jugo da Imperador.

Esse lamentável procedimento se deve muito mais aos políticos, que teimam em legislar com casuísmo, construindo uma Lei Maior para atender o período em que ocupam o poder, demonstrando um despreparo total para a missão de constitucionalistas, menos por competência técnica e muito mais pela ânsia de obter o poder. Os fatos vividos e a recente história brasileira estão aí para confirmar a minha posição.[18]

Enfim, a monarquia brasileira, era extremamente absolutista e ditatorial. Tanto que o Imperador era totalmente irresponsável pelos seus atos[19].

José Reinaldo de Lima Lopes em sua obra O Direito na História, descreve as principais características da Constituição Imperial de 1824.

A Constituição de 1824 foi relativamente original. Feita sob encomenda de D. Pedro I, criou um Estado centralizado e fortes poderes conservadores na competên­cia  do imperador. Ao mesmo tempo que garantia liberdades civis gerais, o sistema dependia grandemente da boa vontade dos particulares e dos organismos locai especialmente dos poderes particulares locais. A participação política era restrita e censitária, no que acompanhava todas as constituições  do século  XIX.

...Duas de suas instituições foram objeto de longa polêmica entre os juristas do Império de modo especial, o Poder Moderador e o Conselho de Estado. Ambas tiveram um papel importante na estabilidade da política  nacional, papel conservador de fato.

.... O Poder Moderador é a chave de toda a organização Política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, seu Primeiro Representante, para incessantemente vele sobre a manutenção  da In­dependência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos.".

...O Conselho de Estado teve papel importantíssimo no Segundo Reinado. Era ouvido todas as vezes que o Imperador fosse usar o Poder Moderador. Embora fosse consultivo, pois o Moderador só pertencia ao Imperador, dava fundadas razoes para a tomada de decisão. ... Funcionava sobretudo nas suas quatro seções (Justiça, Guerra, Fazenda e Império) e suas decisões ajudaram a formar a cultura jurídica brasileira.  ... Os conselheiros eram vitalícios, escolhidos pelo Imperador e também por este dispensado por tempo indefinido quando julgasse conveniente.[20]

Nesse diapasão, no século XIX, os filhos das famílias mais abastadas eram enviados para a Europa para tornarem bacharéis em Direito. Depois retornavam ao Brasil e monopolizavam a política brasileira. Eram nomeados juízes ou elegiam-se deputados. Depois tornavam-se senadores e ministros de Estado.

A carreira jurídica, em particular a magistratura, é um degrau – o primeiro degrau – para a política. De advogado pode-se passar, pela nomeação do presidente da província ou do ministro (Imperador), a juiz municipal ou juiz de direito, mais tarde a delegado ou chefe de polícia. Se bem prestados seus serviços e se o partido certo continuar no poder, e os amigos ricos ainda estiverem no gozo de sua riqueza influencia, passa-se a deputado provincial ou geral.

...

Os magistrados, além dos advogados, foram sempre um grupo importante da política imperial. Muitos magistrados candidatavam-se a deputados e assim havia na câmara, em 1850, 34 juizes e 8 desembargadores dentre 111 deputados.[21]

Deste modo, não existia maneira do Judiciário ser independente, vez que tudo na política da época, sempre envolvia indicação. Quem era nomeado magistrado ficava devendo favor àquele que o nomeava.

[...] juízes, na esfera local, estavam em função carregada de matizes políticos, pois deviam ser indicados pelo Imperador e sua indicação dependia de algum contato político (um apadrinhamento) e ao mesmo tempo passavam a dever lealdade a quem os nomeara, ao governo imperial. Também poderiam candidatar-se a cargos de deputado, e por isso a carreira política no Império começava frequentemente num cargo judicial[22]

A estória de Memórias Póstumas de Brás Cubas é um retrato fiel da realidade social, cultural e política do século XIX. Nascido de família rica mas não de políticos, nunca fez nada de importante, gastava o dinheiro dos pais com a boemia e prostitutas. Em virtude disso, o pai mandou para Portugal, para estudar Direito em Coimbra, como toda família fazia na época. Consequentemente isso, aumentaria a possibilidade de alcançar cargos no governo imperial ou ingressar na política.

...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu pai, logo que teve aragem dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil.

- Desta vez, disse ele, vais para a Europa. Vais cursar uma Universidade, provavelmente Coimbra; quero-te para homem sério e não para arruador e gatuno. E como eu fizesse um gesto de espanto: - Gatuno, sim senhor; não é outra coisa um filho que faz isto ... Sacou da algibeira os meus títulos de dívida, já resgatados por ele, e sacudiu-mos na cara. ... Estava furioso, mas de um furor temperado e curto. Eu ouvi-o calado, e nada opus à ordem da viagem, como de outras vezes fizera;  ... E foi assim que desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A universidade esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel; deram-mo com a solenidade do estilo, após os anos da lei; uma bela festa que me encheu de orgulho e de saudades, - principalmente de saudades. Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um acadêmico estróina, tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das constituições escritas. No dia que a universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; ... . [23]

Antônio Carlos Wolkmer,  diz que as faculdades de Direito do século XIX prestavam para formar pessoas para ocuparem cargos públicos (magistrados, deputados, senadores, ministros, etc). Obviamente havia ascensão social  do bacharel e esse passava a ser respeitado dentro Império.

...deve-se considerar que, na prática, as faculdades de direito prestaram-se mais a distribuir o status necessário à ocupação de cargos públicos de um quadro burocrático que já se expandia, que a propiciar efetivamente a formação de uma elite intelectual razoavelmente coesa e preparada. ... Além dos cargos públicos, da ascensão social, consideram-se alguns argumentos de que se buscava também, no curso de direito, uma cultura geral, desinteressada, oferecida nesses cursos penetrados de filosofia e de letras e apropriada para o exercício de outras atividades e ocupações. Ainda nesses casos, parece, porém, que seria possível identificar, também aí, uma postura associada à possibilidade de “qualificação do discurso pela qualificação do narrador” ou, ao menos, uma “não-desqualificação imediata do discurso” ante qualificação do narrador e, assim visto, estaria aí presente o desejo de aquisição de insígnias e uma forma de distinção social. Parece, a propósito, que para a aquisição de “cultura geral” o caminho mais adequado, dada a qualidade do ensino e o empenho dos professores, seria o das viagens e bibliotecas. ... Entende-se por bacharelismo a situação caracterizada pela predominância de bacharéis na vida política e cultural do país. ... A exemplo de outros países, também no Brasil os bacharéis de direito tiveram papel fundamental na estruturação do Estado, ocupando os mais importantes cargos públicos e espraiando-se por todos os poderes, seja no Império, seja na República.[24]

E continua:

A prática consolidou-se de forma particularmente interessante no Segundo Reinado, o reinado dos bacharéis, ... para quem “ninguém foi mais bacharel nem mais doutor neste País que Dom Pedro II”.Com efeito, em nítido contraste com a figura do pai, algo impulsivo e belicoso, com traços mais para militar que para bacharel, Dom Pedro II cultivava esmeradamente o espírito, incentivando as letras, a música e a cultura clássica em geral, inspirado, quem sabe, pelas vocações superiores que devem norte ar os desígnios de um imperador. Durante o seu reinado, iniciado quando ainda menino, cercou-se de bacharéis moços, que renovavam-se nos gabinetes, na condução dos negócios do Estado, sob sua proteção e vontade. Em termos de legislação nacional de maior envergadura, foram produzidos o Código Penal, o Código de Processo Criminal, o Código Comercial e o Regulamento 737 (Código de Processo Civil e Comercial).[25]

Quando, Brás Cubas, volta de Portugal, seu pai tentou lhe casar com a filha de um político (Vírgilia) e transformá-lo em deputado. Mas foi  trocado por Lobos Neves, filho de  família de políticos. Perdeu o casamento e a cadeira de deputado.

Tu; é um homem notável, faz hoje as vezes de Imperador. Demais trago comigo uma idéia, um projeto, ou... sim, digo-te tudo; trago dois projetos, um lugar de deputado e um casamento. ...a tua noiva  chama-se justamente Vírgilia.  ... filha do Dutra... - Que Dutra?

- O Conselheiro Dutra, não conheces; uma influência política. ... Todo homem público deve ser casado, interrompeu sentenciosamente meu pai. ... não gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te não ver brilhar, como deves, e te convém, e a todo nós; é preciso continuar o nosso nome continuá-lo e ilustra-lo ainda mais. ...Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens.  ...Vencera meu pai, dispus-mo a aceitar o diploma e o casamento, Vírgilia e a Câmara dos Deputados. ...Antes de ir à casa do Conselheiro Dutra, perguntei a meu pai se havia algum ajuste prévio de casamento.

- Nenhum ajuste. Há tempos, conversando com ele a seu respeito, confessei-lhe o desejo que tinha de te ver deputado; e de tal modo falei, que ele prometeu fazer alguma coisa, e creio que fará. ... Então apareceu o Lobo Neves, um homem que não era mais esbelto que eu nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simpático, e todavia foi quem me arrebatou Vírgilia e a candidatura, dentro de poucas semanas, com um ímpeto verdadeiramente cesariano. Não precedeu nenhum despeito; não houve a menor violência de família. Dutra veio dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem porque a candidatura de Lobo Neves era apoiada por grandes influências. Cedi; tal foi o começo da minha derrota. Uma semana depois, Vírgilia perguntou a Lobo Neves, a sorrir, quando ele seria ministro.

- Pela minha vontade, já; pelas dos outros, daqui a um ano. Vírgilia, replicou:

- Promete que algum dia me fará baronesa?

- Marquesa, porque eu serei marquês. ... Meu pai fico atônito com o desenlace ...Meu pai é que não pôde suportar facilmente a pancada. ... Morreu daí a quatro meses, acabrunhado, triste, com uma preocupação intensa e contínua, à semelhança de remorso, um desencanto mortal, que lhe substituiu os reumatismos e tosses. Teve ainda meia hora de alegria; foi quando um dos ministros o visitou. [26]

Em virtude disso, o pai de Brás Cubas morreu de degosto porque sabia que seu filho era um vadio e o melhor cargo para exercer seria de um político. Na época, o político era sinônimo de pessoa que não gostava de trabalhar e que gozava dos privilégios oferecidos pelo Imperador. E Brás Cubas se encaixava perfeitamente neste esteriótipo. Felisbelo Freire, ilustra com precisão tal afirmativa:

Cada Senador percebe subsidio de nove contos por cada sessão parlamentar e cada deputado o de seis contos de réis, não contando a ajuda de custo para o seu transporte. A verbiagem é o flagelo da instituição é excessivo e ainda quando há sessão, acontece com os deputados o que acontece com os estudantes vadios e o que talvez ainda aconteça com os empregados públicos, que são desidiosos – assinam o ponto e saem para passear. Como tem certeza de receber o subsidio integral no fim do mês, pouco se importam com os efeitos da sua negligência.

Deputado tem havido que só comparecem na corte quase na véspera de encerrar-se o parlamento, e no, entanto, vão cobrar a sua ajuda de custo e os seus ordenados atrasados. Desse modo o parlamento tem sido um montepio, para certos privilegiados, o abuso tanto na assembléia geral como nas assembléias provinciais, tem ido ao ponto de estarem certos deputados presentes no edifício das sessões e por esta ou aquela razão política, por este ou aquele capricho, fazem parende, impedindo que haja numero para celebrar a sessão, sem que isso o prejudique no recebimento integral do subsidio. Quanto ao método de trabalho, é ele bem conhecido. Perdem-se longas sessões com discursos vãos, exibições de retóricas, disputas políticas referentes a personalidades e figurões  da aldeia, com grave prejuízo  para causa política. [27]

Mesmo perdendo o casamento e a cadeira de deputado, tornou-se amante de Vírgilia e amigo pessoal de Lobo Neves, que sempre falava das mazelas da política.

Lobo Neves, a princípio, metia-me grandes sustos. Pura ilusão! ... Um dia confessou-me que trazia uma triste carcoma na existência; faltava-lhe a glória pública. ... Dias depois disse-me todos os seus tédios e desfalecimentos, as amarguras engolidas, as raivas sopitadas; contou-me que a vida política era um tecido de invejas, despeitos, intrigas, perfídias, interesses, vaidades. ...

-Sei o que lhe digo, replicou-me com tristeza. Não pode imaginar o que tenho passado. Entrei na política por gosto, por família por ambição, e um pouco por vaidade. ... Creia que tenho passado horas e dias ... Não há constância de sentimentos, não há gratidão, não há nada... nada... nada... . ...Certo dia, ..., entrou Lobo Neves em casa, dizendo que iria talvez ocupar uma presidência de província. ... Dois dias depois declarou à mulher que a presidência era coisa definitiva.  ... Lobo Neves contou-me os planos que levava para a presidência, ... O pior, disse-me Lobo Neves, é que ainda não achei secretário. ... Quer você dar um passeio ao Norte? Não sei o que lhe disse.

- Você é rico, continuou ele, não precisa de um magro ordenado; mas se quisesse obsequiar-me, ia de secretário comigo. ..., disse que sim, que iria. ... ..., abro uma folha política e leio a noticia de que, por decreto de 13, tínhamos sido nomeados presidente e secretário da província  de ... o Lobo Neves e eu. ...  Vírgilia ... contou-me que o marido ia recusar a nomeação, ... o decreto trazia a data de 13, e que esse número significava para ele uma recordação fúnebre. ... Não podia alegar semelhante coisa ao ministro; dir-lhe-ia que tinha razões particulares para não aceitar. ... ato grave, cuja conseqüência foi separar do ministério o marido de Vírgilia. Assim, o fato particular da ojeriza de um número produziu o fenômeno da dissidência política. ...limito-me a dizer por ora que o Lobo Neves, quatro meses depois de nosso encontro no teatro reconciliou-se com o confuso ministério; ...  Lobo Neves foi nomeado presidente da província. ...o decreto...; trouxe, porém, a data de 31, ... . ... encontrei Lobo Neves, na Rua do Ouvidor, falamos da presidência e da política. Ele aproveitou o primeiro conhecido que nos passou à ilharga, e deixou-me, depois de muitos cumprimentos.[28]

Muito anos após a tentativa do pai de lhe transformar em deputado, quando já contava com cinqüenta anos, finalmente conseguiu seu objetivo. Elegeu-se deputado. Mas como já era de esperar, foi considerado medíocre por seus pares. Não fez nada que se aproveitasse.

...Era deputado, e vi a gravura turca, recostado na minha cadeira, entre um colega, que contava uma anedota, e outro, que tirava o lápis, nas costas de uma sobrecarta, o perfil do orador. O orador era Lobo Neves. A onda da vida trouxe-nos à mesma praia, ... . .... discutindo-se o orçamento da justiça, aproveitei o  ensejo para perguntar modestamente ao ministro se não julgava útil diminuir a barrentina da guarda nacional. ... a parte política foi considerada por muito deplorável; alguns achavam meu discurso um desastre parlamentar.[29]

Diante do exposto, o século XIX foi uma época na qual a sociedade estava completamente subordinada a vontade do Imperador. Persistia a hipocrisia. A política dos “favores”. Enfim, só conseguia ascensão social e política quem era amigo do “império”.

Sobre o autor
Wanderson Lago Vaz

Graduado bacharel em direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), especialista e mestre em Direito. Professor de Direito da Unipar – Campus Paranavaí e Unespar – Campus Paranavai.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VAZ, Wanderson Lago. Memórias Póstumas de Brás Cubas: reflexões jurídicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4091, 13 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31881. Acesso em: 16 nov. 2024.

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