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A remuneração do factoring à luz da jurisprudência do STJ

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Agenda 28/10/2014 às 03:01

Perquire-se se a remuneração do faturizador contrato de factoring convencional deve obedecer ao limite legal de taxa de juros da Lei de Usura ou se pode ser livremente pactuado pelas partes sendo regulado conforme o movimento do mercado.

1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa se propõe a analisar a remuneração do factoring na visão do Superior Tribunal de Justiça.

No decorrer do trabalho será feita um breve exame sobre diversos temas imprescindíveis à plena compreensão do assunto discutido. Destarte, antes de partir para o estudo do tema central proposto, serão examinados os conceitos de obrigação, contrato, contrato empresarial, factoring e conceitos básicos, taxa de juros e usura.

Finalmente, após um estudo propedêutico dos conceitos básicos necessários à plena compreensão do tema será discutido como se a remuneração do factoring conforme o Superior Tribunal de Justiça, especialmente em relação à vedação de cobrança de taxa de juros superiores à taxa legal.

A metodologia utilizada para levar a efeito o presente trabalho foi a pesquisa eminentemente bibliográfica e jurisprudencial, buscando na doutrina nacional e nos julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o entendimento acerca da matéria abordada.

A pesquisa bibliográfica foi realizada através de livros propriamente ditos. Os principais livros pesquisados diziam respeito à Teoria Geral do Direito, ao Direito Civil e ao Direito Empresarial. Ao passo que a pesquisa jurisprudencial foi feita nos repositórios de jurisprudência do STJ constante do sítio (site) na rede mundial de computadores (internet).


2. VISÃO GERAL DAS OBRIGAÇÕES, DOS CONTRATOS E DOS TÍTULOS DE CRÉDITO

Obrigações e contratos são institutos jurídicos que se situam dentre os mais importantes no âmbito do Direito Privado, portanto é imprescindível uma análise prévia para a plena compreensão do tema que se pretende tratar.

2.1. Obrigações em geral

Trataremos aqui apenas de considerações gerais sobre as obrigações em geral sem o objetivo de esgotar o tema, mas apenas visando ao estudo prévio dos institutos jurídicos indispensáveis ao entendimento do objeto da presente pesquisa. Desse modo trataremos do conceito, dos elementos constitutivos, das fontes e das formas de transmissão das obrigações, especialmente a cessão de crédito.

2.1.1. Conceito

É cediço que a palavra “obrigação” pode possuir várias acepções. Isto se dá até mesmo no corpo do próprio Código Civil de 2002. Nesse sentido Monteiro assevera que o termo pode designar “o lado ativo, também chamado crédito, e o lado passivo, também denominado débito, assim como o conjunto da relação jurídica, a abranger, destarte, o duplo aspecto (ativo e passivo), o vínculo e a prestação” 1.

Conforme Gomes, “obrigação é um vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa fica adstrita a satisfazer uma prestação em proveito de outra” 2.

Veja-se compilação realizada por Tartuce, na visão da doutrina clássica e contemporânea:

Após trazer a definição de “obrigação” de outros doutrinadores, Tartuce conclui que “obrigação” pode ser conceituada como sendo

A relação jurídica transitória, existente entre um sujeito ativo, denominado credor, e outro sujeito passivo, o devedor, e cujo objeto consiste em uma prestação situada no âmbito dos direitos pessoais, positiva ou negativa. Havendo o descumprimento ou inadimplemento obrigacional, poderá o credor satisfazer-se no patrimônio do devedor. 4

Desse modo, ante todas as definições de vários renomados juristas, e sem a pretensão de formular um conceito próprio, é possível concluir que “obrigação” é uma relação jurídica entre duas ou mais pessoas, as quais ocupam os polos ativo (credor) ou passivo (devedor), por meio da qual cria-se um vínculo em que o devedor deverá cumprir uma prestação, de dar, fazer ou não fazer alguma coisa, sob pena de coerção judicial, respondendo o patrimônio do devedor em caso de execução forçada.

O conceito de “obrigação” é muito comumente confundido com outros institutos jurídicos que possuem significação própria. Assim, é fundamental a compreensão das distinções entre os conceitos de “obrigação”, “dever”, “ônus” e “direito potestativo”. A propósito, Tartuce faz a seguinte compilação:

Isto posto, nota-se que não se deve confundir tais conceitos, uma vez que cada um tem seus significados, visam identificar institutos jurídicos distintos e possuem consequências jurídicas próprias.

2.1.2. Elementos constitutivos

É possível observar, ao analisar os conceitos de “obrigação” colacionados, que a obrigação possui alguns elementos os quais sempre estão presentes, denominados elementos constitutivos da obrigação.

Gomes afirma que a obrigação se estrutura “pelo vínculo entre dois sujeitos, para que um deles satisfaça, em proveito do outro, certa prestação” 6.

Monteiro, por seu turno, afirma que os elementos constitutivos da obrigação são “duplo sujeito (credor e devedor), objeto da prestação e vínculo jurídico” 7.

Desse modo, nota-se que os elementos constitutivos da obrigação são os seguintes: elemento subjetivo (ou pessoal), elemento objetivo (ou material) imediato e elemento imaterial, virtual ou espiritual 8.

Os elementos subjetivos ou pessoais da obrigação são o sujeito ativo e o sujeito passivo da obrigação. Conforme Tartuce

O sujeito ativo, ou seja, o credor, é a pessoa a quem deve ser fornecida, ou tem o direito de exigir, a prestação. Mencione-se que a palavra credor “vem de creditor, do verbo credere, que quer dizer: confiar, crer, ter fé” 10. Por sua vez, sujeito passivo, isto é, o devedor, é a pessoa que deve fornecer, ou contra quem se tem o direito de exigir, a prestação. Cabendo ressaltar que a palavra devedor “advém de debitor, exprimindo ideia de carga, liame, dívida, sujeição” 11.

É cediço rememorar que nas relações jurídicas contemporâneas as partes que se obrigam muito comumente assumem as duas posições simultaneamente, ou seja, são ao mesmo tempo credoras e devedoras de uma prestação e a sua respectiva contraprestação. A propósito Tartuce afirma que

na maioria das vezes, as partes são, ao mesmo tempo, credoras e devedoras entre si, presente a proporcionalidade de prestações denominada sinalagma, como ocorre no contrato de compra e venda. Tal estrutura, também é denominada relação jurídica obrigacional complexa, constituindo a base do negócio jurídico relacionada com a obrigação. 12

Cumpre ressaltar, ainda, que as expressões “sujeito ativo” ou “sujeito passivo” não querem significar necessariamente apenas um único indivíduo em cada polo da relação obrigacional. É possível que mais de uma pessoa ocupe a posição de sujeito ativo ou de sujeito passivo. Com efeito, Gomes afirma que

Os sujeitos da relação obrigacional são ordinariamente singulares. De regra, cada parte constitui-se de uma só pessoa, mas, se admite a pluralidade de credores e devedores. Ou só uma das partes se integra de várias pessoas, que ocupam a posição, em comum de credor ou de devedor, ou as duas partes são plurais. O número de pessoas ocupantes da mesma posição não influi no de partes. 13

Já o elemento objetivo (ou material) imediato da obrigação, ou objeto da obrigação, é o próprio conteúdo desta, ou seja, é a prestação, a qual pode ser positiva ou negativa. Ou seja, nas palavras de Monteiro, o objeto da obrigação pode se constituir num dar, fazer ou não fazer 14.

Quanto a esta matéria, explicando qual é o objeto da obrigação, Tartuce leciona que “Sendo a obrigação positiva, ela terá como conteúdo o dever de entregar coisa certa ou incerta (obrigação de dar) ou o dever de cumprir determinada tarefa (obrigação de fazer). Sendo a obrigação negativa, o conteúdo é uma abstenção (obrigação de não fazer)” 15.

Todavia, cumpre mencionar que o objeto mediato da obrigação é o bem jurídico tutelado, ou melhor, é o objeto imediato da prestação. Cumpre transcrever as elucidativas palavras de Tartuce

Percebe-se que o objeto mediato da obrigação pode ser uma coisa ou uma tarefa a ser desempenhada, positiva ou negativamente. Como exemplo de objeto mediato da obrigação, pode ser citado um automóvel ou uma casa em relação a um contrato de compra e venda. Esse também é o objeto imediato da prestação. Alguns doutrinadores apontam que o objeto mediato da obrigação ou objeto imediato da prestação é o bem jurídico tutelado, entendimento esse que também é bastante plausível. 16

Importa diferenciar o objeto da obrigação do objeto do contrato. Conforme Beudant, citado por Monteiro

a) objeto da obrigação é aquilo que o devedor se compromete a fornecer, aquilo que o credor tem direito a exigir, em suma, a prestação devida; objeto do contrato constitui a operação que as partes visaram a realizar, o interesse que o ato jurídico tem por fim regular; b) objeto da obrigação é isolado, concreto, singular, o do contrato, idêntico em todas as estipulações da mesma espécie; c) objeto da obrigação vem a ser específico, individuado, o do contrato, mais amplo e mais genérico. 17

É necessário, ainda, trazer à baila a observação de que para que uma obrigação seja considerada juridicamente válida, “todos os elementos mencionados, incluindo a prestação e seu objeto, devem ser lícitos, possíveis (física e juridicamente), determinados ou, pelo menos, determináveis e, por fim, ter forma prescrita ou não defesa em lei” 18, além disso devem ter agente capaz e estar em conformidade com o consentimento das partes contratantes obedecendo ao que está prescrito no art. 104. do Código Civil, que dispõe que:

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I - agente capaz;

II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III - forma prescrita ou não defesa em lei.19

Rememore-se que, apesar de o consentimento não estar expressamente previsto no art. 104. do Código Civil, ele é um requisito implícito para a validade do negócio jurídico e, caso ausente, pode chegar a invalidar o próprio negócio jurídico por vício de consentimento, tais como: erro, dolo, coação, estado de perigo ou lesão, todos expressamente previstos na legislação ordinária.

Quanto ao elemento imaterial da obrigação este nada mais é do que o próprio vínculo jurídico que junge as partes contratantes na relação obrigacional, ou melhor, “é o elo que sujeita o devedor á determinada prestação – positiva ou negativa –, em favor do credor, constituindo o liame legal que une as partes envolvidas”. 20

Tartuce afirma que “a melhor expressão desse vínculo está estabelecida no art. 391. do CC 2002” 21, este dispositivo legal dispõe que: “Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor” 22. Portanto, por este artigo materializa-se o princípio da responsabilidade patrimonial do devedor.

Monteiro assevera que chegou a existir uma discussão doutrinária sobre o vínculo obrigacional. Segundo o autor, a corrente tradicional “vislumbra na obrigação o dever de prestar, por parte do devedor, e o direito de exigir, por parte do credor. Nesse binômio esgota-se o substractum da obrigação, em todas as suas modalidades” 23. Por sua vez, surgiu uma segunda corrente, capitaneada por Brinz, postulando nova estrutura e novos conceitos para a relação obrigacional. Conforme essa segunda corrente, denominada doutrina do débito e da responsabilidade, há um duplo vínculo jurídico entre o credor e devedor, sendo um de ordem espiritual, e outro de ordem, material. 24

Conforme Monteiro,

O vínculo espiritual é constituído pelo comportamento que ao sujeito passivo sugere a lei, no sentido de satisfazer pontualmente a obrigação, honrando seus compromissos e conformando-se, de tal arte, aos altos princípios de direito, que mandam viver honestamente, dar a cada um o que é seu e não prejudicar a ninguém.

O vínculo material constitui-se pelo poder que a lei dá ao credor, que não foi satisfeito, de acionar o devedor, promover em seguida execução de sentença contra ele exarada, penhorar-lhe os bens e levá-los à praça, assim obtendo, com o seu produto, valor correspondente à prestação devida e não espontaneamente cumprida. Esse segundo elemento apenas se projeta se o sujeito passivo não solve voluntariamente a obrigação assumida.

O vínculo jurídico que une os dois sujeitos por causa da prestação compreende, portanto, de um lado, o dever da pessoa obrigada (debitum), e, de outro, a responsabilidade, em caso de inadimplemento (obligatio). 25

Por sua vez, Tartuce analisando, com propriedade, o elemento imaterial da obrigação, faz uma breve digressão histórica que merece ser trasladada integralmente, senão vejamos:

Ainda sobre o elemento imaterial obrigacional, deve-se compreender que está superada a teoria monista ou unitária da obrigação, pela qual essa seria consubstanciada por um único elemento: o vínculo jurídico que une a prestação e os elementos subjetivos. Prevalece atualmente na doutrina contemporânea a teoria dualista ou binária, de origem alemã, pela qual a obrigação é concebida por uma relação débito/crédito. A teoria é atribuída, no Direito Alemão e entre outros, a Alois Brinz, tendo sido desenvolvida no final do século XIX.

A superação daquela velha teoria pode ser percebida a partir do estudo dos dois elementos básicos da obrigação: o débito (Schuld) e a responsabilidade (Haftung), sobre os quais a obrigação se encontra estruturada.

Inicialmente, o Schuld é o dever legal de cumprir com a obrigação, o dever existente por parte do devedor. Havendo o adimplemento da obrigação surgirá apenas esse conceito. Mas, por outro lado, se a obrigação não é cumprida, surgirá a responsabilidade, o Haftung. Didaticamente, pode-se utilizar a palavra Schuld como sinônima de debitum e Haftung, de obligatio.

Sem dúvida é possível identificar uma situação em que há Schuld sem Haftung (debitum sem obligatio), qual seja, na obrigação natural, que mesmo existente não pode ser exigida, pois é uma obrigação incompleta. Cite-se, a título de exemplo, a dívida prescrita, que pode ser paga – por existir –, mas não pode ser exigida. Tanto isso é verdade que, paga uma dívida prescrita, não caberá ação de repetição de indébito (art. 882. CC).

Por outro lado haverá Haftung sem Schuld (obligatio sem debitum) na fiança, garantia pessoal prestada por alguém (fiador) em relação a um determinado credor. O fiador assume uma responsabilidade, mas a dívida é de outra pessoa. O contrato de fiança é celebrado substancialmente entre fiador e credor. Tanto isso é verdade que pode ser celebrado sem o consentimento do devedor ou até contra a sua vontade (art. 820. do CC).

Justamente por tais possibilidades é que se entende, como parte da doutrina, que a teoria monista ou unitária encontra-se superada, prevalecendo atualmente a teoria dualista ou binária. A última visão, mais completa, acaba sendo a mais adequada para explicar o fenômeno contemporâneo obrigacional, principalmente nos casos descritos. 26

Isto posto nota-se que o elemento imaterial, virtual ou espiritual da obrigação pode ser concebido tanto como o vinculo jurídico que une a prestação e os elementos subjetivos, de acordo com a teoria monista, com também o pode ser como uma relação débito/crédito, em conformidade com a teoria dualista.

Ainda acerca da diferenciação entre debitum e obligatio, importa trazer à colação a lição de Gomes. Afirma o autor que

Ao se decompor uma relação obrigacional, verifica-se que o direito de crédito tem como fim imediato uma prestação, e remoto, a sujeição do patrimônio do devedor. Encarada essa dupla finalidade sucessiva pelo lado passivo, pode-se distinguir, correspondentemente, o dever de prestação, a ser cumprido espontaneamente, da sujeição do devedor, na ordem patrimonial, ao poder coativo do credor. Analisada a obrigação perfeita sob essa dupla perspectiva, descortinam-se os dois elementos que compõe seu conceito. Ao dever de prestação corresponde o debitum, à sujeição a obligatio, isto é, a responsabilidade. A esta responsabilidade patrimonial empresta-se grande importância no direito moderno, a ponto de se afirmar que a obrigação é uma relação entre dois patrimônios. 27

2.1.3. Fontes das obrigações

É cediço que fonte é sinônimo de origem, lugar de onde provém. Conforme Tartuce fonte “é uma expressão figurada, indicando o elemento gerador, o fato jurídico que deu origem ao vínculo obrigacional” 28. Já nas palavras de Monteiro “fonte da obrigação constitui o ato ou fato que lhe dá origem, tendo em vista as regras de direito” 29.

Segundo Tartuce, na esteira da melhor doutrina são consideradas fontes das obrigações:

Importa principalmente, para fins da presente pesquisa, a análise mais acurada dos contratos e dos títulos de crédito, os quais serão vistos em capítulos próprios.

2.1.4. Transmissão das obrigações

As relações obrigacionais da sociedade contemporânea tem um caráter altamente dinâmico de circulação, sendo possível a transmissão das condições de credor ou devedor de uma relação jurídica obrigacional.

Mas nem sempre foi assim, no primitivo direito romano não era admitida a transferência das obrigações, vigendo à época o princípio da intransmissibilidade das obrigações. Estas eram um vínculo de uma pessoa para outra, indissociáveis do indivíduo, constituindo quase um status, até o cumprimento da prestação. 31

Atualmente, contudo, a transmissão de obrigações é perfeitamente viável, estando inclusive prevista no próprio ordenamento jurídico pátrio, tal como se vê do Código Civil de 2002, em seus artigos 286 a 303.

A cessão pode ser conceituada, em conformidade com o magistério de Tartuce, como “a transferência negocial, a título oneroso ou gratuito, de uma posição na relação jurídica obrigacional, tendo como objeto um direito ou um dever, com todas as características com todas as características previstas antes da transmissão” 32.

Ainda conforme Tartuce, o Direito Civil brasileiro admite três formas de transmissão das obrigações: cessão de crédito, cessão de débito e cessão de contrato 33. Segundo o autor

O CC/1916 tratava somente da cessão de crédito, quem sabe porque na época as relações obrigacionais não eram tão complexas como atualmente. O CC/2002, além de prever a cessão de crédito (arts. 286. a 298), trata também da cessão de débito, ou assunção de dívida, entre os seus arts. 299. a 303. A cessão de contrato não recebeu tratamento específico, continuando a sua existência a ser debatida pela doutrina e admitida pela jurisprudência. 34

A seguir trataremos de cada uma das formas de transferência de obrigações.

2.1.4.1. Cessão de contrato

A cessão de contrato, como o próprio nome sugere, é a transferência da situação contratual de um dos contratantes a um terceiro não integrante da relação contratual originária.

Tartuce conceitua a cessão de contrato como sendo “a transferência da inteira posição ativa ou passiva da relação contratual, incluindo o conjunto de direitos e deveres de que é titular uma determinada pessoa” 35. E prossegue o autor afirmando que “a cessão de contrato quase sempre está relacionada com um negócio cuja execução ainda não foi concluída” 36.

Ainda segundo Tartuce, “Apesar de não ser regulamentada em lei, a cessão de contrato ou cessão da posição contratual tem existência jurídica como negócio jurídico atípico” 37. Desse modo, o “contrato de cessão de contrato” se emoldura perfeitamente no art. 425. do Código Civil que dispõe que: “É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código” 38.

Conforme Tartuce, “para que a cessão de contrato seja perfeita, é necessária a autorização do outro contratante, como ocorre com a cessão de débito ou assunção de dívida. Isso porque a posição de devedor é cedida com o contrato” 39.

Tartuce exemplifica a cessão de contrato do seguinte modo:

Ilustrando, essa forma de transmissão ocorre em casos como na locação em que for admitida a sublocação, no compromisso de compra e venda (contrato com pessoa a declarar – arts. 467. a 471 do CC) e no mandato, com a previsão de substabelecimento. 40

Por fim é forçoso concluir que a cessão de contrato, além de possuir enorme relevância para as relações jurídicas da sociedade contemporânea, também é detentora de importantíssima função social, estando em harmonia com o art. 421. do Código Civil, o qual dispõe que: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato” 41. Esta é a conclusão de Tartuce que afirma que isso se dá em razão de que “o instituto possibilita a circulação do contrato, permitindo que um estranho ingresse na relação contratual, substituindo um dos contratantes primitivos” 42.

2.1.4.2. Assunção de dívida (ou cessão de débito)

A assunção de dívida (ou cessão de débito), como é intuitivo, se trata da transferência do polo passivo de uma obrigação a um terceiro não integrante da relação jurídica obrigacional originária.

Conforme Gomes, a assunção de dívida “é o negócio jurídico por via do qual terceiro assume a responsabilidade da dívida contraída pelo devedor originário, sem que a obrigação deixe de ser ela própria” 43. Já segundo Tartuce, trata-se de “um negócio jurídico bilateral, pelo qual o devedor, com a anuência do credor e de forma expressa ou tácita, transfere a um terceiro a posição de sujeito passivo da relação obrigacional” 44. Por sua vez, conforme o magistério de Monteiro é o “negócio jurídico bilateral através do qual um terceiro, estranho à relação obrigacional, assume a posição de devedor, responsabilizando-se pela dívida, sem extinção da obrigação, que subsiste com todos os seus acessórios” 45.

O Código Civil, acerca da assunção de dívida preceitua que:

Art. 299. É facultado a terceiro assumir a obrigação do devedor, com o consentimento expresso do credor, ficando exonerado o devedor primitivo, salvo se aquele, ao tempo da assunção, era insolvente e o credor o ignorava.

Parágrafo único. Qualquer das partes pode assinar prazo ao credor para que consinta na assunção da dívida, interpretando-se o seu silêncio como recusa. 46

Verifica-se, portanto, da leitura do dispositivo legal supratranscrito que para que o terceiro possa assumir validamente a obrigação do devedor é necessário o consentimento expresso do credor, o qual caso se mantenha silente terá o seu silêncio interpretado como rejeição. Realizada a assunção do débito o devedor primitivo ficará excluído da relação jurídica obrigacional, exceto na hipótese de estar insolvente, ao tempo da assunção, e o credor desconhecer tal situação.

A assunção de dívida pode ocorrer de duas formas, segundo Monteiro, quais sejam:

a) por expromissão, caracterizada pelo contrato entre credor e um terceiro, que assume a posição de novo devedor, sem necessidade de comparecimento do antigo devedor; e b) pela delegação, caracterizada pelo acordo entre o devedor originário e o terceiro que vai assumir a dívida, cuja validade depende da aquiescência do devedor. 47

Com a cessão de débito não se transferem automaticamente as garantias oferecidas pelo devedor ao credor. É o que dispõe o art. 300. do Código Civil, nos termos seguintes: “Salvo assentimento expresso do devedor primitivo, consideram-se extintas, a partir da assunção da dívida, as garantias especiais por ele originariamente dadas ao credor” 48.

A pretexto de explanar o referido artigo 300 do Código Civil foram editados dois enunciados doutrinários pelo Conselho da Justiça Federal, os quais merecem ser transcritos:

352 – Art. 300: Salvo expressa concordância dos terceiros, as garantias por eles prestadas se extinguem com a assunção da dívida; já as garantias prestadas pelo devedor primitivo somente serão mantidas se este concordar com a assunção.

[...]

422 – Art. 300: (Fica mantido o teor do Enunciado n. 352) A expressão “garantias especiais” constante do art. 300. do CC/2002 refere-se a todas as garantias, quaisquer delas, reais ou fidejussórias, que tenham sido prestadas voluntária e originariamente pelo devedor primitivo ou por terceiro, vale dizer, aquelas que dependeram da vontade do garantidor, devedor ou terceiro para se constituírem.49

As partes na assunção de dívida são o devedor originário (cedente), o novo devedor (cessionário ou terceiro assuntor) e o credor (cedido). O objeto da relação jurídica obrigacional permanece o mesmo, ocorrendo apenas e unicamente a substituição da pessoa do devedor, ou seja, não há extinção do vínculo obrigacional, apenas alteração dos sujeitos que a compõem.

2.1.4.3. Cessão de crédito

A cessão de crédito é instituto jurídico similar à assunção de dívida, mas enquanto nesta transfere-se um débito a um terceiro não integrante da relação jurídica obrigacional primitiva, naquele transfere-se um crédito.

Gomes, com simplicidade e precisão, afirma que “a cessão de crédito é o negócio jurídico pelo qual o credor transfere a terceiro sua posição na relação obrigacional” 50.

Tartuce, por seu turno, conceitua a cessão de crédito “como um negócio jurídico bilateral ou sinalagmático, gratuito ou oneroso, pelo qual o credor, sujeito ativo de uma obrigação, transfere a outrem, no todo ou em parte, a sua posição na relação obrigacional” 51.

Gomes ressaltando a importância do instituto da cessão de crédito assevera que

No Direito moderno, a substituição do credor dá-se diretamente, independentemente da cooperação do devedor. Os resultados que se obtêm com esta simplificação fizeram da cessão de crédito um dos mais importantes instrumentos da vida econômica. Para se ter ligeira ideia da importância da prática desse meio técnico de substituição do credor na relação obrigacional, basta deter a atenção no fenômeno da circulação dos títulos de crédito. 52

Assim, a própria possibilidade da circulação dos títulos de crédito surgiu a partir do momento em que foi possível a cessão do crédito. A propósito como se verá adiante, alguns títulos de crédito são transmissíveis via simples endosso no próprio título, enquanto outros necessitam, para serem transferidos, de uma cessão de crédito, nos moldes estabelecidos pelo Código Civil.

Acerca do instituto da cessão de crédito, prevê o artigo 286 do Código Civil que: “O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação” 53. Tartuce, comentando o dispositivo, assevera que tal artigo traz três regras relativas à cessão de crédito, senão vejamos:

Sofrem os efeitos da cessão de crédito o credor originário (cedente), o novo credor (cessionário) e o devedor (cedido). O devedor (cedido), apesar de sofrer os efeitos da cessão de crédito, não necessariamente participa da cessão, tal como disposto no Código Civil no artigo 286, supramencionado. No dispositivo não há menção à necessidade de anuência do devedor na cessão de crédito que ocorrerá formalmente apenas entre o cedente e o cessionário, ficando o cedido apenas obrigado a suportar os efeitos da cessão. A propósito leciona Gomes que

São partes nesse contrato, exclusivamente, quem cede a quem aceita a cessão. Quem cede chama-se credor-cedente, ou, simplesmente, cedente. Quem aceita, o cessionário. O devedor não intervém no negócio jurídico de cessão de crédito. 55

Monteiro, no mesmo sentido, também ensina que

Na cessão necessariamente figuram o cedente e o cessionário. O primeiro é aquele que aliena ou transfere seus direitos e o segundo, aquele que os adquire, investindo-se na titularidade respectiva. O devedor, a quem propriamente se costuma denominar cedido, não intervém no ato jurídico. Para ele, indiferente se torna ter este ou aquele como credor. Interessa-lhe apenas saber qual o legítimo detentor do crédito, para oportunamente solver-lhe a prestação. Só para esse fim se lhe comunica a cessão, mas sua anuência ou intervenção é dispensável. 56

Na cessão de crédito, ao contrário da assunção de débito, “são transferidos todos os elementos da obrigação, como os acessórios e as garantias da dívida, salvo disposição em contrário” 57. É o que dispõe o Código Civil, nos termos seguintes: “Art. 287. Salvo disposição em contrário, na cessão de um crédito abrangem-se todos os seus acessórios” 58. Exemplos de acessórios que seguem a cessão do crédito são, além das garantias, os juros e multas. Segundo Gomes, “compreendem-se entre os direitos acessórios: a) os de garantia, real ou fidejussória, do crédito; b) os juros; c) os direitos potestativos inerentes ao crédito” 59.

A cessão de crédito, via de regra, tem eficácia inter partes e não exige forma especial para valer entre as próprias partes. No entanto, para que possa ter eficácia perante terceiros é necessário que seja celebrada por instrumento público, ou no caso de celebrar-se por instrumento particular não observar o disposto no art. 654, §1º do Código Civil. É o que dispõe o art. 288. do CC/2002, senão vejamos:

Art. 288. É ineficaz, em relação a terceiros, a transmissão de um crédito, se não celebrar-se mediante instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades do § 1º do art. 654. 60

Por sua vez, o artigo 654, §1º preceitua que:

Art. 654. [...]

§ 1º O instrumento particular deve conter a indicação do lugar onde foi passado, a qualificação do outorgante e do outorgado, a data e o objetivo da outorga com a designação e a extensão dos poderes conferidos. 61

Este dispositivo se refere ao contrato de mandato, portanto, deve ser lido observando-se as devidas distinções entre os termos nele prescritos. Desse modo, para que a cessão de crédito tenha eficácia erga omnes é necessário que contenha: a indicação do lugar em que se deu a transferência; a qualificação das partes (cedente, cessionário e cedido); a data da transmissão; o objetivo da transmissão; a designação e a extensão da obrigação transferida 62.

Como já afirmado, ao contrário do que ocorre na assunção de dívida, não é estritamente necessário que o devedor (cedido) concorde ou mesmo que participe da cessão de crédito. Apesar disso o Código Civil, em seu art. 290, dispõe que: “A cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita” 63.

Note-se que o dispositivo trata apenas de ausência de eficácia em relação ao devedor, mas a cessão de crédito produzirá normalmente os seus efeitos em relação aos contratantes. Conforme Monteiro,

Torna-se necessária essa notificação para que o devedor não fique prejudicado, pois desconhecendo a transmissão, pode efetuar o pagamento ao credor primitivo. Mas a notificação não é imprescindível; ela visa a impedir que o cedido validamente pague ao cedente. Portanto, se o cessionário exige pagamento e se o devedor não prova haver pago ao cedente, não lhe aproveita a falta de notificação. 64

Por seu turno, o art. 291. do Código Civil prevê que: “Ocorrendo várias cessões do mesmo crédito, prevalece a que se completar com a tradição do título do crédito cedido” 65. Tartuce ilustra o dispositivo com o seguinte exemplo, para facilitar a visualização:

Se A, maliciosamente, fizer a cessão do mesmo crédito a B, C e D, entregando o título que representa a dívida ao último será D o novo credor, devendo o sujeito passivo da obrigação a ele pagar, caso este se apresente com o referido documento. Se a cessão tiver caráter oneroso poderão B e C voltar-se contra A, aplicando-se as regras previstas para o pagamento indevido e o enriquecimento sem causa (arts. 876. e 886 do CC). 66

O art. 292. do Código Civil preceitua que:

Art. 292. Fica desobrigado o devedor que, antes de ter conhecimento da cessão, paga ao credor primitivo, ou que, no caso de mais de uma cessão notificada, paga ao cessionário que lhe apresenta, com o título de cessão, o da obrigação cedida; quando o crédito constar de escritura pública, prevalecerá a prioridade da notificação. 67

Tartuce, comentando o artigo, assevera que

Fica desobrigado o devedor que, antes de ter conhecimento da cessão, paga ao credor primitivo, eis que não há prazo legal para a notificação. No caso de mais de uma cessão notificada, o devedor deve pagar ao cessionário que lhe apresentar o título de cessão ou da obrigação cedida. Quando o crédito constar de escritura pública prevalecerá a prioridade da notificação. 68

Com efeito a notificação da cessão de crédito ao devedor é necessária tanto para evitar que este realize o pagamento ao credor primitivo e não ao novo credor, como também para permitir que o devedor possa exercer seu direito de opor as exceções que teria contra o credor originário.

Gomes ao tratar da notificação do devedor na cessão de crédito afirma que esta se trata de “ato jurídico stricto sensu: simples declaração de ciência, numa palavra, participação, mas se equipara, evidentemente, às declarações receptícias, só se considerando feita no momento em que o devedor toma conhecimento do seu contexto” 69.

Afirma, ainda, Gomes que a declaração admite duas formas de realização: a expressa e a presumida. Sendo que na expressa o cedente ou o cessionário toma a iniciativa de comunicar ao credor a cessão do crédito. Ao passo que a presumida é resultado da espontânea declaração de ciência do devedor. 70

Outro ponto que merece destaque é o fato de que o devedor por opor ao cessionário tanto as exceções (defesas) que lhe forem próprias, como as que teria contra o próprio cedente, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão de crédito. É o que prevê o art. 294. do Código Civil: “O devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem, bem como as que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha contra o cedente” 71. Gomes traz dois bons exemplos de aplicação do dispositivo:

Pense-se na situação do devedor que, sendo credor de seu credor, pode pagar mediante compensação. Se permitido não lhe fosse invocar esse direito, o credor esquivar-se-ia de lhe pagar o que lhe deve, transferindo a outrem o crédito com o objetivo de evitar a compensação, quando, na hipótese, é legítimo e manifesto o interesse do devedor de exercer, por essa forma, o seu direito de crédito contra seu credor. Seria injusto. Contra o cessionário, também lhe assiste direito a opor exceções. A mais comum é a exceptio non adimpleti contractus. Se o credor cedente, em contrato bilateral, não cumprir sua obrigação antes de ceder o crédito, o dever de cumpri-la transmite-se ao cessionário, de modo que pode o devedor recusar-se a efetuar o pagamento se este não satisfaz a prestação que lhe incumbe, opondo ao cessionário a exceção de contrato não-cumprido. 72

É interessante trazer à colação as classificações da cessão de crédito. Conforme Tartuce, a cessão de crédito pode ser classificada dos seguintes modos:

I) Quanto à origem:

a. Cessão legal – é aquela que decorre da lei, tendo origem na norma jurídica. É a que ocorre em relação aos acessórios da obrigação, no caso da cessão de crédito (art. 287. do CC).

b. Cessão judicial – é aquela oriunda de decisão judicial após processo civil regular, como é o caso de decisão que atribui ao herdeiro um crédito do falecido.

c. Cessão convencional – é a mais comum de ocorrer na prática, constituindo a cessão decorrente de acordo firmado entre cedente e cessionário por instrumento negocial (v. g., factoring).

II) Quanto às obrigações geradas:

a. Cessão a título oneroso – assemelha-se ao contrato de compra e venda, diante da presença de uma remuneração. Pelo fato de poder ser onerosa, a cessão de crédito difere-se da sub-rogação.

b. Cessão a título gratuito – assemelha-se ao contrato de doação, pela ausência de caráter oneroso. Nesse ponto até pode se confundir com o pagamento com sub-rogação. Entretanto, no plano conceitual, a cessão de crédito é forma de transmissão da obrigação, enquanto a sub-rogação é uma regra especial de pagamento ou forma de pagamento indireto.

III) Quanto à extensão:

a. Cessão total – é aquela em que o cedente transfere todo o crédito objeto da relação obrigacional.

b. Cessão parcial – é aquela em que o cedente retém parte do crédito consigo.

IV) Quanto à responsabilidade do cedente:

a. Cessão pro soluto – é aquela que confere quitação plena e imediata do débito do cedente para com o cessionário, exonerado o cedente. Constitui a regra geral, não havendo responsabilidade do cedente pela solvência do cedido (art. 296. do CC).

b. Cessão pro solvendo – é aquela em que a transferência do crédito é feita com o intuito de extinguir a obrigação apenas quando o crédito for efetivamente cobrado. Deve estar prevista pelas partes, situação em que o cedente responde perante o cessionário pela solvência do cedido (art. 297. do CC). 73

Em relação especificamente à cessão onerosa, cumpre transcrever o exemplo dado por Tartuce, o qual trata exatamente do factoring, senão vejamos:

Exemplo típico em que ocorre a cessão de crédito onerosa é o contrato de faturização ou factoring. Nesse contrato, o faturizado transfere ao faturizador, no todo ou em parte, créditos decorrentes de suas atividades empresárias mediante o pagamento de uma remuneração, consistente no desconto sobre os respectivos, valores, de acordo com os montantes dos créditos. Nesse contrato, em outras palavras, os títulos de crédito são vendidos por valores menores. 74

Por ora, desde já é possível visualizar que o contrato de factoring se trata de uma cessão de crédito onerosa. Adiante o assunto será novamente retomado.

2.2. Contratos em geral

2.2.1. Conceito

O contrato é uma das formas de um indivíduo contrair obrigações. Conforme Monteiro

Três são as fontes das obrigações: contratos, declarações unilaterais da vontade e atos ilícitos. A elas pode ser adicionada uma quarta, a lei. Em última análise, a lei e a fonte primária e única de todas as obrigações. Assim, as obrigações decorrentes dos contratos são obrigações que resultam da lei, porque é a lei que disciplina os contratos, sujeitando-os a um estatuto jurídico; os contratos não são reconhecidos senão porque a lei os sanciona e os garante. 75

O contrato, em uma visão mais clássica, conforme Tartuce, pode ser conceituado como “um negócio jurídico bilateral ou plurilateral que visa à criação, modificação ou extinção de direitos e deveres com conteúdo patrimonial” 76. Segundo Monteiro, contrato é

O acordo de vontades que tem por fim criar, modificar ou extinguir um direito. Por essa definição, percebem-se, para logo, a natureza e a essência do contrato, que é um negócio jurídico e que por isso reclama, para a sua validade, em consonância com o art. 104. do Código Civil de 2002, agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei. 77

Já em uma visão pós-moderna ou contemporânea, conforme Nalin, o contrato seria “a relação jurídica subjetiva, nucleada na solidariedade constitucional, destinada à produção de efeitos jurídicos existenciais e patrimoniais, não só entre os titulares subjetivos da relação, como também perante terceiros” 78.

2.2.2. Princípios

É cediço que nas atuais circunstâncias da Ciência Jurídica os princípios ocupam um lugar muito destacado quando da análise de qualquer questão jurídica, seja no âmbito acadêmico, seja no âmbito pragmático. Por sua vez, a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002 estão permeados de princípios que se espraiam por todo o ordenamento jurídico pátrio.

Isto posto, para que se possa vislumbrar com precisão e acuidade qualquer instituto jurídico é necessário ter em mente alguns princípios regentes da matéria. Por tal razão é que serão abordados os princípios atinentes aos contratos no direito brasileiro, quais sejam: o princípio da autonomia privada, o princípio da função social dos contratos, o princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda), o princípio da boa-fé objetiva e o princípio da relatividade dos efeitos contratuais.

2.2.2.1. Princípio da autonomia privada

O princípio da autonomia privada determina que as pessoas podem, por sua própria vontade, regular o conteúdo das relações de que participam entre si. Amaral, com brilhantismo, leciona que

A autonomia privada é o poder que os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações que participam, estabelecendo-lhe o conteúdo e a respectiva disciplina jurídica. Sinônimo de autonomia da vontade para grande parte da doutrina contemporânea, com ela porém não se confunde, existindo entre ambas sensível diferença. A expressão ‘autonomia da vontade’ tem uma conotação subjetiva, psicológica, enquanto a autonomia privada marca o poder da vontade no direito de um modo objetivo, concreto e real. 79

Tartuce, a seu turno, conceitua o princípio da autonomia privada

Como sendo um regramento básico, de ordem particular – mas influenciado por normas de ordem pública – pelo qual na formação do contrato, além da vontade das partes, entram em cena outros fatores: psicológicos, políticos, econômicos e sociais. Trata-se do direito indeclinável da parte de autorregulamentar os seus interesses, decorrente da dignidade humana, mas que encontra limitações em normas de ordem pública, particularmente nos princípios sociais contratuais. 80

Monteiro, por sua vez, afirma que pelo princípio da autonomia privada, ou nas palavras do autor, autonomia da vontade,

Têm os contratantes ampla liberdade para estipular o que lhes convenha, fazendo assim do contrato verdadeira norma jurídica, já que o mesmo faz lei entre as partes. Em virtude desse princípio, que é a chave do sistema individualista e o elemento mais colorido na conclusão dos contratos, são as partes livres de contratar, contraindo ou não o vínculo obrigacional. 81

Nota-se pelo conceito formulado pelo autor que a autonomia privada não goza de absolutos e irrestritos poderes, ainda que seja para regular as próprias relações entre as partes contratantes. É necessário que os contratantes, ao exercer seu direito de contratar, observem outros princípios tão importantes quanto a autonomia privada, como, por exemplo, a função social do contrato.

Tartuce afirma que a autonomia privada é decorrente da liberdade contratual e da liberdade de contratar. Conforme o autor

Percebe-se no mundo negocial plena liberdade para a celebração dos pactos e avenças com determinadas pessoas, sendo o direito à contratação inerente à própria concepção da pessoa humana, um direito existencial da personalidade advindo do princípio da liberdade. Essa é a liberdade de contratar. Em um primeiro momento, a liberdade de contratar está relacionada com a escolha da pessoa ou das pessoas com quem o negócio será celebrado, sendo uma liberdade plena, em regra. Entretanto, em alguns casos, nítidas são as limitações à carga volitiva, eis que não se pode, por exemplo, contratar com o Poder Público se não houver autorização para tanto. Como limitação da liberdade de contratar, pode ser citado o art. 497. do CC, que venda a compra e venda de bens confiados à administração em algumas situações.

Em outro plano, a autonomia da pessoa pode estar relacionada com o conteúdo do negócio jurídico, ponto em que residem limitações ainda maiores à liberdade da pessoa humana. Trata-se, portanto, da liberdade contratual. Conforme será exposto, há muito tempo os sujeitos do direito vêm encontrando limitações ao seu modo de viver, inclusive para as disposições contratuais, eis que o velho modelo individualista de contrato encontra-se superado.

Dessa dupla liberdade da pessoa, sujeito contratual, é que decorre a autonomia privada, que constitui a liberdade que a pessoa tem para regular os próprios interesses. De qualquer forma, que fique claro que essa autonomia não é absoluta, encontrando limitações em normas de ordem pública e nos princípios sociais. 82

No entanto, como visto, essa liberdade contratual e liberdade de contratar não são plenas. O Estado, hoje em dia, interfere não raras vezes nos contratos firmados entre as partes, impondo cláusulas sem que os contratantes possam dispor sobre estas. É o que vem sendo denominado pela doutrina de dirigismo contratual.

Outro ponto que merece destaque e demonstra que a autonomia contratual não é absoluta é o fato de que, no dia-a-dia, vem sendo cada vez mais comuns e recorrentes os contratos de adesão (ou contratos standards, padronizados), em que a manifestação da vontade do aderente limita-se a duas opções: aceitar e contratar ou discordar e não contratar.

2.2.2.2. Princípio da função social dos contratos

Segundo Tartuce, o princípio da função social dos contratos pode ser conceituado como sendo “um princípio de ordem pública – art. 2035, parágrafo único, do Código Civil –, pelo qual o contrato deve ser, necessariamente, interpretado e visualizado de acordo com o contexto da sociedade” 83.

Este princípio pode ser visualizado no art. 421. do Código Civil: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato” 84.

Conforme Monteiro, “o contrato não mais é visto pelo prisma individualista de utilidade para os contratantes, mas no sentido social de utilidade para a comunidade; assim, pode ser vedado o contrato que não busca esse fim” 85.

Tartuce afirma que o princípio da função social do contrato possui uma dupla eficácia, quais sejam: a eficácia interna (entre as partes contratantes) e a eficácia externa (para além das partes contratantes).

A eficácia interna foi reconhecida pelo Enunciado nº 360 do Conselho da Justiça Federal, segundo o qual: “O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes” 86. A eficácia interna da função social dos contratos tem cinco aspectos principais, quais sejam: 1) proteção dos vulneráveis contratuais; 2) vedação da onerosidade excessiva o desequilíbrio contratual (efeito gangorra); 3) proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos da personalidade no contrato; 4) nulidade de cláusulas antissociais tidas como abusivas, e; 5) tendência de conservação contratual, sendo a extinção do contrato, a última medida a ser tomada, a ultima ratio 87.

A eficácia externa, por sua vez, foi reconhecida pelo Enunciado nº 21 do Conselho da Justiça Federal, pelo qual: “A função social do contrato, prevista no art. 421. do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito” 88. A eficácia externa da função social dos contratos possui dois aspectos principais: 1) proteção dos direitos difusos e coletivos, e; 2) tutela externa do crédito.

O princípio da função social dos contratos visa precipuamente mitigar a incidência do princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda), tal como se verá em seguida.

2.2.2.3. Princípio da força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda)

O princípio da força obrigatória do contrato, também conhecido como pacta sunt servanda, decorre da ideia clássica de autonomia da vontade. Segundo Tartuce “a força obrigatória dos contratos preconiza que tem força de lei o estipulado pelas partes na avença, constrangendo os contratantes ao cumprimento do conteúdo completo do negócio jurídico” 89. Por este princípio ocorre uma restrição da liberdade, causada pelo próprio contratante, livre e espontaneamente, no ato da contratação.

O princípio da força obrigatória já tinha previsão desde o direito romano e anunciava que não seria possível “sem qualquer razão plausível, ser o contrato revisto ou extinto, sob pena de acarretar insegurança jurídica ao sistema” 90.

Não obstante, com o avanço das relações sociais, e a alteração da realidade fática e jurídica certo é que o

princípio da força obrigatória não tem mais encontrado a predominância e a prevalência que exercia no passado. O princípio em questão está, portanto, mitigado ou relativizado, sobretudo pelos princípios sociais da função social do contrato e da boa-fé objetiva. 91

No entanto, ainda que com sua eficácia reduzida, o princípio do pacta sunt servanda não foi excluído do ordenamento jurídico brasileiro, sob pena de descaracterizar e inutilizar totalmente os contratos. O que ocorre, na realidade, é que este princípio deve ser observado e aplicado sempre com vistas a outros princípios tão importantes quanto.

2.2.2.4. Princípio da boa-fé objetiva

O princípio da boa-fé objetiva foi uma das mais aclamadas inovações trazidas pelo Código Civil de 2002. Tartuce ao tratar da boa-fé objetiva afirma que

Como se sabe, a boa-fé, anteriormente, somente era relacionada com a intenção do sujeito de direito, estudada quando da análise dos institutos possessórios, por exemplo. Nesse ponto era conceituada como boa-fé subjetiva, eis que mantinha relação direta com aquele que ignorava um vício relacionado com uma pessoa, bem ou negócio.

Mas, desde os primórdios do direito romano, já se cogitava outra boa-fé, aquela direcionada à conduta das partes, principalmente nas relações negociais e contratuais. Com o surgimento do jusnaturalismo, a boa-fé ganhou, no Direito Comparado, uma nova faceta, relacionada com a conduta dos negociantes e denominada boa-fé objetiva. Da subjetivação saltou-se para a objetivação, o que é consolidado pelas codificações privadas europeias. Com essa evolução, alguns códigos da era moderna fazem menção a essa nova faceta da boa-fé, caso do Código Civil português de 1966, do Código Civil italiano de 1942 e BGB alemão, normas que serviram como marco teórico para o Código Civil Brasileiro de 2002. 92

A boa-fé objetiva constitui-se em uma exigência de conduta leal dos contratantes, estando relacionada aos deveres anexos ou laterais de conduta que os contratantes devem observar ainda que não haja previsão expressa no instrumento contratual. Segundo Tartuce, são deveres anexos, entre outros:

Ressalte-se que a boa-fé objetiva possui três funções, as quais podem ser extraídas do próprio Código Civil. Veja-se, quanto ao tema, compilação feita por Tartuce

Assim, nota-se que a boa-fé deve ser guardada tanto na fase pré-contratual, como na contratual e na pós-contratual.

2.2.2.5. Princípio da relatividade dos efeitos contratuais

Por tal princípio o contrato surte efeitos apenas entre as partes contratantes, ou seja, possui eficácia inter partes.

No entanto, em casos excepcionais o contrato vai surtir efeitos para além das partes contratantes. Tartuce enumera quatro exemplos de exceções: a estipulação em favor de terceiro (arts. 436. a 438 do Código Civil); a promessa de fato de terceiro (arts. 439. e 440 do Código Civil); o contrato com pessoa a declarar ou com cláusula pro amico eligendo (arts. 467. a 471 do Código Civil) e a tutela externa do crédito ou eficácia externa da função social do contrato (art. 421. do Código Civil) 95.

2.3. Contratos empresariais e Unificação das obrigações do Direito Civil e do Direito Empresarial

Contratos empresariais nada mais são que negócios jurídicos celebrados por empresários e/ou sociedades empresárias entre si 96. Conforme leciona Ramos, eles podem ser estritamente empresariais ou não.

Estes contratos, perceba-se, podem ser estritamente empresariais quando firmados entre empresários – como é o caso do leasing feito entre a indústria e o banco para a aquisição de novas máquinas –, ou não, caso em que se sujeitarão a disciplina especial – são os casos dos contratos de trabalho com empregados, dos contratos com consumidores e dos contratos com a Administração Pública.97

Não obstante, deve-se ter em mente que o Código Civil de 2002 teve a pretensão de tentar unificar o Direito Privado, tradicionalmente identificado como tendo especialmente o Direito Civil e o Direito Empresarial em sua área de abrangência. Coelho fazendo uma análise histórica afirma que

Até 1991, o direito privado brasileiro dos contratos segmentava-se em dois regimes jurídicos diferentes. De um lado, o civil, aplicável à generalidade dos contratos entre particulares (exceto os de trabalho); de outro, o comercial, relacionado aos contratos próprios do comércio. A definição do regime a que se devia submeter determinado negócio norteava-se, então, pelos modelos de delimitação do âmbito de incidência do direito comercial (a teoria dos atos de comércio e a teoria da empresa). 98

O fato é que o Código Civil de 2002 de fato trouxe em seu bojo um livro que trata de modo específico do Direito de Empresa (Livro II da Parte Especial), bem como tratou de revogar a Primeira Parte do Código Comercial de 1850, tal como se vê do seu art. 2.045, que dispõe que: “Revogam-se a Lei no 3.071, de 1º de janeiro de 1916 - Código Civil e a Parte Primeira do Código Comercial, Lei no 556, de 25 de junho de 1850” 99.

Pois bem, ocorre que o Código Civil não logrou êxito no que tange à completa unificação do direito privado, fato que Ramos exemplifica com o direito falimentar. Afirma o autor que “Se tivesse havido mesmo a unificação substancial ou material do direito privado, a falência deveria ser instituto aplicável tanto aos empresários quanto aos não empresários, o que [...] não é verdadeiro” 100.

Não obstante, na seara obrigacional o Código Civil de fato unificou o Direito Civil e o Direito Empresarial, “submetendo-se os contratos cíveis e empresariais a uma mesma disciplina geral, constante do Código Civil de 2002” 101. Segundo Ramos

Os contratos mercantis estavam disciplinados no Código Comercial de 1850 em sua parte primeira, a qual, como já visto, foi totalmente revogada pelo atual Código Civil. Assim, portanto, atualmente tanto os contratos cíveis quanto os contratos empresariais regem-se pelas mesmas regras gerais, dispostas basicamente no Título V, do Livro I, da Parte Especial, que vai do art. 421. ao 480. Ademais, vários contratos em espécie também possuem a mesma disciplina legal, a despeito de poderem ser qualificados como cíveis ou empresariais, a depender das circunstâncias em que são celebrados. É o caso, por exemplo, da compra e venda (arts. 481. a 532 do Código Civil). 102

Após o advento do Código Civil de 2002 e, consequentemente, da unificação das obrigações no Direito Privado, bem como após a promulgação do Código de Defesa do Consumidor, Coelho conclui que

Os contratos entre particulares, excluído o do trabalho, submetem-se a dois regimes distintos: o cível e de tutela dos consumidores. De modo genérico, quando a relação contratual aproxima consumidor (destinatário final de produto ou serviço) de fornecedor (empresário que vende no mercado produtos ou presta serviços), aplica-se o regime consumerista: nos demais casos, ausente consumidor ou fornecedor na relação contratual aplica-se o regime cível. 103

2.4. Dos títulos de crédito

O estudo dos títulos de crédito é denominado por alguns doutrinadores de direito cambial, ou cambiário. A análise deste instituto, ainda que de forma superficial, é pré-requisito para que se possa compreender em sua plenitude o tema que se pretende tratar na presente pesquisa.

2.4.1. Conceito

Segundo Ramos, um conceito de título de crédito amplamente aceito pela doutrina empresarial foi dado por Cesare Vivante, segundo o qual o título de crédito seria “o documento necessário ao exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado” 104. Este conceito foi acatado pelo Código Civil, que prevê em seu art. 887. que: “O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei” 105.

Conforme Ramos

O conceito de Vivante é o ideal porque nos remete, por intermédio das expressões “necessário”, “literal” e “autônomo”, aos três princípios informadores do regime jurídico cambial: a) cartularidade; b) literalidade; c) autonomia. Alguns autores ainda apontam outros princípios, como a independência/substantividade e a legalidade/tipicidade. Independentes seriam os títulos autossuficientes, ou seja, que não dependem de nenhum outro documento para completá-los (por exemplo: letra de câmbio, nota promissória, cheque e duplicata). Já o princípio da legalidade significa que os títulos de crédito são tipos legais, ou seja, só receberiam a qualificação de títulos de crédito aqueles documentos assim definidos em lei. 106

Cumpre mencionar que as características dos títulos de crédito, compiladas por Ramos, são as seguintes:

Comentando as características dos títulos Ramos assevera que

Primeiro, os títulos de crédito possuem natureza essencialmente comercial, daí porque o direito cambiário é sub-ramo específico do direito comercial, desenvolvido com a finalidade clara de conferir os títulos de credito as prerrogativas necessárias ao cumprimento de sua função primordial: circulação de riqueza com segurança.

Pode-se dizer ainda que os títulos de crédito (i) são documentos formais, por precisarem observar os requisitos essenciais previstos na legislação cambiária, (ii) são considerados bens móveis (nesse sentido, aliás, dispõem os arts. 82. a 84 do Código Civil), sujeitando-se aos princípios que norteiam a circulação desses bens, como o que prescreve que a posse de boa-fé vale como propriedade, e (iii) são títulos de apresentação, por serem documentos necessários ao exercício dos direitos neles contidos. Outra característica dos títulos de crédito é que eles constituem títulos executivos extrajudiciais (art. 585. do Código de Processo Civil), por configurarem uma obrigação líquida e certa.

Destaque-se também que os títulos de crédito representam obrigações quesíveis (querable), cabendo ao credor dirigir-se ao devedor para receber a importância devida, e que a emissão do título e a sua entrega ao credor têm, em regra, natureza pro solvendo, isto é, não implica novação no que se refere relação jurídica que deu origem ao título: a relação jurídica que originou o título, portanto, não irá se confundir com relação cambiária representada pelo título emitido.

Por fim, cabe ressaltar que o título de crédito é título de resgate, porque a sua emissão pressupõe futuro pagamento em dinheiro extinguirá a relação cambiária, e é também um título de circulação, uma vez que sua principal função é, como já afirmamos reiteradas vezes, a circulabilidade do crédito. 108

Vê-se que os títulos de crédito são importantíssimos para o bom andamento das relações empresariais pelas facilidades que oferta para a circulação da moeda, ainda que esta seja apenas representada através do título.

2.4.2. Princípios
2.4.2.1. Cartularidade

O título de crédito nada mais é do que um documento que representa uma dívida (ou um crédito). De modo que a apresentação, para fins de demonstração de sua efetiva existência, é imprescindível para que se possa exercer qualquer direito em relação ao crédito (ou dívida) representada no título.

Nas palavras de Ramos, “o princípio da cartularidade nos permite afirmar que o direito de crédito mencionado na cártula não existe sem ela, não pode ser transmitido sem a sua tradição e não pode ser exigido sem a sua apresentação” 109.

Segundo Coelho, o princípio da cartularidade advém da necessariedade do título para o exercício do direito de crédito nele consubstanciado 110. Ainda segundo o autor

somente quem exibe a cártula (isto é, o papel em que se lançaram os atos cambiários constitutivos de crédito) pode pretender a satisfação de uma pretensão relativamente ao direito documentado pelo título. Quem não se encontra com o título em sua posse, não se presume credor. 111

Há quem denomine o princípio da cartularidade como princípio da incorporação, com a intenção de significar o mesmo que aquele. Ou seja, conforme o princípio da incorporação “o direito de crédito materializa-se no próprio documento, não existindo o direito sem o respectivo título. A incorporação, pois, representa a relação direta que se opera entre o documento e o direito de crédito, não existindo este sem aquele” 112.

Cumpre informar, ainda, que em observância ao princípio da cartularidade, segundo Ramos, “(i) a posse do título pelo devedor presume o pagamento do título, (ii) só é possível protestar o título apresentando-o, não suprindo a sua ausência nem mesmo a apresentação de cópia autenticada” 113.

Coelho, demonstrando a utilidade prática do princípio da cartularidade assevera que

Como o título de crédito se revela, essencialmente, um instrumento de circulação do crédito representado, o princípio da cartularidade é a garantia de que o sujeito que postula a satisfação do direito é mesmo o seu titular. Cópias autênticas não conferem a mesma garantia, porque quem as apresenta não se encontra necessariamente na posse do documento original, e pode já tê-lo transferido a terceiros. A cartularidade é, desse modo, o postulado que evita enriquecimento indevido de quem, tendo sido credor de um título de crédito, o negociou com terceiros (descontou num banco, por exemplo). Em virtude dela, quem apga o título deve, cautelarmente, exigir que ele lhe seja entregue. Em primeiro lugar, para evitar que a cambial, embora paga, seja ainda negociada com terceiros de boa-fé, que terão direito de exigir novo pagamento; em segundo, para que o pagador possa exercer, contra outros devedores, o direito de regresso (quando for o caso). 114

O princípio da cartularidade, todavia, vem perdendo um pouco de sua força em virtude do advento dos títulos de crédito denominados magnéticos, digitais ou virtuais, como é o caso, por exemplo, da duplicata virtual. Veja-se, a propósito que o Código Civil de 2002, admite a existência do título virtual, tal como se depreende do §3º do art. 889, que preceitua que: “O título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo” 115. Esse fenômeno tem sido denominado pela doutrina como desmaterialização dos títulos de crédito.

Não obstante, o princípio da cartularidade não perdeu sua eficácia sendo plenamente aplicável aos títulos de crédito físicos.

2.4.2.2. Literalidade

Pelo princípio da literalidade o título de crédito vale pelo que está escrito, nem mais nem menos. Segundo Coelho, em estrita observância ao princípio da literalidade, “somente produzem efeitos jurídico-cambiais os atos lançados no próprio título. Atos documentados em instrumentos apartados, ainda que válidos e eficazes entre os sujeitos diretamente envolvidos, não produzirão efeitos perante o portador do título” 116.

Ramos assevera que

A literalidade, em síntese, é o princípio que assegura às partes da relação cambial a exata correspondência entre o teor do título e o direito que ele representa. Por um lado, o credor pode exigir tudo o que está expresso na cártula, não devendo se contentar com menos. Por outro, o devedor também tem o direito de só pagar o que está expresso no título, não admitindo que lhe seja exigido nada mais. Daí porque Tullio Ascarelli mencionava que o princípio da literalidade age em duas direções, uma positiva e outra negativa. 117

Coelho traz interessantes exemplos. Segundo o autor:

O exemplo mais apropriado de observância do princípio está na quitação dada em recibo separado. Quem paga parcialmente um título de crédito deve pedir a quitação na própria cártula, pois não poderá se exonerar de pagar o valor total, se ela vier a ser transferida a terceiro de boa-fé. Outro exemplo de aplicação do princípio da literalidade se encontra na inexistência do aval, quando o pretenso avalista apenas se obrigou em instrumento apartado. Se do título não consta a assinatura da pessoa de quem se pretendia o aval, a garantia simplesmente não existe, em razão do princípio da literalidade. 118

Desse modo, nota-se a importância do princípio da literalidade para a segurança das relações jurídicas que envolvem os títulos de crédito. Enquanto o credor terá certeza de que tem direito ao que está representado no título, o devedor terá a convicção de que só está obrigado ao pagamento do que consta no título.

2.4.2.3. Autonomia

Pelo princípio da autonomia o título de crédito constitui direito autônomo, independente da relação jurídica subjacente que lhe originou. Segundo Ramos afirma, Vivante ensina que “o direito representado num título de crédito é autônomo porque a sua posse legítima caracteriza a existência de um direito próprio, não limitado nem destrutível por relações anteriores” 119. Ou seja, ainda que haja uma eventual nulidade ou vício na relação jurídica que originou o título de crédito esta nulidade ou vício não atingirão o próprio título, já que este é autônomo em comparação à relação jurídica que lhe é subjacente.

Conforme Coelho, em observância ao princípio da autonomia, “quanto um único titulo documenta mais de uma obrigação, a eventual invalidade de qualquer delas não prejudica as demais” 120.

Ramos ilustra o princípio da autonomia com o seguinte exemplo:

Digamos que “A” compra um carro de “B”, sendo esta compra instrumentalizada por meio da emissão de uma nota promissória no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais). “B”, por sua vez, tem uma dívida perante “C” no valor aproximado de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Nesse caso, “B” poderá quitar a dívida que tem perante “C” utilizando-se da nota promissória dada por “A”, endossando-a (o endosso, como veremos a seguir, é o ato cambial próprio para transferir um título de crédito) para “C”, que se torna o titular dessa nota, podendo cobrar o seu respectivo valor de “A” na data do vencimento. Nessa hipótese, “A” poderá recusar-se ao pagamento do título alegando, por exemplo, eventual nulidade da venda que “B” lhe fez, venda essa que, como dito acima, originou a emissão da nota promissória? A resposta é negativa, e a justificativa está exatamente na aplicação do princípio da autonomia dos títulos de crédito. Ora, se as relações representadas naquele título são autônomas e independentes, os eventuais vícios que maculam a relação de “A” com “B” não atingem a relação de “B” com “C” nem a relação deste com “A”. 121

Assim, este princípio cumpre seu dever de trazer segurança jurídica aos títulos de crédito, eis que não haverá necessidade de discutir a validade ou não, bem como a existência ou não de vícios na relação jurídica que lhe originou. Desse modo, garante-se a sua negociabilidade e circulabilidade.

2.4.2.3.1. Abstração e inoponibilidade

Existem, ainda, dois subprincípios que decorrem do princípio da autonomia, quais sejam: o da abstração e do da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé.

Segundo Coelho, “pelo subprincípio da abstração, o título de crédito, quando posto em circulação, se desvincula da relação fundamental que lhe deu origem” 122. Ressalta, ainda, o autor que “a abstração tem por pressuposto a circulação do título de crédito. Entre os sujeitos que participaram do negócio originário, o título não se considera desvinculado deste”. 123.

Ramos, por seu turno, assevera que

Segundo o subprincípio da abstração, entende-se que quando o título circula, ele se desvincula da relação que lhe deu origem. Assim, no exemplo acima, quando “B” endossou o título para “C”, fazendo-o circular, tal título se desvinculou da operação que lhe deu origem – a compra e venda do carro. A abstração significa, portanto, a completa desvinculação do título em relação à causa que originou sua emissão. 124

Coelho arremata afirmando que

Abstração é conceito ambíguo, na doutrina de direito cambiário. De um lado, se refere ao desligamento da cambial em relação ao negócio originário, numa descrição alternativa às relações jurídicas derivadas da autonomia das obrigações documentais num único título; de outro lado, diz respeito aos títulos de crédito cuja emissão não está condicionada a determinadas causas (os abstratos, em contraposição aos causais). 125

Como visto só se deve falar em abstração a partir do momento que o título é posto em circulação, de modo que é só nessa ocasião que o título se desvincula completamente da relação jurídica originária. Isto se dá em virtude do fato de que enquanto o título de crédito, fruto da relação cambial, permanece apenas entre os participantes da relação obrigacional subjacente existe ainda uma vinculação entre as duas relações. Ao passo que a partir do momento que o título circula no mercado, aí sim haverá uma diferença para que se possa abstrair a relação obrigacional e o título de crédito originado daquela.

Por outro lado, o princípio da inoponibilidade das exceções pessoais a terceiros de boa-fé trata-se da manifestação processual do princípio da autonomia. Na lição de Coelho, “pelo subprincípio da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé, o executado em virtude de um título de crédito não pode alegar, em seus embargos, matéria de defesa estranha à sua relação direta com o exequente, salvo provando a má-fé dele” 126. Ou seja, são não são passíveis de serem opostas contra terceiros exceções (defesas) que não tenham fundamento no próprio título de crédito.

Conforme Ramos

Em função do princípio da autonomia, o portador legítimo do título de crédito exerce um direito próprio e autônomo, desvinculado das relações jurídicas antecedentes, por força do subprincípio da abstração. Sendo assim, o portador do título não pode ser atingido por defesas relativas a negócio do qual ele não participou. O título chega a ele completamente livre dos vícios que eventualmente adquiriu em relações pretéritas. 127

Cumpre ressaltar que em virtude do advento do princípio da boa-fé objetiva no novo Código Civil, a boa-fé do portador do título é presumida, de modo que é a má-fé que deve ser provada.

Veja-se, ainda, que o próprio Código Civil tratou de prever expressamente este princípio, tal como se vê do art. 916, que dispõe que: “As exceções, fundadas em relação do devedor com os portadores precedentes, somente poderão ser por ele opostas ao portador, se este, ao adquirir o título, tiver agido de má-fé” 128.

As defesas que o devedor pode vir a opor contra um terceiro de boa-fé, segundo Ramos, “resumem-se, basicamente, àquelas que digam respeito a relações diretas entre eles, bem como eventuais alegações relativas a vício de forma do título, ao próprio conteúdo literal da cártula, a prescrição, a falsidade, entre outras” 129.

2.4.3. Transmissão dos títulos de crédito

A transmissão de um título de crédito se dá pelo instituto jurídico do endosso. Ou nas palavras de Ramos, “o endosso é o ato cambiário mediante o qual o credor do título de crédito (endossante) transmite seus direitos a outrem (endossatário). É ato cambiário, pois, que põe o título em circulação” 130.

Cumpre ressaltar que o endosso é o ato que transmite os títulos de crédito endossáveis, ou seja, os títulos nominais à ordem, ou simplesmente, títulos de crédito “à ordem”. Os títulos não endossáveis, os nominais não à ordem, ou simplesmente “não à ordem” são transmitidos mediante cessão civil de crédito 131.

Via de regra, os títulos de crédito próprios carregam consigo a cláusula “à ordem”, podendo ser endossados e circularem livremente. Apenas quando for aposta a cláusula “não à ordem” em um título de crédito é que este não poderá circular via endosso, mas apenas por cessão civil de crédito 132. Já os títulos ao portador são transmissíveis por mera tradição, não exigindo maiores formalidades para a transferência do crédito.

O endosso produz dois efeitos, quais sejam: 1) transferir a titularidade do crédito, e; 2) responsabilizar o endossante, de modo que este passa a ser codevedor do título, ou seja caso o devedor não pague o endossatário poderá exigir pagamento do endossante 133.

Uma exceção ao efeito do endosso de responsabilizar o endossante é a aposição da cláusula “sem garantia”, a qual exclui expressamente o endossante de responsabilidade pela obrigação constante do título 134.

Quanto ao modo de se realizar o ato cambiário do endosso, Ramos ensina que “Em princípio, o endosso deve ser feito no verso do título, bastando para tanto a assinatura do endossante. Caso o endosso seja feito no anverso da cártula, deverá conter, além da assinatura do endossante, menção expressa de que se trata de endosso” 135.

Quanto à forma de se realizar o endosso devem ser ressaltadas duas coisas. A primeira é que o endosso deve ser feito no próprio título em atenção ao princípio da literalidade. E a segunda é que na hipótese de o endosso ser feito no anverso do título a necessidade de menção expressa de se tratar de endosso se dá em razão de que, via de regra, o ato cambiário que se apõe no anverso do título de crédito é o aval, assim para que não haja dúvidas de se aquele ato cambiário é um endosso ou um aval existe a necessidade de identificação expressa do ato.

Outro ponto que merece destaque é que tanto a lei especial como o Código Civil veda o endosso parcial, bem como o endosso condicional. Senão vejamos:

Decreto nº 2.044/1908

Art. 8º [...]

§ 3º É vedado o endosso parcial. 136

Lei Uniforme de Genebra (Internalizado no ordenamento jurídico pátrio como Decreto nº 57.663/1966)

Artigo 12

O endôsso deve ser puro e simples.

Qualquer condição a que êle seja subordinado considera-se como não escrita.

O endôsso parcial é nulo.

O endôsso ao partador vale como endôsso em branco. 137

Código Civil

Art. 912. Considera-se não escrita no endosso qualquer condição a que o subordine o endossante.

Parágrafo único. É nulo o endosso parcial. 138

Note-se ainda que não existe um limite quanto ao número de endossos, podendo haver quantos endossos forem necessários e convenientes às partes negociantes.

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