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Juizados Especiais Criminais: expectativas e frustrações

Agenda 01/10/2002 às 00:00

1.Introdução

No plano jurídico, a edição da Lei 9.099/95 veio atender aos anseios de expressiva parte da doutrina nacional, ávida por uma manifestação legislativa que rompesse com a política de "endurecimento" reinante. Esperava-se, naquele momento, um substancial processo de descriminalização. O legislador não foi tão ousado, limitando-se a um amplo programa de despenalização, que, nas palavras do professor Luiz Flávio Gomes [1], consiste em adotar processos substitutivos ou alternativos, de natureza penal ou processual, que visam, sem rejeitar o caráter ilícito do fato, dificultar, evitar, substituir ou restringir a aplicação da pena de prisão ou sua execução ou, ainda, pelo menos, sua redução.

Contudo, as principais repercussões desta Lei ultrapassam o plano meramente legal, embrenhando-se na seara social de uma forma particularmente profunda e revolucionária.

Sem a pretensão de esgotar o tema, principalmente em face de sua natureza complexa e multidisciplinar, este trabalho tem por objetivo indicar e tecer rápidas considerações sobre estas repercussões sociais.

Chegou o tempo, como asseverou o professor Nilo Batista [2], de se superar a danosa separação absoluta entre o direito penal e a criminologia, sintetizada na frase histórica do professor Nelson Hungria: nossa doutrina de Monroe: o direito penal é para os juristas, exclusivamente para os juristas.


2.Conflituosidade esquecida

O sistema de controle penal, apesar da hipertrofia de sua estrutura, não consegue detectar e intervir em todos os conflitos sociais formalmente enquadrados como infrações penais. É importante destacar que este fato deve-se não só à sua seletividade [3], mas, principalmente, ao fenômeno das cifras negras.

Conforme leciona o professor Antonio García-Pablos de Molina [4], de hecho, puede admitir se que el número de pretensiones encomendadas al sistema legal (justicia criminal) significa, en términos cuantitativos, un porcentaje insignificante del total de conflictos que resuelven otros mecanismos alternativos o complementarios de aquél.

Nesta linha, verificou-se que a definição da infração de menor potencial ofensivo e toda sua reestruturação procedimental incidiram, essencialmente, em uma classe de conflitos sociais anteriormente não abarcada pelo sistema de controle formal. Com efeito, estes conflitos, em regra, não ingressavam no sistema penal. Quando tal ocorria, eram resolvidos nas delegacias de polícia à margem da disciplina legislativa.

A Lei 9.099/95 teve como principal conseqüência formalizar estas relações sociais, inserindo-as no âmbito do Poder Judiciário e legalizando suas soluções. Questões que antes passavam ao largo de qualquer intervenção judicial, viram-se, de repente, introduzidas no sistema.

Não por acaso um dos principais objetivos da adoção dos Juizados Especiais Criminais acabou não alcançando o resultado esperado, qual seja: diminuir substancialmente a carga de trabalho das Varas Criminais comuns, viabilizando uma maior atenção para os casos considerados graves.

A possibilidade de ver realmente resolvido seu problema por um órgão estatal estimulou a população carente a apresentá-lo, revertendo a tendência natural da omissão. Deste modo, a demanda reprimida por vários anos explodiu no Poder Judiciário pela via dos Juizados.

Sobre esta situação, o professor Raúl Cervini [5] reproduz uma pesquisa interessante e bastante elucidativa:

" As conclusões foram surpreendentes: uma entre duas pessoas admitiu ter sido vítima de um delito durante ao ano anterior ao da pesquisa (1975), mas somente 22% denunciou o fato, circunstância indicadora de que 4 entre 5 delitos permaneceram na cifra negra e não chegaram ao conhecimento da autoridade (pelo menos mediante delação da vítima). Solicitados a informar as razões que o inibiram a recorrer à autoridade acerca dos fatos, 45% disseram que, levando o fato ao conhecimento da autoridade "só se perde tempo, e as autoridades não fazem nada";... ".

As observações críticas sobre este fato são inúmeras, tendo por origem os diversos ramos do conhecimento social. Contudo, neste ponto, pelo menos duas colocações são importantes.

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Em primeiro lugar, este fenômeno tem a virtude de trazer esta conflituosidade ignorada pelo Estado para o campo processual, viabilizando-se, ao menos em tese, o diálogo entre as partes em um espaço público e democrático. Substitui-se uma solução normalmente conseguida pela simples acomodação por uma consensual. As chances de pacificação social efetiva aumentam, atendendo aos comandos constitucionais.

Por outro lado, e neste diapasão, é interessante notar como o projeto moderno teve como um de seus pilares a formalização da justiça. A adoção, neste momento histórico, de uma política legislativa como a do Juizado Criminal, que traz em seu bojo a deformalização, posiciona-se, em princípio, de forma contrária a tal projeto. Todavia, a análise mais verticalizada do fenômeno permite perceber que o Estado, com o manto de deformalizar, acaba, pelo contrário, formalizando situações que fugiam ao seu controle. Ele consegue, de forma sutil, ampliar sua intervenção na sociedade, fiscalizando e estabilizando as relações sociais [6].


3.Resposta estatal aos conflitos

A promessa de solução dos problemas advindos da pequena criminalidade pelos mecanismos do Juizado não teve o resultado esperado.

Estudos mostram que a presença do Estado em determinadas localidades, seja com a construção de uma simples quadra esportiva, já traz como efeito a diminuição das infrações penais. Entretanto, a população menos favorecida não encontra a menor estrutura estatal. Sempre que necessita de algum serviço público, o indivíduo humilde não é encarado como um verdadeiro cidadão, frustrando-se com o tratamento recebido. Buscar atendimento no Sistema Único de Saúde mostra bem a veracidade desta afirmação.

Em relação ao Juizado Criminal, o tratamento também deixa muito a desejar. Um desvirtuamento no modo de seu funcionamento gera a insatisfação de quem dele necessita. Inicialmente, as pessoas carentes não recebem um atendimento satisfatório por parte dos defensores, resultando em uma total ignorância em relação ao trâmite e suas conseqüências. A audiência preliminar não desempenha seu papel de ser um espaço democrático de diálogo. Há casos em que nem o membro do Ministério Público está presente, quanto mais o magistrado.

A necessidade em obter números para as estatísticas leva a um esquecimento da composição civil. Com efeito, a transação penal, diante da desnecessidade do consentimento da vítima, é mais célere, evitando maior trabalho. Como pondera o professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo [7]:

" Quando a opção dos juízes é no sentido do restabelecimento do diálogo entre as partes, mais do que a pura e simples aplicação das fórmulas legais, há uma elevada possibilidade de que obtenha o reconhecimento da culpa, a reparação dos danos e o restabelecimento de uma base mínima de sociabilidade que impeça o recurso à violência. Isso, no entanto, é dificultado por um habitus profissional dos magistrados no qual não há espaço para diálogo com as partes em audiência, e onde a resolução dos conflitos fica em segundo plano em relação à decisão quanto à autoria e materialidade do fato. "

Este quadro gera a insatisfação da vítima e, de certo modo, a sensação de impunidade para o autor do fato. A vítima sente-se impotente ao vislumbrar que o membro do Ministério Público formulará a proposta da transação penal. O autor do fato, sem ter travado o menor diálogo com a vítima, juiz e o próprio membro do Ministério Público, simplesmente paga uma prestação pecuniária e está "livre". Esta situação gera a idéia de que foi apenas um bom negócio e nada mais. A falta do debate entre as personagens não traz o sentimento de responsabilidade para os participantes do conflito, que não captam a dimensão daquela solução adotada.


4.Conclusão

A Lei 9.099/95, no plano legal, representou uma verdadeira revolução no ordenamento processual penal pátrio. Pode-se até não gostar dela, mas é difícil ser indiferente. A sua adoção, apesar de algumas críticas, foi um avanço.

No plano social também teve notáveis efeitos. A sua aplicação prática é o grande dilema, pois ainda não se absorveu a mudança de paradigma que ela implica. É preciso rever posturas arraigadas por conta do processo penal clássico.

Válida a advertência do professor Luiz Flávio Gomes [8]: A continuar como está, do esplendor os Juizados logo conhecerão seu ocaso. É isso o que queremos?


Bibliografia

AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Seis Anos de Juizados Especiais Criminais –Um Olhar Sócio-Jurídico. In: Boletim do IBCCIM n.º 107, Ano 9, Out./2001.

CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. São Paulo: RT, 1995.

DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia. O Homem Delinquente e a Sociedade Criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1984.

GOMES, Luiz Flávio. Juizados Criminais: Esplendor ou Ocaso? In: Boletim do IBCCIM n.º 89, Ano 8, Abr./2000.

______. Suspensão Condicional do Processo Penal. 2ª ed. rev., atual e ampl., São Paulo: RT, 1997.

MOLINA, Antonio García-Pablos de. Sobre la naturaleza publica del "jus puniendi" y las actuales tendencias privatizadoras –del sistema penal, in www.direitocriminal.com.br, 06.07.2001.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O Estado e o Direito na Transição Pós-Moderna: para um novo Senso Comum sobre o Poder e o Direito. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 30, Jun./1990.

SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000.


Notas

1..Suspensão Condicional do Processo Penal. 2ª ed. rev., atual e ampl., São Paulo: RT, 1997, p. 111.

2. Prefaciando a obra do professor Juarez Cirino dos Santos, A Moderna Teoria do Fato Punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000.

3. Segundo os professores Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, pode-se dizer que toda a criminologia actual, na esteira da criminologia crítica, concorda em atribuir relevo decisivo aos mecanismos de seleção. Com este conceito designam-se os operadores genéricos que imprimem sentido ao exercício da discricionaridade real das instâncias formais de controlo e permitem explicar as regularidades da presença desproporcional de membros dos estratos mais desfavorecidos nas estatísticas oficiais da delinquência, ou –como outros autores preferem –entre os clientes das instâncias formais de controlo. Cf. Criminologia. O Homem Delinquente e a Sociedade Criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1984, pp. 386-387.

4. Sobre la naturaleza publica del "jus puniendi" y las actuales tendencias privatizadoras –del sistema penal, in www.direitocriminal.com.br, 06.07.2001.

5. Os processos de descriminalização. São Paulo: RT, 1995, p. 169.

6. Sobre o tema, cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. O Estado e o Direito na Transição Pós-Moderna: para um novo Senso Comum sobre o Poder e o Direito. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 30, Jun./1990, pp. 13-43.

7. Seis Anos de Juizados Especiais Criminais –Um Olhar Sócio-Jurídico. In: Boletim do IBCCIM n.º 107, Ano 9, Out./2001, p. 25.

8. Juizados Criminais: Esplendor ou Ocaso? In: Boletim do IBCCIM n.º 89, Ano 8, Abr./2000, p. 1.

Sobre o autor
José Alfredo de Paula Silva

defensor público da União em Pernambuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, José Alfredo Paula. Juizados Especiais Criminais: expectativas e frustrações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3299. Acesso em: 25 nov. 2024.

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