A Lei n. 9.034, de 3.5.1995, a denominada Lei de Combate [1] ao Crime Organizado, que dispôs sobre meios operacionais para prevenção e repressão de ações cometidas por organizações criminosas, alterada pela Lei n. 10.217, de 11.4. 2001 [2], em seu art. 2.º, inc. V, permite, "em qualquer fase de persecução criminal", a "infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial". [3]
Considera-se agente infiltrado "a pessoa que, integrada na estrutura orgânica dos serviços policiais, é introduzida, ocultando-se sua verdadeira identidade, dentro de uma organização criminosa, com a finalidade de obter informações sobre ela e, assim, proceder, em conseqüência, a sua desarticulação" [4].
Apreciando o alcance da Lei n. 10.217/01, verifica-se que não admite a infiltração de particulares, quaisquer que sejam, na prevenção e repressão do crime organizado. Não obstante as lacunas da Lei [5], neste ponto é clara ao indicar que somente agentes de polícia e de inteligência [6] podem agir, nas organizações criminosas, como agentes infiltrados. Como diz LUIZ OTÁVIO DE OLIVEIRA ROCHA, "somente os membros dos organismos policiais (e de inteligência) podem atuar como agentes infiltrados, descartando-se, portanto, a cooperação de particulares" [7]. Tanto que o art. 4.º da Lei determina aos órgãos de Polícia Judiciária a estruturação "de equipes e setores de policiais especializados no combate à ação praticada por organizações criminosas".
A infiltração de pessoas estranhas aos organismos policiais traz inúmeros problemas, como o da probabilidade de o infiltrado, em participação ou co-autoria com os demais membros da organização criminosa, vir a cometer delitos. Ele, a autoridade dirigente da infiltração e a que a permitiu estariam cobertos de responsabilidade penal? [8]
O particular está, pois, impedido de agir como agente encoberto. O tema é tão pacífico que não merece muitas considerações. Já foi legislado em vários países, como Alemanha, México, Chile, Itália, França, Panamá, Estados Unidos, Argentina [9] e Espanha, em nenhum deles admitindo a doutrina a legitimidade da infiltração de particulares. [10]
Notas
1. As Nações Unidas não empregam mais a expressão "combate" (ao crime), preferindo "prevenção e repressão".
2. A Lei n. 10.217/01 resultou do Projeto de Lei n. 3.275/00, do Poder Executivo.
3. O legislador brasileiro já havia tentado introduzir entre nós a figura do "agente infiltrado", tendo sido vetado pelo Senhor Presidente da República o inc. I do art. 2.º da Lei n. 9.034/95, que a previa. A "infiltração" não se confunde com a "ação controlada", que consiste em retardar a atividade policial no sentido de se aguardar momento apropriado para a produção de provas (art. 2.º, II, da Lei n. 9.034/95). Sobre a ação controlada, vide CARVALHO, Ivan Lira de. A atividade policial em face da Lei de Combate ao Crime Organizado. São Paulo, RT 736/473. Sobre o agente infiltrado, vide DR. JEKYLL Y MR. HYDE. La introducción del llamado agente encubierto a la legislación argentina. Nueva Doctrina Penal, Buenos Aires, Editores del Puerto, 1996/A, p. 273 e s.; GUARIGLIA, Fabricio. ¿El agente encubierto: un nuevo protagonista en el procedimiento penal? Madri, Jueces para la Democracia, 1995, 23:49; EDWARDS, Carlos Enrique. El arrepentido, el agente encubierto y la entrega vigilada. Buenos Aires, Ad-Hoc, 1996; CORCUERA, Santiago, DUGO, Sergio e LUGONES, Narciso J. Una muy rápida mirada histórica sobre el agente provocateur y sus descendientes en el Derecho Comparado, Cadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal, Buenos Aires, Ad-Hoc, n. 4/5, p. 193 e s.; MATA-TOUROS, Fátima. O agente infiltrado. Lisboa, Revista do Ministério Público, jan./mar. 2001, vol. 22, fasc. 85, p. 105; CARRIÓ, Alejandro. ¿Agentes encubiertos y testigos de identidad reservada: armas de doble fio, confiadas a quien? Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal, Buenos Aires, vol. 3, fasc. 6, p. 311, ago. 1997; BRAUM, Stefan. La investigación encubierta como característica del proceso penal autoritario. Granada, Editorial Comares, 2000; DELGADO, Joaquin Martin. La criminalidad organizada. Barcelona, Bosch, 2001; GASCÓN, Fernando Inchaus. Infiltración policial y agente encubierto. Granada, Editorial Comares, 2001; GUIMARÃES, Isaac Sabbá. O agente infiltrado na investigação das associações criminosas. Boletim IBCCrim, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, vol. 10, fasc. 117, p. 12, ago. 2002.
4. SPIEGELBERG, José Luís Seoane. Aspectos procesales del delito de tráfico de drogas. Actualidad Penal, Madri, n. 20/13, p. XXI, item 1, maio 1996.
5. A Lei não contém regras quanto ao tempo de infiltração, licitude das ações do undercover agent, uso lícito de identidade falsa, proteção, obrigatoriedade de submeter-se ao serviço de investigação etc. Como observa Luiz Otávio de Oliveira Rocha, a Lei contém "lacunas que provavelmente dificultarão sobremaneira sua aplicação" (Agente infiltrado: inovação da Lei 10.217/2001, Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, Porto Alegre, vol. 3, fasc. 5, p. 50, jan./abr. 2002).
6. "Agentes de inteligência" são "agentes de serviços de informação" (LUIZ OTÁVIO DE OLIVEIRA ROCHA, artigo citado). Com razão, OLIVEIRA ROCHA notou ser de "duvidosa constitucionalidade a permissão" de "agentes de inteligência" atuarem como infiltrados, uma vez que "a eles, em regra, não são cometidas funções de Polícia Judiciária" (artigo citado).
7. Artigo citado "Organismos policiais": aqueles que podem agir como Polícia Judiciária, nos termos do art. 144, I a IV, da Constituição Federal (OLIVEIRA ROCHA, artigo citado).
8. Como é notório, o agente infiltrado, para obter sucesso, deve comportar-se e atuar como membro da organização. Para tanto, pode vir a realizar ou participar de ações penalmente típicas. Como afirma Raúl Cervini, o Estado, para impedir o crime, decide participar de sua produção (Crime organizado – enfoque jurídico-criminológico e político criminal – Lei n. 9.034/95, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 321). Tratando-se de "agente de polícia", sendo obrigado a agir dentro da organização, não comete delitos, encontrando-se amparado por excludente da antijuridicidade ou da culpabilidade, de acordo com a sua legislação nacional (na Alemanha, por exemplo, incide o estado de necessidade justificante ou inculpável). De ver-se que o Projeto de Lei n. 3.275/00 proibia a "co-participação delituosa", considerando-a ilícita, ressalvado o crime de quadrilha ou similar. A lei nova não disciplina a matéria, o que é de causar preocupação (BORGES D´URSO, Luiz Flávio. A lei nova autoriza a infiltração de policiais em quadrilhas, www.direitocriminal.com.br, 14.4.2001).
9. Na Argentina, a Polícia de Mendoza, obtendo informação de que o Cônsul boliviano guardava drogas no Consulado, articulou o seguinte estratagema: a pessoa detida, que aceitou colaborar, a quem o Cônsul conhecia, e um policial, à paisana, compareceram ao Consulado. Recebidos pelo Cônsul, o detido pediu-lhe que entregasse a droga, o que foi feito, permitindo a sua prisão fora do Consulado (SANDRO, Jorge Alberto. Una distorsión de las garantias constitucionales: el agente encubierto, la inviolabilidad del domicilio y el debido proceso legal, Doctrina Penal, Buenos Aires, Depalma, n. 57/58, p. 125, jan./jun. 1992).
10. SPIEGELBERG, José Luís Seoane. Op. cit., p. XXI e XXII.